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quarta-feira, 10 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25731: Timor-Leste, passado e presente (11): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte III: A vida de um médico de saúde pública, Dili, 1941 d

 

Uma rua de Dili


Baía de Dili


Ponte-cais de Dili


MIssão católia de Lahane


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Farmácia e posto médico


Dili > Hospital Dr. Carvalho > Enfermaria de mulheres

Timor (c. 1936-1940)

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné (2024)


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


 O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este período dramático  da história de Timor durante a II Guerra Mundial, em que o território foi invadido e ocupado pelos Aliados (forças anglo-australianas e holandesas, em 17 de dezembro de 1941) e, depois, em resposta às forças aliadas, pelos japoneses, passados dois meses, em 19 de fevereiro de 1942. (Mas os japoneses vieram para ficar até ao final da guerra, perante a impotência de Portugal para fazer valer não só a sua soberania territorial como o seu estatuto de país neutral naquele conflito.)

Tanto quanto sabemos, o dr. José dos Santos Carvalho seria  natural de Armamar e teria nascido na primeira década de 1910, ou princípios da década seguinte.  Foi colocado em Timor, como médico de 2ª classe, em 1940, ezercendo funções de autoridade de saúde.

 Atualizámos a ortografia e a grafia dos topónimos. O livro foi redigido no principio da década de 1970, sendo uma edição da Livraria Portugal Editora, na Rua do Carmo 70  (que já não existe como editora, segundo julgamos),composto e impresso na Gráfica de Lamego, concelho vizinho de Armamar.


A vida de um médico de saúde pública 1941 (**)

por José dos Santos Carvalho


Em meia dúzia de páginas (15-24), o autor conta-nos como era o quotidiano, rotineiro, de um médico no mais longínquo território ultramarino, administrado por Portugal.  (Em princípio, o dr. José dos Santos Carvalho deveria ter o curso de medicina tropical e o curso de medicina preventiva / saúde pública, tirados respetivamente no Instituto Superior de Higiene e Medicima Tropical e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.)

O tom não é crítico, em relação nomeadamente à penúria de recursos e ao isolamento em que se encontravam os poucos funcionários portugueses que ali trabalhavam, e uma centena de desterrados, oriundos quer da metrópole quer de Macau, uns por motivos políticos outros por crimes de delito comum: o mais "ilustre" dos deportados políticos era o dr. Carlos Cal Brandão (1906-1973),  um jovem advogado do Porto, que chegaria a Timor em 1931, acusado de "bombista".

Já foi aqui descrita a atribulada viagem (de vários meses, pela rota do Cabo) do nosso médico para chegar, no final do ano de 1940, e começar no ano seguinte a exercer as suas funções (deve ter sido em meados de 1940 que ele foi colocado   em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial"). 

(i) Ficamos logo a conhecer o corpo clínico do  território (4 médicos!), que o esperava à sua chegada, em 29 de dezembro de 1940:

  • o chefe da repartição de saúde, dr. Alves de Moura;
  • o dr. Correia Teles e sua esposa, a dra. Elvira; 
  • o dr. Arriarte Pedroso; 
  • o dr. Francisco Rodrigues.

(...) Desembarcando na ponte-cais de Díli, todos os médicos de Timor aí se encontravam para me receberem (...)-

(...) [O dr. Francisco Rodrigues],  delegado de saúde da zona leste, havia-se deslocado de Baucau a Díli, por essa ocasião. O dr. Arriarte Pedroso era delegado de saúde da zona oeste, mas residia em Díli, o que lhe era permitido por dispor de um automóvel que o levava rapidamente à sua área de acção.

(ii) O atraso, o isolamento e o subdesenvolvimento de Timor eram de tal ordem que só havia, em Dili, a capital, um único "hotelzinho":

(...) Fiquei hospedado no hotel do deportado sr. Costa Alves,
único que então havia em Díli, muito modesto mas asseado e
relativamente confortável.


(iii) Seguem-se no dia seguinte os cumprimentos da praxe às autoridades, e logo ali passa a admirar, incondicionalmente, a figura do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (Porto, 1893 - Lisboa, 1968), oficial de infantaria e administrador colonial, que teve de lidar com a terrível situação da invasão e ocupação de Timor por forças estrangeiras(e que no regresso à Metrópole, em finais de 1945, foi "metido na prateleira").

(...) Na manhã do dia seguinte fui fazer a minha apresentação à direção de administração civil onde o intendente Sousa Franklin me conduziu ao chefe do gabinete do governador, o capitão Manuel do Nascimento Vieira que, imediatamente, me levou à presença do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho.

Figura desempenada de militar de carreira impecavelmente
fardado de branco, profundamente me impressionou o seu porte de natural distinção,  aliado à evidente amabilidade e compreensão com que acolheu o médico novato no meio colonial, convidando-o a ir jantar à sua residência, num dos dias seguintes.

(v) Ficamos a saber qual era a agenda do autor para os próximos seis meses:  seria o delegado de saúde da zona central da ilha (com sede em Díli e abrangendo o concelho deste nome, a circunscrição de Aileu, o posto administrativo da ilha de  Ataúro e o território do enclave de Oecussi).

(...) Como o dr. Alves de Moura estava de partida para a metrópole, em gozo de licença graciosa, o dr. Correia Teles deixaria a delegacia de saúde da zona central e passaria a chefe da repartição de saúde. 
 
(vi) Para a passagem de ano o nosso médico  foi convidado para os
 dois únicos clubes que existiam, e que tinham de chamar-se, tal como na Guiné desse tempo, Sporting, um, e Benfica, o outro. A escassa elite colonial esteve lá, nestas festas de passagem de ano.
  
(...) Assim, como todos os meus colegas e quase toda a sociedade (sic) de Díli, passei essa noite alternadamente numa ou noutra dessas associações, em ambiente de grande animação e alegria, marcadamente familiar mas cheio de dignidade e simpatia.

Estiveram presentes às festas as pessoas mais gradas da terra, todas acompanhadas da sua família:

  • o Governador, 
  • dr. juiz de direito [José  Nepomuceno Afonso dos Santos, pai do Zeca Afonso], 
  • o dr. delegado do procurador da república, 
  • o engenheiro José de Azevedo Noura (sic), diretor das obras públicas, o diretor das alfândegas Monteiro do Amaral, 
  • o diretor dos correios Fortunato Mourão,
  •  o dr. Tarroso Gomes,
  •  o dr. Cal Brandão,
  •  o senhor Jaime de Carvalho, etc, etc.


Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp.  Cortesia de Internet Archive.


(vii) Ficamos a saber que havia alguns automóveis na ilha mas que,  no interior montanhoso, eram de pouco valia,  daí o recurso ao transporte a cavalo. Fala-se tétum no mercado ("bazar"). E é em Lahane, numa encosta sobranceira a Dili, que residem as principais figuras públicas: 

(...) No dia 2 de Janeiro de 1941 iniciei as minhas funções oficiais. Manhã cedo, o dr. Correia Teles foi-me buscar ao hotel com o seu automóvel e saímos da cidade atravessando uma pequena planície onde, perto da estrada, se encontrava em plena atividade o «bazar», isto é, o mercado. 

Senhoras europeias passavam por entre os vendedores de fruta, hortaliça, galinhas, etc, combinando com eles, em tétum, o preço das suas compras.

Passados cerca de dois quilómetros após Díli, começámos
a subir, já na encosta da montanha e logo encontrámos o lugar
de Lahane onde estavam instaladas a missão (um pouco fora
da povoação) e a missão geográfica e tinham a sua residência
o chefe do gabinete do governador, o dr. Juiz, o dr. Francisco
Rodrigues, o director dos correios e outros funcionários.


(viii) Descreve-nos depois o modesto hospital colonial Dr. Carvalho, situado a escassas centenas de metros do "palácio do governador", e que será severamente danificado pelos bombardeamentos japoneses, um ano depois: 
 
(...) Um vasto e bem delineado pavilhão, solidamente construído
de pedra e cal, era o núcleo das várias edificações que o com-
punham. Nele estavam instaladas enfermarias para homens,
quartos de 1ª e 2ª classe, as salas de operações e de tratamentos, a secretaria, etc.

Paralelamente ao pavilhão principal estendiam-se as instalações anexas: cozinha, despensa, arrecadação de géneros, casas de banho e instalações sanitárias.

Próximo do pavilhão principal encontrava-se a casa mortuária, sólida construção em cimento armado.

Para o outro lado do pavilhão principal, em relação à casa
mortuária, existiam um grande pavilhão de madeira e zinco,
utilizado como enfermaria de mulheres e maternidade e outro pavilhão semelhante destinado a doentes indigentes.

Cerca de cem metros mais além, estava a residência do chefe de repartição de saúde e director do hospital.

Colocado em plano mais baixo que o do pavilhão principal
havia um grande edifício de pedra e cal em construção próxima da conclusão (pois já tinha a cobertura e várias portas e janelas), que se destinava a pavilhão de doenças infecciosas. (...)

(ix) Fica-se a saber também que o hospital tinha a sua própria "farmácia do estado" (ou botica, artesanal), a cargo do farmacêutico de 1ª classe, capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira (refugiar-se-á depois, na Austrália, abandonando o serviço)...  

"Semestralmente" (sic), eram fornecidos por Lisboa "os medicamentos, material de penso e cirúrgico, etc. requisitados pela farmácia, os quais se depositavam na grande cave que existe sob o pavilhão central do hospital".

(...) Nesta minha primeira visita aos serviços de saúde fiquei
a saber que a preparação e distribuição de medicamentos para
o hospital e para as enfermarias e ambulâncias das delegacias
competiam à farmácia do estado situada em Díli no mesmo edifício em que funcionava o posto médico, sendo assim designado um posto de consultas e tratamentos para servir a população da cidade em regime ambulatório, dirigido por um dos médicos do Estado que, por isso, recebia a gratificação mensal de cinquenta patacas. (...)

 

(x) Uma nota sobre o seu jantar "à mesa do Estado", ou seja, na casa do governador:

(...) No dia seguinte a este meu primeiro contacto com o serviço público fui jantar à residência do governador, conforme o seu referido convite, sendo recebido com extremos de gentileza e distinção pelo Governador, sua esposa, senhora D. Cora e suas três filhas, alunas do liceu de Díli.

Participou também da refeição, com a sua família, o tenente Francisco José Alves que era cunhado e secretário do governador, e em cuja residência também vivia. Outro convidado foi o chefe de posto Torresão, primo da esposa do governador e meu companheiro de viagem.

(xi) Havia tempo, na colónia, para a prática, então muito "British", do ténis; ao domingo, depois da missa, as famílias iam à praia da baía de Díli (ainda vinha longe a borrasca...)

(...) Durante este jantar surgiu a organização do grupo de jovens que nas tardes das quarta-feiras e sábados, se divertia, jogando ténis, dando passeios a cavalo, jogando o bridge ou, frequentemente, jogando o deck-tennis no pátio da Missão Geográfica onde o coronel Castilho e o engenheiro Canto nos recebiam com toda a benevolência e aprazimento, participando, este último, de muitas das nossas diversões.

Aos domingos, de manhã, após a missa, o ponto de encontro era na praia de Díli onde se passavm agradabilíssimas horas de salutar exercício e distração.

à noite, depois do jantar, havia sempre reunião no Sporting
ou no Benfica, conversando-se ou jogando-se o bridge, pingue-pongue, xadrez, etc, mas sem prolongar o serão pois todos começavam o trabalho de manhã, muito cedo. 


 (xii) Um dia típico de trabalho do dr. José dos Santos Carvalho, autoridade de saúde com funções também de médico-veterinário:


(...) Pelas oito horas da manhã vinha o árabe Abdula buscar-me ao hotel com o táxi de que era chauffeur. Seguíamos para o matadouro municipal, situado em Motael, próximo do farol de Díli, onde eu fazia a inspecção sanitária da carne dos animais abatidos para consumo público, pois Timor não dispunha de médico-veterinário.

Inspeccionada a carne, seguíamos pela estrada que contornava a planura de Díli, para o hospital onde, agora, eu tinha doentes de duas enfermarias a tratar. O meu trabalho ficava concluído cerca de meio-dia e o mesmo táxi me trazia de volta ao hotel. 


(xiii) Como era normal nas colónias, os hospitais eram, para os jovens médicos, uma verdadeira escola pelos casos de doenças, tropicais, infecto-contagiosas com que tinham de lidar, em geral pela primeira vez (boubas, paludismo, beribéri, sarna, disenteria...):

(...) No hospital Dr. Carvalho tive oportunidade de observar casos de doenças exóticas que nunca pudera estudar senão nos livros.

Eram muito frequentes os casos de boubas, uma doença aparentada com a sífilis e que se manifesta pelo aparecimento de tumefacções com o aspecto de toucinho, húmidas e repugnantes.

Felizmente que em Timor esta doença já era, então, facilmente tratada, pois o farmacêutico Oliveira tinha estudado e posto em prática técnicas simplicíssimas de preparar uma suspensão de salicilato de bismuto em óleo de amendoim, a 10%, que se esterilizava pela fervura e que se guardava em garrafas vulgares, também esterilizadas pela fervura. 

Todos os enfermeiros sabiam preparar esta suspensão oleosa que se aplicava em injecções intramusculares, indolores, e que a prática demonstrava não serem mais atreitas a infecções que as das ampolas injectáveis!

Grande surpresa para mim foi o aspecto que nesta terra apresenta a sarna que, quando não tratada, alastra de uma aneira incrível, complicada com lesões impetiginosas que devoram a pele dos doentes e muitas vezes os matam devido a septicémias !

Vulgaríssimos em Timor eram o paludismo, frequentemente de forma perniciosa, e a disenteria bacilar, quase sempre ocasionada pela utilização de fruta não madura, sobretudo mangas verdes, de que os timorenses são muito gulosos.

(xiv) Era uma "pasmaceira", a vida de um médico em Timor em 1941, trabalhando-se em geral apenas de manhã, que o clima (tropical) era violento para um europeu.
 

(...) Os meus serviços clínicos, à tarde, limitavam-se a idas ao
hospital quando, por urgência, era avisado telefonicamente
para aí me apresentar para colaborar em operações cirúrgicas
ou tratar casos urgentes ou quando havia nas enfermarias doentes graves que necessitavam assistência muito frequente.

(xv) Sobrava-lhe tempo e vagar para "conhecer Díli, que então era uma simpática e característica cidadezinha, do tamanho duma vila da metrópole, ensombrada por frondosas árvores, algumas das quais seculares, e dominada pelas alterosas torres da sé-catedral"... 

Uma cidadezinha, acrescente,-se, que não seria diferente de algumas da povoações da Guiné desse tempo (ou que conhecemos, vinte e tal anos depois com a "guerra colonial"): Bolama, Bissau, Bafatá, Nova Lamego... Timor e Guiné tinham em comum o facto de terem energia elétrica pública...

(...) As suas ruas rectilíneas cruzavam-se em xadrez e eram mantidas em conveniente limpeza pelo município. A maioria das edificações era construída de madeira e barro, sendo cobertas com telhados de folha de ferro zincado. Dispunham dum só piso, para poderem suportar sem graves danos os tremores de terra que por estas regiões são muito frequentes, atingindo, por vezes, grande violência.

Destinadas, quase todas a estabelecimento comercial e à habitação dos proprietários eram, em regra, pertença de chineses, havendo, somente, um negociante indiano, o muito conhecido Wadoomahl. Duas casas comerciais se destacavam, de longe, em Díli. A da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho e a da família chinesa Mie-Hap.

No melhor edifício particular da cidade, construído de cimento armado e colocado em situação esplêndida na avenida marginal da baía de Díli, vivia o alemão sr. Max Sander, representante duma companhia, a Ásia Investment Company que se havia estabelecido na ilha com o fim de explorar minérios, mas que nunca chegara a desenvolver essa actividade, apesar de ter praticado extenso trabalho de prospecção e instalado um completo laboratório químico.

Na avenida marginal eneontravam-se os principais edifícios
da cidade (o palácio do governo, o liceu Vieira Machado, a casa da alfândega, o colégio das irmãs canossianas, a escola chinesa, a sede da Ásia Investment Company, etc.) e um lindo jardim dentro do qual estavam, situados dois cortes de ténis de piso em betão para poderem ser utilizados na época das chuvas.


(xvi) O autor dá-nos conta também da sua visita à missão geográfica de Timor, instalada em Lahane, e onde viviam "os então já meus amigos, coronel Castilho e engenheiro Canto".

(...) Mostraram-me as suas instalações e descreveram-me as atividades da Missão. Já tinham feito uma campanha, um ano antes e, agora, prosseguiam-na. Estava concluída a triangulação da ilha e, em breve, seguiriam para o seu interior com  fim da elaboração da sua carta, em escala conveniente. Eram auxiliados nos seus trabalhos geodésicos pelo sargento-radiotelegrafista da marinha, Luís de Sousa, pelo deportado sr. Granadeiro e por vários empregados permanentes, timorenses, muito activos e eficientes.

(xvii)  E, claro, não podia faltar uma visita à missão católica (os missionários eram, afinal, os principais agentes da "ação civilizadora e colonizadora":

(...) Outra minha visita foi à missão de Lahane onde o reverendo vigário-geral, padre Jaime Goulart me recebeu com extremos de cortesia e fidalga amabilidade.

A missão central de Timor estava instalada num edifício de madeira e zinco, com primeiro andar, bastante amplo e confortável, dispondo de capela privativa. Em conversa com o padre Jaime fiquei a saber que os sacerdotes de Timor eram formados no seminário de Macau, sendo oriundos do norte da metrópole, dos Açores, da Índia Portuguesa e de Timor.


 (xviii) Vamos agora conhecer o interior da ilha, pela mão do dr. José dos Santos Carvalho:

(...) Assim, logo de início me resolvi a deslocar-me às ambulâncias da área a meu cargo para tomar contacto e conhecimento objectivo dos respectivos serviços.

A primeira visita que fiz foi de automóvel, ladeando a maravilhosa baía de Tíbar e alcançando Liquiçá, Maubara e Bazar-Tete onde fui acolhido pelos respectivos chefes de posto e enfermeiros.

Poucos dias passados desloquei-me à circunscrição de Aileu, sendo a viagem feita quase toda a cavalo pois o automóvel só podia levar-me até à ribeira de Cômoro, ainda bastante longe da sede da circunscrição.

 (...) Chegados à Cômoro, aí encontrámos os cavalos que, emprestados pelo liurai da região, foram aparelhados com os arreios, isto é, selim com estribos, freio e rédeas, que levávamos no carro, pois os timorenses montam em pelo, guiando o cavalo com uma corda que lhe passa na boca.

Recebidos fidalgamente em Aileu pelo administrador Virgílio Castilho Duarte, natural de Cabo Verde, passámos um dia e uma noite na sua residência que, tal como a de outras autoridades de Timor, era cercada por muros ameados, sendo designada, nesta terra, como a «tranqueira».

(xix) Timor continuava, nessa época (1941), a ser terra de encarceramento e de desterro (situação que se aceita com "naturalidade"):

(...) Em Aileu, visitei a enfermaria regional e o presídio que, como a "tranqueira", dispunha de um pátio rodeado de muros. Os condenados reunidos neste estabelecimento prisional, eram oriundos, não só de Timor como de outras terras portuguesas, donde tinham vindo cumprir as suas penas de degredo. A maior parte dos condenados era de macaenses ou chineses de Macau.

A etapa seguinte foi até Maubisse onde pernoitámos em casa do chefe de posto sr. Ademar Rodrigues dos Santos, prote-gidos do frio que nestas regiões de altitude se faz nitidamente sentir, por espessos cobertores de lã.

No dia imediato cavalgámos em longa jornada até Same onde ficámos instalados na residência do chefe de posto sr. Francisco Mouzinho.

 
(...) Noutro dia, visitei a ambulância de Laulara, situada num
píncaro não longe de Díli, que só era acessível a pé ou a cavalo,
tendo passado e visitado o colégio de Dare onde as irmãs canosianas instruíam e educavam muitas dezenas de meninas.

Utilizando a ambulância do hospital Dr. Carvalho, fui, um outro dia, visitar a enfermaria do Remexio tendo ocasião de aí conhecer o respeitável liurai coronel D. Moisés, majestosa e nobre figura de timorense, com veneráveis cabelo e barba encanecidos.

(...) Aproveitei, então, o amável convite do dr. Arriarte Pedroso
para, no seu automóvel e em sua companhia visitar as povoações da Ermera e Hátu-Lia, terras de altitude razoável, de temperatura agradabilíssima, onde reina a «Primavera eterna» de Teófilo Duarte e a paisagem é paradisíaca.

(xx) De regresso a Díli, vem agradavelmemte reconhecido por este primeiro contacto com "um povo simples, amável e trabalhador". Faltava-lhe conhecer a ilha de Ataúro e o enclave de Oecússi, só acessíveis de barco.

(...) Em certo dia, o administrador do concelho de Díli, sr. ourenço de Oliveira Aguilar, comunicou-me que iria visitar a ilha de Ataúro e convidou-me a acompanhá-lo, visto eu ser o delegado de saúde.

Assim, seguimos no vapor Oé-Kússi, comandado pelo primeiro-sargento da Marinha, sr. Correia.

Pomos recebidos pelo chefe do posto de Macadade, sr. Napoleão, sargento de infantaria, e tivemos ocasião de observar s curiosíssimos costumes primitivos desse povo de simpáticos e acolhedores pescadores submarinos.


(xxi)  Faltava-lhe também ainda conhecer (e exercer) uma das suas funções, a de autoridade sanitária internacional (fiscalização das embarcações e aviões que passavam por Díli):

(...) Num dado dia, o capitão dos portos de Timor, comandante César Gomes Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a participar-me que estava a chegar ao cais um naviozinho que já tinha arvorado a bandeira amarela a pedir a necessária visita sanitária.

Dirigi-me, imediatamente, para o local designado onde aportara um elegantíssimo veleiro em cujo convés se via um único tripulante, em calções e de tronco nu.

Por esses tempos eram muito conhecidas, pelos jornas, as viagens do navegador solitário Alain Gerbault 
 [1893-1941],  francês que num iate, o Firecrest,  se havia celebrizado por ter atravessado, sem escala e sozinho, o Atlântico, desde a França a Nova Iorque e, depois, vagueava solitário pelos mares do mundo.

Por isso, quando subi ao convés do barco, dirigi-me ao comandante e único tripulante, dizendo-lhe, em francês: "O senhor é um novo Alain Gerbault!" 

O meu interlocutor, sorrindo, apresentou-me então a carta de saúde para eu assinar. O navio era... o Firecrest !.

Alain Gerbault, certamente para evitar os azares da guerra ficou ancorado no porto de Díli, vivendo no seu barco. Assim, tive oportunidade de com ele várias vezes contactar e de apreciar as suas extraordinárias qualidades de homem finamente educado e invulgarmente culto e, sobretudo, de me maravilhar com a sua extrema perícia em jogar o ténis, ele que fora, mais de uma vez, concorrente aos campeonatos de Wimbledon !

(xxiii) Mas já havia petróleo, japoneses e até alemães na ilha:


(...) Por esse tempo, o sr. Kuróki, cônsul do Japão em Díli,
deu uma festa no Sporting, para a qual convidou as personalidades de maior projecção no meio social da cidade. 

Deste modo tomei contacto, pela primeira vez, com essa gente. Desfaziam-se em mesuras e mostravam-se amabilíssimos procurando, certamente, agradar. Porém, evidentemente, não enganavam nenhum dos portugueses presentes. Com excepção do cônsul e do chanceler do consulado, os súbditos nipónicos que se encontravam em Timor trabalhando na Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho eram, provavelmente, espiões e, alguns deles, pelo menos, militares, pois os seus gestos os traiam. 

Em breve soube que o governador os mandava vigiar atentamente e somente lhes permitia as viagens indispensáveis, pois as suas actividades os haviam tornado suspeitos além de que, sem razão plausível, do Japão mandavam frequentemente novos homens a substituir os que se encontravam em Timor, pois não lhes era n permitido aumentarem o seu número.

(...) Na festa do consulado japonês encontrei, também, o australiano, velho colono de Timor Arthur Brian e os dois técnicos da QANTAS, srs. David Ross e Robert Smith que já conhecia das partidas de ténis e que, também, eram com toda a evidência, militares disfarçados.  

(...) Há muito tempo que em Timor tinha sido encontrado petróleo. Uma companhia estrangeira, a Allied Mining Timor Corporation havia feito furos de prospecção que mandara obturar assim que encontravam petróleo, explicando essa determinação pela não existência de depósitos economicamente exploráveis !

Num dado dia chegou a Díli o engenheiro Veiga Lima, nrepresentante duma companhia portuguesa recém-formada, a Companhia Ultramarina de Petróleos, afirmando que os trabalhos necessários iriam imediatamente começar. A verdade é que, logo a seguir, ela apareceu associada a uma nova companhia, holandesa, regressando o referido engenheiro a Portugal e sendo substituído pelo engenheiro-geólogo Brower, de nacionalidade holandesa, que com ele tinha vindo para Timor.

Teve este último engenheiro todas as facilidades para fazer os estudos topográficos necessários para a investigação da existência de petróleo em Timor, pois a carta da colónia feita por fotogrametria interessava, também, para complemento daquela que a Missão Geográfica estava a ultimar.

Assim, foi o piloto holandês do avião da carreira para Koepang que tirou as fotografias sucessivas que, vistas através duma lente binocular davam a sensação do relevo duma maneira flagrante e pude apreciar na Missão Geográfica onde eram revelados os filmes e depositadas todas as provas, conforme o exigido pelo governo de Timor.

Por esse tempo, os japoneses conseguiram autorização
[de Lisboa, não do governador local], para estabelecerem uma carreira de hidroaviões entre Tóquio e Díli, com escala pela ilha de Palau, que não tinha qualquer justificação económica razoável, pois não havia comércio com o Japão e de Palau a Díli os grandes hidroaviões da carreira demoraram, em voos experimentais, nove horas! 

 Assim, obtiveram oportunidade de alargar substancialmente o número dos seus técnicos residentes em Timor, pois as infraestruturas de apoio necessárias ao hidroaviões requeriam a presença inadiável de pessoal competente em mecânica e radiotransmissão.


(xxiv) E eis que chegam, em meados do ano de 1941, novos portugueses, incluindo o capitão Freire Costa, novo comandante da Companhia de Caçadores de Timor:

(...) Já perto do meado do ano, chegou a Díli o novo director da administração civil, intendente dr. João Ferreira Taborda (...). No mesmo barco vieram para Timor o comandante da companhia de caçadores, capitão Freire da Costa e o administrador António Policarpo de Sousa Santos, funcionário do quadro privativo da colónia, que foi colocado em Bobonaro (...).

Entretanto, passaram-se os seis meses do meu estágio de médico que iniciava a carreira em meio colonial, pelo que fui nomeado delegado de saúde da zona leste, em fins de julho de 1941,seguindo para Baucau, a florescente Vila Salazar, no vapor Oé-Kússi. (...)


Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 15/24

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, parênteses retos, itálicos  e negritos: LG) 
___________

Notaa do editor:



(**)  "O Hospital Civil e Militar Dr Carvalho foi projectado em 1892 pela Direcção de Obras Públicas do Distrito de Timor, sendo então governador Cipriano Forjaz (1890-1894). 

A proposta da sua construção foi feita ao Ministério da Marinha e dos Territórios Ultramarinos por Custódio de Borja, governador de Macau (1890-1894), a quem estava sujeito o governador de Timor, para substituir o Hospital Militar de Díli, erguido no década de 1870, cuja condição precária não lhe permitia prestar cuidados de saúde adequados à população local. 

Situado em Lahane, nos subúrbios da capital, conhecido pelo seu clima saudável, a construção do complexo hospitalar, que incluía também alojamento para funcionários, foi iniciada durante o governo de Celestino da Silva. Financiadas com recursos locais, as obras demoraram vários anos e o hospital foi finalmente inaugurado em 1906. 

Inicialmente nomeado em homenagem a D. Carlos I, passou a chamar-se Hospital Dr Carvalho após a implantação da República, em homenagem ao Dr. Tomás de Carvalho, que foi o primeiro representante da Província de Macau e Timor na Câmara dos Deputados (Parlamento) em Lisboa. 

A sua planta foi inspirada no modelo tipológico dos sanatórios de montanha então em voga na Europa no século XIX. Tem a estrutura de um pavilhão e assenta num pequeno planalto. Está alinhado com as curvas da encosta, correspondendo seu traçado aos principais serviços hospitalares. Está dividido em módulos autónomos de diferentes níveis para funções auxiliares e serviços de apoio hospitalar. O próprio hospital apresenta uma organização alinhada, com uma galeria de cada lado do corpo central na fachada principal conferindo ao conjunto um desenho simétrico, sendo o eixo realçado por um pequeno frontão curvo. 

O hospital de Lahane, o único em Timor até meados da década de 1930, altura em que se iniciou a construção de um novo em Liquiçá, foi  constantemente melhorado com novas valências. Ali foi inaugurada uma escola de enfermagem em 1920 e uma unidade para isolamento de doentes  com tuberculose foi construída na década seguinte. 

Após a invasão japonesa de Timor em 1942, as forças de ocupação assumiram o controlo do hospital até serem expulsas pelas tropas aliadas três anos mais tarde, mas o bombardeamento resultante deixou o edifício gravemente danificado.

Restaurado após a guerra, forma feitas  vários melhoramentos. Contígua ao edifício principal foi construída uma maternidade e criados um bloco operatório, uma enfermaria pediátrica e um laboratório clínico.

 Esta intervenção privou o hospital da sua traça original, pois foi retirado o frontão curvo, eliminando assim a simetria do edifício e abrindo a galeria a todo o comprimento do edifício. Isto privou o edifício do seu aspecto latino e o hospital assumiu o aspecto de um edifício colonial de origem britânica, segundo modelos utilizados principalmente na Índia e na Austrália por aquela potência".

Edmundo Alves | Fernando Bagulho

Fonte: trad. e adapt. de HIPP - Património de Influência Portuguesa > Dr. Carvalho Hospital  > Dili, Timor > Equipamentos e Infraestrturas (em inglês)

(**) Segundo a Wikipedia, em francês, Gerbault morreu em 16 de dezembro de 1941, em Díli, Timor Leste, de malária, abandonado, e na mais completa miséria. Valeu-lhe a solidariedade dos portugueses, incluindo o governador Manuel Abreu Ferreira de Carvalho.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25128: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte II: embarque de tropas expedicionárias para os Açores, em maio de 1941

 


Legenda (não há indicação do autor da foto):  "O sr. capitão Santos Costa, Subsecretário de Estado da Guerra, passa revista a mais um contingente de tropas para reforçar a guarniçáo militar dos Açores.  Desta vez foi um contingente de engenharia que embarcou para aquele arquipélago, no 'Carvalho Araújo' "... (O glorioso paquete "Carvalho Araújo" que navegou durante 4 décadas entre as ilhas e o continente e transportaria ainda tropas para a Guiné, no nosso tempo, antes de chegar oa fim dos seus dias...)

Capa da "Vida mundial ilustrada : semanário gráfico de actualidades": ano I, nº 2, 29 de maio  de 1941. Preço: 1 escudo. (*)

(A imagem foi reditada, com a devida vénia... LG; cortesia de Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municioal de Lisboa





Legenda: "Soldados Portugueses cotinuam a seguir para várias pates do Império onde a sua presença se torna necessária para afirmação da nossa soberania.  Damos, em cima, dois aspetos do último embarque de tropas para os Açores".
  

1. É desconhecido,  da maior parte dos nossos leitores, o esforço que Portugal teve que fazer na II Guerra Mundial para se defender e defender os seus territórios ultramarinos, com destaque para os arquipélagos atlânticos de maior interesse estratégico para os beligerantes: as potências do Eixo (Alemanha, Itália,  etc.) e os Aliados (Inglaterra, EUA, etc.).

Sobre os planos de defesa de Cabo Verde, já aqui temos falado (**)... Cerca de seis mil homens foram enviados para Cabo Verde, com destaque para as ilhas do Sal e de São Vicente. Para os Açores, form quase cinco vezes mais: 28 mil homens.

Era então Subsecretário de Estado da Guerra, braço direito de Salazar, considerado um "germanófilo",  o capitão Santos Costa (1899 - 1982)  (***).

Eis alguns resumos e excertos da dissertação de mestrado de Tiago Henrique Magalhães da Silva (2010), abaixo citado:

(,...) "Com o início da guerra, e até 1940, dão-se algumas alterações militares" (...) O  exército ordena uma mobilização parcial, passando de c. de 32,6 mil homens, em 1939, para 48,9 mil. Não há ainda preocupaçõea com a defesa das ilhas (e em especial dos Açores).

(...) "O Exército reforça também significativamente as ilhas a partir de Abril de 1941. Será a maior força expedicionária portuguesa, a dos Açores, contabilizando 28 000 homens, o que corresponde a duas divisões. Apesar da grandeza do dispositivo, as carências de armamento não podem ser mais claras, apenas o número das armas ligeiras está de acordo com as necessidades do exército." (...)

Há um reforço de três batalhões de infantaria expedicionários: 
  • o BI 8, para o Faial:
  • o BI 9, para S. Miguel:
  • e o BI 10, para Angra.

Em Julho de 1941, chega aos Açores a terceira vaga dos reforços, incluindo mais batalhões de infantaria: o BI 12 e o BI 14, ambos para S. Miguel. 

Em novembro de 1941, a quarta (e última) vaga vem completar, no essencial, o dispositivo militar  do arquipélago.

Nas próprias ilhas também se fazia, entretanto,  um importante esforço de mobilização: são criando-se vários batalhões de infantaria a partir das duas unidades-mãe: os batalhões independentes de infantaria, o BII 17 (Terceira) e o BII 18 (S. Miguel).

O número de 28 000 homens apontado por António José Telo (historidor, professor catedrático aposentado da Academia Militar) poderá, eventualmente, corresponder à totalidade de efectivos contabilizando substituições, ou talvez, englobando os efectivos da Marinha.

Segundo António José Telo  ("Os Açores e o controlo do Atlântico: 1898 – 1948. Porto: ASA, 1993, pág. 276, cit, por Silva, 2010, pág. 86):

(...) "Em 1941, o comando militar dos Açores dirige já uma guarnição distribuída por três ilhas, com uma presença simbólica nas outras. O grosso das forças está em S. Miguel, sede de três regimentos de infantaria (RI 18, 21, 22), companhias de metralhadoras, artilharia antiaérea e de campanha e as baterias de defesa de costa de Ponta Delgada. O RI 17 está na Terceira e o RI 20 no Faial, ambas as ilhas reforçadas com unidades de artilharia de campanha, antiaérea e auxiliares”. (...)

Fonte; Adapt. de Tiago Henrique Magalhães da Silva - "Operação dos Açores 1941". Dissertação de Mestrado em História Contemporânea. Porto:  Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2010, 117 pp. (Sob a orientação do Professor Doutor Manuel Loff). 


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Notas do editor

(*) Vd.  29 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25120: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte I: embarque de tropas expedicionárias para Cabo Verde, em junho de 1941.... "Partiram alegres e confiantes"...

(***) Sobre o gen Fernando dos Santos Costa   (1899-1982)

Militar e político que foi figura destacada do regime salazarista. Entre 13 de Maio de 1936 e 6 de Setembro de 1944 ocupou o cargo de Subsecretário de Estado no Ministério da Guerra, de cuja pasta era titular o próprio Presidente do Conselho, Salazar, a quem sucederá à frente do Ministério da Guerra entre 6 de Agosto de 1944 e 2 de Agosto de 1950. Quando a pasta da Defesa substituiu a da Guerra, manteve-se à frente do novo Ministério até 4 de Agosto de 1958, data em que foi afastado do governo. Em 1961 foi promovido a General. (José Martins)

Vd. a publicação Correspondência do General Santos da Costa (1936-1982). Organização e prefácio: Manuel Braga da Cruz . Editora: Verbo, Lisboa, 2004,

"O General Fernando Santos Costa foi um dos mais estreitos colaboradores de Salazar e um dos mais longevos ministros dos seus governos. Ao longo dos 22 anos que esteve no Governo, onde ocupou os cargos de subsecretário de Estado da Guerra e de ministro da Guerra e da Defesa, foi a figura mais importante do regime junto do Presidente do Conselho de Ministros. Principal fautor da reestruturação das Forças Armadas e da sua subordinação ao poder político, Santos Costa participou ao lado de Salazar, de modo decisivo, na formulação da política de guerra, desde o deflagrar da Guerra Civil de Espanha até ao início da Guerra Fria, depois do termo da II Guerra Mundial (****), assumindo desse modo relevante papel não só nacional como internacional. 

"A documentação que se reúne nesta obra, com prefácio de Manuel Braga da Cruz, contribuirá seguramente para uma maior compreensão da personalidade de Santos Costa e de suas ideias e orientações políticas".

(****) Portugal e a II Guerra Mundial - Cronologia breve (LG):

1939

17 de Março - Assinado por Salazar e Franco o Pacto Ibérico, Tratado de Amizade e Não Agressão

1 de Setembro - Invasão alemã da Polónia. Início da II Guerra Mundial. Portugal, no dia seguinte, declara a sua posição de neutralidade no conflito europeu.

1940

Começam a afluir a Portugal dezenas e dezenas de milhares de refugiados, na sua maioria judeus, e nomeadamente em trânsito para os EUA.

6/7 de Junho - A Alemanha invade a França que irá capitular. Reafirmação da "estrita neutralidade" de Portugal. Conhecimento dos planos (secretos) da "Operação Félix" (invasão de Espanha e, eventualmente, Portugal, para a conquista e ocupação de Gibraltar, vital para o controlo do Mediterrâneo). Os ingleses fazem todos os esforços para manter a neutralidade da Península Ibérica.

Dezembro - Plano de retirada do governo português para os Açores na hipótese (temida pelos ingleses e levada a sério por Salazar) de invasão do país pela Alemanha e pela Espanha. O arquipélago dos Açores chegará a ter quase 3 dezenas de milhares de homens em armas, com equipamento inglês.

1941

22 de Junho – A URSS é invadida pela Alemanha. Aumenta a germanofilia em Portugal,  nomeadamente. Estreitam-se os laços económicos com a Alemanha.

Dezembro - Declaração de guerra dos Estados Unidos contra as pptências do Eixo, após o ataque japonês a Pearl Harbour. Reforça-se em Portugal o receio de ocupação, pelos Aliados, das ilhas atlânticas. Aumenta a importância estratégica dos Açores. Em 1941 Portugal perde 4 navios, três dos quais da marinha mercante, incluindo o Cassequel, de 122 m, da Companhia Colonial de Navegação. No final do conflito, terã perdido 18 mil t, o equivalente a 7% do total da arequeação bruta

1942

Março - Racionamento de bens essenciais, na sequência de Bloqueio económico imposto pelos Aliados. Portugal é obrigado a aceitar, no verão desse ano, um acordo comercial favorável aos interesses do seu velho aliado que lhe garante a independência da metrópole e das ilhas adjacentes bem como a soberania das colónias.

Novembro/Dezembro - A sorte das armas começa a virar-se para os Aliados.

1943

Janeiro - Capitulação dos alemães em Estalinegrado.

Maio – Queda da Tunísia a favor dos aliados. Ameaça sobre os Açores, vital para o abastecimento de aviões provenientes da América. Negociação com os ingleses e depois com os americanos.

Agosto - Cedência das bases das Lajes, nos Açores. O Governo Britânico compromete-se a dar apoio e auxílio militar a Portugal, em caso de ataque. Modernização das nossas Forças Armadas.

Junho - Portugal cancela a exportação do volfrâmio, face ao braço de ferro mantido com a Inglaterra. O principal cliente deste minério, essencial para a indústria de armamento, tinha sido a Alemanha.

1944

Maio - II Congresso da União Nacional. Delineada a estratégia de sobrevivência do regime de Salazar.

6 de Junho – O tão esperado Dia D (Desembarque nas praias da Normandia pelas forças aliadas).
Novembro - Acordo (secreto) de concessão de facilidades militares nos Açores, assinado por Portugal e os Estados Unidos.

1945

30 de Abril – Morte de Hitler em Berlim. Três dias de luto oficial decretados pelo governo português.

Maio – Capitulação das tropas alemãs.

6 e 9 de Agosto - Lançamento de bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, que irão apressar a rendição japonesa (a 2 de Setembro)

27 de Setembro – O território de Timor volta à administração portuguesa, depois da ocupação japonesa (mas também australiana e holandesa).

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Nota do editor:

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18739: Historiografia da presença portuguesa em África (118): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Confesso que comecei a leitura deste documento na presunção de que se tratava de mais um texto de farronca e glorificação do senhor governador. Enganei-me redondamente. Primeiro, o senhor governador sabia da poda e desenhou um questionário primoroso, podia aquilatar, pelas respostas recebidas, da preparação dos seus colaboradores. Vive-se um período de guerra duríssima, as colónias francesas não obedecem ao governo de Vichy, é seguro que Salazar não queria que se levantassem ondas, dentro da sua neutralidade colaborante. O acervo informativo que o governador obteve não nos deixa aturdidos mas obriga-nos a pensar, a ver a realidade sobre vários prismas. Há administradores que falam em regeneração e ressurgimento do Império, outras há que sugerem, mesmo com punho de renda, que é necessário pôr termo à exploração desenfreada do indígena, e outros também se mostram dispostos a pôr as mãos na massa para melhorar a vida naquela parcela do Império, veja-se o que diz o administrador da circunscrição civil de Farim, recordo que estamos em 1941.

Um abraço do
Mário


Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (3)

Beja Santos

Do que me é dado saber, a conferência dos administradores que decorreu no início de Dezembro de 1941, por determinação do Governador, o então Capitão Ricardo Vaz Monteiro, foi a primeira iniciativa de auscultação das autoridades coloniais e altos funcionários mediante uma agenda previamente distribuída, tratou-se de um debate que permitiu ao governante tirar conclusões e publicar as memórias dos intervenientes. É surpreendente como este documento é praticamente ignorado quando encerra conhecimentos e desvela com relativa limpidez o que era a mentalidade colonial de então. A mentalidade e o nível de preparação dos quadros dessa administração.

Tenente-Coronel Ricardo Vaz Monteiro, fotografia inserta no livro “Guiné, alvorada do Império”, homenagem ao Engenheiro Raimundo Serrão, que foi Governador da Guiné depois do Comandante Sarmento Rodrigues.

Concluiu-se o apontamento anterior com referências a observações sobre a falta de conhecimentos dos nativos sobre a mancarra, reduzido a um puro objeto de negócio. Curiosamente, na sua memória o administrador da circunscrição de Cacheu também versa o assunto: “O indígena da colónia, na sua quase totalidade, encontra na cultura da mancarra o meio mais seguro de garantir a solvência do imposto político que é o mais quantioso das contribuições que os direitos de soberania lhe exigem”. E tem opinião também sobre a reformulação dos celeiros: “Os celeiros devem ser constituídos e localizados onde de facto possam melhor atender ao fim da assistência agrícola ao indígena. É preciso saber-se que para o Manjaco entregar de boa-fé uma parcela da sua colheita, carece de ganhar a certeza de que o régulo ou chefe, longe das vistas dele, não vai retirar dos celeiros comunais indígenas um bago de arroz ou um grão de mancarra. Desta sorte, os celeiros a constituir deverão sê-lo nas redes dos postos e das administrações”.

E tem também opinião sobre como melhorar a política indígena dos chegados e regulados, deixou escrito o seguinte na sua memória:
“Afigura-se-me que, fazendo afastar destas regiões os pretensos candidatos, depois de a autoridade administrativa verificar qual o indígena com direitos, de facto, à chefia ou regulado. Os régulos, nesta área administrativa, no geral, são impostos e pertencem a raça diferente: Mandingas, Fulas e Biafadas. As razões que a tal obrigam, desconheço-as.
Para mim, estas autoridades não são mais do que uns chefes de posto em miniatura, usufruindo de todos os benefícios consagrados a quaisquer régulos que tivessem ascendido aos lugares, por direito consuetudinário.
A estas ou a qualquer autoridade indígena, por desconfiança, não recorrem os Balantas, porque, delas, pouca justiça esperam e alcançam.
Para um indígena desta área administrativa, o régulo ou chefe é considerado, unicamente, como um elemento de ligação, entre ele e as autoridades.
Pouco sociáveis, com tendência para o isolamento, procuram encobrir todos os seus actos, a não ser nas festas de circuncisão ou batuques funerários, onde se reúnem em grande número. Nestas festas, fugindo ao habitual, cantam as suas proezas, principalmente o roubo, em que são peritos.
Fornecendo esses autos os elementos que conduzem Vossa Excelência a uma resolução rápida justa, creio que contribui, grandemente, para o sossego das populações. Digo assim, porque o indígena aprecia muito a resolução rápida das suas questões e a justiça da sentença, da qual tem uma intuição segura. Ele sabe apreciar e considerar a autoridade que, revestida de função julgadora, com equidade, soluciona os seus pleitos.
Afigura-se-me de manter as disposições da Reforma Administrativa Ultramarina no tocante a autoridades indígenas. Ao chefe de posto nunca deve ser atribuída tal competência nesta questão de política indígena, tão importante, que, a não ter uma orientação segura, provocaria grandes perturbações. De resto, este facto tem-se observado em determinados pontos da colónia por insuficiência de conhecimento do meio, mesmo por parte de alguns administradores”.

Da memória do administrador da circunscrição civil de Farim obtêm-se informações muitíssimo úteis. Logo sobre a cultura da mancarra, ele tece observações sobre o trabalho do cultivo e da colheita:
“A cultura da mancarra, em Farim, é feita quase exclusivamente por Mandingas e Mancanhas, que divergem, uns dos outros, na maneira de semear e até de colher aquele produto.
A maioria dos Mandingas faz as suas sementeiras em terras lisas e começa a colher a mancarra logo que cessam as chuvas para que a terra, ao secar, não lhe dificulte aquele trabalho nem o obrigue a maiores esforços.
O Mancanha prepara a terra convenientemente, faz as suas sementeiras em camalhões, o que é aconselhado pelos velhos tratadistas, e recolhe a mancarra da terra por meio de uma espécie de cava, muito depois de findas as chuvas. Este processo dá margem a que o produto se desenvolva mais racionalmente e tenha uma melhor aceitação no mercado.
Seria realmente interessante conseguir que o Mandinga extraísse a mancarra da terra na mesma ocasião em que o Mancanha o faz, e pelos mesmos processos que este adopta”.

E não menos interessante é o que ele escreve sobre a cultura do arroz:
“Conheço a cultura do arroz feita por chineses, japoneses, javaneses e timorenses e, interessou-me, por isso mesmo, conhecer os processos adoptados pelos indígenas da Guiné.
Toda a gente sabe que o chinês é, por excelência, o mestre desta cultura, que a estuda nos mínimos detalhes para tirar dela o melhor partido, na produção e qualidade.
Adopta, invariavelmente, o sistema dos alfobres, fazendo as transplantações na época devida, e por ser este o processo de obter um enraizamento da planta mais vigoroso, uma produção mais abundante e rápida.
O trabalho feito pelos agricultores indígenas de Catió, é perfeitamente idêntico ao que adoptam os lavradores chineses, na parte relativa ao estabelecimento dos alfobres e transplantação das plantas para os locais definitivos.
Diferem, unicamente, no preparo das várzeas, talvez porque não possuem gado em quantidade suficiente e devidamente amestrado para lavrá-las.
Quanto ao aumento da produção, ele depende, unicamente, da quantidade de semente que eles possuírem, das condições climatéricas e, sobretudo, de uma intensa fiscalização no acto do preparo das terras, para que a sua área seja aumentada.
Mas, se este meu modo de ver refere-se somente às regiões produtoras do arroz, outras terras há que podiam ser aproveitadas para o mesmo fim, desde que fossem dotadas com um sistema de irrigação, embora rudimentar.
Há, nas imediações do rio de Farim, quase me linha paralela com o seu curso, alguns milhares de hectares de terras que se prestam optimamente para a cultura do arroz, mas que não são exploradas nem aproveitadas por falta de água.
O rio Farim, cuja água é doce durante todo o ano, oferece vasta matéria-prima para a irrigação dos referidos terrenos, e as despesas a fazer com a realização desta obra pode dizer-se que seriam bastante diminutas.
Eu comprometer-me-ia a executá-la desde que possuísse uma bomba centrífuga movida a vapor ou electricidade, com a capacidade de rendimento preciso.
Seria esta a única despesa efectiva a fazer porque dispensavam-se canalizações condutoras de água e outros materiais acessórios.
E as regiões que se encontram abandonadas, que para nada têm servido até aqui, passariam a ter um desenvolvimento muito importante e a marcar um lugar de destaque no desenvolvimento económico da colónia.”

Este senhor administrador de Farim ainda tem mais coisas para dizer com propriedade e falta registar os comentários dos administradores do Gabu, Bula e Bijagós. Deixemos este registo para o próximo e último texto que se dedicou a esta conferência de que não se conhece antecedentes, pela qualidade e intensidade da informação carreada.

(Continua)

Quartel Militar em Bolama, fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18716: Historiografia da presença portuguesa em África (116): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18716: Historiografia da presença portuguesa em África (117): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2018::

Queridos amigos,
Tenho razões fundadas para considerar esta obra como de grande relevo para a compreensão da mentalidade colonial do início da década de 1940.
Desconheço inteiramente qualquer tipo de iniciativa governamental como esta, uma conferência bem organizada, foram enviados despachos para os administradores e altos funcionários e corrigiram-se elementos relevantes nas memórias produzidas. Poderá questionar-se por que razão o Capitão Vaz Monteiro não abordou obras públicas e comunicações. A resposta parece ser simples, se pensarmos que estamos no auge da guerra, não há dinheiro, pode mesmo tomar-se esta iniciativa como o fazer das tripas coração e aproveitar a boleia da austeridade como um novo vetor de importantes mudanças, que o governador reconhecia como urgentíssimas, desde a economia agrícola, à dinâmica exportadora e ao uso da língua portuguesa.
Uma grande surpresa, esta conferência para administradores, em 1941.

Um abraço do
Mário


Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (2)

Beja Santos

Não posso deixar de confessar a grande surpresa que foi a leitura deste documento que, tanto quanto me parece, tem passado despercebido aos estudiosos da Guiné. O Capitão de Artilharia Ricardo Vaz Monteiro foi Governador da Guiné entre 1941 e 1945. Não conheço nenhuma iniciativa precedente deste jaez. No final de 1941, mais propriamente entre os dias 3 e 8, o Governador que enviara um conjunto de despachos aos administradores de circunscrição e responsáveis pelos serviços públicos da colónia, na presença do Ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado, abriu uma conferência que, no seu dizer, tinha de ser franca, seria permitido a cada um dos participantes dar parecer sobre a matéria dos despachos. É uma edição bem estranha, não se sabe quem é o responsável pela edição, onde e como foi publicada, tem uma capa singela intitulada Conferência dos Administradores, Atas das Sessões Realizadas em 1941, sob a Presidência do Governador da Colónia, Capitão Ricardo Vaz Monteiro, seguidas de Despachos e Memórias.

Impressiona a preparação do governador, a exaustão dos temas e a competência que mostra no final de cada um dos debates, foi esta a matéria do texto anterior cuja leitura se recomenda para que a leitura deste ganhe mais transparência.

Em Novembro desse ano, o governador enviara a todos os participantes um rol de despachos, abarcando matérias tão diversas como: sementes e culturas; licenças para o exercício do comércio fora das povoações comerciais; utilização dos serviços dos ajudantes de pecuária, fiscais do Conselho Técnico de Agricultura e guardas florestais; melhoramento das condições de exploração agrícola indígena; cultura do milho; exportação do gado bovino; produção de couros; apicultura; concessões de terrenos; língua portuguesa e religião dos portugueses; pomares, palmares, hortas e viveiros; aumento das manadas e melhoramento das espécies; política indígena dos chefados e regulados; projetos dos orçamentos privativos dos concelhos e das circunscrições civis.

Cada um dos despachos inclui reflexões. Só alguns exemplos.
No despacho n.º 1, sugeria-se a escolha em cada região dos campos de mancarra com melhor aspeto. Depois de escolhida e convenientemente seca esta mancarra, ela devia ser conservada nos celeiros comunais. E o governador avançava com desafios: “Os administradores devem propor as medidas que julgarem convenientes para se aumentar a produção da mancarra, quer por compra de semente, quer por exigência indígena de maiores quantidades para os celeiros. Os administradores devem dar parecer sobre a conveniência de se manterem os atuais celeiros individuais, de povoação, dos postos e das sedes de circunscrição”.
No despacho n.º 2, entre outras reflexões, havia esta: “Não se tem cumprido a exigência do aproveitamento do terreno das concessões e das propriedades. Este facto muito tem contribuído para que o melhoramento das condições económicas da Colónia venha sendo prejudicado desde há longos anos”.
No despacho n.º 13, referente à política indígena, punham-se questões muito concretas: “Qual a maneira de evitar que o regime de chefados e dos regulados não provoque a agitação constante que se nota entre os pretendentes e os seus partidários?” e pediam-se comentários à seguinte consideração: “Tanto no caso de haver sucessão pacífica de conformidade com o direito consuetudinário como nos casos em que resulte interregno ou haja litígio, a experiência aconselha que a nomeação destas autoridades gentílicas seja feita pelos chefes dos postos, pelos administradores, pela Repartição Central dos Serviços da Administração Civil ou pelos governadores”.

Se há já surpresa na natureza desta iniciativa, ao que se crê sem precedentes, se se perceciona o alto calibre dos despachos, lê-se também com grande surpresa os elementos carregados pelas memórias trazidas pelos administradores e altos funcionários dos Serviços da Administração. Matéria de maior interesse, escolhemos hoje um conjunto de elementos fornecidos por alguns administradores, deixando os restantes para um terceiro e último texto.

O administrador do concelho de Bissau, a propósito do exercício do comércio fora das povoações comerciais apresentou a seguinte proposta: fiscalizar a ação dos senhores feudais, dizendo explicitamente que “na área de Bissau existe uma propriedade medindo cerca de 546 hectares onde a fiscalização das autoridades não pode ser exercida devido à oposição do proprietário. Neste vasto feudo, o seu detentor chega ao ponto de protestar pelos impostos que incidem sobre os seus (!) indígenas”. E foi opinativo sobre o crioulo: “O crioulo da Guiné, que difere do crioulo de Cabo Verde, é constituído por vocábulos diversos do português arcaico, inglês, francês, espanhol, línguas étnicas, dos povos que têm exercido influência na colonização da Guiné. Em nossa opinião, só uma ação persistente das autoridades e a criação de escolas móveis conduzirão o indígena, no fim de um certo número de anos, a familiarizar-se com a língua portuguesa”.

O administrador do concelho de Bafata observou que: “80% dos indígenas não sabem para que queremos nós a mancarra que lhe compramos e os restantes dirão que é para a comermos. Evidentemente que não se apercebe da conveniência em a apresentar livre de impurezas e com melhor aspeto. O que sabe é que isso representa para ele, um acréscimo de trabalho e uma diminuição de proventos. Se o comerciante lhe apresenta à venda em más condições, este habituar-se-ia a apresentá-los limpos, por fim convencido de que com má apresentação os não conseguimos vender em parte nenhuma, mas uma parte do comércio compra tudo: pedras, paus, terra e cascas”.

Veremos então no próximo texto outras observações e comentários de administradores de circunscrição, não se pode negar que se trata de um repositório invejável de notas que permitem, de algum modo, ajudar a qualificar a administração colonial na Guiné, no início dos anos 1940.




Nota:
Estas imagens foram retiradas da revista Defesa Nacional, um número de 1946 dedicado às comemorações do V Centenário da descoberta da Guiné, a primeira imagem é hoje um clássico, o soldado vigilante na fortaleza da Amura, a segunda mostra os bijagós à volta de um momento dedicado à pacificação e a terceira é para mim um achado, sempre ouvi falar nos cristãos de Geba e na importância da paróquia de Geba, nunca vira qualquer fotografia, a minha curiosidade está satisfeita.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 16 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18641: Historiografia da presença portuguesa em África (114): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18644: Historiografia da presença portuguesa em África (115): Otto Schacht, um comerciante alemão, que deu dores de cabeça às autoridades da colónia e à diplomacia portuguesa... e que terá sido avô de um outro Otto Schacht, futuro dirigente do PAIGC, assassinado em 14 de novembro de 1980, data do golpe de Estado de 'Nino' Vieira (Armando Tavares da Silva)