Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)
1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.
Em meia dúzia de páginas (15-24), o autor conta-nos como era o quotidiano, rotineiro, de um médico no mais longínquo território ultramarino, administrado por Portugal. (Em princípio, o dr. José dos Santos Carvalho deveria ter o curso de medicina tropical e o curso de medicina preventiva / saúde pública, tirados respetivamente no Instituto Superior de Higiene e Medicima Tropical e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.)
- o chefe da repartição de saúde, dr. Alves de Moura;
- o dr. Correia Teles e sua esposa, a dra. Elvira;
- o dr. Arriarte Pedroso;
- o dr. Francisco Rodrigues.
(ii) O atraso, o isolamento e o subdesenvolvimento de Timor eram de tal ordem que só havia, em Dili, a capital, um único "hotelzinho":
único que então havia em Díli, muito modesto mas asseado e
relativamente confortável.
(iii) Seguem-se no dia seguinte os cumprimentos da praxe às autoridades, e logo ali passa a admirar, incondicionalmente, a figura do governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (Porto, 1893 - Lisboa, 1968), oficial de infantaria e administrador colonial, que teve de lidar com a terrível situação da invasão e ocupação de Timor por forças estrangeiras(e que no regresso à Metrópole, em finais de 1945, foi "metido na prateleira").
Figura desempenada de militar de carreira impecavelmente
fardado de branco, profundamente me impressionou o seu porte de natural distinção, aliado à evidente amabilidade e compreensão com que acolheu o médico novato no meio colonial, convidando-o a ir jantar à sua residência, num dos dias seguintes.
(vi) Para a passagem de ano o nosso médico foi convidado para os dois únicos clubes que existiam, e que tinham de chamar-se, tal como na Guiné desse tempo, Sporting, um, e Benfica, o outro. A escassa elite colonial esteve lá, nestas festas de passagem de ano.
Estiveram presentes às festas as pessoas mais gradas da terra, todas acompanhadas da sua família:
- o Governador,
- o dr. juiz de direito [José Nepomuceno Afonso dos Santos, pai do Zeca Afonso],
- o dr. delegado do procurador da república,
- o engenheiro José de Azevedo Noura (sic), diretor das obras públicas, o diretor das alfândegas Monteiro do Amaral,
- o diretor dos correios Fortunato Mourão,
- o dr. Tarroso Gomes,
- o dr. Cal Brandão,
- o senhor Jaime de Carvalho, etc, etc.
Passados cerca de dois quilómetros após Díli, começámos
a subir, já na encosta da montanha e logo encontrámos o lugar
de Lahane onde estavam instaladas a missão (um pouco fora
da povoação) e a missão geográfica e tinham a sua residência
o chefe do gabinete do governador, o dr. Juiz, o dr. Francisco
Rodrigues, o director dos correios e outros funcionários.
(viii) Descreve-nos depois o modesto hospital colonial Dr. Carvalho, situado a escassas centenas de metros do "palácio do governador", e que será severamente danificado pelos bombardeamentos japoneses, um ano depois:
(...) Um vasto e bem delineado pavilhão, solidamente construído
de pedra e cal, era o núcleo das várias edificações que o com-
punham. Nele estavam instaladas enfermarias para homens,
quartos de 1ª e 2ª classe, as salas de operações e de tratamentos, a secretaria, etc.
Próximo do pavilhão principal encontrava-se a casa mortuária, sólida construção em cimento armado.
mortuária, existiam um grande pavilhão de madeira e zinco,
utilizado como enfermaria de mulheres e maternidade e outro pavilhão semelhante destinado a doentes indigentes.
Cerca de cem metros mais além, estava a residência do chefe de repartição de saúde e director do hospital.
Colocado em plano mais baixo que o do pavilhão principal
havia um grande edifício de pedra e cal em construção próxima da conclusão (pois já tinha a cobertura e várias portas e janelas), que se destinava a pavilhão de doenças infecciosas. (...)
(...) Nesta minha primeira visita aos serviços de saúde fiquei
a saber que a preparação e distribuição de medicamentos para
o hospital e para as enfermarias e ambulâncias das delegacias
competiam à farmácia do estado situada em Díli no mesmo edifício em que funcionava o posto médico, sendo assim designado um posto de consultas e tratamentos para servir a população da cidade em regime ambulatório, dirigido por um dos médicos do Estado que, por isso, recebia a gratificação mensal de cinquenta patacas. (...)
(...) No dia seguinte a este meu primeiro contacto com o serviço público fui jantar à residência do governador, conforme o seu referido convite, sendo recebido com extremos de gentileza e distinção pelo Governador, sua esposa, senhora D. Cora e suas três filhas, alunas do liceu de Díli.
Participou também da refeição, com a sua família, o tenente Francisco José Alves que era cunhado e secretário do governador, e em cuja residência também vivia. Outro convidado foi o chefe de posto Torresão, primo da esposa do governador e meu companheiro de viagem.
(...) Durante este jantar surgiu a organização do grupo de jovens que nas tardes das quarta-feiras e sábados, se divertia, jogando ténis, dando passeios a cavalo, jogando o bridge ou, frequentemente, jogando o deck-tennis no pátio da Missão Geográfica onde o coronel Castilho e o engenheiro Canto nos recebiam com toda a benevolência e aprazimento, participando, este último, de muitas das nossas diversões.
Aos domingos, de manhã, após a missa, o ponto de encontro era na praia de Díli onde se passavm agradabilíssimas horas de salutar exercício e distração.
à noite, depois do jantar, havia sempre reunião no Sporting
ou no Benfica, conversando-se ou jogando-se o bridge, pingue-pongue, xadrez, etc, mas sem prolongar o serão pois todos começavam o trabalho de manhã, muito cedo.
(xii) Um dia típico de trabalho do dr. José dos Santos Carvalho, autoridade de saúde com funções também de médico-veterinário:
(...) Pelas oito horas da manhã vinha o árabe Abdula buscar-me ao hotel com o táxi de que era chauffeur. Seguíamos para o matadouro municipal, situado em Motael, próximo do farol de Díli, onde eu fazia a inspecção sanitária da carne dos animais abatidos para consumo público, pois Timor não dispunha de médico-veterinário.
Inspeccionada a carne, seguíamos pela estrada que contornava a planura de Díli, para o hospital onde, agora, eu tinha doentes de duas enfermarias a tratar. O meu trabalho ficava concluído cerca de meio-dia e o mesmo táxi me trazia de volta ao hotel.
(xiii) Como era normal nas colónias, os hospitais eram, para os jovens médicos, uma verdadeira escola pelos casos de doenças, tropicais, infecto-contagiosas com que tinham de lidar, em geral pela primeira vez (boubas, paludismo, beribéri, sarna, disenteria...):
Felizmente que em Timor esta doença já era, então, facilmente tratada, pois o farmacêutico Oliveira tinha estudado e posto em prática técnicas simplicíssimas de preparar uma suspensão de salicilato de bismuto em óleo de amendoim, a 10%, que se esterilizava pela fervura e que se guardava em garrafas vulgares, também esterilizadas pela fervura.
Grande surpresa para mim foi o aspecto que nesta terra apresenta a sarna que, quando não tratada, alastra de uma aneira incrível, complicada com lesões impetiginosas que devoram a pele dos doentes e muitas vezes os matam devido a septicémias !
Vulgaríssimos em Timor eram o paludismo, frequentemente de forma perniciosa, e a disenteria bacilar, quase sempre ocasionada pela utilização de fruta não madura, sobretudo mangas verdes, de que os timorenses são muito gulosos.
(xiv) Era uma "pasmaceira", a vida de um médico em Timor em 1941, trabalhando-se em geral apenas de manhã, que o clima (tropical) era violento para um europeu.
hospital quando, por urgência, era avisado telefonicamente
para aí me apresentar para colaborar em operações cirúrgicas
ou tratar casos urgentes ou quando havia nas enfermarias doentes graves que necessitavam assistência muito frequente.
Destinadas, quase todas a estabelecimento comercial e à habitação dos proprietários eram, em regra, pertença de chineses, havendo, somente, um negociante indiano, o muito conhecido Wadoomahl. Duas casas comerciais se destacavam, de longe, em Díli. A da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho e a da família chinesa Mie-Hap.
No melhor edifício particular da cidade, construído de cimento armado e colocado em situação esplêndida na avenida marginal da baía de Díli, vivia o alemão sr. Max Sander, representante duma companhia, a Ásia Investment Company que se havia estabelecido na ilha com o fim de explorar minérios, mas que nunca chegara a desenvolver essa actividade, apesar de ter praticado extenso trabalho de prospecção e instalado um completo laboratório químico.
Na avenida marginal eneontravam-se os principais edifícios
da cidade (o palácio do governo, o liceu Vieira Machado, a casa da alfândega, o colégio das irmãs canossianas, a escola chinesa, a sede da Ásia Investment Company, etc.) e um lindo jardim dentro do qual estavam, situados dois cortes de ténis de piso em betão para poderem ser utilizados na época das chuvas.
(xvi) O autor dá-nos conta também da sua visita à missão geográfica de Timor, instalada em Lahane, e onde viviam "os então já meus amigos, coronel Castilho e engenheiro Canto".
(...) Outra minha visita foi à missão de Lahane onde o reverendo vigário-geral, padre Jaime Goulart me recebeu com extremos de cortesia e fidalga amabilidade.
A missão central de Timor estava instalada num edifício de madeira e zinco, com primeiro andar, bastante amplo e confortável, dispondo de capela privativa. Em conversa com o padre Jaime fiquei a saber que os sacerdotes de Timor eram formados no seminário de Macau, sendo oriundos do norte da metrópole, dos Açores, da Índia Portuguesa e de Timor.
(xviii) Vamos agora conhecer o interior da ilha, pela mão do dr. José dos Santos Carvalho:
(...) Assim, logo de início me resolvi a deslocar-me às ambulâncias da área a meu cargo para tomar contacto e conhecimento objectivo dos respectivos serviços.
A primeira visita que fiz foi de automóvel, ladeando a maravilhosa baía de Tíbar e alcançando Liquiçá, Maubara e Bazar-Tete onde fui acolhido pelos respectivos chefes de posto e enfermeiros.
Poucos dias passados desloquei-me à circunscrição de Aileu, sendo a viagem feita quase toda a cavalo pois o automóvel só podia levar-me até à ribeira de Cômoro, ainda bastante longe da sede da circunscrição.
(...) Chegados à Cômoro, aí encontrámos os cavalos que, emprestados pelo liurai da região, foram aparelhados com os arreios, isto é, selim com estribos, freio e rédeas, que levávamos no carro, pois os timorenses montam em pelo, guiando o cavalo com uma corda que lhe passa na boca.
Recebidos fidalgamente em Aileu pelo administrador Virgílio Castilho Duarte, natural de Cabo Verde, passámos um dia e uma noite na sua residência que, tal como a de outras autoridades de Timor, era cercada por muros ameados, sendo designada, nesta terra, como a «tranqueira».
(...) Em Aileu, visitei a enfermaria regional e o presídio que, como a "tranqueira", dispunha de um pátio rodeado de muros. Os condenados reunidos neste estabelecimento prisional, eram oriundos, não só de Timor como de outras terras portuguesas, donde tinham vindo cumprir as suas penas de degredo. A maior parte dos condenados era de macaenses ou chineses de Macau.
A etapa seguinte foi até Maubisse onde pernoitámos em casa do chefe de posto sr. Ademar Rodrigues dos Santos, prote-gidos do frio que nestas regiões de altitude se faz nitidamente sentir, por espessos cobertores de lã.
No dia imediato cavalgámos em longa jornada até Same onde ficámos instalados na residência do chefe de posto sr. Francisco Mouzinho.
píncaro não longe de Díli, que só era acessível a pé ou a cavalo,
tendo passado e visitado o colégio de Dare onde as irmãs canosianas instruíam e educavam muitas dezenas de meninas.
Utilizando a ambulância do hospital Dr. Carvalho, fui, um outro dia, visitar a enfermaria do Remexio tendo ocasião de aí conhecer o respeitável liurai coronel D. Moisés, majestosa e nobre figura de timorense, com veneráveis cabelo e barba encanecidos.
(...) Aproveitei, então, o amável convite do dr. Arriarte Pedroso
para, no seu automóvel e em sua companhia visitar as povoações da Ermera e Hátu-Lia, terras de altitude razoável, de temperatura agradabilíssima, onde reina a «Primavera eterna» de Teófilo Duarte e a paisagem é paradisíaca.
Pomos recebidos pelo chefe do posto de Macadade, sr. Napoleão, sargento de infantaria, e tivemos ocasião de observar s curiosíssimos costumes primitivos desse povo de simpáticos e acolhedores pescadores submarinos.
(...) Num dado dia, o capitão dos portos de Timor, comandante César Gomes Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a participar-me que estava a chegar ao cais um naviozinho que já tinha arvorado a bandeira amarela a pedir a necessária visita sanitária.
Dirigi-me, imediatamente, para o local designado onde aportara um elegantíssimo veleiro em cujo convés se via um único tripulante, em calções e de tronco nu.
Por esses tempos eram muito conhecidas, pelos jornas, as viagens do navegador solitário Alain Gerbault [1893-1941], francês que num iate, o Firecrest, se havia celebrizado por ter atravessado, sem escala e sozinho, o Atlântico, desde a França a Nova Iorque e, depois, vagueava solitário pelos mares do mundo.
Por isso, quando subi ao convés do barco, dirigi-me ao comandante e único tripulante, dizendo-lhe, em francês: "O senhor é um novo Alain Gerbault!"
(xxiii) Mas já havia petróleo, japoneses e até alemães na ilha:
deu uma festa no Sporting, para a qual convidou as personalidades de maior projecção no meio social da cidade.
(...) Na festa do consulado japonês encontrei, também, o australiano, velho colono de Timor Arthur Brian e os dois técnicos da QANTAS, srs. David Ross e Robert Smith que já conhecia das partidas de ténis e que, também, eram com toda a evidência, militares disfarçados.
(...) Há muito tempo que em Timor tinha sido encontrado petróleo. Uma companhia estrangeira, a Allied Mining Timor Corporation havia feito furos de prospecção que mandara obturar assim que encontravam petróleo, explicando essa determinação pela não existência de depósitos economicamente exploráveis !
Num dado dia chegou a Díli o engenheiro Veiga Lima, nrepresentante duma companhia portuguesa recém-formada, a Companhia Ultramarina de Petróleos, afirmando que os trabalhos necessários iriam imediatamente começar. A verdade é que, logo a seguir, ela apareceu associada a uma nova companhia, holandesa, regressando o referido engenheiro a Portugal e sendo substituído pelo engenheiro-geólogo Brower, de nacionalidade holandesa, que com ele tinha vindo para Timor.
Teve este último engenheiro todas as facilidades para fazer os estudos topográficos necessários para a investigação da existência de petróleo em Timor, pois a carta da colónia feita por fotogrametria interessava, também, para complemento daquela que a Missão Geográfica estava a ultimar.
Assim, foi o piloto holandês do avião da carreira para Koepang que tirou as fotografias sucessivas que, vistas através duma lente binocular davam a sensação do relevo duma maneira flagrante e pude apreciar na Missão Geográfica onde eram revelados os filmes e depositadas todas as provas, conforme o exigido pelo governo de Timor.
Por esse tempo, os japoneses conseguiram autorização[de Lisboa, não do governador local], para estabelecerem uma carreira de hidroaviões entre Tóquio e Díli, com escala pela ilha de Palau, que não tinha qualquer justificação económica razoável, pois não havia comércio com o Japão e de Palau a Díli os grandes hidroaviões da carreira demoraram, em voos experimentais, nove horas!
(...) Já perto do meado do ano, chegou a Díli o novo director da administração civil, intendente dr. João Ferreira Taborda (...). No mesmo barco vieram para Timor o comandante da companhia de caçadores, capitão Freire da Costa e o administrador António Policarpo de Sousa Santos, funcionário do quadro privativo da colónia, que foi colocado em Bobonaro (...).
Notaa do editor:
Restaurado após a guerra, forma feitas vários melhoramentos. Contígua ao edifício principal foi construída uma maternidade e criados um bloco operatório, uma enfermaria pediátrica e um laboratório clínico.
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