sábado, 13 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25741: Os nossos seres, saberes e lazeres (636): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (161): As cores da primavera e cumprimentos a Velásquez na Gulbenkian (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Com os avisos da primavera, meti-me ao caminho para apreciar o multicolorido de um jardim construído entre fraguedos, nos casebres que tenho em Reguengo Grande. Foi tal a satisfação de ver esta sonata de cores, e depois de andar a catar as ervas, achei por bem que registar em imagens o viço que desponta da terra, mesmo quando encerrada em tanta aspereza. E tanto se trombeteia que há um Velásquez com retrato de Filipe IV para nós vermos na Gulbenkian que vim ver como me comportava no confronto. É uma tela notável, ainda bem que o rei Habsburgo aparece naquele aparato militar para esmagar a revolta da Catalunha, tivemos sorte em haver duas frentes, deu-nos para ter gana em querermos ser independentes mesmo à custa de termos vivido nessa guerra da Restauração o mais trágico período financeiro da nossa História. Quanto aos catalães, eles que decidam. Aproveitei a ocasião para ir saudar algumas das obras que tantas vezes me fazem visitar este museu único e partilho convosco a alegria de as rever.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (161):
As cores da primavera e cumprimentos a Velásquez na Gulbenkian


Mário Beja Santos

Quando adquiri a casinha no Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, a promotora imobiliária teve a preocupação de salientar dois aspetos do local: que não me esquecesse do clima, manhãs com neblina, mesmo no verão, uma indiscutível amplitude térmica, a este aspeto respondi prontamente que passara férias anos a fio na Foz do Arelho, ia com os sete filhos da minha madrinha às 9 horas, a neblina costumava levantar por volta do meio-dia e a camioneta trazia-nos de volta pelas 13h, passeávamos de camisola até ao Gronho, ouvindo as fúrias do mar, a senhora promotora que não se preocupasse com esse aspeto, era bem conhecido; e que no fim do terraço havia um espaço inclinado para o vale, património da casa, o antigo proprietário, que praticava o alojamento local, tudo fizera para manter aquela superfície de fragas envolvida em mato. Aceitou-se o desafio, o resultado está à vista, no meio destas pedras que nos lembra a idade do Quaternário a primavera agita-se, multicolorida, até as laranjeiras dão fruta doce, o vale é fecundo, a minha vizinha dá-me abóboras, pêssegos e da última vez trouxe um carrego de favas. Estou num paraíso, não troco este meu lugarejo por um palácio.

Os casebres têm dois terraços, esta manhã sinto a grande satisfação de ter arrancado todas as ervas daninhas, fez-se limpeza geral, costume almoçar no outro terraço pondo um toldo, há mais sombra, fecho os olhos no pós-prandial e vem sempre um sono retemperador.
O colorido entre os pedregulhos falam por mil palavras, ninguém imaginará que aqui havia mato com quase 2 metros de altura.
Procurou-se dar-se um toque de romantismo, há um banco debaixo da figueira, quando começarem a rebentar os figos há para aqui um perfume embriagador, é uma das doçuras da vida campestre, mesmo que se tenha de afugentar as moscas ou ver passar cobras a alta velocidade.
O senhor Tozé é multiusos, faz obras na casa e dá alvitres para que haja mais segurança no jardim, fez estes degraus e outros mais, no cimo está uma das laranjeiras e uma janela aberta sobre o vale.
A Fundação Gulbenkian trombeteia em todos os órgãos de comunicação social que há uma tela de Velásquez no museu, um empréstimo que vem da coleção Frick, sediada em Nova Iorque. Trata-se de um retrato a meio corpo de Filipe IV, era a obra preferida do colecionador Henry Clay Frick, adquirida em 1911. O que há de mais revelante nesta obra-prima?
Se estivesse a contemplá-la com um espanhol ao lado, penso que não teria coragem de lhe dizer que o rei andava na sua incursão militar na Catalunha, 1644, os catalães tinham-se revoltado em 1640 e os exércitos espanhóis desdobraram-se com os acontecimentos portugueses e os da Catalunha. Foi uma guerra que nos levou praticamente à falência, mas vencemos, a seguir veio o acordo de paz, depois das últimas refregas em 1668, a partir daí Castela não tem qualquer ilusão que “de Espanha não vem bom vento nem bom casamento”. Então, o que há de mais relevante é que Velásquez pintou o retrato do rei Habsburgo num ateliê improvisado, era o quartel-general das tropas espanholas. O monarca aparece-nos representado como um chefe militar determinado e vitorioso, enverga sobreveste adornada com brocados, é um conjunto que no seu todo parece matéria viva, é impressionante a modelagem dos tecidos, parecem saltar da tela. E já que vim ao cheirinho desta obra-prima, como é meu costume vou visitar algumas das obras mais diletas.

Se é facto que detemos uma portentosa baixela Germain encomendada pelo nosso rei Magnífico, esta peça central de um centro de mesa constituído por três, é impressionante, e descobri que ao fundo está o retrato de Thomas Germain e sua mulher, na chamada secção de arte francesa, gostei da combinação, aqui a tendes.
No máximo sigilo, o Governo soviético, no início da década de 1930, vendeu um conjunto de peças para angariar fundos, fora ano de penúria de cereais, Gulbenkian tinha relações formais com as autoridades soviéticas, tudo por causa do petróleo de Baku. Lá se entenderam e entre outras preciosidades que seriam bem acolhidas em qualquer grande museu de fama mundial estão patentes no museu o quadro da mulher Rubens e esta espantosa escultura, a Diana, de Houdon, um assombro.
Não é a primeira vez que venho a este museu só para estar a contemplar este naufrágio que saiu do génio de Turner. Ficamos com o coração contrito a ver à esquerda o afundamento do navio, as ondas revoltosas e as cores medonhas do céu provocam um terrível contraste; e partilhamos da dor daqueles que procuram a salvação em pequenas embarcações ondulantes, e o grande pintor obriga-nos a fixar o olhar naquela jangada patética onde se procura a sobrevivência enquanto as ondas revelam pedaços da carga do navio enquanto ondas raivosas atiçam aquele mastro que parece vir a ser engolido pela onda que se ergue à direita. Não é por nada, mas temos uma obra-prima de Turner de um calibre tal que faz com que, às dezenas de visitantes, a aglomeração à sua volta, é um dado permanente.
Este inverno cheio de neve foi pintado por Jean-François Millet marca o movimento naturalista, tenha a intuição que anuncia Van Gogh, mas é coisa minha, o que mais me atrai é o elogio da natureza, não há aqui acabrunhamento nestes rigores de inverno, parece que a natureza adormeceu, e o que mais me compraz é a solução talentosa de criar um fio de horizonte e obter com as mesmas cores soturnas um céu ameaçador, com aquela solução de génio que é, ao fundo, uma mansão iluminada por uma luz que parece ter o condão de nos alertar de que a seguir ao inverno vem a primavera.
Quando se folheia uma obra dedicada ao grande escultor Rodin, as imagens mais esplendentes prendem-se com formas volumosas, ou grupos escultóricos que nos obrigam a andar à roda ou até mesmo aquela finura do pensador, que tem algo de matéria bruta. Ora a escultura As Bençãos situa-se no polo oposto, as formas delicadas parecem emergir da tal matéria bruta, têm tal graciosidade e finura que nos deixam sempre um olhar maravilhado.
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Nota do editor

Último post da série de 6 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25721: Os nossos seres, saberes e lazeres (635): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (160): Díspares modos de ver, mimoseio para um coração feliz – Reguengo Grande, Praia da Adraga, Ofélia Marques (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Como curiosidade, Diego Velázquez, filho do portista João Rodrigues da Silva, teria sido escolhido para pintar vários retratos Felipe IV por não lhe "carregar" no queixo proeminente, a chamada mandíbula dos Habsburgos.

Valdemar Queiroz