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sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Foi minha preocupação agregar a bibliografia mais significativa referente aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959. Juntaram-se as provas documentais sobre os factos e tomam-se agora as reflexões do Leopoldo Amado para a contextualização numa perspetiva do que representou para a luta de libertação. Se algum dos confrades que gosta de estudar este período que precedeu o início da luta armada possuir mais documentação pertinente à revelação de novos factos, agradece-se penhoradamente toda a ajuda que daí vier.

Um abraço do
Mário



Mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti

Mário Beja Santos

O historiador guineense Leopoldo Amado publicou em 2013 "Guineidade & Africanidade", um acervo de estudos, crónicas, ensaios e outros textos, Edições Vieira da Silva. Desse conjunto destaco dois documentos em que o autor releva a importância dos incidentes no Pidjiquiti, não se cinge particularmente aos factos do que ocorreu nessa tarde de 3 de agosto de 1959, insere-os num ecrã político onde se entrelaçam o movimento independentista africano, a emergência dos grupos nacionalistas na Guiné, a consolidação do pensamento de Cabral quanto à condução da guerra de libertação.

Começa por nos dar um quadro da vaga de nacionalismo guineense influenciada pela independência do Gana em 1957 e pelos países limítrofes, Guiné Conacri e Senegal, em 1958 e 1959, respetivamente. Na sua permanência na colónia da Guiné, entre 1952 e 1954, Cabral apoiou a fundação de uma agremiação desportiva, que não foi autorizada, segundo Leopoldo Amado há quem lhe atribua a paternidade da criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que se revelou irrelevante. Participou em reuniões, isso está demonstrado. 

Como é sabido, Julião Soares Sousa contesta a presença de Cabral na reunião de 19 de setembro de 1956 em que foi fundado o PAI – Partido Africano para a Independência, inequivocamente inerme até 1959, nem um documento consta. O Movimento de Libertação da Guiné (MLG), da responsabilidade de Rafael Barbosa, aparecerá ligado à grande greve do Pidjiquiti de 3 de agosto de 1959, toda a glorificação do martírio não tem por detrás uma prova factual da mão do PAI. 

Este Movimento de Libertação da Guiné foi fundado em 1958, um conjunto de nomes de fundadores aparecerá mais tarde no PAIGC. Escreve Leopoldo Amado que as movimentações para a criação do MLG terão remontado aos princípios de janeiro desse ano. E escreve o autor: 

“Sedentos de passar à ação, o MLG tenta gizar um plano assente sobretudo numa teia coesa de ligações com um considerável grupo de guineenses emigrados em Conacri, rapidamente se predispuseram a participar na exaltante obra rumo à independência nacional”. 

O encontro crucial para pôr em andamento o PAI ocorre durante a estadia de Cabral em Bissau, entre 14 e 21 de setembro de 1959, é neste tempo que se estabelecem as linhas de atuação, uma parte da direção do PAI fica em Conacri, Rafael Barbosa conduzirá a subversão no interior da Guiné. 

Um dos mitos alimentados pela hagiografia do PAIGC é o da expulsão de Cabral quando trabalhou no recenseamento agrícola e na granja de Pessubé, Cabral deixou bem claro por carta que regressava a Lisboa porque ele e a Maria Helena estavam gravemente afetados pela malária. É completa atoarda que tenha sido forçado a ir para Angola, foi ele que escolheu ir trabalhar para uma empresa próspera, a Sociedade Agrícola do Cassequel, bem remunerado.

Voltemos ao Pidjiquiti e ao que escreve Leopoldo Amado: 

"Depois de Pidjiquiti, para além de Cabral ter optado por estabelecer em Conacri a retaguarda segura para o PAI, sucederam-se outros importantes acontecimentos que mostram inequivocamente a opção do PAI no sentido do desenvolvimento de uma guerra prolongada de libertação nacional”

E enumeram-se as diligências na cena internacional, são por demais conhecidas. E este trabalho conclui com a relação das ações subversivas que irão ser desenvolvidas em 1961 e 1962, mostrando mesmo a ascensão efémera de outros grupos de libertação que designadamente a partir de 1964 desaparecerão da cena.

Noutro estudo intitulado “Simbólica de Pidjiquiti na ótica libertária da Guiné-Bissau”, novamente Leopoldo Amado considera os acontecimentos como tributários de outros, e escreve: 

“O efeito multiplicador da atuação dos nacionalistas guineenses esteve por detrás da primeira greve dos marinheiros, ocorrida em 1957, no cais do Pidjiquiti, em Bissau, greve essa, de resto, bem-sucedida, na medida em que esses marinheiros viram satisfeitos grande parte das reivindicações, a ponto de a mesma vir posteriormente a potenciar, pelo precedente aberto (mas igualmente por ação de elementos do MLG), a grande greve que ocorreu em 1959, na qual foram mortos cerca de 50 marinheiros, tendo ficado gravemente feridos cerca de uma centena”.

E para o autor estas duas reivindicações do Pidjiquiti, nomeadamente a última, popularizaram rapidamente a ideia de uma luta comum contra o colonialismo português, seria estratégia do PAI a tentativa de eleger os seus membros no sindicato dos trabalhadores, rapidamente se apreendeu que não eram essas pequenas reivindicações urbanas que permitiam estender a luta aos menos favorecidos. 

Daí a tese de Cabral de que era definitivo conquistar o proletariado no universo agrícola, tese que irá revolucionar a doutrina da luta de classes que era proposta pela vulgata marxista leninista. Leopoldo Amado aproveita este trabalho para falar dos primórdios do fenómeno nacionalista, fala da Liga Guineense, das múltiplas recusas em pagar o imposto de palhota e em certos atos desumanos do trabalho forçado. Este seu trabalho retoma o primeiro que citámos e volta deste modo aos acontecimentos do 3 de agosto de 1959: 

“Para além do massacre do Pidjiquiti corresponder justamente ao momento em que a agitação clandestina atingia o seu ponto máximo, permitindo o seu violento desfecho, possui o condão de ter reforçado a consciência segundo a qual era necessário optar por outras formas de luta para responder com violência à violência colonial. Foi também este massacre que impulsionou, pouco depois (janeiro de 1960), a criação em Tunes da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas), no decurso da Conferência dos Povos Pan-africanos".

Nestes termos, segundo Leopoldo Amado, os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 representaram a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, “ultrapassando o seu alcance político as de mera reivindicação laboral, na medida em que, a montante do processo libertário guineense, circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos direta ou indiretamente a ele relacionados, pelo que não é nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial”.

Dá-se por finda esta itinerância à bibliografia referente ao que se passou em 3 de agosto de 1959, persistem dúvidas quanto ao número de vítimas em mortos e feridos, a quem esteve por detrás do desencadeamento da greve, parece estar tudo claro quanto ao que aconteceu a partir do momento em que apareceu a polícia, que foi maltratada e maltratou, que regressou reequipada e depois a chegada do Exército. Não se possuem outros factos documentais para além dos citados.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade

Mário Beja Santos

Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.

Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.

Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.

A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.

Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21701: Notas de leitura (1331): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
É tempo de reconhecer o labor investigativo de Philip Havik nas coisas da Guiné. Este ensaio que o investigador publicou na Revista Internacional de Estudos Africanos fazia parte de um estudo de maior amplitude abrangendo a atividade política na Guiné tanto no período pré-colonial como no período colonial e na fase da Independência. Desconheço, por hora, se tal publicação já existe. A importância do ensaio é um modo singular como o investigador aborda e articula espaços sociais e movimentos políticos no período colonial e pós-colonial, entrelaça uma gama de diversidades que vão desde a religião às atitudes culturais de certas etnias, as mudanças económicas operadas pelas novas culturas e a confrontação entre as populações nativas e os representantes das empresas. E assim chegamos à génese dos nacionalismos, às mudanças que nessa fase o PAIGC prometia operar e tudo o mais que veio a acontecer até à sua influência política empalidecer, uma longa história que é de conhecimento obrigatório para quem quer saber porque é que a Guiné continua a viver em impasse.

Um abraço do
Mário


Mundasson i Kambansa:
Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994) (1)


Beja Santos

Mundasson, termo crioulo para mudança ou transformação; kambansa, termo crioulo para travessia ou passagem.

Philip Havik
O investigador Philip Havik dá-nos neste artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999, uma leitura singular sobre a pluralidade política e social que marcou o território da Guiné durante o século XIX, é uma tessitura composta por termos sociais e geográficos, pela procura de defesa de interesses da região na alvorada republicana, pela ocupação militar, pela luta pela independência, a recriação de um regime monopartidário a que se seguiu a liberalização económica e uma caudalosa abertura política.

O autor recorda que a Guiné com as suas fronteiras traçadas na consequência da Conferência de Berlim vivia mergulhada numa guerra renhida pelo controlo dos “chãos”, espaços geográficos e sociais geridos por linhagens, intervinham nesses episódios bélicos sociedades nativas que se opunham a tropas auxiliares africanas e portuguesas, todos os pretextos eram bons para procurar sacudir o jogo colonial, tanto podiam ser o imposto de palhota como a política comercial da administração portuguesa. Philip Havik considera que no processo de criação de movimentos de caráter político se podem identificar três fases, o período entre 1910-1915, o período de 1955-1965 e de 1986 até às primeiras eleições multipartidárias de 1994.

A ocupação militar saldou-se na perda de controlo por parte dos povos do Litoral sobre os seus próprios “chãos” e a penetração progressiva do Litoral “animista” pelo Leste islamizado. Grupos crioulófonos oriundos dos antigos entrepostos como Cacheu ou Geba foram abrindo espaço em novos centros comerciais no Interior, assim se deu a abertura dos “chãos” e o crioulo tornou-se na língua franca. Os últimos 50 anos foram marcados pela luta anticolonial e o estabelecimento de um regime independente.

Uma lufada de ar fresco foi trazida pela constituição da Liga Guineense (1911), os seus membros iriam assumir um papel de mediadores em diferentes conflitos económicos e sociais no seio do pequeno e restrito meio administrativo e mercantil de Bissau e Bolama. Os estatutos eram claros: fazer propaganda da instrução, estabelecer escolas e empenhar-se no progresso e desenvolvimento da Guiné professando o ideal republicano. À sua testa, a Liga era dirigida por comerciantes das pequenas comunidades crioulófonas, em muitos casos com laços de parentesco em Cabo Verde, tinham também ligações aos deportados políticos, havia grumetes contratados por comerciantes e casas de comércio como intérpretes, pilotos e caixeiros. Cedo começaram a reivindicar a redução de impostos, a nacionalização do comércio para restringir o acesso de comerciantes estrangeiros, a denunciar casos de corrupção no aparelho administrativo e os excessos no plano militar. A Liga foi-se progressivamente politizando, denunciando o papel dos mercenários recrutados por Teixeira Pinto e as suas prepotências nas campanhas militares. Quando foi proibida em 1915 e a sua direção encarcerada, a Liga era uma organização autónoma reunindo pela primeira vez degredados políticos, comerciantes e diferentes estratos profissionais. Falhara a tentativa de reconciliação do projeto português de “nacionalização” da Guiné com o ideário republicano e liberal. O investigador observa que os grupos sociais ditos “civilizados” constituíram um nó de alianças entre comerciantes e proprietários (ponteiros) e trabalhadores dos portos e funcionários públicos. A repressão destes movimentos de contestação criou uma diáspora dos seus associados. Observa igualmente a importância do grande fluxo de imigrantes cabo-verdianos na Guiné, portugueses perante a lei, tal fluxo teve implicações para a vida política e associativa do território.

Os movimentos independentistas irão surgir em finais nos anos 1940, registam-se diferenças entre caminhos nacionalistas guineenses e posições pan-africanas. O grupo de civilizados tinha-se ampliado, recorde-se que era pelo comércio nos chamados centros comerciais mas sobretudo nas lojas de mato que se estabeleciam os contatos entre a população “civilizada” e a indígena, num contexto completamente distinto à situação vivida no tempo da Liga Guineense. Foram razões de ordem económica que ditaram mudanças, primeiro a mancarra e depois o arroz. As populações sentiram o peso desta política encetada a seguir à crise no mercado internacional das oleaginosas. As populações nativas não ficavam associadas às empresas constituídas pelos “civilizados”, exploravam as suas próprias culturas, negociavam depois os preços com os intermediários das grandes e pequenas casas, era uma economia de troca direta e sobressaiam práticas abusivas dos cipaios, agentes omnipotentes e despóticos. E cedo se desencadearam conflitos entre comerciantes e a população, a extorsão aos indígenas iria tornar-se num problema que encontrou por vezes políticos de envergadura pela frente, caso de Sarmento Rodrigues. Os movimentos independentistas atraíram sobretudo operários, artesãos e empregados do comércio, na sua maioria vindos de Bissau e de Bolama. Em 1948 surgiu o Partido Socialista da Guiné. A formação de organizações políticas de cariz nacionalista acontece em 1955 com a fundação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, por Amílcar Cabral que no ano seguinte irá apoiar a criação do PAI – Partido Africano da Independência, posteriormente PAIGC, em 1960. Este surto independentista precisa de ser situado no contexto do nacionalismo pan-africano, fortemente inspirado por Kwame N’Krumah, as coligações de forças tiveram vida precária. A FLING – Frente para a Libertação e Independência da Guiné Portuguesa é criada em 1962 por grupos oposicionistas baseados no Senegal, integrava cinco partidos. E diz o investigador que neste ambiente extremamente divisionista reivindicava-se a herança política da Liga Guineense. Um dos maiores pontos de divergência entre movimentos – além da questão da autonomia versus independência total e a melhor forma de lá chegar – revelou-se a questão da ligação entre a luta anticolonial na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde. Esta associação estratégica dos destinos da Guiné e Cabo Verde, protagonizada pelo PAIGC, provocaria várias cisões nos vários movimentos e coligações, tudo irá desaguar na secessão do PAICV – Partido Africano da Independência de Cabo Verde a seguir ao afastamento do primeiro presidente da Guiné independente através de um golpe de Estado.

(Continua)
Kumba Yala
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Não se pode estudar o período da luta armada na Guiné sem consultar um conjunto de obras-chave, onde se incluem nomes como Julião Soares Sousa, Leopoldo Amado, António Duarte Silva, entre outros. Em língua portuguesa, não há livro mais rigoroso que esta biografia que Julião Soares Sousa escreveu sobre Cabral, investigação exaustiva, com arquivos, entrevistas, sempre no afã de procurar e encontrar provas novas. Livro bastante incómodo para os hagiógrafos e beatos do líder fundador. Fica-se com o retrato de um jovem educado em ambiente cabo-verdiano, numa cultura tipicamente ocidental, mas já evado de preocupações sociais, que reformula o seu pensamento no ambiente de Lisboa, que volta à Guiné e percorre o território, ali descobre a razão porque vai lutar e fundar, seguramente em 1959, um partido revolucionário com uma base ideológica singular: uma vanguarda pequeno-burguesa local à frente de um proletariado agrícola, coisa impensável para o marxismo leninismo canónico.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa: 
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (1)

Beja Santos

Julião Soares Sousa
“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”,[1] edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

É por isso um documento incontornável, atendendo que o biografado não só fundou e liderou o PAIGC como, pelo pensamento e ação, está consagrado como um dos políticos africanos de renome internacional. Julião Soares Sousa recorda que nas últimas décadas a investigação sobre esta grande figura do século XX tem aberto novas perspetivas de análise, graças à abertura de arquivos que estavam inacessíveis. O investigador sentiu-se estimulado a fazer uma nova leitura cruzada sobre o assassinato de Cabral, é este o capítulo mais alargado nesta edição revista.

A abordagem da estrutura da biografia não conheceu mudanças de tomo. No primeiro capítulo da parte primeira (da formação do homem à conquista da liderança do movimento de libertação da Guiné e de Cabo Verde) temos a infância de Cabral passada na Guiné, onde nasceu, em 1924, a sua deslocação para Cabo Verde, em 1932, fará aqui o liceu, conhecerá o desvelo sem tréguas da mãe, Iva Pinhel Évora, veremos nascer o seu estro poético e seu olhar em torno da condição cabo-verdiana. Recebe uma bolsa e irá estudar para Lisboa, o mundo está em estrepitosa mudança, emerge um radicalismo ideológico, nos meios que vai frequentar discute-se o nacionalismo africano, põe-se em causa o colonialismo. Segue-se o capítulo segundo, Cabral faz a sua aprendizagem política em Lisboa, torna-se engenheiro e parte para a Guiné, vai trabalhar na granja de Pessubé e acompanhado pela mulher procederá ao recenseamento agrícola, operação que o fará conhecer todo o território do futuro país. Em 1955, abandona a Guiné e volta a Lisboa. Vejamos o que demais relevante trata Julião Soares Sousa no seu estudo incontornável.

Quando Cabral nasce Bafatá, Juvenal Cabral é professor em Geba e depois Bafatá. Iva seria uma pequena proprietária, em Cabo Verde vê-la-emos no desempenho de trabalhos muito humildes, será ela a pagar os estudos do filho. Em Cabo Verde, Juvenal Cabral contrairá nova relação, ao contrário do que sugere certa hagiografia, a influência de Juvenal Cabral não foi tão relevante como a apregoada, a gratidão pela mãe aparece inequivocamente testemunhada na página do seu livro de curso: “Para ti mãe Iva,/Eu deixo uma parcela/Do meu livro de curso…/Para ti, que foste a estrela/Da minha infância agreste./A tua alma viva/E o teu amor profundo,/Aceita este tributo,/Que tudo quanto eu fora,/Será do teu amor,/-Tua carne, Mãe, teu fruto!”.

Julião Soares Sousa enquadra a formação do jovem estudante, Cabral denota aí as bases da sua cultura portuguesa, que jamais renegará. Em Lisboa conhecerá novo ambiente. Fica atento ao MUD – Movimento de Unidade Democrática, contacta regularmente com a Esquerda portuguesa e vai firmando a opinião de que a luta antifascista não está verdadeiramente motivada para a luta anticolonial. O autor aborda as influências literárias, ideológicas e culturais, o pendor marxista começa a germinar. Afluem a Portugal cada vez mais africanos, as discussões sobre a independência das colónias africanas ganha expressão. O autor desvela a vida do Centro de Estudos Africanos, a par das atividades da Casa dos Estudantes do Império.

Em 1950, Cabral terminou o seu curso, dois anos depois defendeu a sua tese de tirocínio, é reconhecido como especialista em erosão de solos. Há anos que se sente atraído por África, apresenta candidaturas, é aceite para um lugar disponível de Engenheiro Agrónomo na Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, desembarca a 21 de Setembro de 1952, a mulher junta-se-lhe em Novembro. Os grupos oposicionistas de Bissau vivem dentro dos princípios da luta antifascista, Cabral está motivado pela luta nacionalista, deixa o antifascismo para os oposicionistas portugueses. Torna-se um comunicador brilhante ao nível da sua profissão, tenta criar o Clube Desportivo em Bissau, a Administração não dá seguimento. Aspeto curioso sublinhado pelo autor, a pretensão baseava-se num clube exclusivamente para guineenses, põe-se a dúvida se nesta fase Cabral ainda não tinha urdido a tese da unidade Guiné-Cabo Verde. O autor esclarece outras coisas, como a alegada fundação do MING por Cabral ou a ele se tenha associado. Põe-se como hipótese que tanto o Partido Socialista da Guiné como o MING tiveram vidas efémeras. Em Março de 1955, Cabral e a mulher regressam a Portugal, vêm doentes, certos hagiógrafos têm escrito que foram expulsos ou perseguidos, não há provas, no entanto a ficha de Cabral na PIDE começa a crescer.

A vida profissional de Cabral vai aproximá-lo de Angola, da convergência com outras lutas anticoloniais, encontra-se em Paris com dirigentes angolanos, são-tomenses e moçambicanos. Sobre a fundação do PAI (Partido Africano pela Independência da Guiné e de Cabo Verde) em 1956, o autor põe sérias reservas quanto à natureza do partido criado e não vê hipóteses de Cabral lá ter estado presente. Não há uma só menção na correspondência trocada entre Cabral e outros camaradas revolucionários da fundação do PAI em 1956. Recorde-se que o mesmo se passa com a data da fundação do MPLA, sobre a qual há manifesta controvérsia.

Em Setembro de 1959, Cabral está comprovadamente em Bissau, inteirou-se da agitação política existente e do massacre do Pidjiquiti, contactando com a única organização política existente em Bissau, o Movimento de Libertação para a Guiné, onde pontifica Rafael Barbosa. Acorda-se na necessidade de uma estratégica, Cabral e Rafael Barbosa são as duas figuras chave para o impulso dinâmico do partido. Criou-se uma organização clandestina, definiram-se propósitos. Ainda hoje há muitas nebulosas sobre quem são os fundadores e alegados fundadores do PAI, futuro PAIGC. Já no exílio, e sobretudo a partir de Conacri, onde funciona o seu escritório e a escola piloto, Cabral vai contactar outras organizações nacionalistas da Guiné e Cabo Verde. A luta vai arrancar, a sua liderança, gradualmente, ir-se-á impondo.

(Continua)
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 22 DE NOVEMBRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P16746: Agenda cultural (521): "Amílcar Cabral (1924-1973): vida e morte de um revolucionário africano", nova edição, revista, corrigida e aumentada (622 pp.): convite da embaixada guineense para o lançamento do livro do prof doutor Julião Soares Sousa, na Universidade Lusófona, Lisboa, sábado, dia 26, às 15h00

Último poste da série de 4 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20939: Notas de leitura (1282): “Corações Irritáveis”, por João Paulo Guerra, Clube de Autor, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O bardo descarrega as suas penas, o seu companheiro de viagem prossegue em grande círculo, vai ao início da guerra, às suas primícias, tenha o leitor curiosidade e fartas leituras o esperam, tanto para entender o que foi a ascensão nacionalista na Guiné e como cedo se impôs o pensamento de Amílcar Cabral, como para acompanhar a digressão do aparato subversivo, em ondas os insurretos foram-se formar na China e na Checoslováquia, mais tarde na URSS, muito mais tarde virá o apoio cubano, entrementes haverá notórios progressos no armamento.
Por isso aqui se recupera as memórias do "Homem Ferro", um fuzileiro que conheceu a subversão desde 1962, por muitas andanças, em 1963, se apercebeu do alastramento da guerrilha e dos seus focos poderosos.
E aqui também se fala da CCAÇ 675, em 1964 encontraram Binta como território onde agentes do PAIGC se deslocavam folgadamente. Os reforços portugueses foram chegando a conta-gotas, revelar-se-ão insuficientes para estancar a dispersão da guerrilha.
A lira do bardo tem acordes de sofrimento, temos toda a vantagem em tentar perceber os ventos que sopram da guerrilha.
É o que aqui se faz.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (39)

Beja Santos

“Dois colegas com azar
os seus dias terminaram.
O pessoal do Batalhão
grande mágoa passaram.

Para serem tratados
os médicos os examinaram
e algumas chapas lhes tiraram.
Sendo ambos operados
alguns dias foram passados
e soro começaram a levar.
Fartaram-se de penar
com os sofrimentos de gravidade
e foram para a eternidade
dois colegas com azar.

O Francisco António foi o primeiro
que a morte levou.
O António Amaro, desmoralizado
ao ver a falta do companheiro,
o 1.º Cabo e o Furriel enfermeiro
a falar o reanimaram.
A verdade não lhe contaram
para ver se ele não esmorecia.
Mas como o azar o perseguia
os seus dias terminaram.

Este último se aguentou
quarenta e seis dias a sofrer.
Mas começou a emagrecer
porque a hemorragia não estancou.
De dia a dia piorou
levando muita injeção.
A 10 de maio se soube então
que o último suspiro deu.
Pois ele e o Francisco comoveu
o pessoal do Batalhão.

Os pais com aflição
souberam que os filhos tinham morrido.
Pois lançaram grande gemido
naquela região.
Perto da mesma povoação
estes rapazes se criaram
para o Ultramar abalaram
despediram-se com suspiros e ais
e no fim do tempo seus queridos pais
grande mágoa passaram.”

********************

Continua a litania dos padecimentos, o bardo não pára de trombetear desaires e agonias, parece que todo o Batalhão está exposto às mais rudes provas. É nisto, por contraste, que este companheiro do bardo vasculha esta nova guerra da Guiné na sua fase primigénia e encontra um relato sobre os primórdios da luta armada, até ao seu desenvolvimento. Dele já fez referência em obra sua com parceria, intitulada “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro”, Fronteira do Caos Editores, 2014, tem a ver com as memórias de um combatente intitulada “Homem Ferro”, seu autor é Manuel Pires da Silva, responsável pela edição, com data de 2008. Tem-se sempre em conta que o leitor é leigo, iniciou-se nestas leituras da guerra da Guiné, procura compreender como desabrochou o conflito na área militar, mais complexo é explicar que houve uma prolongada germinação do nacionalismo, formaram-se diferentes partidos, em 1959, Amílcar Cabral em reunião com outros companheiros do Partido Africano para a Independência, tomaram decisões de fundo, Rafael Barbosa e outros ficaram no interior da Guiné em subversão, Cabral e outros partiram para Conacri para encontrar apoios que dessem incremento sério à guerrilha, como veio a suceder, o mesmo Cabral capitaneou os grandes debates com forças concorrentes, o PAIGC, a partir de 1965, foi reconhecido como a força categórica e exclusiva na frente da libertação nacional. Vejamos agora o que viveu um jovem, a partir de 1962, é um relato que dá muito para pensar.

As memórias do fuzileiro Manuel Pires da Silva trazem surpresas, uma delas é abrir novas perspetivas ao que se passou na Guiné em 1962, ninguém desconhece que as investigações dirigem-se sempre para os acontecimentos a partir de Janeiro de 1963, insista-se que há como que uma nebulosa sobre os preparativos da subversão e a respetiva resposta do lado português. Manuel Pires da Silva conta-nos como se fez marujo, ele levou uma vida atribulada em Vale de Espinho, concelho do Sabugal, mourejou no campo, trabalhou com o pai numa oficina de carpinteiro de carros de bois, andou a furar batentes de portas com martelo e formão, fez a instrução primária, andou no contrabando e apanhou alguns sustos. Adolescente, veio com o irmão mais velho para Lisboa, deram-lhe trabalhos de construção civil, foi depois carpinteiro de cofragem, sentia-se desalentado, queria ir mais longe. Inscreveu-se na Marinha, fez a recruta em Vila Franca de Xira, aos 17 anos era segundo-grumete voluntário. Em 1961, foi frequentar o curso de Fuzileiro Especial, recebeu a boina.

É incorporado no DFE 2, destinado à Guiné, ali chega em Junho de 1962. Que missões tiveram? Fazem guarda ao Palácio do Governador, levam prisioneiros do PAIGC para a Ilha das Galinhas, são mandados para o Sul, onde o PAIGC já desencadeava ações de sabotagem. A primeira operação de reconhecimento visava obter informações das gentes das tabancas de Campeane, Cacine, Gadamael Porto, entre outros lugares; seguem depois para Bula, havia fortes suspeitas de guerrilheiros infiltrados naquela zona. Descreve o efetivo da Marinha, ao tempo. O DFE 2 é pau para toda a obra: operação em Darsalame; vão ao rio Corubal em lanchas de fiscalização, “chegam às tabancas e só vêem velhos, mulheres e crianças, que fogem para todo o lado. Rebentam-se canoas, interrogam-se pessoas, mas ninguém sabe nada”. Em Dezembro, vão até Caiar. “Quando se tentava contactar com a população da tabanca, surge o tiroteio, o primeiro contacto com as armas de fogo do inimigo. O comandante é ferido no pé direito, tendo sido o primeiro fuzileiro ferido em combate”. Pouco antes do Natal, voltam ao rio Corubal, os botes são postos na água e sobem o rio. “Passada cerca de meia hora após largar do navio, ouvem-se rajadas de pistola-metralhadora”. E escreve mais adiante: “A situação agravava-se de dia para dia. O Comandante-Chefe andava preocupado, pois Lisboa não mandava reforços suficientes. Esta preocupação era partilhada pelo Comandante da Defesa Marítima, Capitão-de-Fragata Manuel Mendonça”.

Em Março de 1963, fazem batidas nas áreas de S. João, Tite e Fulacunda, no mesmo mês em que os guerrilheiros se apoderaram dos navios “Arouca” e “Mirandela” perto de Cafine. A situação agrava-se no rio Cobade e Cumbijã, os guerrilheiros atacam ousadamente as embarcações. Na sequência do acidente aéreo que vitimou um piloto e levou à captura do Sargento-Piloto Lobato, os fuzileiros bateram a zona, encontraram o cadáver do piloto sinistrado e os restos do avião. “Os guerrilheiros tinham a população do Sul completamente controlada. Os fuzileiros estavam ali sozinhos a remar contra a maré”. Em Julho, com o apoio de um pelotão de paraquedistas, passam Gampará a pente fino. É nisto que foi necessário acudir na área do Xime, todos os dias há fugas para o mato; no mês anterior, foram até à tabanca de Jabadá, tendo sido recebidos a tiro. O inimigo já desencadeia ações violentas a partir da mata do Oio. “Entretanto, a ilha do Como começa a tornar-se intransitável devido à presença dos guerrilheiros”; a tabanca de Jabadá continua em pé de guerra, a aviação lança bombas de napalm, para intimidar os guerrilheiros, o destacamento desembarca e só encontra velhos e miúdos feridos. A guerra surge à volta de Porto Gole, o inimigo não se deixa intimidar e reage com muito fogo, os fuzileiros sentem-se encurralados, aproveitando uma aberta, eles retiram e pedem apoio da aviação. No dia seguinte voltam, desta feita assaltam o objetivo. “Quando o bombardeamento pára, o destacamento arranca para o assalto final. Depara-se com mais de 50 casamatas, algumas crianças feridas, a chorar, e dois ou três velhos, também feridos. Registam as informações que eles querem dar”. Quando estão a retirar, recebem instruções da aviação, um grupo de guerrilheiros voltou ao objetivo. Os fuzileiros conversam entre si, tanto esforço e o inimigo não se apresenta. A seguir a este relato, o DFE 2 anda numa completa dobadoira, seguem para Gã Vicente e descobrem um novo inimigo, as abelhas. Por esse tempo vão chegando à Guiné mais reforços, o DFE 7, mas a subversão ultrapassa a capacidade de tomar sempre a iniciativa, a fazer fé em tudo quanto ele escreve, o Sul não dá parança. O que está hoje historicamente provado, e muito bem documentado. Em Novembro, é por de mais evidente que o PAIGC controla as ilhas de Como, Cair e Catunco. A resposta é a operação Tridente em que o DFE 2 participa. O DFE 9 chega em finais de Fevereiro.

Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam a navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho acabou a guerra para o DFE 2. Ele volta à metrópole, à Escola de Fuzileiros, é convidado para dar instrução. E em Outubro de 1965, lá vai Manuel Pires da Silva no DFE 13 a caminho de Luanda.

Vamos agora mais adiante, ao Diário da CCAÇ 675, a Companhia do Capitão do Quadrado, quando chegaram em meados do ano de 1964 à região de Binta, encontraram tudo em estado de sítio, já se fez referência à sua mentalidade ofensiva, o Capitão do Quadrado foi ferido e está hospitalizado em Bissau, a unidade militar em agosto nomadiza até Guidage, no fim do mês regressa o Capitão do Quadrado e em setembro recomeça a polvorosa, golpes de mão, patrulhamentos, batidas.
Também o furriel-enfermeiro é poeta como o nosso bardo, deixa um sinal dos seus afetos numa publicação de caserna, abre com versos melancólicos, lágrimas de despedida lá no cais, são os dias de viagem até à Guiné, ele questiona:  
“Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria Querida?”.

E despede-se com versos confiantes, animosos:
“À dúvida, ao desânimo, seguem-se a segurança, a fé;
O dever do bom português é mais forte. Vamos lutar,
As dificuldades, os sacrifícios vencem-se de pé.
Mais fortes, mais homens, com honra havemos de voltar.

E quando chegar esse dia ansiosamente esperado,
os vossos corações alvoraçados, delirantes
Voltarão a descortinar no cais festivo, engalanado,
Sorridentes mães, esposas, noivas, felizes como dantes.”

Mas ainda há muito que contar desta Companhia. E um dia destes, pasme-se, chega a hora do BCAV 490 ir para território menos atribulado. Bissau espreita, o estado de ânimo do bardo dará sinais de uma candura, de um rejuvenescimento que desconhecíamos desde aqueles tempos em que a grande questão era a má comida da recruta.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20514: Notas de leitura (1251): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Este ensaio rigoroso e muito bem elaborado de António Duarte Silva será posteriormente reelaborado por este autor e plasmado no livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", uma obra admirável que ainda é possível adquirir.

Traça a conceção da Guiné como colónia-modelo, na visão de Marcello Caetano, refere as cautelas do poder português face à atmosfera anticolonial não só à escala mundial como à volta da região guineense e disseca a fundação do PAI, o massacre de 3 de agosto de 1959 e as decisões da reunião de 19 de setembro desse ano, em Bissau.

Pela sua coesão e objetividade, é um documento de referência, até pelas dúvidas que levanta quanto à reunião de 1956.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC

Beja Santos

Na publicação Cadernos de Estudos Africanos, n.º 9/10, dedicada às Memórias Coloniais, o historiador António E. Duarte Silva, de quem temos feito várias referências aos seus livros, designadamente ao mais recente, publicação da Almedina, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, 2011, que ainda é possível encontrar no mercado, publicou um artigo cujas ideias centrais me parece da maior utilidade aqui reproduzir. É o que se segue.

O autor chama a atenção para a escolha da Guiné como primeiro campo de ensaio da política de Marcello Caetano enquanto Ministro das Colónias, baseada tal política numa progressiva autonomia administrativa com desenvolvimento económico e social e com olhar atento à conjuntura internacional do pós-guerra e ao sentimento anticolonialista. Marcello pretendia uma equipa que saneasse a política colonial do “ambiente de depressão e intriga”. A escolha recaiu em Sarmento Rodrigues, a sua governação ficará inesquecível: reforço da administração colonial, construção de uma rede de infraestruturas, lançamento de uma investigação cultural e científica que ainda hoje é referência. O seu sucessor será Raimundo Serrão, traz novas instruções do novo Ministro, Teófilo Duarte, as preocupações agora centram-se na economia, sobretudo na cultura do arroz e em produtos de exportação. O novo governador não tem a aura do anterior, inaugurou muito e interessou-se verdadeiramente pelo incremento agrícola.

A colónia reposicionava-se com a mudança da capital em 1941. O Subsecretário de Estado Raul Ventura percorre a Província em 1953, visita inclusivamente a Granja do Pessubé “na companhia dos Engenheiros Agrónomos Nobre da Veiga e Amílcar Cabral”. O novo Governador será o Capitão-de-Fragata Diogo Mello e Alvim, então Governador da Zambézia. É Ministro das Colónias Sarmento Rodrigues. Mello e Alvim escreve ao Ministro que a Guiné estava muito diferente daquela que Sarmento Rodrigues deixara em 1948: “todos mandavam e ninguém se entendia. A pouco e pouco, tenho chamado os comandos ao Governo que posso assegurar-lhe que, presentemente, já voltou a haver mais um bocadinho de ordem e tudo; nas despesas, na disciplina e até, perdoe-me o desabafo, na justiça. Os indígenas vêm em mim um continuador da sua obra".


Rafael Barbosa e Amílcar Cabral na Granja de Pessubé, 1952.
Imagem retirada de Casa Comum, Fundação Mário Soares, com a devida vénia.

A PIDE demora a instalar-se, a sua rede só será completada em junho de 1958, mediante a criação de cinco postos em S. Domingos, Catió, Bafatá, Farim e Gabu, todos dependentes da sede em Bissau. É à Polícia de Segurança Pública que devemos as primeiras notas sobre movimentações subversivas em Bissau. A PSP, com data de 3 de maio de 1955, registou as reuniões dirigidas por Amílcar Cabral visando a constituição de uma associação desportiva e recreativa. Os estatutos da associação não foram aprovados e a PSP registava que “o engenheiro Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de atividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade dos direitos dos nativos". Há igualmente referências de várias fontes que terá sido criado em Bissau um Movimento para a Independência Nacional da Guiné, mas não há qualquer prova da atividade nacionalista deste grupo.

Há uma greve dos descarregadores africanos em 6 de março de 1956, a polícia não utiliza a força, Mello e Alvim foi à esquadra libertar os detidos. Em setembro desse ano, Amílcar Cabral chega a Bissau para visitar a família. Chega o momento de referir a reunião de 19 de setembro de 1956 em que Amílcar Cabral interveio num círculo de amigos para propor a constituição de um partido político com o objetivo de alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde, o Partido Africano da Independência (PAI).

Há bastante nevoeiro sobre esta reunião: não há qualquer documento comprovativo, há testemunhos postos em causa, não há sequer consenso quanto ao número de fundadores nem quanto ao alcance efetivo da reunião, para além da intenção de formar um partido político. Para o autor, esta reunião de 19 de setembro e a intervenção de Amílcar Cabral terão sido apenas o momento do lançamento do PAIGC como ideia e organização nacionalista. Anos mais tarde, no seu trabalho de doutoramento, Julião Soares Sousa dirá que era totalmente impossível nesta data Amílcar Cabral estar em Bissau.

Em novembro de 1957, Amílcar Cabral e Viriato da Cruz convocaram a recente “diáspora parisiense” (Mário Pinto de Andrade, Guilherme Espírito Santo e Marcelino dos Santos) para uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas. Serão provados princípios e resoluções e fez-se o lançamento do MAC – Movimento Anti-Colonialista.

Em agosto de 1958, uma dezena de quadros forma em Bissau um Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Diz o autor que era um movimento nacionalista que se pretendia continuador da republicana “Liga Guineense” e defendia que a Guiné se deveria tornar num Estado Federado da República Portuguesa.

Nesse mesmo ano chega à Guiné a “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África”, chefiada por Silva Cunha, aproveito para lembrar ao leitor que se fez uma ampla recensão dos trabalhos desta missão. Silva Cunha não acreditava num perigo imediato de “efeitos de reação antiportuguesa”, mas podia “surgir, de um momento para o outro, em resultado de influências externas”, atendia naturalmente ao que se estava a passar na nova República da Guiné.

O Capitão-Tenente Peixoto Correia é designado Governador da Guiné em outubro de 1958, chegará a Bissau no final do ano. E o autor recorda que também em meados desse ano visitara a Guiné Armando de Castro, estava a preparar um estudo destinado ao Partido Comunista Português, escreveu que se desenvolvia entre os guinéus uma “resistência surda à exploração, e havia repressão policial, comprovada com a recente instalação da PIDE".

António Duarte Silva é dos historiadores que tem mais apurada investigação sobre o chamado Massacre do Pindjiguiti, tive oportunidade de lhe enviar o relatório confidencial do gerente do BNU da época, confirmou-me que as informações batem certo com os elementos de que dispõe e que constam dos seus trabalhos. As consequências serão múltiplas, os acontecimentos serão aproveitados pelo Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas. Logo em 7 de agosto, em carta a Ruth Lara, escrita em Kano (Nigéria), Amílcar Cabral informava-a, de modo telegráfico, que na Guiné houvera “há dias 7 mortos e 5 feridos”. Em carta de 24 de setembro, resume aos seus amigos do MAC a sua ida a Bissau e dá mais pormenores sobre o balanço de mortos, teriam sido 24, mais 35 feridos, alguns muito graves.

Durante a sua estada de uma semana em Bissau, Amílcar Cabral realizara “a mais decisiva reunião” da história do PAIGC, nessa reunião de 19 de setembro o movimento nacionalista adotara várias medidas que se irão revelar estratégicas, tais como: evitar manifestações urbanas e deslocar a ação para o campo, mobilizando e organizando os camponeses; preparar-se o recurso à luta armada; transferir parte da direção para o exterior, indo Amílcar Cabral instalar-se em Conacri.

De acordo com o autor, três documentos testemunham esta importante reunião: um relatório confidencial da autoria de Cabral onde são compulsadas as medidas tomadas e as conclusões; a “Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde”, também assinada por Amílcar Cabral; uma expressiva carta enviada de Conacri, em 16 de junho de 1960, assinada por Cabral onde conclui com incitamentos e pedidos de notícias, identificando-se como Secretário-Geral do PAI. Como diz o autor, o PAI só vai afirmar-se publicamente aquando das intervenções dos representantes do MAC na II Conferência Pan-Africana, realizada em Tunes, em fins de janeiro de 1960. Numa outra conferência realizada em Dacar, em outubro de 1960, o PAI altera definitivamente a sigla para PAIGC.

Perto da conclusão, o autor observa que o massacre do Pindjiguiti se tinha convertido no símbolo da libertação na Guiné-Bissau. O “3 de agosto” passou mesmo a ser o dia da solidariedade internacional com os povos das colónias portuguesas e o dia da proclamação da ação direta, na Guiné, em 1961. A subversão não veio do exterior da Guiné nem foi desencadeada por associações influenciadas pelo Islão. Começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula.

No período subsequente, após as resoluções sobre a descolonização aprovadas pela ONU em dezembro de 1960, os movimentos nacionalistas privilegiarão a defesa da nova legalidade internacional. Esta linha predominará na Guiné-Bissau até aos princípios de 1963, tudo mudará com a luta armada. E assim conclui António Duarte Silva: “O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcançar – libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição – falhou, está em ruínas, desapareceu. Se a libertação viera do campo, Bissau, a cidade, tudo devorou.”
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16729: (In)citações (104): Um texto elucidativo... Onde se fala do Restaurante Bar Pelicano, de Momo Turé, do Tarrafal, da PIDE/DGS, do PAIGC... (Mário Serra de Oliveira)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Serra de Oliveira (ex-1.º Cabo Escriturário, Bissau, 1967/68), com data 12 de Novembro de 2016:

Prezado Carlos:

No decorrer dos anos, toda a gente tem altos na vida... mas, seja em que momento for, quando se recebe uma mensagem como que abaixo vou publicar - deixando aos teus princípios e do blogue, repassar - não há dinheiro no mundo que nos dê tanta saúde e alegria, como ler o dito texto, escrito por alguém que conheci e foi meu companheiro de trabalho n' "O Pelicano".

Mas, deixa-me explicar melhor:

Na sequência de um dialogo sobre os "problemas da Guiné",  eu, por conhecer pessoalmente, alguns dos intervenientes do diálogo, decido opinar dentro dos meus princípios e conhecimentos de causa. Incluso, mencionei Momo Turé - meu braço direito no dito Pelicano. Agora, repara só que... depois de mais de 50 anos (físicos) e cerca de 2 séculos de saudades, me sai esta mensagem, dirigida a 2 dos dialogantes - eu e outro respeitável guineense, vivendo em Paris.

Passo a transcrever...

Um texto elucidativo

"Aos dois interlocutores os meus respeitosos cumprimentos.

Ao Mário, pessoa com quem convivi durante três meses no Bar-Restaurante Pelicano da propriedade do senhor Marques, dono de Grande Hotel em Bissau.

Trabalhei como copeiro à noite (lavador de pratos e copos) e depois garçom no Bar, durante a tarde, ganhando 300$00 escudos guineenses por mês.

Tive o prazer de conviver também, no mesmo espaço, com o Momo Ture, aliás meu primo e vizinho de casas no Pilum de Baixo. Momo Ture foi companheiro da primeira hora de Rafael Barbosa e Amílcar Cabral.

Momo Ture participou da fundação do PAI. Diversas reuniões foram feitas na casa de Momo. Eu era um puto de 8 anos de idade, mas tinha consciência das coisas. Momo costuma nos reunir, pessoas da família,  para explicar as atividades sobre a gestação da política pela independência. Ele nos dizia é para amanhã não ficarem a lés das coisas. Ele perdeu a sua juventude toda na política que veio lhe rendendo prisões e morte. Passou de 7 a 8 anos nas masmorras da minha PIDE em Tarrafal,  Cabo Verde. Após 2 anos de libertado foi se juntar ao PAIGC. Quando foram libertados ele e o Aristides Barbosa, de origem caboverdiano-guineense,  foram os únicos que não assinaram o termo de arrependimento e de integração à bandeira portuguesa do ultramar. Isso está escrito e publicado. Por favor há farta documentação do PAIGC na Fundação Mário Soares, entre cartas, relatórios, atas de reuniões falando sobre a gestação da luta levada a cabo por este Partido, de 1959 até a independência.

Sobre o que problema de MOMO Ture no PAIGC,  só será esclarecido quando o PAIGC é o sucessor da PIDE em Portugal tornarem os arquivos e gravações públicos. Enquanto isso qualquer tentativa de esclarecimento e de discussão sobre a questão serão meras especulações. 

A você,  João Galvão. o meu irmão mais velho,  um forte abraço da Guiné, continuamos apesar de tudo o éramos antes da Luta e continuaremos sê-lo. 

Um abraço guineense também a você, Mário, um brilhante profissional na arte de gastronomia que ouso dizer não conheci um igual. Hoje a minha mulher me "gaba" de ser um bom cozinheiro e respondo a ela… graças a uma pessoa que conheci como o melhor inventor de pratos, o senhor".

Só por isto, vale a pena viver, para relembrar e ser feliz.

Creio que esta mensagem até daria alguma "luz" ao nosso camarada Mário Beja Santos" nas suas pesquisas, nas minhas... já cheguei a uma conclusão que farei constar em "Bissaulónia". Quando sai?... Eh pá, meti-me a fazer uma casa nova de raiz e isso atrasou o projeto do livro.

Deixo a tua consideração o texto acima.
Abraço fraternal
Mário de Oliveira
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16532: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte IV): "Viva Médicas e Médicos Portugueses. Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic) (carta de 15 de novembro de 2000)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13202: Consultório militar, de José Martins (3): O ataque do PAI - Partido Africano da Independência a Catió em 25 de junho de 1962, seguido da destruição da jangada de Bedanda, do corte de fios telefónicos e estradas com abatizes

1. O “nosso editor chefe” depois de colocar o comentário abaixo, questionou-me acerca do acontecido, isto é, se eu dispunha de algum elemento que reportasse o acontecido e qual a data da ocorrência:

Luís Graça deixou um novo comentário na sua mensagem "Guiné 63/74 - P13200: (In)citações (64) Nunca é d...":

«O nosso querido Victor Condeço já não está, infelizmente, entre nós, para confirmar ou corrigir este parágrafo:

(...)"O início das hostilidades na zona, em 25 Junho 1962, com o afundamento da jangada de Bedanda, abatizes nas estradas e os cortes de fios telefónicos, a vila de Catió ficou isolada" (...)

O ataque a Tite, a 23 de Janeiro de 1963, é considerado o início "oficial" da guerra na Guiné... Mas há acontecimentos anteriores a ter em conta... Nunca tinha ouvido falar do afundamento da jangada de Bedanda... em 25/6/1962... Ou será 1963?»


2. Dando cumprimento ao exarado, no respectivo despacho, fiz as pesquisas necessárias para encontrar a resposta que tinha sido colocada.

Com “a sorte dos principiantes” encontrei o seguinte texto:

«Aliás, não foi por acaso que, na sequência dessa grande conferência de imprensa de Londres, no dia 25 de Junho de 1962, o PAI ataca a vila de Catió (destruição da jangada de Bedanda e cortes de fios telefónicos e estradas com abatizes), marcando-se por este acto, do lado do PAIGC, a passagem à Acção Directa, tal como se havia prometido em Londres, pois a luta armada só começaria no ano seguinte, com o ataque ao quartel de Tite, a 23 de Janeiro de 1963. (…)» 

In Guerra colonial & guerra de libertação nacional : 1950-1974 : o caso da Guiné-Bissau / Leopoldo Amado ; pref. Peter Karibe Mendy. - Lisboa :Ministério dos Negócios Estrangeiros, Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, Núcleo de Documentação, 2011 ([Lisboa] : Textype. - 422 pp. (**)
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(**) Vd. blogue do Leopoldo Amado > Lamparam II > 14 de Dezembro de 2006 > Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Parte I)