1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2017:
Queridos amigos,
João Paulo Guerra centra a ação do seu romance num fenómeno que ainda hoje nos inquieta e sobre o qual procuramos passar ao lado: a perturbação pós-stresse traumático de guerra. Embora se duvide dos resultados do romance, em termos de qualidade literária, reconhece-se o mérito de voltar a pôr em cima da mesa as vidas escalavradas de muitos stressados de guerra, denunciar que a rede nacional de apoio aos militares e ex-militares vítimas desta doença funciona deficientemente.
Li este livro sempre a pensar no que o Mário Vitorino Gaspar aqui escreveu, o seu trabalho na APOIAR e no sofrimento anónimo destas vítimas que aguardam tratamento para lhes suavizar o sofrimento.
Um abraço do
Mário
Vidas escalavradas de gente que continua em guerra
Beja Santos
João Paulo Guerra |
A perturbação pós-stresse traumático é o eixo central deste romance de cariz policial, investigativo e confessional. Linguagem onde paira um certo sentido poético, um percurso fluido onde se irão acumular vários mortos, com desfechos perturbadores. Tudo começa quando se encontrou o corpo de Henrique Moreira no rio Jamor, houve dúvidas se se tratava de suicídio ou homicídio. A inspetora Diamantina Jesus procura mais informações junto da viúva de Henrique, Adélia. Tudo isto se passa algures na década de 1990. Henrique mostrava sinais de asfixia por submersão, calçava botas militares, o corpo não apresentava sinais de violência. A inspetora cedo se apercebe que Henrique Moreira, que fora alferes miliciano na guerra de Moçambique, transportara um drama, uma inquietação que não o largava, aquele casamento tivera anos felizes, ultimamente Henrique consumia-se e consumia a sua mulher.
A polícia investiga indivíduos que compareceram ao funeral, tem todos em comum terem frequentado as consultas de psicoterapia comportamental do Hospital Júlio de Matos, gente cheia de problemas, desempregados, com vidas familiares infernais ou expulsos do convívio familiar. Todos aqueles homens trazem o inferno dentro deles, mataram, viram matar, perderam-se no mato, assistiram à crueldade e à violência. Diamantina conversa com a psiquiatra e apura que a tal perturbação pós-stresse traumático é o elo entre todos aqueles doentes e estima o número deles em cerca de 50 mil doentes crónicos. Os amigos de Adélia procuram ajudar e até investigam. Entretanto, há mais mortes, constata-se que aqueles doentes são coniventes uns com os outros, têm formas muito singulares de entreajuda. E descobre-se que o Henrique fora punido porque não aceitara um relatório acerca de uma povoação destruída e população barbaramente assassinada. As histórias seguem-se umas às outras, enquanto Adélia encontra num quarto a estranha documentação de Henrique envolvendo os acontecimentos de Moçambique. Vão se contando histórias truculentas, caso do cabo Felisberto fizera operações com os Flechas, cortadores de cabeças da PIDE no Sudoeste de Angola, gente que decapitava velhos, mulheres e crianças. Diamantina junta documentação enquanto prosseguem mais mortes suspeitas: homicídios ou suicídios assistidos?
A todo o momento, durante as inquirições, vai surgindo gente estranhíssima, têm todos em comum estarem marcados pela guerra colonial. De pista em pista, encontra-se um elo de ligação entre todas estas mortes e o papel desempenhado pela morte de Henrique. Por vezes, João Paulo Guerra cria atmosferas inverosímeis para essas mortes, caso do antigo Cabo Valentim Brotas que se suicida no dia 10 de Junho em pleno Terreiro do Paço, cortara os pulsos e deixara extinguir-se a vida, irá ouvir-se no velório o Adágio para Cordas, de Samuel Barber, o lancinante tema da banda sonora do filme Platoon. E há os dramas familiares, mulheres ansiosas e deprimidas de homens incertos e inesperados nas explosões emocionais: “Os filhos nasceram, ou pelo menos cresceram e foram criados neste ambiente familiar doentio. E se a separação entre os pais e as mães tinha afastado para longe o foco mais primitivo do contágio, do mal-estar e de perigo, agora eram as mães quem transmitia aos filhos a ansiedade e o pânico que os pais tinham vivido, agravados pela situação dolorosa do pai ausente e da mãe que também ia saindo da sua vida ao mergulhar nos abismos da memória de guerras que não tinha vivido”.
Investigação chega ao fim, percebe-se finalmente o que há de comum em todos estes doentes crónicos com quem Henrique convivera. Adélia parte, à procura de si própria e quando volta encontra cartas de um dos seus amigos que é pintor e fora trabalhar a Paris. Depois da guerra, a ternura inundou a vida destes dois seres humanos que tiveram de conviver com um turbilhão de corações irritáveis.
É um romance bem-intencionado mas fruste, é um trabalho de secretária de quem vê a guerra através do estudo de uma doença. Melhor seria que João Paulo Guerra tivesse enveredado pela reportagem, os resultados teriam sido seguramente mais convincentes e socialmente mais impactantes. Não obstante, é uma trama narrativa meticulosamente organizada com fina simplicidade e trabalho sério na pesquisa de atalhos profundos onde se desfizeram vidas nessa guerra colonial em que ainda há muito para contar.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20911: Notas de leitura (1281): Conversa entre homólogos na Guiné-Bissau: uma história hilariante (Mário Beja Santos)
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