Queridos amigos,
No preâmbulo do primeiro volume do meu Diário da Guiné, publicado em 2008, contei que, para além do inopinado foi para mim ter dito ao Luís Graça que ia publicar toda a minha comissão, semana a semana no blogue, isto depois de um nosso encontro em 2006, já me tinha ocorrido no passado escrever uma obra romanceada cujo título era exatamente este: "Rua do Eclipse", um acontecimento fortuito, uma conversa com uma intérprete no decurso de uma reunião de trabalho, em Bruxelas, dera ignição a uma correspondência amorosa onde o amante português iria descrever a sua experiência de guerra nos trópicos.
Tomaram-se muitas notas, na altura, havia o correio, as fotografias, as cartas militares, havia essencialmente as feridas em figura de gente, os queridos camaradas com olhos vazos, próteses, fugitivos da praga dos fuzilamentos, gente que aproveitava mesmo uma qualquer estadia em Portugal para aqui ganhar sustento, aquele novo país parecia caminhar para o abismo. Mas a vida profissional tinha outras exigências, a Rua do Eclipse ficou em gatafunhos, mas deixou imensa saudade, era o paraninfo, a voz primigénia que iria fazer superar outras tubas, e trombetear o que a partir do Diário da Guiné se passou a escrever.
É essa saudade desses gatafunhos que aqui se põe em letra de forma. Há os livros que os autores rejeitam e há os livros não escritos que deixaram um recado para o futuro, talvez seja o caso deste malogrado "Rua do Eclipse".
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (1): A funda que arremessa para o fundo da memória
Comprei bilhete para o avião da tarde de sexta-feira, 10 de setembro de 1999. Sempre que possível, quando tenho reuniões na manhã de segunda-feira, parto na antevéspera, sempre são dois dias por minha conta, ou fico no discreto e obscuro Hotel Georges V, que conheço há 20 anos, faz parte da lista, cada vez mais minguada, de hotéis baratuchos, ou na Rue Grétry, quando venho ao serviço da Confederação Europeia dos Sindicatos. Desta feita venho em serviço oficial, discussão sobre a revisão da legislação da publicidade. Procurei fazer a agenda de coisas que tenho para trabalhar, vai em breve ter início o ano letivo, dar Sociologia do Lazer, preciso de trabalhar mais na organização das aulas de novembro e dezembro, felizmente que já produzi os conteúdos das aulas de outubro. Na véspera, telefonou-me o Carlos Cruz Oliveira, foi ele que lançou a revista Liber 25 e as Memórias da Guerra Colonial, nos anos 1980, pretende relançar as duas coleções, pediu-me colaboração, prometi para a semana enviar-lhe dois artigos diferentes. Trouxe comigo rascunhos e fotografias da Guiné. Se tudo correr bem, trabalharei afincadamente sábado à noite, e quando vier de uma exposição no Museu de Belas-Artes trago comida feita, vou mourejar até dormir. Regresso a Lisboa segunda-feira à noite, será um resto de semana ativíssimo.
Aeroporto de Zaventem, Bruxelas-Nacional
É preciso viajar no lusco-fusco no comboio entre Zaventem e o centro de Bruxelas para entender o desencanto daqueles eurocratas que passam por esta capital como cão por vinha vindimada. O comboio entra num túnel, da janela vemos de um lado fabriquetas e umas granjas a monte, do outro lado as traseiras e jardins com muito pouca graça, lá ao longe veem-se uns lugarejos e campanários de igreja, é tudo deslavado até chegar a Schaerbeek, quem vem pela primeira vez até pode tomar aquela imagem como casa fidalga, afinal é gare ferroviária, que já conheceu dias mais lustrosos, mas a imponência da arquitetura ninguém lha tira.
Gare de Schaerbeek
Passados cerca de quarenta minutos da partida de Zaventem, chega-se à gare central, está tudo muito diferente de quando aqui cheguei há cerca de vinte anos, então, mesmo à saída da porta principal havia um descampado utilizado como parque de automóveis, sobrava a Igreja da Madalena para se pensar muitos séculos antes aqui houvera vida. Hoje está tudo diferente, há um muro de hotéis, tudo a imitar o antigo, ou quase, chama-se fachadismo, não é desengraçado na invocação, mas tem um ar ainda profundamente estéril. Ponho-me ao caminho, está um anoitecer sereno, passo ao lado da ruidosa Grand-Place, ouve-se a vozearia dos turistas e veem-se os clarões dos flashes, tomo o Boulevard Anspach, caminho em direção a Anneenssens, já estou perto de casa.
Gare Central de Bruxelas
A Igreja de Notre-Dame aux Riches-Claires é bela por fora e de um estranho despovoamento no interior, interroguei-me, logo na primeira visita, se tinha havido aqui alguma grande ladroagem durante qualquer guerra, é tudo de uma enorme rusticidade e no entanto o altar barroco faz-nos sentir que houve poderosos sinais de riqueza, no passado vivia na vizinhança uma burguesia flamenga abastada. A cidade de Bruxelas deu uma grande reviravolta com a chegada em força da Comunidade Económica Europeia, da NATO, dos imensos escritórios representativos de interesses, os grandes negócios querem-se fazer ouvir regularmente na Comissão e no Parlamento Europeu, entre outros. Foram tomando insidiosamente o centro, quem aqui habitava partiu para as comunas da fímbria, com a avalanche dos imigrantes, os da Europa do Sul, do Magreb, e depois de todo o mundo, os escritórios preferiram as zonas chiques circunvizinhas das instituições europeias, hoje são preferencialmente árabes e uma pequena burguesia quem habita nestes boulevards e proximidades, há cafés para marroquinos e turcos, mas também se está a dar uma gentrificação nos bairros populares, caso de Marolles, é ali pertinho que está a Feira da Ladra, se não chover, vou lá passar a manhã, toda aquela traquitana me extasia.
Igreja de Notre-Dame aux Riches-Claires
Já conheci o Hotel Georges V com a fachada arruinada e bem degradado, a cheirar a mofo, felizmente com quartos limpos e casa-de-banho funcional. Quando faço a reserva, lembro que sou aquele português que pede uma luz que permita trabalhar na secretária, há um pendor para a luz mortiça inexplicável, como se fosse dogma de fé que o hóspede ficasse obrigado a ver televisão em exclusivo, mesmo as luzes junto às mesas de cabeceira parecem boas para alumiar velórios, gentilmente encontro sempre boa luz para trabalhar. Arrumada a tralha fui à janta, há nas redondezas pequenos restaurantes geridos por espanhóis ou italianos, desde que se tenha cuidado com o que se bebe, come-se bem e em conta. Como aconteceu. Aproveito a espera de um prato de rigatoni com tomate para ver o que oferece a agenda cultural, infelizmente a Europalia Hungria só começa em outubro, mas há uma exposição sobre o dadaísmo, sinto-me seduzido. Nada de ópera, La Monnaie ainda está em remodelações, fica para mais tarde.
Hotel Georges V, Rue T’kint nº 23
São oito da manhã de segunda-feira, tomei o pequeno-almoço muito cedo, quero ir a pé até Schumann e descer a Rue Froissart, é aqui que vai decorrer a reunião, no Centro Borschette. Sabe bem este ar frio, fujo das artérias com mais trânsito, não me sai da cabeça a ideia de construir uma história sobre a minha comissão na Guiné, graças ao Carlos Cruz Oliveira tenho publicado recordações sobre a vida no Cuor ou na região de Bambadinca. Ocorreu-me contar uma história dolorosa que vivemos na passagem do ano de 1969, coube-nos uma vigilância toda a noite num lugar chamado Bambadincazinho, bem perto da Missão do Sono, na passagem do ano quem estava no destacamento do Xime fez um foguetório imenso, naturalmente que me alarmei, perguntei ao Comando de Bambadinca se me devia pôr à estrada para ajudar esta unidade em apuros. Veio a resposta lacónica: “Não saias daí, aquilo é tudo borracheira, são munições que se perdem”. Ao amanhecer, veio o soldado condutor Xabregas com um Unimog 411, conhecido por “burrinho”, dava jeito levar aquele carregamento de munições, a nossa salvaguarda na eventualidade de aparecer um grupo do PAIGC pela frente. Sentei-me ao lado do Xabregas, por cima, num suporte metálico em L sentou-se o soldado Uam Sambu, um mansoanque já várias vezes sinistrado, homem com pouca saúde. No seu andar descompassado, apareceu Quebá Sissé, antigo cozinheiro em Missirá, pediu boleia, deu a mão esquerda a um camarada para ser alçado e inadvertidamente meteu a arma em posição de fogo e no esticão para chegar ao assento da viatura meteu o dedo no gatilho e descarregou três tiros na tábua do peito de Uam, que me caiu no regaço. Breve, foi uma correria para o posto de enfermagem, fui alvorotado pedir ajuda ao médico da unidade, Joaquim Vidal Saraiva, ele veio prestes e cedo percebeu que a evacuação com caráter de urgência era um mero proforma, Uam fora atingido em órgãos vitais, partiu moribundo e já estava morto quando aterraram no HM 241. Era à volta deste horrível acidente, da estima que eu tinha por Uam, que nas tardes de lazer se vestia com as roupas mais vistosas que alguma vez vi, e que era casado com a Binta, a minha lavadeira, Cherno Suane, o meu guarda-costas, tinha com elas discussões horríveis, a Binta esfregava as fardas em pedras, eram gestos tão violentos que desfaziam os botões, e Cherno, que sabia costurar, pedia-lhe em vão que fosse mais meiga nas lavagens, as discussões subiam de tom, foi nelas que aprendi vários palavrões em crioulo.
Vou a caminho da Rue Froissart e pergunto-me o que é que me deu para me lembrar desta história, venho trabalhar e recuei trinta anos, recapitulo todas estas cenas, segue-se um clique em que tudo isto se encadeia, estou no cais do Pidjiquiti, já passa das dez horas da manhã do dia 2 de setembro de 1968, trouxeram-me de Santa Luzia com duas caixas enormes que albergam os meus livros, os meus discos de vinil e um gira-discos, parece que preparei uma bagagem para turismo de longa duração, trago uma mala de roupa e um saco de artigos de higiene; quem me transportou entrega-me um garrafão de água, uma caixa de rações de combate, sou conduzido para um batelão, não sem esforço as caixas passam para o interior da embarcação, ali arrumo os outros meus tarecos, sento-me na ré, vai começar uma viagem. O que é que me terá dado para estar reviravolta nas memórias, tudo a pretexto de uns artigos que me comprometi a escrever, coisas que tenho feito na mais pura das camaradagens, tem-me feito bem até agora, mas não tenho sentido nenhuma obrigação, obrigações tenho-as eu e muitas, dão-me água pela barba, era o que faltava andar a cismar em permanência com todas essas histórias de dois anos de Guiné. Identificado à entrada do centro Borschette, subo ao segundo andar, entro na sala, cumprimento quem preside à reunião e quem secretaria, há um ou outro representante que conheço, damos dois dedos de conversa. Sento-me, tiro a documentação e então olho à volta, estou mesmo em frente das cabines de interpretação.
Centro Albert Borschette
Uma cabine de interpretação, algures numa instituição europeia
Que surpresa, quando ponho os auscultadores para francês, alguém da cabine, com voz louçã, fala em português, um português bem acentuado, para me dizer que está pronta, se eu quiser, para me traduzir para francês, outro colega traduzirá para inglês, e eu que não me preocupe com as outras línguas, o alemão, o italiano e o espanhol têm os seus intérpretes, mas só se eu quiser. Procuro a pessoa na cabine, o vidro é um tanto fosco, apercebi-me do aceno e de um rosto sorridente. E então, tudo aconteceu. Levantei-me e fui em direção à cabine, a senhora que me recebe à porta é uma quase cinquentona, as maçãs do rosto lembram a cor do pêssego, tem um olhar esverdeado, o cabelo de um castanho muito claro, onde raiam já umas ripas de branco, ténues. Apresentamo-nos, há aperto de mão, ela chama-se, percebi bem, Annette Cantinaux. E desabridamente pergunto-lhe se podemos almoçar juntos, ocorreu-me, imagine-se, a ideia de um romance, trata-se de alguém que combateu na guerra da Guiné, que ama uma belga, os dois não podem por enquanto, por razões profissionais, viver juntos, telefonam muito, sobretudo ele, que tem vindas mensais a Bruxelas, procura estar junto da mulher amada, ela também faz o possível, embora tenha por obrigação de ser intérprete e trabalhar para a comissão, não só o tempo muito ocupado, não pode dizer que não, há as conferências internacionais, pendularmente tem que ir ao Luxemburgo, interessa-lhe muito porque é melhor pago, embora o trabalho seja uma estafa, um tédio de manhã à noite, é aquela gente da estatística, mas tudo fazem estes cinquentões por cruzar as suas vidas.
Annette Cantinaux, vejo-lhe bem na face, está arrelampada com o pedido que lhe faço, mas acede, iremos almoçar juntos e falar-lhe-ei do que me está a passar pela cabeça, este estranhíssimo rompante de alguém que tem tanto que fazer e que recua trinta anos e põe na correspondência as vidas anteriores. A intérprete, pasmo, acha a ideia interessante, está pronta a ajudar-me. “Parece que me reservou um papel que me assenta bem, na vida real, sou uma mulher divorciada, com filhos a singrar na vida, até me posso dar ao luxo de me embeiçar por um português, vamos vivendo juntos à experiência, ainda com uns bons anos até chegar à reforma. No entretanto, damos um ao outro elementos para o seu romance”. A reunião prosseguiu toda a tarde, à saída despedi-me de Annette, ainda vou fazer compras, faz parte da minha rotina, trago um saco de lona que se encherá de vitualhas num supermercado Delhaize, e dali parto para o aeroporto. Annette já me deu todos os contactos telefónicos, mail e endereço postal, com surpresa, vejo que ela mora bem perto da Rue T’kint, na Rua do Eclipse. Entrámos no metro em Schumann, saio na Gare Central, já de mochila aviada, só faltam as compras para os filhos. É nisto, que antes de sair do metro eu digo a Annette, “Que bom título para um livro, Rua do Eclipse!”.
Rua do Eclipse
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20929: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)
2 comentários:
Na fotografia Aeroporto de Zaventem, no lado esquerdo, já se nota uma larga passadeira, que depois será coberta, à saída do parque de estacionamento que ficava a cerca de vinte metros da porta da entrada do aeroporto. Nos anos que seguiram à proibição de fumar dentro do aeroporto, na grande porta de entrada, que se vê na foto, havia/há vários grandes cinzeiros de pé que habitualmente estão cercados dos inveterados fumadores.
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Valdemar Queiroz
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