Região Autónoma dos Açores > Ilha de São Miguel > Maio de 2019 > O reencontro de dois amigos da Guiné, ao fim de 48 anos: à esquerda, o ex-missionário italiano Lino Bicari (, casado com uma portuguesa, vivendo hoje no Alentejo) e, à direita, o Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), expulso depois do exército e do CTGI, em maio de 1971, sendo hoje enfermeiro reformado: casado, deixou o sacerdócio em finais dos anos 70. (*)
O Lino Bicari é da mesma idade, nasceu em Itália. Missionário do PIME - Pontifício Instituto para as Missões Exteriores. chegou à Guiné em maio de 1967. Além da telogia, tinha formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e em etnologia.
O Lino Bicari é da mesma idade, nasceu em Itália. Missionário do PIME - Pontifício Instituto para as Missões Exteriores. chegou à Guiné em maio de 1967. Além da telogia, tinha formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e em etnologia.
O Puim e o Bicari conheceram-se na Guiné, em Bafatá, "numa altura em que o capelão chefe, padre. Gamboa promoveu um encontro durante dois dias dos capelães da Zona Leste – Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – precisamente na Casa dos Padres Missionários Italianos de Bafatá."
O Puim voltaria mais tarde "duas ou três vezes à Casa dos simpáticos missionários italianos, aproveitando sempre esta estadia para um reconfortante convívio sacerdotal e um renovar de forças no exercício da minha missão de capelão." (*)
Em 1973, o Bicari aderiu ao PAIGC, e tornou-se responsável pelo Hospital Regional do Boé, já depois da declaração unilateral de independência em 24 de setembro de 1973.
Foto (e legenda): © Arsénio Puim (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Foto (e legenda): © Arsénio Puim (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
I. Testemunho de Lino Bicari, que nos chegou pela mão do Miguel Puim, com a devida autorização para se publicar no blogue.
1. Em 1970 já tinha conhecido vários capelães militares em missão de serviço na então Guiné Portuguesa e tinha tido com todos bons relacionamentos, mas só com o Padre Arsénio Puim, capelão em Bambadinca, no leste do país, entrei no "mesmo comprimento de onda", porque desde o primeiro encontro percebi que partilhávamos sentimentos perante a dramática situação da guerra colonial em que estávamos ambos mergulhados.
1. Em 1970 já tinha conhecido vários capelães militares em missão de serviço na então Guiné Portuguesa e tinha tido com todos bons relacionamentos, mas só com o Padre Arsénio Puim, capelão em Bambadinca, no leste do país, entrei no "mesmo comprimento de onda", porque desde o primeiro encontro percebi que partilhávamos sentimentos perante a dramática situação da guerra colonial em que estávamos ambos mergulhados.
Arsénio tornou-se assim o único português com quem, nesse tempo da PIDE omnipresente, com a sua rede de informadores, podia falar de tudo à vontade.
Nasceu assim uma amizade quase à primeira vista, sem muito conhecimento um do outro.
Dois foram os encontros a sós que nunca poderei esquecer. Um, no final de 1970, na Missão Católica de Bafatá, onde eu trabalhava há já quatro anos.
Nasceu assim uma amizade quase à primeira vista, sem muito conhecimento um do outro.
Dois foram os encontros a sós que nunca poderei esquecer. Um, no final de 1970, na Missão Católica de Bafatá, onde eu trabalhava há já quatro anos.
Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/ BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): açoriano, da Ilha de Santa Maria, foi expulso do exército e CTIG em maio de 1971, apenas com um ano de comissão; no final da década de 1970 deixou o sacerdócio, formou-se em enfermagem, casou-se, teve 2 filhos; vive na Ilha de São Miguel; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande; tem cerca de 40 referências no nosso blogue; é autor da série "Memórias de um alferes capelão", de que se publicaram doze postes]
Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Guiné > Região de Bafatá > 1970 > Exterior da capela de Bambadinca ... Aquartelamento e posto administrativo de Bambadinca. Foto de Benjamim Durães ex-fur mil op esp, Pel Rec Inf, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)
Foto ( e legenda): © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Vejo-me ainda sentado a uma mesa na biblioteca dessa Missão. À minha frente o amigo Arsénio, de pé, a tremer de indignação, percorria com passos nervosos, o pequeno espaço livre. Parece-me ainda ouvir da sua boca, num tom enfadado, a narração dos feitos horrorosos da guerra a que quase diariamente assistia, acentuando o contraste com a narrativa oficial e com a propalada missão civilizadora do regime.
Contou-me as frequentes saídas nas chamadas “missões de soberania”. Era a própria “malta” a pedir a participação do capelão nessas saídas de alto risco, acreditando talvez que a sua presença pudesse funcionar como um talismã protetor, nos terríveis momentos do rebentamento de minas e nas mortíferas emboscadas do inimigo invisível. Para o Padre Arsénio, no entanto, a sua presença era sobretudo para impedir ou atenuar os excessos da guerra.
2. O outro inesquecível encontro com o amigo Arsénio deu-se no inicio de 1971, no quartel militar de Bambadinca a 30 km de Bafatá. Após a missa dominical na Missão desta localidade, a convite do Arsénio, no seu quarto, voltei a ouvir e desta vez também a ver, através de fotografias, os horrores da guerra, o que me permitiu compreender melhor o seu drama interior.
Ele, pensei, deve ter lido e ouvido inúmeras vezes o que estava resumido numa frase do Boletim dos Capitães militares e que aqui vou citar:
2. O outro inesquecível encontro com o amigo Arsénio deu-se no inicio de 1971, no quartel militar de Bambadinca a 30 km de Bafatá. Após a missa dominical na Missão desta localidade, a convite do Arsénio, no seu quarto, voltei a ouvir e desta vez também a ver, através de fotografias, os horrores da guerra, o que me permitiu compreender melhor o seu drama interior.
Ele, pensei, deve ter lido e ouvido inúmeras vezes o que estava resumido numa frase do Boletim dos Capitães militares e que aqui vou citar:
“O capelão militar é um dos elementos mais importantes do nosso exército porque, pregando a doutrina do amor cristão, ajuda grandemente a obra de pacificação e de reunião de todos os povos das províncias ultramarinas sob a única bandeira portuguesa”.
Para mim, foram esta mistura e esta instrumentalização politico-bélica com a mensagem evangélica que levaram o drama interior do amigo a explodir em desabafo durante a homilia dominical no inicio de Maio de 1971, que teve como consequência a sua expulsão do exército.
Eu também, nessa altura, estava a viver , de forma menos dramática, esta mesma contradição que iria durar oito anos, de 1966 a 1974, resumida no artigo 2 do Estatuto Missionário português, aprovado por Salazar e Cerejeira, na lógica da Concordata de 1939. Esse artigo refere textualmente:
Eu também, nessa altura, estava a viver , de forma menos dramática, esta mesma contradição que iria durar oito anos, de 1966 a 1974, resumida no artigo 2 do Estatuto Missionário português, aprovado por Salazar e Cerejeira, na lógica da Concordata de 1939. Esse artigo refere textualmente:
“As Missões católicas portuguesas são Instituições de utilidade imperial e de sentido eminentemente civilizador”.
Aquilo que criou a amizade entre mim e o Arsénio não foi o facto de sermos coetâneos (hoje oitentões) ou ambos padres cumpridores da missão incumbida, mas sim o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida.
Completámos desta forma, a nossa missão comum, a de colocar a nossa pedrinha na construção da paz e da liberdade dos povos português e guineense.
Aquilo que criou a amizade entre mim e o Arsénio não foi o facto de sermos coetâneos (hoje oitentões) ou ambos padres cumpridores da missão incumbida, mas sim o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida.
Completámos desta forma, a nossa missão comum, a de colocar a nossa pedrinha na construção da paz e da liberdade dos povos português e guineense.
Lino Bicari (**)
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Notas do editor:
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