− Num ataque de ciumeira, o meu ex tentou estrangular-me!
− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não posso acreditar!...
− Desculpa, nestes anos todos nunca te cheguei a falar dele, e da nossa relação!...Mas tu conheceste-o, uma vez na Casa da Música.
Logo que pudeste, em meados de julho desse ano, arranjaste um pretexto para estar com ela. Tinhas uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitaste para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.
A Nucha era uma das “mães-fundadoras” da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**). Juntavam-se às quintas feiras. Tu havias entrado neste grupo, como "observador-participante", justamente através da Nucha e do seu projeto local de promoção do envelhecimento ativo e saudável.
− Deixou-se ir abaixo com esta história toda, anda deprimida − confidenciou-te uma das pessoas do grupo que lhe estavam mais próximas.
A Nucha fora vítima de violência doméstica. Disso ninguém tinha dúvidas. Algumas pessoas do grupo estavam chocadas, umas mais do que outras.
− Uma brincadeira, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros com quem falaste ao telefone.
Ninguém achou graça nenhuma à subtil insinuação desse caminheiro. "Brincadeira" ?!... Para mais vinda de alguém que, no passado, também fora vítima de violência conjugal. Neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental.
− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas?! − comentava uma amiga dela.
Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que ela te apresentara uma vez como "amigo" ) contaram-te que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.
A Nucha apresentava, pelas fotos que tu viste, claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com escoriações ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).
Compreensivelmente, ela nunca mais quis voltar à casa da Foz. Nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes. Incumbiu, para essa tarefa, uma amiga, que morava para os lados da av da Boavista.
− Na primavera e no verão, preciso de sentir na pele a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores…
O juiz impôs ao agressor, como medida de coação, o simples termo de identidade e residência... Aguardou o julgamento em liberdade...
− É a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe... Pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista − comentou-se no grupo que, em peso, foi solidário com a Nucha.
− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas... Pelo menos, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo e da classe social da vítima e do agressor.
Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum, fotojornalista, que to apresentou:
− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)
Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.
Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca, com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De resto, ele sabia tratar-se de uma amiga tua de longa data.
Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.
O Vaz C... era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).
− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.
Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas, professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia. (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)
Também eram muito raros os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...
Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha". A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso, ela nunca quis conhecer.
Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça, inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...
− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.
Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro", em suma.
Não, não era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho.
− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...
Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte, ligado à indústria transformadora.
− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.
− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão.
Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão. Este regressara à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado".
− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...
O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas.
− Substituiram o timoneiro (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.
Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...
− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...
O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.
O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração...
− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...
Não foram trinta, emendou ele:
− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...
Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa...
− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado.
Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:
− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...
Depreendeste, ou deduziste, que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...
Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso...
Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha, sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação...
(...) "Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa! [começou ela a contar ao Vaz C..., os dois já deitados na cama]... Um Mastroianni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava muita parecença com o Mastroianni quando novo... (Como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.)
© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.
Última revisão: 19 de outubro de 2024
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'
(**) Vd. poste de 18 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros