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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico


Contos com mural ao fundo >  Ciúme patológico

por Luís Graça (*)


A Nucha ainda estava bastante combalida quando tu, na semana seguinte, lhe telefonaste. Por mero acaso, numa daquelas vezes em que te lembravas de fazer a ronda dos amigos que viviam longe.  (Gostavas de saber, de viva voz, que  a malta "ainda ia estando por cá",  se bem que já com a saúde "remendada"...   Tudo isto antes da pandemia, tragédia que mudou para sempre as nossas vidas. )

A Nucha estava viva, graças a Deus. Mas tinha tido um “acidente de percurso” (sic), nesse princípio de verão de 2017. Desconfiaste do eufemismo...

− Acidente ?!...

− Num ataque de ciumeira, o meu ex tentou estrangular-me!

− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não posso acreditar!...

− Desculpa, 
 nestes anos todos nunca te cheguei a falar dele, e da nossa relação!...Mas tu conheceste-o, uma vez na Casa da Música.
 
Sentiste que ela precisava de desabafar.  Nada, afinal,  como ter um velho amigo (e confidente). A 300 km de distância. Longe mas sempre ao alcance de um clique. 

Ainda os telemóveis não faziam videochamadas. Pelas fotos que ela te mandou,  dava para perceber a gravidade da agressão de que fora vítima… Trazia um colar cervical.

Segundo as suas queixas, sofrera diversas contusões no pescoço, mas também na couro cabeludo e no peito. Felizmente não havia vértebras cervicais partidas.

Logo que pudeste, em meados de julho desse ano, arranjaste um pretexto para estar com ela
. Tinhas uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitaste para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.

A Nucha era uma das “mães-fundadoras”  da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**). Juntavam-se às quintas feiras.  
Tu havias entrado neste grupo, como "observador-participante", justamente através da Nucha e do seu projeto local de promoção do envelhecimento ativo e saudável. 

−  Deixou-se ir abaixo com esta história toda, anda deprimida 
− confidenciou-te uma das pessoas do grupo que lhe estavam mais próximas. 

Mas, não faltaram logo, à boa maneira nortenha, as manifestações de afeto e de solidariedade, por parte dos caminheiros e demais amigos.  O  “caso” tornara-se público, contra a sua vontade. 

A Nucha fora vítima de violência doméstica. Disso ninguém tinha dúvidas. Algumas pessoas do grupo estavam chocadas, umas mais do que outras.

− Uma brincadeira, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros com quem falaste ao telefone.

Ninguém achou graça nenhuma  à subtil insinuação desse caminheiro. "Brincadeira" ?!... Para mais vinda  de alguém que, no passado, também fora vítima de violência conjugal. Neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental. 

Enfim, o termo “brincadeira” não estava isento de uma conotação algo machista.

− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas?! 
− comentava uma amiga dela.

Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que ela te apresentara uma vez como "amigo" ) contaram-te que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.

A Nucha apresentava, pelas fotos que tu viste,  claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com escoriações ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).

− Patológico ?... Dizem-me que o ciúme é o fogo que alimenta, a lume brando, o amor.

− Todo o ciúme é patológico!... Não me lixes − asseverava ela.

A verdade é que a Nucha ficara muito afetada, física e psicologicamente. 

“In extremis” conseguira libertar-se das mãos do agressor, e chamar o 112. O INEM veio com a polícia. O  acabou por cair em si e deu-se por “culpado”. (Até por que era um homem "educado, culto e inteligente", disse o advogado no tribunal.) 

A Nucha foi levada, à meia noite, para o Hospital de São João,   tendo estado dois dias em observação e depois em tratamento.

Compreensivelmente, ela nunca mais quis voltar à casa da Foz. Nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes.  Incumbiu, p
ara essa tarefa, uma amiga, que morava para os lados da av da Boavista. 

A Nucha voltou, de vez, para o seu apartamento na Rua da Alegria. 

− Os 50 metros quadrados da sua ilha preferida.

Costumava dividi-los  com o confortável casarão da Foz, nomeadamente no outono e inverno, estações mais "tristonhas".

− Na primavera e no verão, preciso de sentir na pele a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores… 

A Nucha confidenciara-te que nunca mais  poderia viver por detrás de uma serra!.,. Detestava o rosmaninho e a urze, aromas de uma infância em que decididamente não fora feliz!

O juiz impôs ao agressor,  como medida de coação, o simples termo de identidade e residência... Aguardou o julgamento em liberdade...


− É a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe... Pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista 
−  comentou-se no grupo que, em peso,  foi solidário com a Nucha.

Sobretudo as mulheres não escondiam a sua indignação:
 
− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas... Pelo menos, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo e da classe social da vítima e do agressor.
 
Mas, afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha ?...  O "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico   nortenho.

Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum,  fotojornalista, que to apresentou:

− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)

− Por acaso, já nos tínhamos visto antes...

Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.

Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca,  com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De
 resto, ele sabia  tratar-se de uma amiga tua de longa data.  

O tribunal condenara-o a a 30 dias de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos corporais e morais, à Nucha.

Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.

O  Vaz C...  era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas,  professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia.  (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)

Também eram muito raros 
os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha".  A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso,  ela nunca quis conhecer.  

Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça,  inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.

Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas  aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro",  em suma.

Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pela segurança e condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Nas despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar.

 De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogio que ele próprio fez, na conversa que teve contigo. 

A Nucha confirmou-te que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.  Adorava o "Alvarinho" da sua terra...

Não, não  era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. 

A casa na Foz ("um casarão", integrada agora num condomínio fechado) já vinha de família, mas fora remodelada. O pai tinha sido um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário). E dera-se bem com as obras públicas do Estado Novo.

− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...

Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte,  ligado à indústria transformadora.

Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)

− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... 
Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.

E prosseguiu o teu interlocutor (que parecia ter necessidade de falar do seu passado):

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. 

Com um prognóstico tão reservado, toda a gente entrou  em pânico. Ele era muito centralizador, para não dizer autocrata. Gostava sempre de ter a última (e decisiva) palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". 

- Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, eu não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão.  Este regressara  à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado". 

Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão... E confessou-te, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudara com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine". Acusavam-no  de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nada benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o timoneiro (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...

O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de  dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração... 

Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar" e de sobretudo de "resolver problemas práticos sem grandes equações".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, 
ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

 Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e confidente do "Velho", e um homem, afinal, poderoso. 

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. 

E arrematou: 

− A única coisa boa que me aconteceu nestes últimos oito anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabei de a perder, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher. Perdi completamente a cabeça, meu Deus!

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendeste, ou deduziste,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...

Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso... 

Respeitaste o seu silêncio, levantaste-te, despediste-te dele... e nunca mais o voltaste a encontrar.

Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação... 

 − Um relação que tinha tudo para ser tranquila e até feliz − assegurou-te o engenheiro,  quase no fim da conversa (que foi mais um monólogo).

Eis,  em resumo,  alguns excertos de longas conversas que tiveste, entretanto, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminara num já longínquo mês de junho de 2017:

− De qualquer modo, houve uma punição legal e uma reparação material… A justiça é sempre relativa.

− O tanas, minha querida!... Ele teve uma pena suspensa, caricata, e foi obrigado a indemnizar-te por danos físicos e morais…mas isso para ele foram "peanuts".

− De mal o menos… Se eu fosse uma verdadeira lutadora, como a minha vizinha Maria da Fonte, ter-me-ia esforçado por provar que vivíamos juntos a maior parte do ano, em união de facto… Por uma questão de orgulho, não o fiz… Bloqueei!... Nunca me tinha visto num tribunal, com montes de gajos a despirem-me, mentalmente, de alto a baixo!

− Ias pôr em causa o teu autoconceito de mulher livre e independente ?!

− Posso estar a ser burra, mas assim foi-me mais fácil varrê-lo completamente da minha vida e das minhas memórias…

− ?...

− Sou uma mulher do Minho… de pêlo na venta e nas pernas!... Nisso sou uma cópia, a papel químico,  da minha mãezinha, que era capaz de ser má como as cobras, quando lhe pisavam os caules!

− Que disparate!

− ... Legalmente não houve violência… doméstica! Não éramos um casal, o juiz deve pensado que eu era um cabra, julgou o caso como uma simples agressão corporal…

−… na cama!

− Foi tudo muito sórdido!... Ele [o Vaz C…] tinha massa, arranjou um advogado, conhecido aqui na praça, que lhe limpou  a barra...

− E inverteram-se os papéis, não ?!

− Sim, às tantas, eu é que era a má da fita, a fria e astuta Eva que ludibriara o pobre e indefeso Adão!... Tive de reconstituir não sei quantas vezes a cena dessa maldita noite!...

−  Tens de ma repetir para eu poder defender-te quando as pessoas vêm insinuar que fizeste uma cena de teatro só para provocar o teu ex...

− Foi o que o advogado dele procurou demonstrar perante o juiz, passando da defesa ao ataque… A minha advogada era uma jovem, minha conhecida, que estava mais atrapalhada do que eu!...

A Nucha reforçou-te a ideia de que o tipo afinal tinha uma dupla personalidade:

 − Sabes, ele era um tipo misterioso… E deixa-me, desde já,  falar dele como sendo um fantasma do passado!... Pensava que o conhecia minimamente, que estupidez a minha!...Vivi com um animal estranho, durante oito anos, se não foram oito, anda por lá perto, com muitos intervalos pelo meio entre a casa da Foz e a da rua da Alegria…

− Ele falou-me em tiros de G3, deu a entender que andou na guerra colonial… Não quis aprofundar o assunto, seria indelicado da minha parte...

− Sim, ele esteve na Guiné, entre 1963 e 1965, se não erro… Não sou boa em datas. Regressou com 25 anos e só depois é que acabou o curso de engenharia, faltava-lhe um ano ou coisa assim… Deve ter apanhado a crise estudantil de 62… Não te sei dizer.

− Nasceu portanto em 1940 ou por aí…

Sim, ele era mais velho do que a Nucha uma boa dúzia de anos… Ela era de 1952.

− Falava-te da guerra ?

− Pouco ou muito raramente... Sim, quando fomos à Guiné-Bissau, ou melhor, à ilha de Orango, no arquipélago dos Bijagós… Fomos de avioneta, diretamente de Dacar para Orango… Em rigor, não estivemos na parte continental da Guiné-Bissau. Nesses dias, que adorei, vi os estranhos hipopótamos que vivem tanto em água doce como salgada, e que vão desaparecer com a subida do nível do mar, daqui a algumas décadas… Sim, nesses dias, ele falou-me por alto de algumas recordações do tempo da Guiné… Tinha estado em Bubaque, em 1964, numas curtas férias…

− Mas nunca te falou em episódios de guerra ?!... De um prisioneiro que terá tentado fugir e que ele terá abatido à queima-roupa...

− Não... Acredito que não deve ter sido fácil para ele. Mas eu também não queria saber nada sobre esse passado obscuro. E muito menos da merda da guerra!...  

− Deve ter tido também um divórcio litigioso… E deve ter havido, aí, no passado dele, mais episódios de violência doméstica, não ?!

− É bem possível, mas era assunto tabu entre nós. Nunca falámos da ex-mulher dele. Nem eu queria ouvir falar dela, nem de filhos e netos... Afinal, também sou ciumenta, como toda a gente.

− Estranho, não ?!,,, O passado de cada um de nós é sempre uma caixinha de Pandora...Percebi que também perdera os pais, ainda relativamente cedo…

− Sim, num estúpido acidente automóvel, nas vésperas de Natal quando iam para Viana do Castelo. Há uns trinta e tal anos. Ele é que ia a conduzir. Os velhotes iam atrás. Ficaram esmagados pelo embate de um camião TIR, que ficou sem travões…

− Não o amavas assim tanto…

− Vamos lá a ver: habituámo-nos à companhia um do outro. Tínhamos, de facto,  algumas coisas em comum. Por exemplo, éramos cinéfilos, adorávamos o cinema italiano do pós-guerra... Ele era um gajo culto, para os padrões burgueses do Porto… Gostava de ir ao teatro, gostava de ouvir um bom concerto sinfónico, etc. Não discutíamos política... Ele ia a missa, eu não...Sempre respeitei as suas convicções... Mas, amor, amor… É uma palavra demasiado forte que eu não gosto de pronunciar em vão… 

E depois de retomar o fôlego, a Nucha lamentou: 

- Andei toda a vida à procura do grande amor da minha vida, como quem joga no Euromilhões… Desisti, olha, agora jogo à raspadinha...  

− Somos utópicos…

− Somos mas é estúpidos, pelo menos nós, as mulheres, somos mais estúpidas do que vocês…

− Não digas isso, estás ainda magoada ao fim deste tempo todo.

− O meu sexto sentido, a minha inteligência emocional, o meu faro de felina... falharam redondamente desta vez… Aliás, têm falhado bastas vezes. Afinal, nunca acertei com os gajos que passaram pela minha vida, ou pela minha cama, que são coisas que deveriam ser completamente diferentes!

− Não, quando se tem vinte anos!... 

− Sim, nessa altura o sexo era tudo… E ainda não havia, felizmente, a Sida!.... Mas já tínhamos a pílula, ao menos… Nós, as mulheres!...  Lembras-te ? Dizíamos que era o "amor livre"!...

− Mas, afinal, ainda o odeias, ao teu último ex ?

− Se queres que te seja franca, tenho-lhe um pó danado. Só consigo fazer o luto de uma relação, através do ódio… Ainda não deixei de o odiar, acredita... E não quero encontrá-lo mais, o que é difícil para quem vive numa cidade provinciana como o Porto. Evito, por exemplo, ir à Foz, e aos locais que frequentávamos... Felizmente que ele não vai ao Parque da Cidade... Nem temos praticamente amigos comuns...Vivi meses enclausurada como uma monja...

− O amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda… Mas como é que se risca uma pessoa da nossa vida ?... Foram oito anos de vida juntos…Ou em que andaram juntos.  Vocês partilhavam algumas coisas boas da vida: as galerias de arte, Serralves, a Casa da Música, o teatro, o cinema, a música, a boa comida, as viagens…

− Até o nosso álbum de fotografias destrui, num acesso de raiva, as férias “maravilhosas” que ele me proporcionou na ilha do Príncipe ou na ilha de Orango… Queimei todas as fotos em que aparecíamos juntos. É assim que eu faço o luto de uma relação quando as coisas acabam mal por culpa dos gajos…

− Parece-me que o teu ódio também é contra a injustiça da justiça, digamos, falocrática, não ?!

A Nucha fez questão de te acompanhar ao comboio, apanharam o metro até Campanhã. Pelo caminho foi-te então contando, mais descontraída, o que se passara nessa noite de junho de 2017…

Vieste no comboio, de regresso a Lisboa, a tentar reconstituir, por escrito, o longo monólogo que a Nucha teve na cama com ele, o Vaz C…, e que terá sido o “móbil do crime”… Ou pelo menos a gota de água que fez transbordar o copo de uma relação já há muito desgastada pela usura do tempo, da rotina e do medo do futuro… 

(...) "Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa! [começou ela a contar ao Vaz C..., os dois já deitados na cama]... Um Mastroian
ni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava muita parecença com o Mastroianni quando novo... (Como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.)

"Em boa verdade, já nos tínhamos encontrado antes, uma vez, em Barcelona, há uns poucos anos atrás, recordava-me do seu nome... Era o último da lista, o Zacarias, mas nem ele reparou em mim nem eu nele. Também era mais novo e desconhecido.  E eu era já uma cinquentona nesse tempo... 

"Desta vez, em Lisboa,  ele era a estrela da companhia. Intelectualmente brilhante, fisicamente atraente. O encontro foi de dois dias, 5ª e 6ª. No primeiro dia, à noite, houve o tradicional jantar de gala, oferecido pela organização. O sítio não podia ser mais romântico e inspirador, no terraço coberto de um hotel de charme, um antigo palacete do séc XVIII, revestido a fabulosos azulejos da época, e que milagrosamente sobrevivera ao terramoto... Com vista para a Baixa e o estuário do Tejo, estás a ver ?!... A noite estava perfeita, com uma temperatura já de verão, e Lisboa estava em festa com a proximidade dos santos populares.

"Comeu-se bem e bebeu-se melhor, sabes como são os estrangeiros quando vêm cá, a Lisboa ou ao Porto, em negócios ou trabalho, gostam de juntar o útil ao agradável, o dever e o prazer. São muito trabalhólicos mas à noite tiram a gravata e o casaco, o mesmo é dizer, a máscara. O ambiente era descontraído, e desinibido, e havia uma tremenda carga de energia positiva no ar. 

"Os trabalhos, no dia seguinte, só recomeçavam às 10h00, por alteração de última hora do programa. Esperava-se a presença do ministro. Ainda fomos ao Bairro Alto, mais para ver o ambiente e andar um pouco a pé. Depois regressámos ao hotel, que não era longe, estávamos alojados no mesmo sítio, e por coincidência no mesmo piso. Como estava sem sono e, em boa verdade, sentia-me 'very, very free, cool, happy', uma sensação que há muito não experimentava. 

"Apesar da nossa diferença de idades, para aí uns vinte, o Mastroianni quis ser gentil comigo, ficou mais tempo na conversa, bebemos o último copo 'para a sossega' (fez ele questão de mo oferecer!), acabámos por subir juntos, no elevador, despedimo-nos com um beijo e eu aí..., tive uma sensação estranha, um impulso irresistível: agarrei, qual leoa, com as duas mãos, aquela cabeça de Apolo e,  zás!, ..."

(...) "Foi nesse preciso momento que o gajo [ela estava agora a referir-se ao Vaz],  o cabrão que estava a ler, a um canto da cama, a fingir que me ouvia, saltou como o tigre da Malásia, ferrou-me o pescoço com os dentes, tapou-me a boca com uma mão, puxou-me os cabelos com a outra, e deu um urro que ecoou pela casa toda: 'Cala-te, sua caaaaa... braaaaaa...!'... 

"E tentou estrangular-me, quase até à asfixia total...

(...) "Tive uma fração de segundo de lucidez para perceber o que estava a acontecer e que ele me ia matar... Foi aí que consegui, num derradeiro esforço hercúleo de mulher minhota, libertar a minha perna esquerda e dar-lhe uma joelhada fortíssima no baixo ventre. 

"Deu um urro de morte: 'Sua....caaaaa... braaaaa, filha de uma ganda puuuuu...ta!!!".

"E, 'in extremis', largou-me, desistiu, bloqueou, caiu exausto na cama, teve um ataque de choro, histérico ...  

(...) "Sim, consegui chamar o 112...Saltei da cama, cheia de dores, num estado miserável, desgrenhada, a roupa rasgada, pedi socorro ao 112... 

"Não ofereceu resistência quando chegou a polícia... Só voltei vê-lo no tribunal.   O processo correu célebre.

" Cabra, eu?!... O gajo ficou completamente desvairado com a cena que eu estava a contar, em voz alta, mais para mim do que para ele... Uma verdadeira fantasia erótica, se queres que te diga!...Mas na sua imaginação pornográfica ele viu-me agarrada ao grego, a rebolar na cama de gozo!... 

"O gajo tratou-me como uma puta, privativa, a quem pagava, de vez em quando,  uns jantares em restaurantes de luxo, só para eu ser dele!

"Fantasia erótica ?!...Não vou dizer que não estava excitada... Sim, se calhar até era capaz de ir para cama com ele, mas fiquei por ali, peguei-lhe na cabeça com as duas mãos, como uma mãe faria a um filho, dei-lhe um longo beijo de boas noites ... e de despedida!... 

"No dia seguinte, trocámos olhares cúmplices, algo embaraçados, como  dois tímidos adolescentes, acabou a conferência, ele apanhou o avião para Atenas e eu o comboio para o Porto... Nem sequer sei onde mora!...

"No fundo, fiquei com uma pena danada de não ter  dormido com ele nessa noite, única, irrepetível! E ainda hoje não sei por que é que não o fiz... 

"Muito provavelmente porque ele não me deu  'luz verde'... Sou muito intuitiva nestas coisas, dou muito importância ao comportamento não verbal dos meus parceiros... Senti atração por ele, não senti atração dele por mim...

"Sim, o meu Apolo não estaria nos dias dele... Os deuses são caprichosos... tão ou mais que os humanos... Ou então ele era um falso deus, uma merda de sedutor, um daqueles gajos que têm medo das mulheres inteligentes e dominadoras...

"Claro que eu fui completamente idiota ao contar esta história do Olimpo ao meu ex... Se calhar até fui cruel, sem intenção de o ser... Ou, se calhar, inconscientemente, eu quis provocá-lo, testar os seus limites de racionalidade, pôr á prova o amor dele...  

"Dir-me-ás, também tu, que, antes de seres meu amigo, és macho, que as mulheres não podem brincar com o fogo... Se calhar foi por  isso que os homens, com medo, nos roubaram o fogo!... É um dos mitos mais antigos da humanidade!

"Que parva que eu fui!... Afinal, uma mulher não pode ter desejos, não pode ser proativa em matéria de sexo...E muitos menos se tiver cabelos grisalhos... Uma gaja aos 65, era a idade  que eu tinha na altura, em 2017, não pode desejar um homem, vinte anos mais novo... Grego, lindo com o Apolo!... 

"Sabes uma coisa ?!... Tenho reconhecer que estou velha e acabada, não tenho a pedalada dos miúdos de hoje, como os que são (ou foram) meus alunos". (...)

Não voltaste a ver a tua amiga Nucha desde a vossa última conversa, em Campanhã. Meteu-se, entretanto, a maldita pandemia... E, pior do que tudo, a Nucha sofreu, entretanto,  um surto psicótico, esteve internada em psiquiatria, um irmã dela, mais nova, veio ao Porto buscá-la... 

Vive hoje triste, apática, solitária, numa casa de repouso em Terras de Bouro... Por ironia, voltou aos montes da sua infância raiana, cobertos de rosmaninho e de urze. Coisa que já não a incomoda,  felizmente, para ela, que perdeu o olfato. E também já não sai nem ninguém a visita para além da família mais próxima...

Quanto a ti, tu nunca foste a Terras de Bouro. Nem sabias exatamente onde era, antes de ires ao Google... Mas ficaste  devastado ao saber do fim desta história de uma mulher que tanto acreditara, em vida, na arte e na ciência  da promoção do envelhecimento ativo e saudável.


© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.
Última revisão: 19 de outubro de 2024
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'

(**) Vd. poste de 18 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros

sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25899: Verão de 2024: Nós por cá todos bem (9): O amor mora em Queens: Vilma (esloveno-americana) e João (luso-americano) (Recorte do jornal "Dnevnik", 5 de julho de 2024)


 



Ljubezen v Queensu: Vilma in João | Love in Queens: Vilma and João | O amor mora em Queens: Vilma & João


1. Recorte (e fotos) do jornal "Dnevnik" , Liubliana, Eslovénia, 5 de julho de 2024. Artigo de Nik Erik Neubauer, que acompanhou o casal Crisóstomo, Vilma e João, desde a sua casa, em Queens, Nova IOrque, em viagem de férias, até à terra da Vilma, Brestanica, na Eslovénia, aproveitando o ensejo para contar o seu feliz reencontro há 13 anos atrás. Amigos desde 1971, João e Vilma estiveram sem notícias um do outro até 2011. Casaram-se em 2013.  Com a ajuda do Google Translate, traduzimos e adaptámos a versão inglesa do artigo (gentilmente disponibilizado pelo João). E que reproduzimos aqui, com a devida vénia. (LG)


I met Vilma Kračun and João Crisóstomo over coffee in the community space of the Slovenian church in Manhattan. When I introduce myself and tell them what I'm doing in New York, João tells me: "Today you will have lunch with us!"

Conheci   a Vilma Kračun e o João Crisóstomo  a tomar um café,  no espaço comunitário da igreja eslovena em Manhattan. Quando me apresentei e contei-lhes o que estava a  fazer em Nova York, o João disse-me logo: "Hoje você vai almoçar conosco!" (*)

 In a few minutes we are already driving to their house in Queens, and at the same time I get a short tour of the sights of Manhattan. I am most amazed by the tall and narrow skyscrapers, 

Em poucos minutos já estávamos a ir de carro para a  casa deles em Queens, e ao mesmo tempo que eu  ia fazendo  uma visita guiada aos pontos turísticos de Manhattan. O que mais me impressionava eram os altos e estreitos.arranha-céus 

Vilma laughs and says: "We call them cigarettes!". They tell me that they drive everywhere by car, because they feel that the subway is not adapted for elderly people, but at the same time, according to them, it can also be dangerous and you never know who you will run into.

A Vilma ri-se e diz-me: “Chamamo-lhes cigarros!”. Dizem-me que vão para todo o lado de carro, porque acham que o metro não é apropriado  para gente  idosa, e ao mesmo tempo, segundo eles, também pode ser perigoso,  nunca se sabendo com quem se vai deparar nos corredores.

When I enter their house, which somewhow reminds me of terraced houses in Koseze, I am surrounded by walls full of photos, documents, handwritten notes and newspaper articles from all over the world. Their love story went around the world and was published in many media.

Quando entro na casa deles, que de alguma forma me lembra as casas geminadas de Koseze, vejo-me cercado por paredes cheias de fotos, documentos, notas manuscritas en recortes de  artigos de jornais de todo o mundo. A sua história de amor deu a volta ao mundo e foi publicada em muitos meios de comunicação.

The couple met in 1971 and then reunited four decades later in 2011. They had met in London, where Vilma was working as an au pair and he as a waiter, after which they lost touch when João moved to New York. Together with his then-partner, he tried to find a lost friendship until 1997, when he and his then-wife broke . And from then on he continued to do it alone. He sent letters to her address, but they always bounced back.

O casal conheceu-se em 1971 e reencontrou-se quatro décadas depois, em 2011. Eles timha-se conhecido  em Londres, onde Vilma trabalhava como "au pair gitl"  e ele como porteiro de hotel, após o que perderam o contato um do ouytro quando o  João se mudou para Nova York.  Junto com sua então companheira, mãe dos seus filhos, ele tentou reencontrar uma amiga perdida até 1997, altura em que  se separaram, ele e a sua  esposa. E a partir daí ele continuou à procura da Vilma, mas agira sozinho. Enviou cartas para o endereço dela, mas foram sempre devolvidas.

He also tried to use all his many acquaintances to reunite with Vilma. He continued looking for her when he worked as a butler for people from high circles of American society, including Jacqueline Kennedy Onassis. He also tried to contact Vilma through a friend, Ramos Costa who was then the Portuguese Ambassador in Yugoslavia, but this was also unsuccessful, as Vilma had moved to Paris in the meantime. On Valentine's Day, in 2011, his then sister-in-law, who lived in Toronto, called him and told him that she had found Vilma on Facebook.

Ele também tentou usar a sua rede de contactos pessoais e sociais  para descobrir  a Vilma. Ele continuou a procurá-la quando trabalhava como mordomo para pessoas de alta sociedade americana, incluindo Jacqueline Kennedy Onassis. Tentou também contactar a Vilma através de um amigo, Ramos Costa, então embaixador de Portugal na Jugoslávia, mas também não teve sucesso, uma vez a Vilma tinmha-se entretanto mudado para Paris. No Dia dos Namorados, em 2011, uma cunhada do João, que morava em Toronto, ligou-lhe econtou que havia encontrado a Vilma no Facebook.

João immediately called her and Vilma answered him in the middle of the night at two in the morning. In the following weeks and months, they spent hours and hours on the phone, talking and getting to know each other. A year later, João came to Vilma in Paris. "When he arrived, I felt as if I had known him all my life. He hugged me as tightly as the Portuguese do and I thought my heart would burst from all the emotions." 

João ligou-lhe  imediatamente. A Vilma atendeu a chamada, eram duas da madrugada...  Nas semanas e meses seguintes, eles passaram horas e horas ao telefone, conversando e conhecendo-se melhior. Um ano depois, o João veio ter com a Vilma a Paris. "Quando ele chegou, senti como se o conhecesse desde sempre. Ele abraçou-me com tanta força como os portugueseso fazem, e pensei que o meu coração fosse explodir de t
anta emoção." 

Vilma had already started to fall in love with Joao during all the conversations on the phone, while he primarily wanted to find his good friend: "I don't like to lose friendships, which are our greatest treasure in life. But when we hugged then it was really like love at first sight." On the two-hours journey to a border town in Switzerland, they also told each other in person everything that they had not been able to do over the phone before. Soon after, they moved to New York and got married.

Vilma já havia começado a apaixonar-se  pelo João ldurante as primeiras  conversas mantidas ao telefone, enquanto ele queria principalmente encontrar a sua boa amigo: "Não gosto de perder amizades, que são o nosso maior tesouro na vida. Mas quando nos abraçámos então foi realmente amor à primeira vista." Na viagem de duas horas até uma cidade fronteiriça na Suíça, eles também contaram um ao outro pessoalmente tudo o que antes não tinham conseguido fazer por telefone. Logo depois, mudaram-se para Nova York e casaram-se.


João's unyielding character is also manifested in many humanitarian purposes. He was involved and influential in preventing the construction of a dam in Portugal that would have caused the destruction of Stone Age drawings in the Portuguese town of Vila Nova de Foz Côa. In 1998, UNESCO listed the area as a World Heritage Site. Rupert Murdock, an Australian businessman and media magnate, for whom he occasionally worked as a butler helped him, by recommending him to the editor of the “Times of London” one of the many publications he owned. For his role in rallying the international media to this campaign to save the Fozcoa Engravings he was thanked for his efforts by the then Prime Minister of Portugal, today's Secretary General of the United Nations, António Guterres.

O carácter determinado  do João também se manifesta em muitos propósitos de cariz humanitário. Teve envolvimento e influência na campanha contra  a construção de uma barragem em Portugal que teria causado a destruição de gravuras da Idade da Pedra em Vila Nova de Foz Côa. Em 1998, a UNESCO classificou  a área como Patrimônio Mundial. Rupert Murdock, empresário australiano e magnata da comunicação social, para quem trabalhou ocasionalmente como mordomo, ajudou-o, recomendando-o ao editor do “Times of London”, uma das muitas publicações que possuía. Pelo seu papel na mobilização dos meios de comunicação internacionais para esta campanha para salvar as Gravuras de Foz Coa, foi objeto de apreço e gratidão   pelo então Primeiro-Ministro de Portugal, hoje Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres.

He also played an important role in the independence of East Timor, by his contacts with Patrick Kennedy, Bill Clinton and Nelson Mandela and other leaders and key people in world affairs.

 Desempenhou também um papel importante na independência de Timor-Leste, através dos seus contactos com Patrick Kennedy, Bill Clinton e Nelson Mandela e outros líderes e pessoas-chave na política internacional. 

He was also influential in his contacts with the international media, the US Senate and the Clinton administration. His desire to help, whenever he felt his involvement could be useful, led him to collect signatures of support for the release of three American hostages from Colombia in 2008. He is always tireless in his efforts, forced sometimes due to time zones differences to stay up all night on the landline to contact influential people from around the world.

Ele também foi influente nos seus contatos com os órgãos de comunicação a níve internacional,.  o Senado dos EUA e a administração Clinton. A sua vontade de ajudar, sempre que sentiu que o seu envolvimento poderia ser útil, levou-o a recolher assinaturas de apoio à libertação de três reféns americanos da Colômbia em 2008. É sempre incansável nos seus esforços, obrigado às vezes, devido a diferenças de fuso horário, a ficar acordado a noite toda, ao telefone fixo,  para entrar em contato com pessoas influentes de todo o mundo. 


At the moment João and and Vilma are on a visit to Slovenia, visiting her hometown in Brestanica.

They will soon go to Portugal, where a ceremony will be held on July 19 when the former home of the portuguese diplomat Aristides de Sousa Mendes, after long repairs and reconstruction will be reopened by the President of Portugal .


This new renovated home, now transformed into a Museum will be the new headquarters of the Day of Conscience.

Neste momento João e Vilma estão de visita à Eslovênia, visitando  da Vilma cidade natal, Brestanica. (**)

Irão em breve para Portugal, onde será realizada uma cerimónia no dia 19 de julho, quando a antiga casa do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, após um longo restauro e  reconstrução, será reaberta pelo Presidente de Portugal. (***)

Esta nova casa renovada, agora transformada em Museu, será a nova sede do Dia da Consciência. 

The “Day of Conscience” was first publicly remembered in 2004 by João Crisóstomo with dozens of events in 21 countries around the world to commemorate the day ( 17 of June 1940) when Aristides de Sousa Mendes, against the express orders of Lisbon, but in accordance with his conscience, began issuing as many visas as he could, many thousands of them, to Jews and other refugees during the Second World War.

O “Dia da Consciência” foi recordado publicamente pela primeira vez em 2004 por João Crisóstomo com dezenas de eventos em 21 países de todo o mundo para comemorar o dia (17 de Junho de 1940) em que Aristides de Sousa Mendes, contra as ordens expressas de Lisboa, mas em de acordo com a sua consciência, começou a emitir tantos vistos quanto pôde, muitos milhares deles, para judeus e outros refugiados durante a Segunda Guerra Mundial. 

During His General Audience on June 17 2020 Pope Francis, following long and perseverant efforts by João Crisóstomo, founder of this project, recognized the great humanitarian diplomat Aristides de Sousa Mendes and the “Day of Conscience”.

Durante a Audiência Geral de 17 de junho de 2020, o Papa Francisco, após longos e perseverantes esforços de João Crisóstomo, fundador deste projeto, reconheceu o grande diplomata humanista Aristides de Sousa Mendes e o “Dia da Consciência”.


(Tradução, adaptação, revisão/fixação de texto, tíitulo, itálicos e negritos: LG)
 (Com a devida vénia...)
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Notas do editor:


(*) Últimos cinco poste da série >
29 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25893: Verão de 2024: Nós por cá todos bem (8): Mensagem enviada ao Blogue pelo ex-Alf Mil Rogério Parreira do BENG 447 (Guiné, 1968/70)


29 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25891: Verão de 2024: Nós por cá todos bem (7): ... E vamos lá estar, no Porto, na Casa da Música: Orquestra Médica Ibérica, Concerto solidário, dia 8 de setembro, domingo, às 18h00

27 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25888: Verão de 2024: Nós por cá todos bem (6): Lançamento do livro "A Pesca da Baleia na Ilha de Santa Maria e Açores", de Arsénio Chaves Puim, dia 29, 4ª feira, pelas 21h00, na Biblioteca Municipal de Vila do Porto.

26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25884: Verão de 2024: Nós por cá todos bem (5): Tabanca do Algarve, com o con inf ref Manuel Figueiras (Tavira e CCS/BCAÇ 2852), o Humberto Reis (CCAÇ 12), e dois camaradas do TO de Moçambique (Eduardo Estrela, ex-fur mil, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

15 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25843: Verão 2024: Olá, nós por cá todos bem (4), um bom livro, de sabor camiliano, o último do Joaquim Costa, para se ler na praia, no pinhal ou na esplanada, de trás para a frente e de frente para trá


(**) Vd. postes de

25 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25881: Tabanca da Diáspora Lusófona (24): As minhas férias possíveis em 2024: EUA, Portugal e Eslovénia - Parte I (João Crisóstomo
26 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25883: Tabanca da Diáspora Lusófona (25): As minhas férias possíveis em 2024: EUA, Portugal e Eslovénia - II (e última) Parte (Rui Chamusco / João Crisóstomo)


(***) Vd. poste de 19 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25762: Efemérides (442): Hoje, no dia do 139º aniversário natalício de Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), e na inauguração do seu Museu, em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, o Papa Francisco deu-nos a graça e a honra da Sua Benção (João Crisóstomo)

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25862: O segredo de... (44): Aos 70 anos, comecei a ficar farto da guerra (Torcato Mendonça, 1944-2021)... Um "segredo póstumo" que chega ao blogue por mão da Ana Mendonça e do Virgínio Briote


Foto nº 2



Foto nº 3




Foto nº 8



Foto nº 5



Foto nº 1



Foto nº 4



Foto nº 10



Foto nº 9
 

Foto nº 11


Foto nº 7


Foto nº 6


Guiné > Zona Leste > Regiáo de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".



Fotos (e legendas):  © Torcato Mendonça (2007) Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. Mensagem. com data de 19 do corrente,  do Virgínio Briote: (i) nosso coeditor jubilado; (ii) ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e ex-9alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67); (iii) frequentou a Academia Militar (1962/64); (iv) autor do blogue, desativado (a partir de 2009), Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas (recuperado pelo Arquivo.pt em 25/9/2009).



No sábado ao jantar, a Maria Irene lembrou-me que era já na 2ª feira, 19, que iríamos festejar os 57 anos de união e que no dia seguinte, 20, iríamos ter em casa a festa de aniversário dos 24 anos da nossa neta Catarina e que viriam os parentes mais próximos. Estava-me a dizer que era urgente eu limpar o local onde eu tenho tudo o que é só meu, escritos, pastas, livros, tralhas.

Comecei ontem a limpeza e arrumação e foi durante esta operação que encontrei um escrito do Torcato Mendonça, nosso saudoso Camarada. Este breve escrito, que é talvez mais um desabafo, foi-me enviado pelo correio pela Ana Mendonça, sua Mulher, que ainda hoje, fala com muita saudade do seu Torcato. Não sei mas imagino que a Ana M. deve ter encontrado este rascunho nalguma limpeza que tenha estado a fazer.

Segue-se o texto, tal como está, sem qualquer correcção da minha parte. Vb





Foto nº 12
Olá Virgínio

Deves ter razão. Hoje, quando abri o telemóvel vi este post (*). De facto, quem vê caras nem sempre vê corações. 

Falei com o Luís Graça e, agora já noite, tentei escrever (escorrer?). Falhou o coração e nada escrevi. Arranquei agora umas palavras ao ler-te e ao título “Apocalipse”. Mesmo nesta amostragem de uma dúzia de fotos vemos muito.

É um rapaz que se deixa fotografar e fotografa aquela loucura ou, porque não, a loucura dele a aparecer. Melhor, se houvesse uma listagem cronológica. 

A 12 é do início da comissão, a 2 é o “Fula” que não sou, é o olhar já marcado e o fotografado sorri, feliz por ter uma criança ao colo, pois gosta delas (Foto nº 4). 

Há mais uma, com os vapores do álcool, ou o olhar louco (turvo?) na emboscada montada (Foto nº 7). 

A camaradagem com o sargento milícia (Foto nº 10),  um amigo que já se foi, certamente de morte natural ou fuzilado pelos libertadores da Pátria. Disseram os ventos que muitos dos que comigo andaram foram assim tratados.

Mansambo era mato e, aos poucos, foi sendo um aquartelamento. Quadrado com, mais ou menos, cem por cem metros, oito casernas, abrigos e mais uns edifícios sem qualificação de nome, mais tarde onde era a cozinha, a arrecadação disto ou daquilo, a enfermaria, ou os abrigos dos obuses 10.5 (Foto nº 9), atrás da tabanca com uma dúzia de
moradores. 

Ao redor estava o IN detestando o despudor daquela rapaziada (Foto nº 11). Tentaram demovê-los e nada conseguiram. Levaram forte aos fortes ataques. Até tivera ajuda de mercenários cubanos, os ataques eram mais certos, mais organizados, mas os rapazes resolviam.

Aquilo ficou fortemente gravado e não passou. Éramos, meu caro Virgínio, uns rapazes na força da nossa juventude (Fotos nºs 1, 3, 6, 8). Hoje já batemos os 70 e tentamos ir saltando um, dia de cada vez (Foto nº 5). 

Vou ao ginásio e sinto um olhar, aqui ou ali, a interrogar-se: o velhote ainda por aqui anda…e eu tento ir andando e espero que a saúde não seja tão madrasta. Comigo ou com os meus, sejam familiares, amigos ou não mas que sejam apenas seres vivos e pessoas de bem.

E, já num tom intimista, só para ele mesmo (**): começo a ficar farto da “guerra” aonde participei e que outros participaram. Parece-me qua andaram por lá e só hoje vão compreendendo o que era aquela Guerra.

(Transcrição: VB / Revisão e fixação de texto: VB / LG)

2. Comentário do Virgínio Briote ao poste P15299 (*)



Torcato:

Das inúmeras imagens que vi daqueles anos da guerra, em Angola, na Guiné, em Moçambique, as que mais me despertaram a atenção até hoje foram as que te pertencem.

E se me pedissem para dar um título a esse álbum, eu escolheria "Apocalipse". Porquê? Porque, tal como no filme 'Apocalipse Now".  de Coppola, vejo um mundo do "outro mundo". Loucura, inocência, violência, rostos falsamente alegres de jovens sorridentes, um mundo surreal.

São fotos, Torcato, que retratam uma "Mansambo" que muitos, mas mesmo muitos de nós, nunca conheceram.

Obrigado por as mostrares, caro Camarada!

Um abraço do V Briote


28 de outubro de 2015 às 21:48 




Torcato Mendonça, Fundão, 27 de janeiro de 2007.

Foto: LG (2007)

3.  Excerto de comentário anterior do Torcato Mendonça (Poste P14309):


(...) "Sim, mudei muito"! Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)



4.  Comentário do editor LG (a propósito do Poste P15299 (*) e deste "segredo póstumo" do nosso muito querido e saudoso Torcato Mendonça (****):

Em 2014 demos início a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora quatro. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... 

No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos...

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)...

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material que andamos, há anos, desde pelo menos 2004, a tentar salvar das garras do esquecimento, do abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande foi o do Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúlia, e um dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 265 referências). Foi também, de há muito, e enquanto vivo, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Foi autor de várias séries:
  • Pensar em voz alta;
  • Ao correr da bolha;
  • Estórias de Mansambo, I e II
  • Nós da memória

A partir de 2015, porém, e até por razões de saúde (da Ana e dele próprio), o Torcato Mendonça  tornou-se muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário, embora continuando nosso fiel leitor.  

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade e autenticidade. São hoje uma referência incontornável...

(...) Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas, às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... De um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste (*), quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vivia no Fundão (embora tivesse nascido no sul, sendo de origem algarvia e alentejana). São fotos da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, foi nossa. Bem como a sua edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... 

Em sua homenagem (****), voltamos a publicar estas fotos, agora mais do que reeditadas..., acompanhando a partilha do seu "segredo póstumo", que a Ana Mendonça mandou, em forma  manuscrita,  ao Virgínio Briote, e que este achou por bem não mandar para a "cesta secção"... 

(Que saudades tenho de ti, Torcato!... Que saudades temos todos de ti, camarada!)


(***) Último poste da série > 22 de maio de 2024 > uiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...