Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > Fernando Calado (1945-2025) e Rosa Calado: um grande amor para a vida.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Ismael Augusto (em segundo plano) e Fernando Calado: dois amigos para a vida. Partilharam o mesmo quarto em Bambadinca (1968/70).
Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Comando e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > c. setembro / outubro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos.
Na fotografia aparecem, na segunda fila, da esquerda para a direita: de pé, o alf mil Beja Santos (cmdt do Pel Caç Nat 52, 1968/70), o alf mil médico, David Payne Pereira (já falecido em data anterior a 2006; era um conhecido psiquiatra, deve ter ido em outubro/novembro de 1969 para o HM 241, em Bissau; substituído em novembro pelo Joaquim Vidal Saraiva, cirurgião), o major Cunha Ribeiro (1926,-2023), comandante do BCAÇ 2852 (chegou a Bambadinca em setembro de 1969), o cap inf Carlos Alberto Machado de Brito (hoje cor ref, vive em Braga), comandante da CCAÇ 12, e ainda o alf mil at int Abel Maria Rodrigues, também da CCAÇ 12.
Na primeira fila, da esquerda para a direita, um oficial miliciano que ainda está por identificar, seguido de três alf mil nossos camaradas, José António G. Rodrigues, da CCAÇ 12 (já falecido), o António Carlão, também da CCAÇ 12 (já falecido) e o Ismael Augusto (CCS /BCAÇ 2852).
O Fernando Calado, alf mil trms, também fazia parte desta equipa mas fracturou um braço, não aparecendo por isso na foto de grupo (que é do álbum do cor inf Cunha Ribeiro).
Foto: © João Pedro Cunha Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Dormir nu à noite (com ou sem lençol) era relativamente normal, podendo todavia originar algumas "cenas pícaras" como a que aqui é descrita (**)...
Inserir este aerograma na série "Humor de caserna" é também uma forma de homenagear um camarada e amigo como o Fernando Calado de quem o Hernani Figueiredo disse recentemente (em mensagem de domingo, 29/06/2025, 17:26):
(...) "Encontrámo-nos no BC 5, em Campolide, antes da mobilização de ambos para a Guiné, ele no BCAÇ 2852 e eu no BCAÇ 2851.
1. A propósito da canícula destes dias de finais de junho (em que no passado domingo, ao início da tarde, se atingiu, em Mora, um novo e preocupante recorde de temperatura para este mês, no nosso país, 46,6° C, valor próximo do máximo histórico absoluto registado em 2003, na Amareleja, 47,3º C), fui recuperar um aerograma do nosso saudoso Fernando Calado (Ferreira do Alentejo, 1945 - Lisboa, 2025), escrita para a sua namorada de então (e futura esposa e mãe dos seus dois filhos, a Rosa Calado). O aerograma é datada de Bambadinca, 1 de dezembro de 1969.
O documento, já publicado em tempos no nosso blogue (*), merece ser recuperado melhorado e reproduzido. Por diversos motivos:
(i) é uma belíssima carta de amor;
(ii) tem apontamentos sobre o nosso quotidiano e os "usos e costumes" na Guiné;
(iii) raramente, em tão poucas linhas de um aerograma, se dizia tanto sobre a vida " concentracionária" de um oficial miliciano ( e para mais de transmissões) na Guiné;
(iv) confirma o que todos nós experimentámos: o território tinha então (e continua a ter) um clima tropical húmido, caracterizado por temperaturas elevadas durante todo o ano e uma humidade relativa do ar extremamente alta, suscetível de causar desidratação e esgotamento, dificuldades respiratórias, problemas de pele, problemas de sono, doenças tropicais, stress físico e psicológico, conflitualidade grupal e interindividual, etc., problemas agravados pela guerra e a atividade operacional, o isolamento, a saudade, a par do elevado consumo de álcool, procura de sexo e outros comportamentos aditivos como o jogo.
Tomando hoje Bissau como ponto de referência, pode dizer-se que a estação das chuvas é opressiva e de céu encoberto; a estação seca é húmida, com céu parcialmente encoberto; ao longo do ano, o clima é sempre quente e húmido: em geral a temperatura varia de 19 °C a 35 °C e raramente é inferior a 17 °C ou superior a 38 °C. Dezembro e janeiro são meses mais frescos á noite. (Um europeu pode chegar a tiritar de frio, á noite, emboscado no mato, situação por que o Fernando nunca terá passado.)
Dormir nu à noite (com ou sem lençol) era relativamente normal, podendo todavia originar algumas "cenas pícaras" como a que aqui é descrita (**)...
Os guineenses (e nomeadamente os fulas) lidavam melhor com a nudez: os soldados da CCAÇ 12, do recrutamento local, por exemplo, tomavam banho nus, em grupo, no rio, sem complexos. Os "tugas", naquela época, eram mais púdicos.
De qualquer modo, as nossas manifestações de recato e pudor não eram exatamente as mesmas... Eram fortemente modeladas pelas nossas diferentes culturas (e não propriamente "civilizações").
No quartel de Bambadinca, que até tinha razoáveis instalações para oficiais e sargentos, construídas de raiz pelo BENG 447, os oficiais milicianos dormiam em quartos com três camas. Quartos individuais eram um privilégio de capitães e oficiais superiores. Os sargentos dormiam em quartos para cinco. As praças metropolitanas em casernas sem condições. Os guineenses nas duas tabanca de Bambadinca com as suas famílias.
O Fernando Calado (ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70) era um felizardo, partilhava o quarto só com o Ismael Augusto (ex-alf mil manutenção), já que o João Rocha, ex-alf mil rec inf [João Alfredo Teixeira da Rocha (Ilha de Moçambique, 1944 - Porto, 2018)] cedo deixou a companhia e o batalhão, por motivos disciplinares.
(...) "Encontrámo-nos no BC 5, em Campolide, antes da mobilização de ambos para a Guiné, ele no BCAÇ 2852 e eu no BCAÇ 2851.
"Desde há alguns anos que falávamos telefonicamente, especialmente na época natalícia. Partiu um bom homem, cidadão e amigo.
"Um eterno descanso em paz. Hernani Figueiredo." (...)
Como a maioria dos militares mobilizados para as guerras de África, o Fernando "escrevia o aerograma á (sua) namorada" (...)," quase diariamente, ao princípio da noite". Este foi um dos aerogramas que, em vida, ele quis partilhar connosco (*).
Aerograma de Fernando Calado > Bambadinca, 1 de Dezembro de 1969
Meu amor:
Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.
Estava nu, de barriga e outras coisas para cima, e transpirado como sempre.
Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.
Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte:
− Alfero, sonho manga di bom hoje mesmo!
Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.
Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.
Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da II Guerra Mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.
Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.
Antes do almoço, depois do segundo banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.
Gosto particularmente deste momento do dia. Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.
Chegou depois o meu colega de quarto [alf mil Ismael Augusto ] e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.
Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.
Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.
Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da II Guerra Mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.
Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.
Antes do almoço, depois do segundo banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.
Gosto particularmente deste momento do dia. Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.
Chegou depois o meu colega de quarto [alf mil Ismael Augusto ] e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.
Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.
Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida
Como se isso não bastasse, durante o almoço o médico [alf mil Joaquim Vidal Saraiva ] veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).
Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.
Soube depois que o pedido a mim dirigido resultava, afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados. [O pelotão de transmissões da CCS tinha 1 alferes, 3 sargentos, 9 cabos e 8 soldados].
Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.
Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.
Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.
Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jipe.
Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.
Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.
Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.
Hoje é feriado [1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]
A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.
Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).
Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.
Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.
Quanto a ti, meu amor… Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.
Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.
São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena. Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.
Do teu para sempre,
Fernando.
[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue; negritos e parênteses retos; título: LG]
______________
Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (112): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)
(**) Último poste da série > 18 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26932: Humor de caserna (201): a vida de um "biafrense" na guerra do ar condicionado de Bissau (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, 1973/74)
11 comentários:
Náo podemos confiar na memória, no que diz respeito a detalhes como datas, nomes e lugares. Em comneta´rio ao poste P26191, o Fernando Calada escreveu (...) "O médico presente em Dezembro de 1969 em Bambadinca era o Joaquim Vidal Saraiva, onde já estava, julgo, há alguns meses, depois da saída do David Payne." (...) (quarta-feira, 2 de outubro de 2019 às 20:44:00 WEST).
Essa informação não bate certo com a data (dezembro de 1969) que vem na legenda da foto da equipa de futebol de oficiais de Bambadinca. Teremos que ir à história da unidade para confirmar a data em que saiu o David Payne e chegou o VIdal Saraiva...
Na altura, eu estava à espera de "mais e melhores" comentários ao aerograma do Fernando... Escrevi:
Fernando:
É uma carta de amor muito bonita... E o seu conteúdo dá pano... para muitas mangas de camuflado...
Vamos lá ver se a malta comenta alguns dos temas em que tocas, e que só por si dariam vários postes... Por exemplo, o medo, a saudade, a claustrofobia, a miséria sexual, o uísque com água de Perrier, as "nossas bajudas" (as de lá e as de cá)...
Vê se descobres mais aerogramas... É uma pena se um dia forem parar ao caixote do lixo ou a feira da ladra... Por pudor, a malta não nos manda os aerogramas que se "salvaram".... Felizmente temos boas exceções: o Manuel Joaquim, por exemplo; ou o José Claudino Silva; ou a Alice Carneiro, que foi madrinha de guerra de vários militare (na altura eu não conhecia a minha futura mulher, só a conheci em 1973, ou em rigor, depois do 25 de Abril) (...). Bj para a Rosa. Xicoração para ti. Luís. (...) (segunda-feira, 30 de setembro de 2019 às 17:34:00 WEST (...)
Cito um excerto de um comentário do Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69):
(..:) Nunca fui apanhado nessas posições matinais, normalmente dormia sempre com umas calças de pijama de terylene e por vezes o casaco, sem qualquer outra roupa, nem lençóis. Dormíamos uns 10-12 na mesma camarata, e não me lembra de situações dessas, embaraçosas.
Pois quanto ao resto, das DST não me faltaram, era de tudo o que vinha nos cardápios, já falei nisso várias vezes, o nosso Pastilhas (mais tarde formou-se em médico, mas já falecido) tratava disso tudo, eram injecções de Terramicina, que nem podíamos andar depois...
O Whisky com a água Perrier e muito gelo era a minha bebida preferida.
As bajudas, sempre as tratamos bem, elas apareciam lá pelos quartos com as roupas, e gente por vezes ficava embaraçado, mas elas, ainda miúdas, de 15 anos, e eu com mais 10 em cima, levavam aquilo de brincadeira. O quanto eu daria para ir hoje conhecer umas das minhas lavradeiras, quer seja em NL ou São Domingos." (...) (terça-feira, 1 de outubro de 2019 às 16:51:00 WEST )(...)
Segundo apurei no nosso blogue, o alf mil médico Joaquim Vidal Saraiva terá chegado à CCS, em novembro de 1969, vindo de Guileje... O seu nome nem sequer consta da história da unidade (BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70). E terá ido para o HM 241 em meados de 1970...
Temos que alterar a data da legenda da foto em questão... que não pode ser de dezembro de 1969.
O Cunha Ribeiro veio em setembro de 1969... A foto da equipa de futebol deve ser de setembro / outubro de 1969... Ainda lá estava o David Payne...
Cá está um tem sobre o qual sabemos pouco: o pudor africano. Delas e deles. Apesar do convívio de quase dois anos.
Queria dizer "tema".
Acabei de perguntar ao José Teixeira e ao Cherno Baldé:
Zé e Cherno:
Não sei se é pedir-vos muito... Mas gostava que comentassem a primeira parte do aerograma do nosso já saudoso Fernando Calado, que acabou de morrer há dias... Esteve comigo cerca de um ano em Bambadinca. E nestes últimos quarenta / cinquenta anos, apreciei melhor o seu fino trato.... E falou do nosso blogue, antes de morrer, segundo confidência da viúva, Rosa Calado.
A questão do pudor, entre diferentes culturas (e em diferentes épocas), é um tema apaixonante... Os médicos, desde Hipócrates, há 25 séculos que dizem "naturalia non turpa" (o que é natural não é vergonhoso)....Há um "pudor natural", próprio dos primatas, mas o nosso é profundamente culturalizado. O Cherno lidou connosco, tugas, tu, Zé, lidaste com os fulas, tiveste talvez tanta ou mais intimidade do que eu com os nossos bons e leais amigos, que combateram (e alguns morreram) ao nosso lado... Mas não deixávamos de ser diferentes, e em posições de poder diferentes.
Mantenhas. Luís
Luís.Esta é uma questão do falso "pudor" ocidental português dos anos 60/70, enraizado num país tradicionalmente católico ao quadrado, "dono" de um (falso) Império espalhado pelos quatro cantos do mundo, como nos ensinavam na escola primária e na catequese.
Forçados a ir ao encontro de outras civilizações com diferente forma de gerir o respeito pelo corpo, naturalmente que estranhamos, e mais que isso, no caso da Guiné, não soubemos respeitar, o deles, mas refugiando-nos no nosso. Recordo a minha chegada a Ingoré e ser recebido por um coro de bajudas com o tronco nu a oferecerem os seus préstimos como "lavanderas". Foi um choque civilizacional e perturbador do meu eros, mais que isso, senti a falta de respeito dos soldados brancos "velhinhos" e até "periquitos", levados na onda do apalpar os seios das garotas, até com violência. E, elas eram lindas e bem jeitosas, o raio das bajudas!
Com não vi os jovens africanos a praticar tais gestos, entendi que devia respeitar a ordem das coisas (puritano? talvez!). Nunca tomei tal atitude, sem deixar de "brincar" dentro do respeito pelo "outro"/outra" a que vinha educado, como por exemplo, quando de serviço á enfermaria, me aparece na fila para consulta uma jovem mulher linda e bem dotada.
- Bajuda linda e mama firme! disse-lhe eu em jeito de piropo.
- Nega! A mim mulher grande!
- Hum, bo conta mintira. Bajunda linda e mama firme!
Então ela, a Binta, chega o peito junto da minha cara e esparrinha-a com leite do seu seio, para gaudio da mulherada que estava na fila.
Adaptei-me à realidade ao chegar ao Sul, mais propriamente a Mampatá do Forreá, onde por força das circunstâncias, vivíamos no meio da população, crie raízes de amizade que ainda hoje perduram, sempre no respeito mútuo pela forma de ser e estar de cada um. Fui algumas vezes tomar banho no riacho onde as mulheres lavavam a nossa roupa, (um riacho que aparecia na época das chuvas), servindo-me de uma lata como chuveiro (banho à fula) e quantas vezes eram elas que me deitavam a água pela cabeça abaixo. Algumas estavam nuas e quando me viam chegar, nem sempre se tapavam, outras tapavam-se com um pano e eu normalmente estava de cações de banho e por vezes nu.
As nossas formas de ser e estar nunca foram impeditivas de uma boa relação, mas entendo bem a reação do Fernand Calado, como homem educado e respeitador que era. Por parte das bajudas, talvez mindjers garandi, foi uma atitude natural de quem se sentia à vontade, na sua forma de ver o corpo humano, sem os preconceitos ocidentais.
Zé Teixeira
Virgílio Teixeira (by email) | 1 julho 2025 | 16:30
Comentário ao poste P26971 (Fernando Calado)
Esta coisa de pudores, há de tudo, como na Farmácia. Começo por um episódio no Hospital de Vila do Conde, onde fui fazer uma colonoscopia, por causa de uns pólipos no intestino. Já tinha feito em 2021, antes da grande operação para ablação do cancro, mas foi feita no Hospital da Luz, onde tudo reluzia, ambiente de hotel, meninas de luxo e tudo o mais.
A preparação para quem sabe, não é preciso dizer mais nada. Quando chegou a hora de preparar os órgãos para a dita, foi tudo feito na maior discrição, e num quarto particular. Nada a reclamar de nada. Quando acordei perguntei porque estou aqui há tanto tempo e ainda estou à espera, estava na mesma cama quando entrei e no mesmo local. Não me apercebi que tinha dormido e que tudo estava já pronto. As meninas, sempre jeitosas demais para aquela ocasião, disseram que podia vestir-me pois já tudo estava pronto, falta vir o médico dar a sua sentença. Cancro.
Mas aqui num Hospital que respeito tanto como os particulares, não há este tratamento de 5 estrelas, mas há ainda bons profissionais, e enfermeiras competentes. Estamos não num quarto, mas numa sala com mais utentes a fazer do mesmo. Diz ela, agora tire a roupa toda , num ambiente Open space, e perguntei assim e toda a roupa? Sim, tal como nasceu. Eu disse isso não faço, estou debilitado mentalmente, tem de haver uma privacidade qualquer. Face ao meu comentário, arranjou uma bata, com aberturas, e fechou um pouco o Biombo, e lá tratei de vestir a farda, faltava-me os chinelos, pois da outra vez nada levei, aqui fiquei em peúgas, e lá me calçou aqueles coisas de plástico para deitar a lixo.
Chama se a isto Pudor? Sim, eu tinha 82 anos e ela uns 25 anos, não me senti confortável, quanto mais que ia com a cabeça cheia de fantasmas!
Concerteza durante a anestesia devem ter vasculhado tudo, mas isso eu não assisti, nem me disseram nada. Tinha uns pólipos que foram cortados e enviados para as análises. Amanhã tenho consulta com o meu médico que me operou e agora me segue, e vamos a ver o resultado do dito ao fim de mais de 3 anos.
(Continua)
Virgílio Teixeira (continuação)
(...) Então o nosso falecido Calado, com o calor dormia como calhava, e percebo bem os seus pensamentos, palavras e obras, só que nem todos o faziam assim. No meu quarto Caserna, em S. Domingos, era na antiga maternidade, por isso o espaço era razoável para meter uma dúzia de rufias, a casa de banho é que era curta para tanta gente.
O Luis lembrou-me este meu comentário que fiz em 2019, e mantenho o que disse. Nunca dormi totalmente nu, ou era em cuecas (chamadas então de Trousses) ou o meu pijama de Tyrilene azul fininho, que usei umas vezes, quando a noite era mais fresca. Nunca aconteceu dessas cenas, acordar com as bajudas ao pé da cama. E vestido como quando nasci. Não me lembro, de ter visto no nosso quarto essas situações, todos se comportavam minimamente primatas.
Havia lá um alferes miliciano das informações, não vou aqui falar em nomes, que até tinha lá muitas vezes a mulher, em quarto separado, e convivemos durante muitos momentos. Ele tinha familia em Bissau, era branco e português e a mulher uma rapariga normal, sem mais comentários. Mas quando ela não estava , ficava em Bissau, era um tipo bom, agradável e companheiro, mas talvez exibicionista. Gostava de andar na camarata todo nu sem qualquer pudor. Mais nenhum se comportava assim, ele devia ter uma panca, era de boa familia e endinheirado, mas muito menino copinho de leite, digo eu!
Há pouco mais de um ano vim a saber do seu fim de vida, passou por divórcio, os pais abandonaram-no, deve ter passado por álcool ou drogas, acabou por ser preso, e suicidou-se na cadeia. Nada mais sei deste infausto acontecimento.
Quanto às lavadeiras a entrar no quarto e haver cenas de sexo, ou simples tentativas, não assisti e sei que nunca houve. Umas apalpadelas talvez era natural, mas nada mais do que isso.
Mas escrever eu era o único que escrevia diariamente, não aerogramas, mas cartas de correio, contendo sempre entre 10 e vinte folhas. Era um diário da guerra para a minha namorada.
Para o nosso herói, que fique em paz, que um dia nos encontraremos. Vou terminar senão não mando hoje.
Virgilio Teixeira
Ex Alf Mil do SAM (BCAÇ1933, NL e SD
Em, 1 de Julho de 2025
PS - E aí estão as férias para quem trabalha. Para os outros, são dias mais ou menos iguais, e que podem ser em lugares distintos, mas sempre sem ter de cumprir horários, como agora.
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