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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26984: Notas de leitura (1816): "A Expansão Quatrocentista Portuguesa", de Vitorino Magalhães Godinho; Publicações Dom Quixote, última edição em 2018 – 1 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2025:

Queridos amigos,
Não há qualquer dificuldade em perceber, lendo este notável ensaio, daquele que é considerado a figura ímpar da historiografia portuguesa do século XX, a sua demissão de duas instituições universitárias, durante o Estado Novo. O seu nome impôs-se desde a década de 1940 como o mais completo investigador da economia dos Descobrimentos, tanto em Portugal como no mundo de então. Não podia haver maior incómodo para o regime do Estado Novo do que revelar a questão fulcral da expansão quatrocentista portuguesa, impunha-se, no discurso oficial que andávamos a dilatar a fé, a civilizar selvagens, a estabelecer pontes entre civilizações. Acontece que Vitorino Magalhães Godinho, no caso vertente desta obra data de 1962, procura fazer uma leitura integral de qual a origem da expansão na historiografia portuguesa, mostrando como esta estava completamente ao serviço dos ideais régios; enumera os complexos económicos da Europa e as raízes hispano-portuguesas medievais da expansão, as maneiras de sentir e de pensar e o comportamento económico e no final do seu portentoso estudo explica esmiuçadamente como se impôs a nossa presença na Senegâmbia. Eram conceitos intoleráveis para uma doutrina que impunha o Infante D. Henrique como figura providencial, um cruzado, isto quando a documentação aponta para outros objetivos. Vamos continuar com alguns outros textos de Vitorino Magalhães Godinho, tendo sempre a Senegâmbia por perto.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 1

Mário Beja Santos

Entre 1409 e 1475 a expansão portuguesa não só deu um salto formidável como forjou um sistema socioeconómico inovador. Surgiu um tipo social novo, o cavaleiro-mercador, uma nova constelação social, o senhorio capitalista, restruturaram-se em profundidade os laços político-económicos, emergiu um Estado mercantilista-nobiliárquico. A historiografia portuguesa do século XX tem os seus máximos expoentes a figura de Vitorino Magalhães Godinho. Devemos-lhe a frescura das suas teses em que procurou compatibilizar os diferentes objetivos prosseguidos por essa expansão: uma política de conquistas territoriais pela cruzada contra o Islão no Magrebe, uma dimensão que se revelará trágica pela exaustão de recursos e meios, arrastando o fim da dinastia de Avis; a metódica devassa do oceano desconhecido para desenvolver ambicionados circuitos mercantis e povoar arquipélagos.

Como tudo isto foi impulsionado pode ser lido na obra A Expansão Quatrocentista Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, Publicações Dom Quixote, última edição em 2018. O historiador abalança-se a articular: crise financeira da nobreza e necessidades de mercados, novas janelas de oportunidade para a burguesia mercantil; o ouro do mundo negro como alvo dominante, mas também os escravos, as matérias tintoriais, o trigo e o açúcar. Enfim, um século com uma configuração geográfica bem desenhada, o noroeste africano, entre Marrocos e o Sudão Atlântico, Madeira, Açores, Canárias, o caminho da Senegâmbia, uma marcha contínua de expedições até se chegar ao Índico e depois ao Brasil.

É nesta abrangência da análise que o historiador faz desde a revolução intelectual do século XIII, a enumeração dos fatores do surto da expansão quatrocentista, as maneiras de sentir e pensar e as expetativas económicas de encontrar novos espaços, o plano henriquino, as condições culturais da navegação oceânica, o que eram ao tempo os impérios negros do ouro e, por fim, os resgates de Arguim e Guiné que se pretende dar ao leitor uma ideia de como esta expansão ultramarina se posicionou na Senegâmbia. Retiraremos desta obra doi capítulos fundamentais sobre o comércio com a Guiné desde o rio Senegal até ao rio Geba e os resgates ao Sul do Geba e na Serra Leoa – era este o universo da Senegâmbia.

Extravasando estes marcos cronológicos, far-se-á adiante referência ao regime do comércio com a terra dos negros e a influência do comércio português na vida indígena.


O comércio com a Guiné desde o rio Senegal até ao rio Geba (páginas 335 a 338)

De 1448 a 1460 descobriu-se a costa desde o Cabo Roxo (extremo setentrional da atual Guiné-Bissau) até à Serra Leoa e conseguiu-se entrar em relações pacíficas com os negros desde o princípio da Guiné (Palmas de Sanagá, ao Norte do Senegal) até aquele extremo meridional atingido à morte de D. Henrique. O primeiro trato foi o da região do Senegal e de Cabo Verde, anteriormente a 1455. Dos Jalofos (desde o Senegal ao Gâmbia) obtinham os portugueses escravos negros em abastança e algum ouro. No tempo de D. Henrique, ou seja, antes de 1460, compravam-se 25 a 30 escravos por um cavalo velho, consoante informa Münzer; posteriormente, o preço dos escravos subiu, pois por um cavalo os negros do Senegal já só davam 10 a 12 escravos; nos primeiros anos do século XVI o preço ainda era superior: mal se conseguiam 5 escravos por um cavalo.

O número de escravos anualmente importados para Portugal devia ser elevado: lê-se na Relação de Diogo Gomes que desde a descoberta do rio até à data em que foi redigida se têm trazido pretos sem número e cada vez mais; Valentim Fernandes também diz que se resgatam muitos escravos negros no rio Senegal; o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira, é ainda mais preciso, pois declara que quando havia bom resgate neste rio se retiravam por ano 400 escravos e outras vezes menos a metade, mas mostra igualmente que o comércio estava decadente em 1505. Ouro, todos concordam em que se resgatava pouco; pagava-se com lenços, panos vermelhos e alaquecas (pedras semipreciosas); os portugueses também vendiam alquicés (capas mouriscas), bedéns (capa feita de esparto), panos azuis e compravam marfim, coiros de vacas e outros animais. Os barcos portugueses subiam o rio sessenta léguas até o reino interior dos Tucorores, onde compravam escravos – 6 e 7 por um cavalo.

Do Cabo Verde ao rio Gâmbia inclusive vivia “má gente” – Sereres e negros de Niumi -, os primeiros contactos foram mortíferos para os portugueses. Mas entre 1450 e 1456 estabeleceram-se transações com os Mandingas do Gâmbia. No porto de Andam, em terra de Sereres (seis léguas ao Sul de Cabo Verde) houve resgate de escravos, desde quando não o sabemos, talvez também desde esse período. O resgate chegou a ser florescente, dando os pretos dez escravos por um cavalo de pouca valia; mas no começo de Quinhentos já não existia. De igual modo existiu o resgate de escravos no Porto de Ale (duas léguas ao Sul do atual Red Cape) que conseguia 10 escravos por um cavalo; em 1505 ainda continuava este comércio, mas o preço dos escravos aumentara – agora só se recebiam 6 no máximo. A esta data os portugueses compravam aqui muita carne e milho, feijões, lenha e água para abastecer os navios, mas tudo caro.

Em 1460, já os portugueses traficavam nos rios dos Barbacins (Salum). Até esta data davam os pretos 7 escravos em troca de um cavalo; houve então uma alta de preços derivada de concorrência entre mercadores cristãos, gabando-se Diogo Gomes de ter conseguido fazê-los baixar para 14 ou 15 escravos. O certo é que no primeiro lustro do século XVI um cavalo só pagava novamente 6 ou 7 cabeças humanas, podendo, porém, ser de ruim qualidade.

De toda a terra dos Jalofos, os portugueses também importavam papagaios verdes, cujo negócio rendia bons lucros.

Com os Mandingas do rio Gâmbia, Diogo Gomes e Cadamosto firmaram paz e amizade em 1456, mas não é impossível que já um pouco antes se tivessem feito transações. Aquele navegador obteve 180 arráteis de ouro em troca de panos e manilhas, e subindo até o rio Cantor, estabeleceu aqui o comércio; Batimansa (mansa significa rei), mais perto da foz, recebeu escravos. O veneziano resgatou com o Batimansa escravos e algum ouro. Desde então o resgate manteve-se, estando florescente no período de 1490-1505. Também perto do litoral, os portugueses trocavam cavalos por escravos; em Cantor, onde se realizavam grandes feiras, vendiam panos vermelhos, azuis e verdes de pouca valia, lenços, seda, manilhas de latão, barretes, sombreiros, alaquecas, etc.; com estas mercadorias adquiriam muito ouro bom – cinco a seis mil dobras por ano no dealbar de Quinhentos. Diz Valentim Fernandes que o rio é frequentado por muitos navios, sinal de intenso comércio. De uma vez, antes de 1502, uma caravela trouxe de Cantor ouro no valor de 2 contos 62 830 reais. O comércio de Cantor e de todo o rio Gâmbia teve-o mestre Filipe de arrendamento desde o dia de S. João de 1510 a igual dia de 1513, pagando ao Estado pelo contrato 1 363 500 reais por ano. Em 1514 arrendou-o de novo o mesmo mestre Filipe, de parçaria com Diogo Lopes, exatamente pela mesma quantia.

Ignoramos quando abriu o trato com os Mandigas e Felupes do rio Casamansa. Na última década do século XV e primeiro lustro do XVI era zona de muito resgate. Os portugueses levavam para lá cavalos, lenços e panos vermelhos, com que adquiriam escravos e algodão indígena, bem como gatos-de-algália; de igual modo levavam para lá ferro, por ser de elevado preço neste mercado. Na Corte do Casamansa residiam mercadores portugueses.

Desconhecemos igualmente qual a data em que os portugueses principiaram a traficar com os Mandingas e os Banhuns do rio de S. Domingos (Cacheu); deve ter sido à volta de 1456. Segundo Münzer, encontraram aqui malagueta, algodão e marfim. Na transição do século XV para o XVI havia muito resgate, residindo aqui mercadores cristãos, junto do Farimbraço (régulo de Braço). É região de frequentes e concorridas feiras. No interior do regulado de Farimbraço, resgatavam-se cavalos contra escravos. Aqui e no litoral os portugueses adquiriam algália e algodão (são principalmente os colonos do arquipélago de Cabo Verde a vir comprá-lo). Também há muito mel e cera.

A algália era ainda mais abundante no estreito de Catarina, onde aliás se obtinham as mesmas mercadorias que no rio Cacheu.

Em 1456, Diogo Gomes conseguiu entabular comércio com os Gogolis e Biafares do rio Geba, trazendo consigo malagueta, algodão e marfim. Mas só relativamente ao período de 1490-1505 dispomos de informações pormenorizadas. Os portugueses trocavam um cavalo, ainda que não fosse bom, por seis ou sete escravos. Do coração do império de Mali chegava ao Geba ouro, de que os cristãos conseguiam pequena porção, contra panos vermelhos, lenços e alaquecas; para Portugal ainda vinha ouro, e para lá seguiam estanho, contas e manilhas. No rio Biguba o resgate era idêntico.

Francisco Martins arrematou o comércio dos rios de Guiné, com exclusão do Gâmbia (arrendado a outro) e do Senegal (objeto de contrato à parte), até à Serra Leoa, durante o período de três anos que vai de S. João de 1509 a igual dia de 1512, pela quantia de 2 753 240 reais (com 1%) quer dizer, 917 746 reais por ano.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 30 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26969: Notas de leitura (1815): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)

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