Mostrar mensagens com a etiqueta Amadú Dafé. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Amadú Dafé. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 4 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25236: Notas de leitura (1672): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Agora há que esperar mais obras de consagração, só se espera o melhor da escrita de Amadu Dafé. A narrativa de A Cidade Que Tudo Devorou é a prova provada que ele tem um domínio absoluto de uma escrita inovadora, tece uma radiografia arrasadora das instituições e dos avatares de um Estado falhado, caldeia com mão segura o poderoso animismo africano (que influi até na vida dos crentes muçulmanos guineenses) as desventuras de um país em roda livre, fala abertamente na escravatura das crianças, na impunidade absoluta dos traficantes de droga nos Bijagós, no envolvimento dos políticos e militares em negócios fraudulentos, com ajustes de contas sanguinários. Não há no seu discurso um milímetro de nostalgia da vida colonial, há é a lembrança das cadeias de solidariedade, de uma cidade limpa onde era agradável passear, e que se tornou numa quase montureira, com o património a despedaçar-se, uma economia assente na depredação florestal (com os ávidos chineses por trás, sempre rapaces) e no caju, como se fosse possível a nação progredir com a ajuda humanitária, o neocolonialismo chinês e o caju que vai para a Índia. Amadu Dafé não só escreve livro notável, deixa para quem quiser estar atento, um libelo arrepiante, referencial para o futuro próximo e longínquo.

Um abraço do
Mário



Paraninfo para um escritor maior da literatura luso-guineense (2)

Mário Beja Santos

Continuamos a falar do romance "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadu Dafé, Nimba Edições, 2022. O autor lavra esta sua tragédia com inovação na escrita, este é português com terminologia guineense, o belo crioulo há séculos inventado e sempre mutante; tragédia porque houve traição, não se cumpriram os sonhos de Cabral, houve classes políticas gananciosas, inescrupulosas, ressalvadas as distâncias montaram oligarquias junto do círculo íntimo tanto do Partido Único como dos quadros partidários subsequentes; daí os desfechos da autoestrada da droga, do património escalavrado, dos assassinatos, dos golpes; mas mesmo dentro destes lugares devorados há paixões e esperança e os irans são grandes senhores dentro destas portentosas florestas tropicais, veja-se uma descrição magistral do autor falando deste habitat onde pontificam os poilões:
“Os seus perfumes atraem mais insetos e, por isso, os pássaros colhem boas recompensas. As suas folhas são deliciosas e as girafas são beneficiadas. Os seus galhos são robustos e os macacos conseguem dormir num conforto deslumbrante. Os esquilos fazem bons tálamos no interior dos seus troncos; os ratos, manguços, iguanas, suricatas fazem lindas tocas nas fissuras abertas pelas suas raízes (…) Os poilões, aos pares, amam-se, porque não sabem ser de outra maneira e porque dão corpo ao espírito dos irans.”

Lê-se este estupendo romance como se vê um retábulo, a peça central, a placa giratória, é Bissau a que tudo falta, tecem-se, por meios colaterais, narrativas de perdas e achados, a aparição de grandes amores, logo transtornados, conversações que só um animismo milenário permite, daí o papel dos balobeiros, de certos fantasmas, descobrimos que um dos heróis do romance, além de carteirista e marinheiro, está destinado a estranhas missões, uma delas vai correr mal e vai custar a vida a N’Sunha Badjuda, tudo ocorre numa cilada, tudo vai correr mal a este nosso herói, vai parar à prisão, há um espírito que o liberta, por indicações recebidas vai parar a um balobeiro, uma figura de indumentária extravagante fará uma apreciação da Guiné colonial e da sua transição para a independência, são evocados os antigos combatentes.

Mais adiante, o nosso herói recebe instruções para ir ao aeroporto buscar alguém, e o autor faz-nos um comentário do caos que se vive no aeroporto quando chega o avião de Lisboa, pela madrugada:
“A razão por que muita gente ia ao aeroporto, a cada vez que chegava um avião, receber encomendas, deve-se à ausência dos serviços essenciais. Esta era a única forma das nossas diásporas manterem o contacto com a terra, ajudando os pobres familiares que ficaram para trás. O cais do porto de pindjiquiti andava sombreado por uma maré trivial, porque nada chegava pelos navios, ao contrário do afluído aeroporto. Nem mesmo as prostitutas das feiras de caracol eram concorridas como o nosso aeroporto.”

E aquela menina vinda de Lisboa, de nome Sónya, aceita o transporte, fala-se de Bissau e dos irans de tchon-de-papel, da estátua de Cabral, que não deve andar descansado pela traição dos seus camaradas da luta de libertação nacional, o nosso herói cumpre as instruções do Almirante, dirige-se à embaixada de Cuba, temos agora uma história de aventura e ação, mete embaixador e colaboradores, Cabral e Che Guevara são invocados e nisto seis homens armados, fardados e encapuçados, invadiram a sala e dispararam indiscriminadamente , cabe a Sónya o discurso na primeira pessoa do singular, se há pessoa que não sabe o que se está a passar é ela, quem vem quer saber do produto, traz-se uma mala que o herói recebeu do Almirante, o que lá está é pura deceção, há tiroteio, o embaixador morre, quem aparece é António Tabaco, por acaso é conhecer de toda a história do nosso herói e desta Sónya, Tabaco é um intermediário da droga, o nosso herói é espancado, aquele produto é um mistério, acontece que o livro que Sónya escrevera tem algo de premonitório, nisto entra um ministro em cena, novo tiroteio, o Almirante caiu de joelhos, é mortalmente esfaqueado, mas o ministro também não escapou.

Há intenso realismo mágico em toda esta narrativa a que Amadu Dafé em subtítulo diz ser “Uma história confusa, caótica, nunca é escatológica, porquanto do caos nasce a ordem, a amoralidade da natureza.” Regressam à cena pais falecidos, há quem esteja interessado em devolver o sonho de felicidade às crianças, como justifica Sónya:
“Libertá-las dessa maldição que é a escravatura, a miséria e claro, as drogas. A estratégia para completar o puzzle passa por escrever e publicar sobre aquele fenómeno do desaparecimento de crianças nas ilhas e todo o mal que as drogas têm causado ao país. É esta a visão que tenho do momento, e embora o meu gato não tenha aparecido como de costume, acredito que as coisas tenham mudado de ângulo para nos permitir enxergar melhor.”

Andam os dois caminhando por Bissalanka, Sprança lembra-se do manuscrito que está guardado na sua caverna, quando lá chegam tudo tinha ardido naquele edifício que era um quartel antigo que tinha sido reabilitado com o fito de travar uma batalha secreta contra o mal das drogas e a escravatura. Sónya e Sprança mostram-se dispostos a cooperar para devolver o sonho de Cabral ao país. Caminham pela margem até ao estuário de Bissalanka, Sprança anuncia que o pai de Sónya mora ali, entrámos no universo da fantasmagoria, por processo antropomórfico aquele pai é agora um gato cinzento. “Enrosca-se em mim, como uma chapa de zinco ondulada nas coberturas das casas da capital. Levanta a cabeça e olha de mansinho para mim. A sua cara expressa alguma aflição e eu prontifico-me para uma operação de salvamento, levando-o ao colo.”

A Cidade Que Tudo Devorou é uma obra inesquecível do que há de melhor da literatura luso-guineense, aliás Amadu Dafé teve o cuidado de nos dar um glossário que facilita a compreensão de inúmeros termos. Amílcar Cabral temia Bissau depois da independência, era também a premonição de que os vencedores pretendiam o melhor da vida civilizada, apoderaram-se das casas do pessoal colonial, usaram as ajudas para terem bons carros, Bissau cresceu desmesuradamente com quem vinha à procura do Paraíso, de deceção em deceção, inventaram-se inimigos internos, fuzilaram-se antigos militares que apoiaram os portugueses, houve empreendimentos megalómanos e a latente tensão entre cabo-verdianos e guineenses cresceu violentamente, deu-se a rotura, a economia falhava, vieram novos auxílios e criou-se uma oligarquia com peso agrário. À falta de recursos, abriu-se a porta à droga, comprovadamente Bissau tornou-se na cidade que tudo devorou, como magistralmente Amadu Dafé, já se apresentara como uma promessa da grande escrita, nos apresenta em obra que irá dar muito que falar.

Bissau, feira de Bandim em hora de ponta
Apreensão de cocaína na Guiné, imagem retirada do site VOA Português – Voz da América, com a devida vénia
____________

Notas do editor:

Post anterior de 26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 1 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Se um grande romance é uma história bem contada, Amadú Dafé recebe a cotação máxima com esta "A Cidade Que Tudo Devorou", vamos embrenhar-nos na cidade de Bissau, palco de assassinatos, guerra civil, roubalheiros de toda a ordem, ninho de paixões, corredor da droga, cenário de mística, mundo dos balobeiros, conversas entre mortos e vivos; uma Bissau desmazelada, onde impera o caos, um povo surpreendentemente resignado com décadas de desgovernação; e uma arquitetura literária de primeiríssima água, os sonhos de Amílcar Cabral não se cumpriram mas os guineenses roubaram-nos muito bem a língua, este belíssimo romance é a prova provada de que a língua se renova, se universaliza na identidade que lhe é dada pelo escritor em nome da fala comum dos povos que são a matéria prima da sua escrita. É com muito orgulho que vejo alcandorado Amadu Dafé ao lado de Abdulai Sila, Mia Couto, Pepetela, Luandino Vieira, Ondjaki, João Paulo Borges Coelho, entre outros. Que nos surpreenda mais com outras gemas literárias, são os meus sinceros votos.

Um abraço do
Mário



Paraninfo para um escritor maior da literatura luso-guineense (1)

Mário Beja Santos

Já conhecia um livro belíssimo de Amadú Dafé, Ussu de Bissau, uma denúncia corajosa do desvio de crianças guineenses para o tráfico sexual e escravatura, só lamento que esta joia quase seja mantida no anonimato, possui uma tessitura muito própria, uma construção subtil que confirma que não há esmalte literário se a história não é bem contada e não a retivermos como valor no edifício dos nossos princípios.

A obra que acaba de dar à estampa coloca-o ao nível dos primeiros nomes da literatura da Guiné a alcandora-o a expoente entre as figuras principais da literatura lusófona. Ele pega numa frase do investigador António Duarte Silva para construir a radiografia da Guiné atual, centra-se em Bissau, A Cidade Que Tudo Devorou, Nimba Edições, 2022. A urdidura das peripécias que ele vai narrar investem no realismo mágico, há para ali uma língua portuguesa que é desossada, recebe injeções de crioulo, desce ao terreno da laterite, mete golpismo, assassinatos, delinquência, gente que conversa com fantasmas, paixões desmesuradas, desmonta-se o machismo, aquele maldito mercado da droga, ali se fala sem cessar das crianças misteriosamente desaparecidas do arquipélago dos Bijagós. São narrativas que se entrepõem, há falas para irmos até ao abismo das mentes e perceber o que move N’Sunha Sprança, Sonya, Lante Ndam Kdutar, Tabaco, Almirante, Kanserá Só, todos a contracenar num palco dramático, porque este primor literário não é só uma radiografia, é o espelho de uma tragédia, onde se fala permanentemente do caos em que vive uma nação mas onde os jovens ainda têm uma réstia de esperança.


É literatura da modernidade, as mulheres são mostradas fora da submissão, mas não se deixa de mostrar a moral vigente:
“Estava feliz. Não teria mais de suportar aquele ardente desejo de ser casada, aquela pressão social de ter de encontrar um homem bom, pressão esta que lhe fez espécie desde que se formou badjuda. Era ela e eram todas as outras mulheres da terra. Mesmo aquelas que tinham, pela alcunha, uma premonição menos favorável, ansiavam pelo aparecimento de um homem para casamento. A sorte da mulher é na porta do casamento, dizia-se. Um dos mais fortes sinais de machismo e misoginia enraizados nesta sociedade, é este castramento de sonhos e construção de dependências. As mulheres só podem sonhar com casamento; são frágeis e sensíveis e por isso precisam de alguém que cuidasse delas. Já os homens podem sonhar alto, almejar riquezas, lutar pelo poder e desposar mulheres, várias. Podem juntá-las na mesma casa, como peças de mobiliário, e podem consigná-las a casa um, casa dois, casa três, ou a vários lares a seu bel-prazer, sem lhes atribuir a propriedade da própria felicidade. Conseguem-no em nome da mentira e a custo de uma manipulação desenfreada. A troco das dependências e fragilidades a que elas se sujeitam.”
A conversa entre mãe e filho é palpitante, o pai morrera de forma tão dramática, vivia tão arredio da paixão da mãe que esta guardou no espírito a imagem de um homem que já não lhe pertencia.

E entra em cena N’sunha, e em simultâneo com a paixão de jovens fala-se do morto, Lante Ndam Kdutar, há pouco tempo houvera uma guerra civil em Bissau, vamos saber o que aconteceu: “Ficou claro, mais tarde, para os que se juntaram aos dois oponentes nesta barbarice, de que tinham arriscado a vida em vão. Mataram civis inocentes, pilharam armazéns e desgraçaram o país, deixando-o refém nas mãos dos políticos mal preparados, por causa de um cisme absurdo. Foi vendida a todos a ideia de uma divergência sobre a venda de armas aos insurretos do país vizinho, porém, por maior que seja a montanha, jamais envergará o Sol.” Lante apresentou-se no quartel de Mansoa, assistiu à crueldade de uma chacina dementada: “Quando as tropas da junta militar invadiram aquele quartel, não fizeram reféns nem presos de guerra. Os corpos mortos dos chamados aguentas, crianças e jovens guineenses que lutaram ao lado dos militares estrangeiros, vindos do Senegal e da Guiné-Conacri, para a junta governamental, foram largados nas ruas para os jagudis, os cães, gatos e corvos se alimentarem. A cidade tresandava a sangue podre e a almas desabrigadas.” É nesta altura que Lante vai conhecer uma rapariga de seu nome Sán’nan. Gozando de uma vida familiar às direitas, é nessa altura envolvido numa operação golpista, o móbil é o assassinato do presidente da República, por portas e travessas o presidente escapa e é levado para uma tabanca, cena hilariante, da mais refinada tragicomédia, os papagaios vão botando palavrões, o presidente disserta sobre a classe política, nunca diz explicitamente de que etnia fala, mas tece um comentário cheio de vitríolo: “Esta gente, por natureza, vive pelo poder. Embora durante a nossa luta de libertação se tenham mantido esquivos, porque eram os grandes aliados dos colonizadores, disfarçando-se sempre de comerciantes desinteressados, sempre tiveram o poder em mira. São uma espécie de camaleões venenosos e conseguem disfarçar com uma perícia do caralho… Até a sua religião, que é de uma particularidade diferente da das crenças nacionais, fá-los passar despercebidos.”

E, mais adiante: ”Depois da nossa independência e ao verem-se perseguidos pelo partido que os considerou traidores, por terem sido aliados dos colonizadores, enveredaram-se pela estratégia de espionagem, disseminação de intrigas e conspirações nas fileiras das nossas forças armadas e nas nossas estruturas políticas, em busca da recuperação dos privilégios perdidos ao longo das últimas décadas (…) Nunca aceitaram Cabral como um herói. Ainda hoje veneram os seus líderes que há séculos fizeram aquelas incursões de ocupação desta região e acabaram por transformar toda a zona num lugar de confusões, conspirações e instabilidades, a partir das quais dominaram os planaltos à volta dos rios, essenciais para a pastorícia e o comércio. A verdade, porém, é que foram sempre uma minoria nesta zona, mas com a estratégia de dividir para reinar, tomaram conta de tudo e de todos.” O presidente deposto acaba baleado.


Mudamos agora de campo de ação. Alguém, inominado, está a ordenar papéis, veio até à Guiné numa missão tão mística quanto divina, veio para impedir uma guerra civil iminente, leva uma existência entre o pretérito, o presente e o futuro, é assumidamente a filha de um fantasma e conta-nos onde começou este sonho messiânico, como chegou à Guiné-Bissau, vamos agora navegar entre feitiçaria, doenças do foro da saúde mental, há espaço para as almas do outro mundo e conversação com os mortos, esse alguém veio seguramente de Portugal. E parece que estamos a mudar de cenário, vamos conhecer o balobeiro de Bissilanka, voltamos a ouvir falar em Sán’nan e apresenta-se Sprança: “Cresci como Sprança, sem o é, porque o é, transfigurado de raiva, também da minha parte, expulsou esse alguém, afastando-o dali, fisicamente.” Sprança conheceu N’Sunha Badjuda junto ao pátio da escola de djembrem (barraca), ao lado da casa do General Anónimo, ela acaba por ter por ele embeiçamento, há sempre fantasmagoria, chegou a hora de mostrar a importância dos irans, cabe a N’Sunha a narrativa: “Dizia que ao crescerem juntos, os poilões, habitat natural dos irans, passam os dias a competir, cada um a querer ser o melhor, a tentar captar mais a atenção do resto da floresta e ver-se mais cortejado pelos animais. Entregam-se ao som do vento para verem quem dança melhor. Atiram-se de cabeça desgrenhada às trovoadas, à prova de oposição contra os raios piromaníacos e contra as tempestades devastadoras. Enquanto uns penetram o solo até ao manto, outros engrossam as suas raízes para a superfície. Se uns alargam os ramos para abraçar toda a floresta, outros aumentam o verdume das suas folhas para cromatizar todo o ambiente.”

Aqui se interrompe a recensão, segue no próximo número, adverte-se o leitor que estamos perante um caso muito sério do que melhor existe na literatura luso-guineense.

Leitura imperdível.

(continua)

Bissau, feira de Bandim em hora de ponta
Apreensão de cocaína na Guiné, imagem retirada do site VOA Português – Voz da América, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último post da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24192: Notas de leitura (1569): "Jasmim", de Amadú Dafé; Manufatura, 2020 - A identidade, a multiculturalidade, o transcendente (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
A literatura luso-guineense tem-nos pregado as suas partidas. Na fase de arranque, houve as laudes pela vitória da independência, hossanas aos libertadores, a poesia foi o principal eixo dessa marcha triunfal. Seguiu-se o desalento, basta recordar o importantíssimo livro de Filinto Barros Kikia matcho, o próprio cinema de Flora Gomes dava conta de que aqueles combatentes vitoriosos tinham passado a viver na obscuridade. É nisto que Carlos Lopes, um dos maiores investigadores guineenses, se lança na crítica mordaz a descrever a corrupção das novas elites, os negócios escuros, os aproveitamentos dos fundos de cooperação, a exibição dos carros luxuosos a passearem-se em estradas esburacadas. Tony Tcheka, poeta inconformado, relembrava que não se perdia a esperança no sonho de Cabral, a despeito de todos os desmandos, com a economia no fundo. É neste contexto que vai surgir a prosa mais consistente da Guiné-Bissau, Abdulai Silá, um desmontador do mundo colonial e das suas sequelas na contemporaneidade, usando com perícia absoluta o teatro para descrever a violência das novas fações que procuram aproveitar-se do poder, saqueando, traficando, intimidando. E temos agora Amadú Dafé, cujo Ussu de Bissau é uma denúncia pungente de negociatas envolvendo altas esferas da religião islâmica e máfias organizadas em vários pontos da África Ocidental, o que ele denuncia é mercado internacional de crianças. E agora o Jasmim, um guineense que reflete sobre as questões da identidade, a encruzilhada cultural, o pensamento religioso e filosófico.
Uma obra singular, deixará seguramente muita gente estupefacta, não era propriamente isto que se esperava de alguém que nasceu e cresceu no Ingoré.

Um abraço do
Mário



A identidade, a multiculturalidade, o transcendente, o Jasmim…

Mário Beja Santos

O rio, essa serpente que nos traz o caos e nos devasta esperanças, os irãs, os feiticeiros, o poder da escrita em revelar poderosas recordações íntimas, como se um livro se pudesse transformar numa sala de conversa de convergência multicultural, pois é assim o que "Jasmim", de Amadú Dafé, Manufatura, 2020, nos expõe em itinerância, com muitas culpas e remorsos figurativos, invade a cena gente do Norte da Guiné (Ingoré), cabo-verdianos e brancos, faz-se a exaltação da mulher e a denúncia da violenta discriminação de género que acontece naquele ponto da África Ocidental, mas não só, e, acima de tudo, este livro dá-nos um quadro confessional que jamais foi tentado por qualquer outro escritor da lusofonia, as suas crises de consciência são postas frente a múltiplos espelhos, e o que se pensa e o que se transmite é por vezes muitíssimo doloroso.

Em 2019, Amadú Dafé deu-nos um livro portentoso, Ussu de Bissau, uma amostra daquela tragédia que dá pelo nome de tráfico de crianças, fenómeno internacional onde as escolas corânicas não estão isentas de culpas e os responsáveis islâmicos também não. "Ussu de Bissau" é ponto alto da literatura luso-guineense, bom seria que fosse melhor conhecido e seguramente melhor apreciado.

"Jasmim" tem outra complexidade, está enxameado de metáforas e simbolismos, faz entrelaçar fenómenos de culturas africanas com atitudes filosóficas da cultura ocidental, o discurso direto é acessório, os números dos personagens são, Lua, Pipa, Fé, Banna, Jacinto. Amadú Dafé lança mão a propósito de expressões crioulas, gosta do português vernacular, a Natureza ofusca-o em permanência, e há o rio que é o rio da consciência, o rio do desaparecimento, o rio formado por muitos riachos, tratado como mistério indecifrável, por ser fonte de vida e de morte.

Num mercado de Ingoré dá-se pela chegada de Fé, fez uma longa e estranha viagem, Lua e Pipa ficam fascinadas por ele, pelo adiante iremos saber que todos estes personagens acarretam vários ingredientes da tragédia grega ou também do teatro francês do tempo de Corneille, pois na vida desta gente há algo de Édipo e de Fedra. Há ponderações com carga metafísica, a componente animista tem o seu magnetismo nas componentes islâmica e cristã. Fé procura a mãe, Pipa fugiu e deixou um filho para trás. O encontro é numa barraca de mercado, um símbolo: “A minha barraca é frequentada por pessoas de culturas diversas e todos aqueles que são capazes de coabitar com a diversidade são bem-vindos”.
O animismo prepondera:
“Tenho no interior da barraca garrafas cheias de terra venerável e chifres de todas as espécies de misticidades, cujos gargalos adornei com retalhos envergonhados, garras e penas de tchoka (perdiz), pele de irã-cego e dentes de onça obediente. Nesta terra, incrédulos ou não, velhos, crianças ou senhores, cabo-verdianos, nánias (cidadãos da Guiné Conacri), nares (cidadãos da Mauritânia) ou senegaleses, todos são vulneráveis aos olhos dos senhores feiticeiros. À porta, tenho uma estatueta do irã do Sul, a tal que foi dada ao meu pai por uma senhora que se dizia dona desse irã trazido de Guiledje. Foi esse irã que deu a vitória na luta de libertação contra o kolom (colono). É um irã respeitado. Nele, todas as manhãs deito água e rogativas de proteção e afortunação. Nos quatro cantos da barraca estão tal-qualmente enterrados amuletos e pequenas garrafas com sal, malagueta e carvão nos respetivos interiores”.

Nisto entra em cena Banna, caber-lhe-á o papel de negociante da condição da mulher em toda a África, parideira, vendedora, agricultora, cozinheira, objeto de troca, morre-lhe o marido e é entregue a outro marido. Em contraste, veremos ao longo da narrativa um tipo de tensão onde o amor e o sexo ganharão peso específico, o leitor precisa de os dimensionar à lupa e perceber que aquele incesto, aquele marido estéril, aqueles segredos bem guardados e que só a ficção permite revelar são acertos de identidade no quadro da violência contida, e não é imagem de retórica, faz parte daquela violência latente, submergida, em que vive a Guiné-Bissau, e não só. A questão da identidade, o sentido da vida e as suas fases iniciáticas atravessam toda a narrativa, implicando uma escrita oficinal de diálogos simulados num contexto edénico, cruzam-se os povos, discute-se as suas origens, uns procuram interpretar o castigo dos deuses, outros aceitam resignadamente o destino.

Nos meandros de todo este processo intimista, somos ofuscados pela natureza do rio, em permanente diálogo com o coberto vegetal:
“O rio brilhava e refletia cores obsequiadas pela pequena floresta que o cingia. Do céu decaiam espetros de luz de pouco cio, que em contato com aquela água salgada reverberavam em ondas de baile (…) A bruma estendia a sua mortalha escura sobre a lala do rio Jasmim, enquanto kikias (corujas) e lobos ululavam difusamente. De repente, o tempo transformou-se. Um vendaval assobiava, aproximando-se em velocidade de pensamento. Em cima das árvores tronchudas, polons, palmeiras e cajueiros, sobre as nossas cabeças djambatutus (pássaro da espécie dos cucos) e kikias faziam espetáculos e alertavam para iminentes danos que a chuva iria causar. Sempre que o vento assobiava como um bêbado, a chuva fazia estragos e arrastava consigo vidas e sonhos. O assobio do vento é sinal de mão feiticeira no tempo. Ao lado, uma luz imitando um ciclope em busca da ribanceira, à espreita de um irã que se acusasse, inspirava-nos, no modo de desviar tempestade”.

Como na tragédia grega, nada nesta narrativa pode evitar o inevitável, posto e disposto pelos deuses. Cruzam-se as mensagens do adeus, questiona-se todo o sofrimento que atravessa as nossas vidas, a tragédia encaminha-se para o rio, alguém mais partiu do nosso convívio, alguém tinha aparecido como um milagre e logo a seguir desapareceu como um sonho. É assim que acontece em toda a condição humana, em Jasmim, provavelmente no mundo inteiro.

Um jovem escritor que decidiu enfrentar uma prova de fogo, foi bem-sucedido ao agarrar pelos cornos as questões da identidade e da multiculturalidade, do transcendente e da aceitação da vida. É uma grande promessa confirmada do que há de melhor na literatura luso-guineense.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24180: Notas de leitura (1568): Arroios à Mesa não esqueceu as especialidades guineenses (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23656: Notas de leitura (1501): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Como é evidente, a literatura universal possui relatos de altíssima qualidade sobre crianças que terão passado longos calvários até atingirem a libertação, tudo culminando com o futuro radioso pela frente, basta lembrar Oliver Twist e David Copperfield, de Charles Dickens. Amadu Dafé é cuidadoso, terno, socorre-se de um intenso lirismo e captura o leitor do princípio ao fim pela via mais eficaz da indignação: solta-se a voz da criança espancada e aviltada, em tanto confiante, mal sabendo que caiu numa teia de vis traficantes, e quando se despede do leitor avisa-nos que nada será como dantes, há o saber de experiência feito, Ussu de Bissau fora sujeito a riscos barbários, é hoje um homem livre, está escrito no seu coração. Amadú Dafé é uma grande promessa para a literatura luso-guineense, fica comprovado com este documento literário terno, vibrante, tantas vezes a magoar-nos nas vergastadas e no espezinhamento de uma criança que sonha voltar para casa. Que venha mais boa literatura da tua portentosa imaginação, Amadú Dafé.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (2)

Mário Beja Santos

Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, é uma inesperada surpresa: encontrar uma criança tão emotivamente registada por um escritor que denuncia, em toda a sua crueza, o tráfico de crianças sujeitas às mais degradantes humilhações e atentados à dignidade humana.

Ussu é recambiado para o Senegal, a mãe conta fazer dele um ser humano que faça pela vida, que ganhe bases culturais, a criança sai da miséria para bater à porta do Inferno, um canalha que parece dirigir uma escola corânica tem dezenas de crianças por sua conta que pedincham pelas feiras, que vivem como animais e são pasto de um negócio de pedófilia.

É neste cosmos de maus tratos que Ussu encontra um oásis, a bondade do tio Lamine e a estima do seu filho Adulai. É nesse contexto que alguém se lhe apresenta como treinador de futebol e ele é despertado para um sonho, prometem-lhe uma madrinha disposta a levá-lo para a Europa para jogar futebol ou estudar. Está sonhador, mas mostra-se hesitante: “Valeu a pena ter vindo para Senegal, pedinchar nas ruas e nos becos, para, no fim, ser compensado com uma madrinha que se propunha levar-me para a Europa! Ou valeria igual se tivesse ficado ao lado da minha mãe, lutando contra os feiticeiros e contra os invejosos? Não sei. Só sei que enquanto a morte não me chega, a minha vida tem de permanecer esperançosa e certa”. Vai dar a boa-nova ao tio Lamine, ele sugere que Ussu estabeleça o contato com a dita senhora. Pelo caminho, prosseguem as vergastadas na escola corânica, os tratamentos torpes, a mendigação.

Se até agora Amadú Dafé usa de uma grande segurança na descrição de todos estes emaranhados de miséria, de sadismo religioso, de exploração infantil, triunfa pela forma delicada com que vai tratar a pedofilia, são parágrafos em que ele discorre a infâmia em cima de uma lâmina afiada, Ussu insurge-se, grita e dá às vilas Diogo, almas caridosas aconchegam-no, Adulai comunica ao tio Lamine o que se está a passar, procura-se então o treinador. Entretanto aguarda-se pela senhora que iria levar Ussu para a Europa, aparece Raja, entra num barco, registam-se estranhas anomalias, vai aparecer a polícia, afinal a dita senhora fazia parte de um gangue de raptores. A narrativa acelera-se, os diálogos são velocíssimos, aquela inocente criança não consegue entender os enredos daquele crime, é na esquadra da polícia que ele é informado de que servira de isco para apanhar a teia de criminosos.

Tem aqui lugar, num momento que o autor intitula Posto, um dos mais belos monólogos desta prodigiosa narrativa:
“A pressão social prefere farsa a sinceridade. Prefere ilusão a realidade. Prefere mentiras e aparências. A minha mãe sujeitou-me a tudo o que passei, não por vontade própria, mas porque se sentia pressionada a fazê-lo para não ser isolada e para não ser vista como incapaz de criar um filho.
Que ganhou ela com isso?
Ou melhor, o que ganharam as pessoas que a pressionavam com tudo o que passei? E se a Raja me tivesse conseguido levar para a Europa? E se tivesse continuado a ir para a horta e a seguir os meus colegas para dar o cu por uma côdea? E se tivesse continuado na escola e apanhado o hábito de mendigar para sobreviver?
A partir do momento em que terminei a conversa com a Fámata, acordei, saí da ilusão, afastei a obscuridade e a falta de determinismo que era a minha vida. Mais ninguém decidirá por mim o que quer que seja, mais ninguém irá ter em suas mãos a minha felicidade e os meus sonhos, nem a minha própria mente, muito menos pressão social alguma.

Ela será apenas um órgão dentro do meu corpo, como os demais, e a sociedade será sempre a comunidade a que pertenço livremente, não o contrário. Tomei totalmente o controlo de tudo e da minha vida particularmente (…) Toda a minha vida foi um drama dramático. Tinha vindo para o Senegal aprender Alcorão. Sim, era esse o propósito e era essa a inequívoca vontade da minha mãe. A minha tia e outros familiares fizeram-na pensar que só longe dela poderia eu ser gente. E no que me tornei depois de tantos anos, era inimaginável.
Formei-me nas ruas, como um rato, e cresci sobrevivendo como um gato. A minha maturidade emancipou-se e a minha formação foi de um gato caçador (…) Tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência. Tinha-me emancipado e formado em vida. Que mais poderia levar de volta para os meus? Poderia encontrar a morança cheia, mas infelizmente a minha mãe não estava.

‘A tua mãe não se aguentou, Ussu. Ela não se aguentou’, disse-me a minha tia, à porta, choramingada.
Os que encontrei apareceram à porta com abraços, de muitos braços abertos, talvez cheios de saudade. Abraçaram-me, com força que lhes parecia de arrependidos, mas era do coração. Deveria isso bastar para aceitar a ausência da minha mãe? Até porque sinto que ela se tornara numa estrela, a mais brilhante.
Será para sempre o meu sol. Será a minha lua, para me seguir em todas as direções e condições? Irá saber como iluminar o meu caminho.
Pelo menos houve alguém em casa à minha chegada que me serviu água e arroz. Que me consolou e transmitiu as suas últimas palavras”
.

Jamais saberemos como Ussu se fará homem, somos levados a crer que agregou positivamente toda aquela via-sacra de criança traficada, pronta a ser raptada, sujeita à degradação suprema, mas que aprendeu os escaninhos por onde passam os raios da liberdade. Ele escrevera que tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência, abria-se agora a estrada para que Ussu de Bissau, que embarcara em tantas ilusões, pusesse os seus sonhos em prática, como homem de bem.

____________

Notas do editor

Poste anterior de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Amadú Dafé, estou seguro, vai ser um grande escritor, este Ussu de Bissau é eloquente comprovativo. Oxalá que ele não perca esta veia esplendorosa de escrita luso-guineense, por onde perpassam feiticeiros e balobas, mufunessas, poilões e bambarans. É uma denúncia vigorosa que ele nos dá nesta narrativa que se lê e relê com gosto, uma denúncia do tráfico de crianças que são exploradas, obrigadas a pedinchar, submetidas a negócios de pedofilia, tudo a pretexto de que frequentam escolas corânicas. Não sei como é que o islamismo reage a tais situações criminosas, a religião e os governos, como é óbvio, o que aqui se conta tem a ver explicitamente com a Guiné-Bissau e o Senegal. A escrita é admirável, é uma brisa de revelação, um escritor de formação universitária que não enjeita os problemas do seu povo humilde, a sofrer toda a casta de infortúnios, Ussu é um porta-bandeira de um crime que precisa de ser mais denunciado e castigado.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (1)

Mário Beja Santos

Estou absolutamente convicto que Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, vai ficar no pódio das melhores narrativas da novel literatura deste país irmão. Melhor surpresa no arranque deste ano de 2020 não me podia ter sido dada. No dizer do autor temos aqui uma história aficionada de um aluno de escolas corânicas, faz parte daquele pesadelo de milhares de crianças da costa ocidental africana que são sujeitas aos terríveis maus-tratos onde não faltam a mendicidade, o viver nas condições mais abjetas, a escravatura pedófila.

Não é um romance, nem novela nem noveleta, é um relato em que uma criança é entregue a um escritor, ainda muito mal conhecido em Portugal, que esgrime o pensamento dessa criança com intensa vibração, levando-nos, na plenitude, aos recantos da miséria, tudo isto feito numa linguagem em que se desossa o português vernacular posto ao serviço de um idioma específico a que chamamos luso-guineense. Ussu tem uma mãe exigente, que sonha alto, quer este filho lançado na vida, no presente tudo é mais negro para a criança do que a cor da sua pele. É um mundo animista entrelaçado dessa esperança que uma escola corânica possa pôr o menino num patamar mais elevado. São episódios sucessivos dessa história que tem títulos condizentes: despatriado, escolhido, descartado, mendigo, faminto, punido, desperto, prevaricado, evadido, compaixão, suborno, norteado, pasmo, confuso, livre, elucidado, espectro, posto.

Não é só o tráfico de crianças que é denunciado em toda a sua extensão, é um mundo de curandeiros, de uma vertente do islamismo que precisa de ser execrada e perseguida no continente inteiro, por permitir que escroques aufiram dinheiro fingindo que educam crianças, no fundo escravizadas, não muito longe da escravidão antiga, tudo isso aparece posto em causa numa criança que conta a sua saga pelo punho de Amadú Dafé, numa das mais belas escritas que conheço.

Dura é a vida de Ussu, com aquele pai ausente, como se conta:
“Ademais, porque a minha mãe não me devolveu ao meu pai ainda estou por entender. O meu pai parecia ter-me abandonado, não ignorava esse facto, mas não me parecia capaz de me rejeitar caso ela decidisse que eu fosse viver com ele. Tenho memórias dos telefonemas dele e das suas palavras mélicas a perguntarem-me se a minha mãe me tinha sovado. Eu sempre respondi, prontamente, que sim, e nunca o vi fazer nada a esse respeito.
Às tantas achava-o mentiroso e fantoche, e desculpei-o sempre como uma pessoa muito ocupada. Que nem tem tempo de me telefonar sempre tinha, quanto mais de me ir visitar de quando em quando.
Cresci esperando por um convite seu para ir passar uns dias com ele, por uma prenda simples para o eternizar como um pai querido, por um acontecimento memorável por forma a nunca o perder nos meus sonhos. Nunca pude contar com ele e talvez por isso mesmo é que a minha mãe decidiu sempre sozinha tudo sobre a minha vida”
.

Se maus-tratos recebia, se havia sovas e açoites, lá no seu chão de origem, o que o espera do dito mestre corânico, aproxima-se do inferno, o ambiente doméstico é desolador, as crianças que vê cirandar dão-lhe a antevisão do mundo tétrico que o espera:
“As crianças que passavam por mim ali sentado, que entravam e saíam com latas penduradas no pescoço e roupas sujas e retalhadas, não me parecia pertencer à casa. Continuei, porém, sentado no meu cantinho, já não chorava, continuava a não sentir a minha alma, mas o estado de ausência total de mim mesmo não me permitia mais sentir a minha tristeza.
Não sabia se tinha fome, se tinha sono, se estava cansado de tanto andar, se estava desesperado ou se apenas queria a minha mãe de volta. O meu mundo resumia-se à minha vaguidade, ao meu estado leve de alma e à minha perdição. Tudo o que tinha, tudo o que sabia, de tudo o que me lembrava estava ali resumido e refletia-se nos olhos daquelas crianças que entravam e saiam com latas vermelhas e roupas esfarrapadas. Era esse o meu destino, o meu mundo era a minha fome, o meu sono e o meu cansaço. O meu mundo era também o desprezo e a indiferença daquelas pessoas em relação à minha pessoa”
.

Leva pontapés e passa fome, tem que andar na mendicância, leva açoites e vergastadas, e vamos saber como é que se aprende o Alcorão naquele ambiente sórdido:
“O senhor levou-me para a casa, a suposta escola, e mandou-me ficar sentado na rua à espera até o sol levantar-se. Quando os outros alunos começaram a aparecer, mandou-me segui-los para o quintal, onde se encontrava, afinal, a sua escola de Alcorão. Os alunos tomaram lugar em círculo à volta de um empilhado de lenhas e cinzas no centro. Dava para perceber que as lenhas estiveram a arder no dia anterior. Tentei olhar, por forma a fixar a cara de cada um deles, mas não fui capaz de reter nada. Todos tinham quase o mesmo aspeto. Esbranquiçados de pele, roupas esfarrapadas, cabelos encaracolados e empoeirados, corpos magros e olhos fundos de tristeza. Liam em voz alta, cada um levava uma tábua escrita a tinta preta à mão e todos com lições diferentes. Era um caos, uma dessintonia total, como jogo de sortilégio”.

Ussu é chicoteado, vergastado por aqueles jovens à ordem do senhor. E mandado a caminho da feira, vai pedinchar, ai dele se voltar para casa sem dinheiro ou arroz. E Amadú Dafé, no mais belo recorte lírico, dá-nos o estado de alma de Ussu no seu pedinchar:
“Aqui, a minha cama é o meu chão, o meu manto é a areia, a minha casa é a terra. A lua continuava a guiar-me, a correr atrás de mim e a andar ao meu lado em todas as direções e condições, iluminando-me.
Comia o vento enquanto tinha a companhia da lua. Não podia ser mais grato à natureza e a Deus. Às tantas, não queria largar a vida de talibé (aluno), realizava-me de alguma forma. Era uma vida engraçada que aprendi a ter. Ganhei-a à custa das minhas costelas, das minhas lágrimas, sobretudo da minha alma, dura e persistente”
.

E era aquele terror de voltar sem dinheiro ou arroz, o prémio das chibatadas. Tem a felicidade de conhecer Lamine, mas até lá chegar teve que descer ao fundo da existência:
“Meti-me no lixo da feira e procurei, até que encontrei, uma lata vermelha igual à que os meus companheiros portavam no pescoço. Cheirava a caca, mas não me importei, nesta vida, caca é preferível a chibatadas, caca alterna nas refeições”. É neste vórtice da degradação que ele encontrou o tio Lamine, faz-se amigo do seu filho, Adulai, enquanto mendigava o tio Lamine dava-lhe de comer. “Com a barriga cheia era mais fácil pedir esmolas e as forças nas pernas eram maiores para visitar várias lojas e casas da cidade e da feira onde sabíamos que, com sorte, conseguíamos sempre um pouco de arroz ou uma moedinha. No entanto, sempre nos mantínhamos preparados para fugir às ameaças de porrada que nos prometiam, à água quente que nos atiravam, ou às humilhações que nos submetiam”.

Temos aqui a promessa de um grande escritor.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)