1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:
Queridos amigos,
Agora há que esperar mais obras de consagração, só se espera o melhor da escrita de Amadu Dafé. A narrativa de A Cidade Que Tudo Devorou é a prova provada que ele tem um domínio absoluto de uma escrita inovadora, tece uma radiografia arrasadora das instituições e dos avatares de um Estado falhado, caldeia com mão segura o poderoso animismo africano (que influi até na vida dos crentes muçulmanos guineenses) as desventuras de um país em roda livre, fala abertamente na escravatura das crianças, na impunidade absoluta dos traficantes de droga nos Bijagós, no envolvimento dos políticos e militares em negócios fraudulentos, com ajustes de contas sanguinários. Não há no seu discurso um milímetro de nostalgia da vida colonial, há é a lembrança das cadeias de solidariedade, de uma cidade limpa onde era agradável passear, e que se tornou numa quase montureira, com o património a despedaçar-se, uma economia assente na depredação florestal (com os ávidos chineses por trás, sempre rapaces) e no caju, como se fosse possível a nação progredir com a ajuda humanitária, o neocolonialismo chinês e o caju que vai para a Índia. Amadu Dafé não só escreve livro notável, deixa para quem quiser estar atento, um libelo arrepiante, referencial para o futuro próximo e longínquo.
Um abraço do
Mário
Paraninfo para um escritor maior da literatura luso-guineense (2)
Mário Beja Santos
Continuamos a falar do romance "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadu Dafé, Nimba Edições, 2022. O autor lavra esta sua tragédia com inovação na escrita, este é português com terminologia guineense, o belo crioulo há séculos inventado e sempre mutante; tragédia porque houve traição, não se cumpriram os sonhos de Cabral, houve classes políticas gananciosas, inescrupulosas, ressalvadas as distâncias montaram oligarquias junto do círculo íntimo tanto do Partido Único como dos quadros partidários subsequentes; daí os desfechos da autoestrada da droga, do património escalavrado, dos assassinatos, dos golpes; mas mesmo dentro destes lugares devorados há paixões e esperança e os irans são grandes senhores dentro destas portentosas florestas tropicais, veja-se uma descrição magistral do autor falando deste habitat onde pontificam os poilões:
“Os seus perfumes atraem mais insetos e, por isso, os pássaros colhem boas recompensas. As suas folhas são deliciosas e as girafas são beneficiadas. Os seus galhos são robustos e os macacos conseguem dormir num conforto deslumbrante. Os esquilos fazem bons tálamos no interior dos seus troncos; os ratos, manguços, iguanas, suricatas fazem lindas tocas nas fissuras abertas pelas suas raízes (…) Os poilões, aos pares, amam-se, porque não sabem ser de outra maneira e porque dão corpo ao espírito dos irans.”
Lê-se este estupendo romance como se vê um retábulo, a peça central, a placa giratória, é Bissau a que tudo falta, tecem-se, por meios colaterais, narrativas de perdas e achados, a aparição de grandes amores, logo transtornados, conversações que só um animismo milenário permite, daí o papel dos balobeiros, de certos fantasmas, descobrimos que um dos heróis do romance, além de carteirista e marinheiro, está destinado a estranhas missões, uma delas vai correr mal e vai custar a vida a N’Sunha Badjuda, tudo ocorre numa cilada, tudo vai correr mal a este nosso herói, vai parar à prisão, há um espírito que o liberta, por indicações recebidas vai parar a um balobeiro, uma figura de indumentária extravagante fará uma apreciação da Guiné colonial e da sua transição para a independência, são evocados os antigos combatentes.
Mais adiante, o nosso herói recebe instruções para ir ao aeroporto buscar alguém, e o autor faz-nos um comentário do caos que se vive no aeroporto quando chega o avião de Lisboa, pela madrugada:
“A razão por que muita gente ia ao aeroporto, a cada vez que chegava um avião, receber encomendas, deve-se à ausência dos serviços essenciais. Esta era a única forma das nossas diásporas manterem o contacto com a terra, ajudando os pobres familiares que ficaram para trás. O cais do porto de pindjiquiti andava sombreado por uma maré trivial, porque nada chegava pelos navios, ao contrário do afluído aeroporto. Nem mesmo as prostitutas das feiras de caracol eram concorridas como o nosso aeroporto.”
E aquela menina vinda de Lisboa, de nome Sónya, aceita o transporte, fala-se de Bissau e dos irans de tchon-de-papel, da estátua de Cabral, que não deve andar descansado pela traição dos seus camaradas da luta de libertação nacional, o nosso herói cumpre as instruções do Almirante, dirige-se à embaixada de Cuba, temos agora uma história de aventura e ação, mete embaixador e colaboradores, Cabral e Che Guevara são invocados e nisto seis homens armados, fardados e encapuçados, invadiram a sala e dispararam indiscriminadamente , cabe a Sónya o discurso na primeira pessoa do singular, se há pessoa que não sabe o que se está a passar é ela, quem vem quer saber do produto, traz-se uma mala que o herói recebeu do Almirante, o que lá está é pura deceção, há tiroteio, o embaixador morre, quem aparece é António Tabaco, por acaso é conhecer de toda a história do nosso herói e desta Sónya, Tabaco é um intermediário da droga, o nosso herói é espancado, aquele produto é um mistério, acontece que o livro que Sónya escrevera tem algo de premonitório, nisto entra um ministro em cena, novo tiroteio, o Almirante caiu de joelhos, é mortalmente esfaqueado, mas o ministro também não escapou.
Há intenso realismo mágico em toda esta narrativa a que Amadu Dafé em subtítulo diz ser “Uma história confusa, caótica, nunca é escatológica, porquanto do caos nasce a ordem, a amoralidade da natureza.” Regressam à cena pais falecidos, há quem esteja interessado em devolver o sonho de felicidade às crianças, como justifica Sónya:
“Libertá-las dessa maldição que é a escravatura, a miséria e claro, as drogas. A estratégia para completar o puzzle passa por escrever e publicar sobre aquele fenómeno do desaparecimento de crianças nas ilhas e todo o mal que as drogas têm causado ao país. É esta a visão que tenho do momento, e embora o meu gato não tenha aparecido como de costume, acredito que as coisas tenham mudado de ângulo para nos permitir enxergar melhor.”
Andam os dois caminhando por Bissalanka, Sprança lembra-se do manuscrito que está guardado na sua caverna, quando lá chegam tudo tinha ardido naquele edifício que era um quartel antigo que tinha sido reabilitado com o fito de travar uma batalha secreta contra o mal das drogas e a escravatura. Sónya e Sprança mostram-se dispostos a cooperar para devolver o sonho de Cabral ao país. Caminham pela margem até ao estuário de Bissalanka, Sprança anuncia que o pai de Sónya mora ali, entrámos no universo da fantasmagoria, por processo antropomórfico aquele pai é agora um gato cinzento. “Enrosca-se em mim, como uma chapa de zinco ondulada nas coberturas das casas da capital. Levanta a cabeça e olha de mansinho para mim. A sua cara expressa alguma aflição e eu prontifico-me para uma operação de salvamento, levando-o ao colo.”
A Cidade Que Tudo Devorou é uma obra inesquecível do que há de melhor da literatura luso-guineense, aliás Amadu Dafé teve o cuidado de nos dar um glossário que facilita a compreensão de inúmeros termos. Amílcar Cabral temia Bissau depois da independência, era também a premonição de que os vencedores pretendiam o melhor da vida civilizada, apoderaram-se das casas do pessoal colonial, usaram as ajudas para terem bons carros, Bissau cresceu desmesuradamente com quem vinha à procura do Paraíso, de deceção em deceção, inventaram-se inimigos internos, fuzilaram-se antigos militares que apoiaram os portugueses, houve empreendimentos megalómanos e a latente tensão entre cabo-verdianos e guineenses cresceu violentamente, deu-se a rotura, a economia falhava, vieram novos auxílios e criou-se uma oligarquia com peso agrário. À falta de recursos, abriu-se a porta à droga, comprovadamente Bissau tornou-se na cidade que tudo devorou, como magistralmente Amadu Dafé, já se apresentara como uma promessa da grande escrita, nos apresenta em obra que irá dar muito que falar.
Bissau, feira de Bandim em hora de ponta
Apreensão de cocaína na Guiné, imagem retirada do site VOA Português – Voz da América, com a devida vénia
____________Notas do editor:
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Último post da série de 1 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Escreve o Mário Beja Santos:
"Amílcar Cabral temia Bissau depois da independência, era também a premonição de que os vencedores pretendiam o melhor da vida civilizada, apoderaram-se das casas do pessoal colonial, usaram as ajudas para terem bons carros, Bissau cresceu desmesuradamente com quem vinha à procura do Paraíso, de deceção em deceção, inventaram-se inimigos internos, fuzilaram-se antigos militares que apoiaram os portugueses, houve empreendimentos megalómanos e a latente tensão entre cabo-verdianos e guineenses cresceu violentamente, deu-se a rotura, a economia falhava, vieram novos auxílios e criou-se uma oligarquia com peso agrário. À falta de recursos, abriu-se a porta à droga, comprovadamente Bissau tornou-se na cidade que tudo devorou."
Exemplar. A diferença entre os sonhos e utopias de Amílcar Cabral e a realidade.
Abraço,
António Graça de Abreu
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