sábado, 29 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25701: Os nossos seres, saberes e lazeres (634): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (159): Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve Paço Real, estamos perto da Venda Seca - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Para falar francamente, não voltei a Belas só à cata dos fofos, a especialidade doceira da terra; depois da minha querida irmã ter sido vitimada por um AVC e viver num lar, procurava proporcionar-lhe passeios nas proximidades de Lisboa que lhe dessem satisfação, ela fora sempre uma andarilha, visitava amigas, adorava comboios e autocarros, o importante era sair de manhã e regressar a casa à noite. Já combalida, o cerimonial começava nos fofos de Belas com um galão, lá íamos de braço dado até à Quinta da Senhora da Assunção, havendo de bom tempo percorríamos lentamente o jardim. Em sua homenagem, da doce lembrança que dela guardo, por aqui andei em itinerância e do muito que gostei de ver achei que não era despiciendo partilhar convosco.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (159):
Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve paço real, estamos perto da Venda Seca – 2


Mário Beja Santos

Já aqui se referiu que a vila de Belas foi realenga, possuiu nos seus arredores importantes vestígios do passado romano e árabe, foi sede de concelho e este faz parte da União das Freguesias de Queluz e Belas, o seu interior possuiu um eixo diário com um tráfego intenso, andar pelos estreitos passeios requer extrema cautela. Quando se fala em vila realenga, os fundamentos são sólidos. Respigo de um artigo que encontrei na net o seguinte, tem a ver com uma notícia publicada em 23 de setembro de 1728 na Gazeta de Lisboa: "A Rainha Nossa Senhora, foi ontem a Belas com a Senhora Infanta D. Francisca ver o Senhor Infante D. Carlos". Tratava-se da Rainha D. Maria Ana de Áustria, mulher de D. João V. O infante D. Carlos, seu filho, encontrava-se doente e procurava alívio, no ambiente saudável de Belas. Faleceu em 1730, com 14 anos. O infante D. Manuel de Portugal, irmão de D. João V, nascido em 1696, viveu alguns anos em Belas onde faleceu em 1766, reinando D. José I, que o visitava com regularidade. Foi cabeça de Marquesado e Condado, adstritos aos Senhores de Pombeiro e Castelo Branco. D. Manuel I, aquando Duque de Beja, doou os rendimentos da igreja de Belas às freiras do convento daquela povoação.
É neste espaço cheio de história que se vai dar uma passeata.

Igreja Matriz de Belas, mais um templo religioso que conheceu transformações umas atrás das outras, do período manuelino resta a sua porta principal
Interior da Igreja Matriz de Belas, de uma só nave
Moradia a carecer de obras, mas guarda uma certa imponência que convinha que não se perdesse na requalificação. Eram assim as casas de férias ou de habitação permanente em tempos que já lá vão, quando a cidade ainda parecia longe, a região era considerada de ar puro e Sintra não está longe.
Em contraste, numa das artérias de maior trânsito em Belas, vemos como se reconstrói mantendo o traçado genuíno de muitas décadas atrás, virando à direita, como parece ser a direção daquele carro, pode-se caminhar para a Venda Seca ou para a Rinchoa. Fico especado a pensar que a Rinchoa tem uma bela casa-museu, a de Leal da Câmara, onde me apetece voltar.
Esta é uma das entradas da Quinta do Senhora da Serra, construção heterogénea, mas cheia de pergaminhos, é uma propriedade que remonta à fundação da nacionalidade, há ali marcas do gótico e arcarias ogivais, aí pelo século XIV, a Quinta, que também foi designada por Paço Real, era usada pela família real. As obras e transformações sucederam-se, desde o reinado de D. Manuel até ao século XVIII, os jardins aprimoraram-se. A Quinta é hoje propriedade particular, uma prestigiada agência imobiliária mostra um pequeno filme para quem quiser comprar estes muito hectares e a construção histórica.
Pormenores do interior da Quinta do Senhor da Serra, imagens retiradas do site promocional da Porta da Frente, a propriedade está à venda por 14 milhões
Um pormenor do muro que fala dos tempos muito idos
Outro pormenor da Quinta do Senhora da Serra, o casarão ao fundo é também de tempos muito idos
Um pormenor do muro da Quinta, possui um património florestal valioso, custa ver como todo este magnífico espaço sofre da poluição sonora do corrupio do trânsito, a CREL está lá ao fundo, todas estas vias que acedem ao interior do termo de Sintra são fustigadas por viaturas de toda a espécies, andar nas ruas estreitas de Belas não é convite para ninguém. Mas já estamos habituados a tudo, veja-se o que se passa com um troço importante do Palácio de Queluz, com o IC 19 à porta.
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Notas do editor:

Post anterior de 15 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25642: Os nossos seres, saberes e lazeres (632): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (158): Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve Paço Real, estamos perto da Venda Seca - 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25663: Os nossos seres, saberes e lazeres (633): viagem à China, de 1 a 12 de setembro próximo, com um cicerone de luxo, o nosso camarada António Graça de Abreu

Guiné 61/74 - P25700: (De) Caras (210): A emboscada, na picada de Mampatá-Uane, em 20 de maio de 1968: além de 4 mortos, foram feitos pelo PAIGC 8 prisioneiros, cinco dos quais sabemos que foram o Rui Rafael Correia (CCS/BART 1896, Buba, 1966/68), José M. Medeiros, José M. de Susa, Manuel da Silva e Agostinho Duarte (CART 1612, Bissorã, Buba e Aldeia Formosa, 1966/68)

 


O Rui Rafael Correia, antes de ser mobilizado
 para Guiné como 1º cabo mecânico auto, 
CCS/BART 1896 (Buba, 1966/68) 


O Rui Rafael Correia,  no dia da homenagem
que lhe foi feita pelo Núcleo de Matosinhos da Liga 

Vivia na Galiza desde 1972.


Guiné > Carta de Xitole (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Mampatá, Uane, Nhala, Buba, Aldeia Formosa e Chamarra, na região de Forreá

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)

 


1. A emboscada a que se refere o Carlos Nery no poste P25693 (*), aconteceu a 20 de maio de 1968, na picada entre Mampatá e Uane (vd. carta do Xitole, 1955, escala 1/50 mil). As NT sofreram 4 mortos e 8 militares foram aprisionados.

Os militares aprisionados terão sido , levados para a Guiné-Conacri.  Pertenciam à CCS/BART 1896 (Buba, 1966/68) e à CART 1612. Não sabemos, para já, a identidade dos mortos: é possível que tenham sido milícias, executados sumariamente pelo PAIGC (" passados pelas armas alguns milícias considerados traidores") (*).
 
Dos prisioneiros temos a identificação de cinco;
 


Lista dos prisioneiros  do PAIGC "entrevistados"  pela Rádio Libertação, do PAIGC, em Conacri, em 1968... Sublinhados, a vermelho, os nomes de cinco dos nossos camaradas, um  da CCS/BART 1896, e quatro da CART 1612 / BART 1896, aprisionados em 20/5/1968, na picada Mampatá-Uane-Nhala. (Ao todo, foram oito, dois estavam hospitalizados, em meados da agosto de 1968 quando prestaram declarações em cativeiro, à rádio do PAIGC, num operação claramente de propaganda do Amílcar Cabral).

Fonte: Opúsculo, de 24 pp., "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra", disponível na totalidade aqui. (Editado pela FPLN / Portugal [Frente Patriótica de Libertação Nacional], em Argel, Transcrevem-se "declarações gravadas em fita magnética e difundidas pela Rádio Libertação, pelo PAIGC, que autorizou retransmissão pela emissora da FPLN, a Voz da Liberdade" (sic).


2. Já aqui reproduzimos, em tempos (**) , as declarações (a pp. 7/8), do Rui Rafael Correia, natural de Leça da Palmeira, Matosinhos, 1º cabo mecânico auto da CCS/BART 1896 (Buba, 1966/68), delcarações essas que terão sido  prestado aos microfones da Rádio Libertação.  (O Correia só será libertado em 20 de novembro de 1970, na sequência da Op Mar Verde. Teve portanto dois anos e meio de cativeiro.).

É o único de quem temos fotos (***). Eis aqui o essencial da informação sobre os acontecimentos de que foi vítima: 

(i) estava na CCS / BART 1896, em Buba;

(ii) foi chamado para ir a Aldeia Formosa reparar uma viatura que estava avariada na estrada:

(iii) recuperada a viatura, ficou à espera dos camaradas que estavam no mato;

(iv) quando estes regressaram, deram conta que faltava os milícias;

(v) por ordem do alferes, comandante da força, foi um pequeno grupo a caminho de Uane buscar os milícias;

(vi) o cabo mecânico Correia sentiu-se na obrigação de acompanhar a viatura à qual tinha acabado de dar assistência;

(vii) entre Mampatá e Uane (vd. carta de Xitole) foram emboscados;

(viii) o pequeno grupo ficou completamente indefeso perante "uma emboscada tão forte e tão bem montada".

.



(...)



(Pág. 7. Excerto)

(Pág. 8. Excerto)


3. Os outros restantes quatro prisioneiros,  do dia 20 de maio de 1968,   são:

  • José M. Medeiros ( sold,  CART 1612 / BART 1896):
  • José M. de Sousa (sold. CART 1612 / BART 1896);
  • Manuel da Silva (sold, CART 1612 / BART 1896);
  • Agostinho Duarte (sold, CART 1612 / BART 1896).
A CART 1612 / BART 1896 esteve em Bissorã, Buba e Aldeia Formosa (nov 66 / ago 68)

 Reproduzidos a seguir uma seleção das  "declarações" dos nossos camaradas em cativeiro: no essencial, coincidem no que diz respeito às circunstâncias em que ocorreu a emboscada. 

Nenhum deles fala dos "mortos", possivelmente milícias, e que terão sido executados "in loco", segundo a versão do Carlos Nery (*). Limitaram-se a responder , sucintamente, ás mesmas perguntas que lhes foram feitas:  (i) nome, onde e quando nasceu; (ii) unidade ou subunidade a que pertenceu; (iii) em que parte(s) da Guiné prestou serviço; (iv) se estava bem de saúde; (v) como foi recebido e tratado; (vi) as circunstâncias em que foi feito prisioneiro; e (vii) mensagem a dirigir aos antigos camaradas, amigos, família, etc.

(...)



(Pág. 9. Excertos)

(...)


(...) 



(...)

(Pàg. 10. Excertos)


(Pág. 11. Excerto)
(...)



(Pág. 12. Excerto)

(Pág. 12. Excerto)




(pág. 13. Excerto)





(Pág. 15.Excertos)

4. Segundo o nosso camarada José Teixeira, da CCAÇ 2381, que rendeu a CART 1612 [que estava em Aldeia Formosa desde novembro de 1967], "este trágico acontecimento [deu-se] no pontão de Uane entre Mampatá e Nhala, na velha picada de ligação Aldeia Formosa / Buba" (**)... 

Era "um sítio muito complicado e temido junto a uma bolanha, onde existia um carreiro por onde PAIGC fazia passar o material de guerra vindo da Guiné Conacri para o interior da Guiné, via Cantanhez"... 

Era "um lugar para muitos cuidados, com emboscadas às colunas que faziam a ligação de Buba a Aldeia Formosa a par de outro conhecido pela Bolanha dos Passarinhos, já muito perto de Buba".

As NT estacionadas em Aldeia Formosa faziam patrulhamentos e montavam emboscadas na zona, mas as coisas aconteciam "ao mais pequeno descuido, como parece ter acontecido, ou pelo menos era o que constava, quando ali chegou a CCaç 2381 em julho de 1968 para render a Companhia [a CART 1612,]  que sofreu esta emboscada, em 20 de maio".





Capa do opúsculo, de 24 pp., "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra", disponível na totalidade aqui. 



Citação:
(1968), "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84394 (2016-6-6)
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Notas do editor:


(*) 28 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25693: 20º aniversário do nosso blogue (17): Alguns dos melhores postes de sempre (XIII): na noite de 22 de junho de 1968, há 56 anos, Contabane transformou-se no inferno - Parte III: um texto antológico de Carlos Nery (ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)

(...) Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Rachid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.

O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.

(...) Ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.

Perante os ataques a Contabane e Mampatá [de 22 de maio e 11 de junho de 1968, respetivamente] e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área. (...)




(***) Último poste da série > 22 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25674: (De) Caras (209): Hermínio Marques, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 2382: "Vou contar-lhe como perdi as minhas coisas em Contabane" (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25699: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte V: O país da diversidade, onde umas vezes apetece partir, e outras vezes apetece ficar


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 1 de fevereiro de 2018 > "Propriamente, em Timor, só há duas estações: o verão e o inverno. Por incrível que pareça as noites mais frias (frescas) são no verão e, claro está, nas montanhas. É rara a árvore de folha caduca. Por isso o verde constante. Se nos distraímos, da noite para o dia aparecem novas flores, novas plantas."





Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2018 > As crianças gentis da Escola de São Francisco de Assis, fundada pela ASTIL.

Foto (e legenda): © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Rui Chamusco, membro da nossa Tabanca Grande desde  10 de maio último,  é cofundador da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste),  com a sua conterrânea, Glória Lourenço Sobral, professora do ensino secundário, e com o marido desta, Gaspar Costa Sobral, luso-timorense que, em Angola, antes da independência, foi topógrafo, e é hoje formado em direito.

A ASTIL,  criada em 2015 e com sede em Coimbra,  fundou e administra a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo) e tem também em curso um programa de apadrinhamento de crianças em idade escolar. (Havia, então, em Boebau, 150 crianças sem acesso à educação.)

O Rui, professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, tem-se dedicado de alma e coração a estes projetos solidários  no longínquo território de Timor-Leste.

Desde a sua primeira viagem a Timor-Leste, no 1º trimestre de 2016, que ele vai escrevendo umas "crónicas" para os membros da ASTIL e demais amigos de Timor Leste. Temos estado a recuperar essas crónicas, agora as da segunda estadia, em 2018 (*).

Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família,  durante três anos e meio,  refugiados nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975).

Em 2018 o Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro, com o Gaspar Sobral, numa acidentada viagem de 3 dias... O João Crisóstomo também partiu de Nova Iorque, em 2 de março, para se juntar, ao Rui e ao Gaspar Sobral, na sessão da inauguração da Escola, em Boebau, em 19 de março de 2018. Regressou a Nova Iorque em 28.




Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral. A família Sobral tem um antepassado comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra. A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui. 

Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)



1. Esta segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, em  missão solidária,   culminaria  com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, nas montanhas de Liquiçá (*).

 Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vamos conhecendo melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje:
 
Estas crónicas tem um enorme interessante para se perceber melhor  o que é hoje a República Democrática de Timor Leste, país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia 

Enfim, estas crónicas, que o Rui Chamusco partilha connosco, acaba por ser um privilégio, para os nossos leitores, amigos de Timor Leste e/ou promotores da lusofonia.  Aqui fica  obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias luso-timorenses.




II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte V - O país da diversidade




29.03.2018, quinta feira  - Laços de sangue e outros

Quando aqui em Timor se fala de filhos tem que se perceber muito bem a questão da filiação. É frequente em cada família ou aglomerado familiar haver filhos adotivos que, sem qualquer descriminação, fazem parte da família em igualdade de circunstâncias.


Mas são filhos adotivos sem qualquer tipo de formalidades oficiais. Basta que por necessidade se bata à porta devido a qualquer conhecimento ou relação social anterior.

Assim encontramos a casa e a família do Abeka. Já foi abrigo para alguns filhos que, sem qualquer laço de sangue, ali se criaram. Falam com algum carinho do Rogério e do Eusébio, que hoje são já homens casados e pais de filhos. Hoje, ao fim da tarde, tivemos a  visita do Eusébio, de que eu já falei nas minhas primeiras crónicas de 2016, e volto a referi-lo porque a sua atitude passada prova com mais força o que venho descrevendo.

Perdeu o pai durante a guerra com a Indonésia de uma maneira imprevista. Por imprudência, acenderam o lume no local onde estavam escondidos, e as tropas indonésias fizeram o resto: limparam a rajadas todo o acampamento. Por isso, orfão de pai, recorreu a uma família de acolhimento. Então o Eusébio logo que pode lançou-se na sua vida ativa, deixando o espaço físico onde foi criado para fazer a sua própria vida. 

E tudo corria normalmente, até que um dia lhe chegou aos ouvidos que a sua irmã (adotiva) Assun, que entretanto tinha casado, era maltratada e agredida pelo marido.  O Eusébio não fez mais nada: pôs-se a caminho de Ailok Laran, deu uma valente soba no agressor que se pôs em fuga, e comentava furioso: “ nos meus irmãos ninguém bate!...”

Serviu de exemplo a muitos e serve de exemplo para todos nós. Criar filhos não é só gerá-los. É preciso criá-los e educá-los. Os laços de sangue são importantes, mas os laços afetivos não lhe ficam atrás.

30.03.2018, sexta feira - Após a tempestade
 vem a bonança

Não poderei dizer que esta sexta feira santa me foi fácil de suportar. Em confronto interior com costumes e hábitos do exterior, relembrando hábitos e proibições de há mais de cinquenta anos, nem sempre fui capaz de estar calado manifestando o meu desacordo e incumprimento. Porque é dia santo - morreu Jesus -” não se pode saudar ninguém “, “não se pode varrer”, “não se pode assobiar ou cantarolar”, etc...,etc... É pecado! 

E como eu sou um grande pecador, acho que transgredi todas as normas e imposições. Pior ainda, não penso ir confessar-me destes meus pecados.

Fosse como fosse, comecei a ficar mal disposto e a planear ausentar-me daqui. Mas o Senhor “que acalma os ventos e as tempestades” veio em meu socorro e trouxe-me a tranquilidade e a bonança.

Pois é! A aculturação não é só ao tempo meteorológico, ao regime alimentar, aos usos e costumes dos povos. Quantas vezes a nossa mentalidade não tem também de recuar, para vivermos felizes e contentes. Como dizia Bruno Bethleim, “coração consciente para mantermos a nossa identidade”.

31.02.2018, sábado - Prendas

É sempre com alegria que procedemos à distribuição das prendas (importância pecuniária) dos padrinhos e madrinhas aos seus afilhados. Já passou a ser um ritual que junta os contemplados, as famílias, os amigos. Sentado no seu telónio está o João Moniz (Eustáquio) que, um a um, vai chamando, faz assinar, e entrega a importância devida.

Mais um pequeno sermão para relembrar a finalidade destes donativos (apoio às necessidades escolares) e a importância de agradecer aos doadores nem que seja com um simples “ Obrigado, padrinho! Obrigado,  madrinha!”. 

O Eustáquio insiste que todo o que tem padrinho ou madrinha deve ter a vontade e fazer algo por aprender a escrever e a falar português. Alguns ficam mesmo atrapalhados porque não percebem nadinha da língua de Camões, mas se cada vez que aqui vêm já souberem duas ou três palavras novas, talvez um dia se desenrasquem pelo menos a entenderem o que ouvem.

A sessão termina com as fotos que testemunham sempre qualquer entrega e que depois são enviadas aos padrinhos. Um ato simples e transparente que faz inveja a muitos “governantes”. (...)

 01.04.2018, domingo  - Dia de Páscoa em Timor Lorosa’e

O sol já raiou. Já os galos cantam em alegre desgarrada, nesta madrugada serena e carregada de sentido religioso. Em Timor Leste a “colonização cristã” dos portugueses ainda está bem enraizada na fé e nos costumes da maioria das suas gentes. As cerimónias religiosas são massivamente participadas, e os fiéis participam ativamente nas preces, nos cantos, nos rituais. (...)

 
02.04.2018, segunda feira  - A diversidade

Não utilizaria esta palavra se ela não comportasse toda a riqueza de expressão do que penso escrever neste momento sobre Timor Leste. Com certeza que haverá por esta região orientam do globo outras sociedades e outras terras com idênticas características.

Mas é aqui que eu estou, é aqui que me ´é dado viver, é aqui que tomo consciência destes fatores. E por isso vou tentar descrever o que observo, dentro de um quadro de visão pessoal, que embora objetiva terá sempre pinceladas subjetivas. Assim, verifico que:

(i)  a monocultura é quase inexistente neste país. Fauna e a flora, tão exuberantes neste território, reproduzem-se quase por geração espontânea, graças às excelentes condições climatéricas, com calor húmido e chuva que baste. 

Propriamente, em Timor, só há duas estações: o verão e o inverno. Por incrível que pareça as noites mais frias (frescas) são no verão e, claro está, nas montanhas. É rara a árvore de folha caduca. Por isso o verde constante. Se nos distraímos, da noite para o dia aparecem novas flores, novas plantas.

Dizem que das boas coisas que os indonésios trouxeram para Timor foi a replantação ou implantação de algumas árvores. O resultado está à vista, basta olhar para o mundo que nos rodeia. Dizem os entendidos que a biodiversidade é o caminho certo para a nossa sobrevivência; que as plantas se protegem umas às outras. O caso mais flagrante que conheço é nas montanhas de Boebeu / Manati, onde os cafeeiros são abrigados por árvores com mais de cinquenta metros de altura (a Madre Cacau).

(ii)  A raça humana que povoa este território é a maior mistura possível. 

Embora haja o rosto tipicamente timorense, que sem favor é lindíssimo, é frequente encontrarmos à nossa volta rostos indonésios, chineses, japoneses, africanos, malaios (portugueses, australianos, ingleses, franceses, etc...) 

Todos em saudável convivência, exercendo cada um o seu dever ou realizando o seu trabalho. Será este um dos sinais da globalização, onde cada um comunga com o outro mas sem perder a sua individualidade e características.

(iii) A religiosidade imanente em cada um, que se manifesta através de diferentes crenças.

O povo timorense professa na maioria a religião católica, e são muitas as suas manifestações ao longo do ano litúrgico. O poder da igreja em Timor Leste é muito grande, sobretudo no campo social e religioso. Mas não podemos ignorar a sua influência de opinião no campo político. Igualmente apraz-me registar o lugar que outras igrejas e religiões ocupam nesta sociedade e que com respeito mútuo vão exercendo também a sua influência: a igreja protestante, a igreja evangelista, as
testemunhas de Jeová, a comunidade muçulmana.

Estando por diversas vezes nas montanhas, dei-me conta das religiões animistas que por lá subsistem e que determinam muitas vezes o presente e o futuro de muitos dos seus crentes. O timorense dá muito valor e respeita com veneração os seus antepassados que, apesar de ausentes, zelam pelos vivos compensando ou castigando como for o caso. Até o Ramiro, um rapaz novo de vinte anos, acredita que a sua queda do telhado, de que foi vítima durante a construção da escola, foi um castigo dos antepassados por ter ocultado a verdade do roubo de material. Também a nossa escola foi sujeita a um ritual pagão a fim de sabermos o seu futuro.

E creio que cada região do país terá as suas crenças e os seus rituais.

(iv) A língua de comunicação é oficialmente o tétum e o português. 

Mas pelas ruas, aos balcões, nas repartições, nos mercados, nas escolas o que ouvimos é uma mistura linguística que umas vezes facilita e outras vezes complica. A língua indonésia (o Bahassa) ainda está muito arraigada nesta gente. 

Primeiro porque foi imposta com a criação de uma boa rede escolar e com castigos (punição e morte) a quem ousasse falar o português. Depois porque os jovens e a gente dos trinta e quarenta, que são a garantia da sociedade futura, ainda falam corretamente esse idioma. Por fim, há uma grande comunidade de indonésios que mantêm o comércio timorense e que, como é natural, falam constantemente no seu idioma.

Acresce a tudo isto a vontade dos australianos desejando a todo o custo que este povo fale o inglês. Apesar das promessas com que acenaram, o governo timorense de então decidiu que a segunda língua oficial seria o português. Como diz o grande amigo João Crisóstomo “ Timor deve muito da sua independência à igreja e à língua portuguesa”.

O grande problema é saber como é que se vai expandir o ensino do português. Há outras línguas que estão a recuperar e a avançar, como seja o espanhol, por influência dos médicos cubanos, e o inglês graças à pressão australiana e léxico utilizado nos negócios e intercâmbios comerciais. Os governos de cá e de lá têm feito esforços para atenuar o problema. Mas, os que estamos no terreno, damo-nos conta de que isso não é suficiente.

Tem de ser feito muito, mas muito mais. Timor Leste é um pequeno território mas com muita variedade. E é assim que este pequeno país de vai edificando, com reconhecimento e apreço internacional no contexto
das nações, no mundo.

03.04.2018, terça feira - Prolongação de estadia

A data do regresso a Portugal aproxima-se. Mas, não sabendo ainda se há necessidade de prolongar a nossa estadia, pelo sim pelo não fomos ao Ministério da Administração Interna requerer o prolongamento por mais dois meses. 

Depois das formalidades cumpridas, incluindo o pagamento de setenta dólares por cabeça, cá estamos à espera do despacho que, se não vier em devido tempo, para nada nos servirá pois teremos de deixar este país o dia 21 de Abril.

Entretanto, outras tarefas estão a pedir o prolongamento da nossa estadia. Agora é a UNTL (Universidade) que decidiu comemorar o aniversário da independência, dia 20 de Maio, com a exposição “Lameta. Contributo das comunidades luso americanas para a independência de Timor Leste” do nosso amigo João Crisóstomo. Sendo nós (Escola São Francisco de Assis em Boebau) os depositários dos materiais para a referida exposição, e a solicitação do Dr. José Ascenso que é o elo de ligação com a UNTL, teremos de dar o corpo ao manifesto para que a exposição corresponda ao interesse manifestado.

Outras andanças relativas à escola em Boebau merecem o prolongamento da estadia: registos, professores, ano escolar de  2019, acabamentos e melhorias no edifício escolar, reuniões, encontros...

Vamos a ver até onde chegará a nossa resistência: umas vezes apetece partir; outras vezes apetece ficar. Com certeza que a necessidade determinará a nossa decisão.

(Continua)

(Título, excertos, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos:  LG)
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Guiné 61/74 - P25698: Parabéns a você (2286): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 / BCAÇ 2884 (Jolmete, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf (Como, Cufar e Tite, 1964/66)


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Nota do editor

Último post da série de27 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25687: Parabéns a você (2285): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641/72 (Mansoa, Braia, Infandre e Ilondé, 1973/74)

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25697: (In)citações (268): Desertar ou cumprir a missão ao serviço da Pátria, mesmo sabendo que o regime, irracional e anacronicamente, entendia o colonialismo como um processo moral e legal? (António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro)

Porta de Armas do Quartel da Serra do Pilar
Foto: © António Tavares, ex-Fur Mil SAM

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, (Mampatá, 1972/74), com data de 27 de Junho de 2024:

Estávamos ali reunidos em formatura na parada do quartel da Serra do Pilar, para a despedida da praxe.
Dentro de breves minutos entraríamos nos autocarros que nos deixariam no aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa. Só um camarada faltou à chamada, por ter resolvido desertar, como no decurso desse mesmo dia vim a confirmar.

Não sei o que cada um dos presentes pensou da sua atitude, sei que eu próprio me interroguei se não o deveria ter imitado. E da interrogação fui evoluindo para a certeza de que se estava a cumprir uma missão ao serviço da Pátria, essa missão era um erro do regime que irracional e anacronicamente entendia o colonialismo como um processo moral e legal.

Ao longo do cumprimento da minha missão no sul da Guiné, durante penosos 26 meses, fui compreendendo que, para além da injustiça de um povo governar outro sem prévio acordo do governado, a guerra, mesmo que fosse legítima, era cada vez mais insustentável e conduzia a um morticínio inútil de jovens de pouco mais de vinte anos e sequelas físicas e mentais em muitos outros.

O ano de 1973, quando o PAIGC passou a ter a capacidade para praticamente neutralizar a nossa Força Aérea, tornou-se decisivo para convencer os Capitães de Abril a evoluírem da sua feição corporativa para um movimento revolucionário capaz de derrubar o regime. Pena foi que não houvesse condições políticas para o fazerem antes de 1974.

Nesse mesmo dia 27 de Junho de 1972 chegámos a Bissau, para ainda na madrugada do dia 28 sermos despejados na ilha de Bolama. O resto fica por contar.

Estou muito grato aos Capitães de Abril, sobretudo por terem terminado com a guerra.

Carvalho de Mampatá

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Nota do editor

Último post da série de 24 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25678: (In)citações (267): Compensações às colónias (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

Guiné 61/74 - P25696: Notas de leitura (1704): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Não deixa de causar perplexidade, quando se lê o Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa de Guiné nesta época, o abismo que separa os atos administrativos e a realidade que se vivia naquele enclave no continente africano. É certo que o Governador Geral se confrontava com as terríveis fomes cabo-verdianas, e também as epidemias, o Boletim Official refere dádivas e manifestações de solidariedade. Não que em certos discursos não se deixava mencionar "as mortíferas paragens da Guiné" e a incapacidade em recursos para impedir os desmandos do gentio, tratado como traiçoeiro e selvagem. O contraste em ler o Boletim Official e ler a História da Guiné de René Pélissier, que começa exatamente em 1841, não pode deixar de nos provocar um certo choque, no Boletim Official não há qualquer menção a Ziguinchor e ao cerco montado deliberadamente pelas autoridades francesas, enquanto Honório Pereira Barreto esteve ativo, pelo menos sabia-se que os seus alarmes e advertências chegavam a Santiago e também a Lisboa; aqui e acolá há uma referência aos escravos libertos, mas a escravatura não desaparecera, os britânicos apresavam navios destinados às Américas; Pélissier fala nas perturbações, por exemplo em Geba, no Rio Grande de Buba, não há qualquer primeira menção no Boletim Official. Isto serve para alertar o leitor de que a documentação emanada de Cabo Verde sobre a Costa da Guiné é mais do que insuficiente para entender o que naquele exato momento ali se passava.

Um abraço do
Mário


Suplemento do Boletim Oficial de 21 de janeiro de 1862, dá-se a notícia do falecimento do Infante D. João, como já se dera a notícia dos falecimentos da rainha D. Estefânia e do seu marido, o rei D. Pedro V


Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9)


Mário Beja Santos

O que mais me surpreende, ao vaguear, página a página pelo Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e Costa de Guiné, é a total ausência de menções ao cerco em torno do enclave, a sul pela Grã-Bretanha, a norte pela França, esta já não esconde que nos quer afastar da orla do rio Casamansa, aquele comércio deverá pertencer-lhes em exclusivo; mas também não há menção às sublevações e insurreições nas praças e presídios, só indiretamente como podemos encontrar na alocução de despedida do ex-Governador Geral, Carlos Augusto Franco. Enfim, a Costa da Guiné é uma questão subsidiária, o foco do Governo Geral está nas fomes e epidemias, como se pode ler no n.º 14 de 16 de abril de 1864, há manifestações de solidariedade com os afligidos, nomeadamente na ilha da Brava, houve donativos da Guiné. Mas voltemos a falar no ex-Governador Geral Carlos Augusto Franco, houve manifestação de homenagem e no Suplemento de 23 de abril do Boletim n.º 15, convém ler o seguinte extrato:
“Velando pela regularidade da Administração Geral, e tratando de regulamentá-la na parte em que o precisava, quando motivos extraordinários e a dignidade nacional me levaram às mortíferas paragens da Guiné Portuguesa.
Desacatos ao pundonor português, e vilipêndios à nação, se encontravam a cada instante na parte dos gentios que estavam em guerra connosco; guerra traiçoeira, guerra de selvagens, que para os castigar como o deviam ser não era nas forças da província nem com os diminutíssimos recursos estranhos que me foram mandados.”
O ex-Governador concluirá que se fez a paz, estabeleceu-se a tranquilidade, retomou-se o comércio no rio Geba. Paz precária, como sabemos.

Temos agora matéria no Boletim n.º 22 de 11 de junho. Trata-se de uma portaria, com o seguinte teor: “Determinando que, com os indigentes que voluntariamente se prestaram a seguir para a Guiné Portuguesa, e para ali foram transportados por conta do Estado, se estabeleça, ponta do Rio Grande de Bolola uma colónia com as condições que se consagram.” É também aprovado o contrato celebrado entre o Governador da Praça de Cacheu, o Capitão do Batalhão de Artilharia de 1.ª Linha desta Província, Joaquim Alberto Marques, e o régulo de Ilia, de onde se vê haver o mesmo régulo cedido à coroa aquela aldeia. Passando para o Boletim n.º 40, de 29 de outubro, temos o ofício do Governador da Guiné, Major José Xavier Crato, para o Governador Geral, José Guedes de Carvalho e Menezes:
“Tenho a distinta honra de comunicar a Vossa Excelência que no distrito da Guiné reina sossego não tendo mesmo havido questão alguma com os Balantas, que parece conservarem-se pacíficos. Houve algumas tentativas de roubos na povoação, que foram pressentidas pela polícia noturna. O estado alimentício, se não abundante, é pelo menos regular, e não se sente falta e esperam-se boas colheitas de arroz, milho e mancarra, tendo-a havido de purga já em maior escala que o ano findo. O estado sanitário é quase normal, havendo em Cacheu alguns casos benignos de bexigas. Foram pelo facultativo marcados os dias de quartas-feiras e sábados para vacinar quem a isso se queira sujeitar. O comércio está frouxo, por faltarem sortimentos, devido talvez à continuação da guerra na América.”

Voltando um pouco atrás, a 23 de abril, Boletim n.º 15, bem curiosa é a Portaria n.º 85, aqui se reproduz o que determina o Governador Geral:
“Havendo-me a comissão governativa da Guiné Portuguesa, por ocasião de me dar conhecimento do incêndio que teve lugar na Praça de Cacheu, nas casas de Luís Xavier Monteiro, participado não só os bons serviços que em tal desastre prestara o respetivo Governador Interino, o Capitão do Batalhão de Artilharia desta província, Joaquim Alberto Marques, como também a muito valiosa cooperação que para extinguir o mesmo incêndio e evitar que se propagasse pelos demais prédios vizinhos, proporcionaram os diversos habitantes daquela Praça, constantes da relação que fazendo parte desta portaria baixa-assinada pelo secretário deste Governo Geral: tendo como dignos de verdadeiro apreço os sobreditos serviços; hei por conveniente determinar que a mencionada missão governativa da Guiné Portuguesa louve, em meu nome, o Governador da Praça de Cacheu pela forma como se houve naquele calamitoso acontecimento, e ordene a este, preste iguais louvores, e por igual motivo, aos indivíduos designados na referida relação. As autoridades e demais pessoas a quem o conhecimento da presente competir, assim o tenham entendido e cumpram. E segue-se a relação dos indivíduos que prestaram os referidos serviços no incêndio das casas de Luís Xavier Monteiro, lista que inclui o pároco, vários comerciantes, o Diretor da Alfândega de Cacheu, um conjunto de militares, o juiz dos Grumetes, vários guineenses, dizendo explicitamente Dombá, Mandinga, Joaquim, Manjaco, António, Gentio e Baiote, idem.”

E assim entramos no ano de 1865, chamou-me à atenção o Boletim n.º 15 de 18 de abril, trata-se da Portaria n.º 96 assinada pelo Governador Geral José Guedes de Carvalho e Menezes: “Atendendo a que o soldado do Batalhão de Artilharia desta Província, Domingos Cabral, tendo sido mutilado em campanha de guerra com os gentios da Guiné, foi deliberado pela Junta Militar de Saúde em 27 do mês próximo passado ser dado como incapaz do serviço; hei por conveniente determinar que a recebida passe à classe de veteranos.”

Escrevinho estas notas na altura em que fui informado da morte do historiador francês René Pélissier, que se dedicou à historiografia colonial portuguesa, ao mais alto nível, legando um acervo de investigações de primeiríssima classe. No tocante à Guiné, a sua História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Editorial Estampa, dois volumes, 2001 e 1997 respetivamente, é de referência. O que o Boletim Official não nos dá notícia, aparece bastante claro no estudo de Pélissier: um tráfico de escravos quase oficial, a guerra de Bissau de 1844, um espaço colonial onde as potências estrangeiras se movimentam à vontade. E Pélissier refere com detalhe os acontecimentos na bacia do Casamansa, as permanentes altercações em Bolor, Cacheu, Farim, a ilha de Bissau, Fá, Geba, Rio Grande de Buba, o estado da questão de Bolama, a menção do Gabu e das guerras Fulas-Mandingas que o devastam, Pélissier admite que a grande batalha de Kansala data de 1864. Há aqui um conflito entre realmente o que se passava no terreno e a diminuta importância que era conferida pelo Governo Geral.
E vamos continuar.

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 21 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25668: Notas de leitura (1702): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1860 a 1864) (8) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 24 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25680: Notas de leitura (1703): O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25695: Convívios (1004): Almoço/Convívio dos antigos militares da CCAÇ 1494 / BCAÇ 1876, a levar a efeito no próximo dia 27 de Julho de 2024 em Leça da Palmeira/Matosinhos

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Nota do editor

Último post da série de 26 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25686: Convívios (1003): Rescaldo do XLIII Encontro do pessoal da CCAV 2639, levado a efeito no passado dia 8 de Junho em Anadia (António Ramalho, ex-Fur Mil)

Guiné 61/74 - P25694: S(C)em Comentários (41): Contabane, que depois, em 22 de junho de 1968, será praticamente riscada do mapa, acabando por ser evacuada em 1 de julho...


1. Face à pressão IN sobre a região do Forreá, a CCAÇ 2382 (que chegara ao CTIG em 6mai68, e estava a fazar a IAO em Bula), é colocada e
m 7jun68, à pressa,  no Sector S2 (Aldeia Formosa), com dois pelotões em  Contabane.  Veio redner forças da 5ª CCmds.

Em 11jun68,  instala-se o o comando e os outros dois pelotões em Mampatá; no entanto, em 18jun68, a sede da subunidade passou para Contabane, ficando apenas um pelotão destacado em Mampatá.  

Na noite de 22jun68, Contabane sofre um ataque de 3 horas e fica praticamente reduzida cinzas. (Também vi este "filme",  um ano mais tarde, ns zona leste, no subsetor de Mansambo: Candamã, tabanca fula em autodefesa do regulado do Corubal, é atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de julho de 196; esse brutal ataque, com balas e granadas incendiárias,  em que o PAIGC utilizou dois bigrupos, reforçados, e armamento pesado,  surgiu na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada, que decorreu de 8 a 18 de março de 1969; e foi comandado pelo famigerado Mamadu Indjai, um dos futuros conspiradores da ala militarista do PAIGC que irá assassinar o Amílcar Cabral.)

 Em 1jul68, Contabane, no Forreá,  é evacuada, a CCAÇ 2382 volta de novo a instalar-se em Mampatá, agora com dois pelotões destacados em Buba e Patê Embalá.

Este trecho do Carlos Nery (*) , a seguir reproduzido,  refere-se a um patrulhamento na véspera. Contabane era uma bela aldeia fula, bucólica, como Candamã e tantas outras, onde a vida parecia que corria normalmente. O régulo era o Sambel, e a "mulher grande" do régulo, uma grande senhora, a Fatumatá.  

 

Guiné-Bissau > Saltinho > Sinchã Sambel >  2005 > A mulher do régulo local. A que está a ordenhar a vaca é casada com o régulo de Sinchã Sambel,  Suleimane Baldé, antigo milícia, filho do antigo régulo de Contabane, Sambel Baldé.  Depois da evacuação de Contabane, em 1 de julho de 1968, a população dispersou-se por Mampatá e Aldeia Formosa. Mais tarde,foi reunida numa nova tabanca, junto ao Saltinho, Sinchã Sambel, em homenagem ao régulo, que foi sempre leal aos portugueses (era um firme alidado de Spínola).

Foto (e legenda): ©  José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(...) Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.

Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.

Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.

Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto. (...) 

2. Este trecho merece ser destacado na série  "S(c)em comentários" (**). (LG)