Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).
− O senhor Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente, acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar, diziam as "cuscas" das betas.
O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até por ter uma bomba da Shell).
− Mas finório como ele sempre foi, nunca falou de política comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.
Também é verdade, declinou em 1958 o convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.
Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra.
Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra" e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...
Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida...
Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou, todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".
Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.
− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história da Marinha Grande).
− Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a casa da família, depois de casado.
O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que parecia mais verosimil, aos olhos do dr. Fernando ...
A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.
Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.
− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da arte xávega ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá uns dias na terra da sua mãe...
Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam, preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...
Estamos, entretanto, a falar de uma época em que o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público. O Salazar era um "rural". O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.
Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores, reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional...
A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.
Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"...
Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".
Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra, assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.
O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas".
Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril.
Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.
O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...
− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico".
Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila. Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro).
Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai, por ocasião da Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras.
− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge.− Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.
Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram).
Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.
O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.
Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa, mas, logo em 1965 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios.
− Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato. − adiantou o Jorge. − Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios.
− Mas a vida (ou a guerra de África) trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.
De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores".
− A mãe, a minha ex-sogra, era uma boa senhora, conservadora, beata e amiga dos pobres.
E não autorizava que se falasse de política à hora das refeições. De resto, não era hábito falar-se da "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.
A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos de réis era muito dinheiro...
A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.
− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre o Algarve e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá. Nunca fomos à bola um com o outro.
− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...
− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim, mas esse nem um nome de beco tem...
− De qualquer modo, ele é mais holandês do que português! − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.
− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.
− Eu diria antes: melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o Fernando.
© Luís Graça (2023). Última revisão: 7 de agosto de 2024.