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sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25846: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (30): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Marvão (nota de leitura de artigo de Jorge de Oliveira, CHAIA / Universidade de Évora)


Fita de apurado (1980).
Fonte: Jorge de Oliveira
(2021)
(com a devida vénia...)

Jorge de Oliveira (CHAIA / Universidade de Évora) "Ir às Sortes" nas freguesias de Santo António das Areias e Beirã.Revista "Ibn Maruan", nº especial de 2021, pp. 447-Câmara Municipal de Marvão / Edições Colibri



1, Jorge de Oliveira, professor  e investigador (Centro de História da Arte e Investigação Artística /Universidade de Évora) publicou na revista "Ibn Maruan", um interessante artigo sobre a ida  às sortes nas freguesias de Santo António das Areias e Beirão, do concelho de Marvão, distrito de Portalegre (tinha 7,5 mil habitantes em 1960, 5, 4 mil em 1970... e hoje, pouco mais de 3 mil).

Segundo ele, "ir às sortes" seria uma expressão relativamente recente, remontando ao período do pós-I Guerra Mundial.  

 "Ir às sortes",  no tempo do Serviço Militar Obrigatório (SMO),  era ser submetido à Inspecção Militar  no ano em que um "mancebo" (ou seja, um "aprendiz de homem"...) completava os 20 anos.

 (...) "Poderemos com alguma certeza afirmar que a expressão 'ir às sortes' teve origem no período de paz, pós primeira Guerra Mundial. A obrigatoriedade de ir à inspecção militar passou por diferentes formatos ao longo do tempo" (...)

É óbvio que, em tempo de paz, o exército não precisava de muitos "magalas", podia dispensar a "carne para canhão"... apenas os mais 'listos' (espertos, vivaços) eram recrutados, depois de "dados como aptos para prestarem serviço militar".

O que é que fazia a "junta" que presidia à inspeção militar ?

(...) "Do grupo dos restantes, o sargento, o médico e o soldado (sic) que faziam a inspecção 'sorteavam', mais dois ou três mancebos, para substituição de algum dos que anteriormente tinham sido dados como aptos,  não comparecesse",  por qualquer razão (...)

Esta seria a explicação para a  expressão "ir às sortes", sinónimo de inspeção militar em tempo de paz... E tinha implicações simbólicas e práticas na vida dos mais jovens, sobretudo entre a população rural:

(...) "Em época de paz, nos contextos mais rurais e economicamente menos favorecidos, onde o analfabetismo atingia grandes proporções, o ser dado como apto e ser chamado para a tropa era uma forma de provável fuga, pelo menos durante algum tempo, ao pesado trabalho do campo e ter garantida uma mesa guarnecida, ainda que muito repetitiva". 

E mais: "Sair do campo e ir parar a um qualquer quartel, que se situava sempre em contexto urbano era, logo à partida, uma nova experiência que lhe ficaria gravada para toda a vida. Fosse a recruta mais ou menos pesada nunca se igualava ao peso da enxada, desde o nascer ao por do sol, dia atrás de dia. Alguns aproveitavam para aprender algumas letras e até a carta de condução conseguiam tirar." (...)


2. E quanto ao significado das cores das fitas que os "mancebos" usavam nesse dia, uma vez finda a inspeção ?

 (..,) "Três diferentes cores podiam ter as fitas que, após 'as sortes',  podiam vir atadas ao braço, ou na lapela do casaco e que assinalavam a situação em que o mancebo tinha sido colocado, ou sorteado, como também se dizia."(...)

 A verde significa  "apto para todo o serviço", a vermelha, "inapto" e "a amarela (muito rara)" era para os que, por qualquer motivo ( saúde, peso,.  etc. ),  "ficavam a aguardar nova chamada." (...)

Ao que parece as cores das fitas e o seu significado não eram uniformes, dependendo da época e da região do país.

(...) "Por exemplo, houve alturas em que as cores se inverteram, fita vermelha que ostentavam na lapela em sinal de terem sido 'apurados para todo o serviço militar' , branca se ficavam livres do cumprimento do serviço militar, e verde, se ficavam em espera,
tendo de repetir a inspeção no ano seguinte" (...)


As cores podiam variar de DRM para DRM 
 (Distrito de Recrutamento Militar), sendo vendidas pelos "prontos" que acompanhavam as juntas...

O processo de "ir às sortes" seguia vários trâmites, que o autor descreve com alguma pormenor:

(i) a lista de mancebos desse ano era exposta no edifício da câmara e nas respectivas juntas de freguesia;

(ii) nela se indicava a data, a horaq e o local da inspeção;

(iii) por norma, a data coincidia com o fim da primavera ou princípios do verão, ppor razóes de conveniência da tropa e dos mancebos.

Uma vez fixada e conhecida a lista de convocatória, com o nome dos mancebos,  começavam, em cada terra, os preparativos para a celebração desse dia que representava um verdadeiro "rito ou ritual de passagem (à vida adulta)"

Elegia-se uma comissão, a nível de concelho ou freguesia, para organizar os festejos. 

 No caso de Marvão (que era um concelho pequeno e raiano) aparecia sempre na lista rapaziada que já ninguém conhecia, por, embora  lá tendo nascidol, haverem saído cedo, em geral com os pais, para outras paragens.


3. Na década de sessenta, com o início da guerra colonial, o "ir às sortes" deixou de ter o significado que tinha em tempo de paz. Quase toda a gente era apurada...

(...) "Os que tinham 'conhecimentos' tentavam, por todos os meios, com a antecedência necessária, meter uma 'cunha' para se conseguir safar" (...). 

E foi nessa época que alguns mitos se difundiram, de resto conhecidos de todos nós... O autor cita alguns;

(i) "uns diziam que, oferecendo-se anteriormente como voluntários, tinham menos probabilidades de ir para à frente de combate", o que não era verdade;

(ii)  "alguns mancebos tentavam esconder as suas qualificações académicas para virem a ser incorporados como soldados", baseados na crença de que entre os graduados (alferes e furriéis) era maior a mortalidade em combate;

(iii)  também se dizia que o exército era homofóbico, pelo que "os homossexuais eram, imediatamente, dispensados".  

E havia outras artimanhas, como acontecia noutros períodos da nossa história, em que o país esteve em guerra;
 
(iv) "Alguns, contava-se, que se deitavam junto à linha de caminho-de-ferro, lá para os lados da Herdade dos Pombais e quando o comboio ia passar metiam o indicador direito sobre a linha para amputar o dedo do gatilho" ( o indicador da mão direita, em geral); 

(v)  "Outros, intencionalmente, com qualquer instrumento cortante amputavam esse dedo"...

 (vi)  Outros, ainda,  que tinham médicos amigos ou conhecidos ou dinheiro para os pagar, arranjavam atestados de doenças falsas ou imaginárias, "que algumas vezes convenciam de imediato o médico de serviço à inspecção  e outras vezes convocava-os para uma Junta Médica Militar, à qual, por norma, não escapavam";

(vii) "Havia também aqueles que invocavam um artigo qualquer da legislação que dispensava da tropa os que, por motivo de serem o único sustento para a família, ficavam livres de prestar serviço militar";

(viii) "Relatos havia de mancebos selecionados que pagavam a outros, já regressados da tropa, para os substituírem no Serviço Militar";

(ix)  "Por fim, para aqueles que tinham condições e apoios para isso, havia sempre a possibilidade de se escaparem para outro País e não comparecerem 'às sortes' ou à 'incorporação' "...

Acrescenta o Jorge de Oliveira:

(...) "Sabemos que um dos trajectos de fuga passava exatamente por caminhos fronteiriços do concelho de Marvão, sendo a passagem pelo Batão, ou pela Fontanheira os locais mais assinalados."

4. Houve, entretanto,  uma altura em que a inspeção dos mancebos de Marvão passou a ser efectuada fora do concelho. Neste caso, "um dos mancebos, por norma aquele que tinha mais habilitações literárias,  era chamado à câmara a quem o secretário entregava os salvo-condutos de todos os mancebos e outra papelada para, de comboio, chegarem ao DRM assinalado" (em geral Abrantes ou Coimbra). 

(...) "Por norma viagem era realizada na véspera e à chegada ao destino cada um desenrascava-se para encontrar local de pernoita e no dia e hora marcada estarem todos à porta do quartel. 

"Mas a partida para a inspecção era antecedida, obrigatoriamente, de um clássico ritual de passagem e purificação. Um banho purificador nas águas do Rio Sever, com todos os mancebos, tal como vieram ao mundo, aquecidos por dentro com o conteúdo do
palhinhas a que se seguia uma forte almoçarada com aquilo que cada um trazia na
mochila. Um tocador de concertina, a quem se pagava, e uma camioneta mais ou
menos alugada e lá ia a rapaziada toda, alegremente, a caminho do Batão, ou da Ti
Maria Jacinta, locais mais apreciados para estas festanças. " (...)

Para alguns mancebos de Marvão era o primeiro banho integral que tomavam na vida!

Mas vamos agora à inspeçáo militar p. d., que se realizava no dia seguinte, num quartel (Coimbra ou Abrantes):

(...) "Primeiro, conferir as identidades, depois a avaliação física. Depois de totalmente desnudados e postos em fila ia-se aguardando a vez de serem inspeccionados pelo médico. De vez em quando, algum da fila empurrava com força o da frente fazendo com que todos batessem com o pénis nas nádegas doque lhe seguia à frente. De imediato se ouvia, o que seria natural ouvir por parte dos soldados que por ali estavam, cada um de uma tropa especial, tentando captar voluntários para alguma das suas especialidades: "cambada de paneleiros!".

"O médico lá perguntava se tinha alguma doença, mandava o mancebo rodar 180º, via-lhe as unhas dos pés e,  se não fosse cocho, e não lhe faltasse nenhum membro, da parte dele estava apto para todo o serviço. 

"Venha o seguinte, e assim por diante.

"Depois seguiam-se os chamados 'testes psicotécnicos', diferentes para cada um dos grupos, separados logo ao início. A primeira pergunta para o grupo maior era, invariavelmente, se sabia ler e escrever e depois seguiam-se umas perguntas retóricas, orais, para avaliar as capacidades cognitivas dos mancebos. Aí é que alguns eram logo mandados afastar da fila. 

"Seguiam-se os testes de destreza manual e capacidade visual. Não convinha esforçar-se muito nestas provas, porque poderia ir parar a atirador especial e em tempo de guerra, não era nada conveniente. 

"Também não resultava de nada a estratégia, que alguns praticavam, de errar tudo e não dizer coisa com coisa, para ver se eram colocados de lado. Os sargentos que acompanhavam os mancebos já conheciam todo o tipo de música e de nada valia fazerem-se de malucos. 

"O resultado das inspecções ainda era noticiado antes do almoço, maioritariamente, no tempo da Guerra Colonial, até os que tinham amputado o indicador direito ficavam apurados para todo o serviço, o outro dedo também servia para puxar o gatilho das G3, ou o das velhinhas Mauser." (...)

A tropa dava o almoço...e no fim o oficial de dia entregava a cada mancebo um papel onde constava o resultad9o da inspeçáo (apto ou não apto)  e ," ao que tinha trazido os documentos entregues pela Câmara, um envelope fechado para devolver ao secretário do município".

Toda a papelada em ordem, um novo salvo-conduto era entregue para  o regresso a Marvão, de comboio... 

 Os pormenores do regresso a casa  têm, inegalvelmente interesse etnográfico ou documental;

(...) "Como combinado, o tocador de concertina, já aguardava a chegada do grupo. Agora era altura de começar a correr todas as tascas por onde se ia passando e, em tempo, quase porta sim, porta não, havia uma taberna no concelho de Marvão. As pandeiretas, nas mãos da rapaziada, tentavam acertar o compasso com o som que da concertina saía e lá se ia provando o tinto ou o branco de cada taberna da Beirã.

"Como o baile estava combinado para a Sociedade de Santo António das Areias, havia que transportar o grupo até à outra aldeia. A camioneta de caixa de carga que os havia levado ao banho purificador no Rio Sever, volta a ser contratada para o trajecto de retorno à aldeia. 

"Contudo, havia que parar em todas as tabernas que pelo caminho existissem. Nos Barretos e na Ranginha a paragem era obrigatória, por aí havia onde molhar a garganta. À entrada de Santo António a rapaziada saltava da camioneta e aí juntavam-se ao grupo os convidados dos mancebos. Com a concertina à frente o grupo fazia o esforço de peregrinar por todas as tascas para provar a especialidade de cada uma. 

"Estranhamente, do grupo, desapareciam os que tinham recebido fita de inapto. Essa fita representava o sinal de incapacidade física ou mental e nenhum dos contemplados com esse 'estigma' queria expor-se à comunidade, embora, no tempo da Guerra do Ultramar, fosse invejada pela maioria" (...)

Conforme o número de mancebos apurados, em cada ano, assim era o local da janta.

(...)  Anos havia em que uma cozinheira era contratada para fazer o jantar e rapidamente se montava na  Sociedade uma sala para aí se apreciar o petisco e continuar a matar a sede. Se o grupo era mais pequeno, então o frango assado previamente acertado com o Ti Saul servia perfeitamente e o vinho que ele produzia combinava porque até não era nada mau!" (...)

5. Seguia-se depois o tão ansiado "Baile das Sortes"...

(...)  A organização desse baile era da total responsabilidade do grupo das Sortes que pagaria ao tocador de concertina, ou nalgumas ocasiões, a um 'conjunto musical', geralmente o que nessa altura estava constituído com gente da aldeia (famílias Lança, Mota e Gavancha e eventualmente mais algum membro).

"Por volta das 10h30m, praticamente toda a aldeia, sobretudo as moças casamenteiras, sempre acompanhadas pelas mães, começavam a encaminhar-se para a Sociedade e a ocupar preventivamente, os lugares mais visíveis. 

"Por norma, à volta do salão de baile, pelo menos duas filas de cadeiras ou bancos eram organizados. Na primeira fila, as moçoilas casamenteiras, respaldadas na retaguarda pelas vigilantes mães, disfarçadamente, tentavam descuidar-se um pouco com a saia que deixava adivinhar qualquer coisa dois dedos acima do joelho. 

"Com os vestidos de cores quentes a condizer com a ocasião, o salão começava a compor-se de cabeleiras acabadas de sair do secador e com os diversos aromas emanados dos perfumes que cada jovem tinha comprado numa das lojas de Valência de Alcântara." (...)

Num ambiente em que o álcool tinha um efeito desinibidor, à rapaziada que exibia a fita de apurado nas sortes tinha, naturalmente, o privilégio de abrir o baile. Os primeriso passos de dança eram dessa rapaziada, embora o baile fosse aberto a toda gente da terra.
 
O "protoloco do baile" não era muito diferente do de outras terras por esse país fora, naquele tempo:

(...) "Alguns, que já tinham namoradas, iam directamente buscá-las, com a devida licença de suas mães. Outros, que par fixo ainda não tinham, lá se iam afoitando às moças mais vistosas da sala, com o já gasto 'a menina dança?', certos de que nessa noite aos rapazes das sortes 'tampa' não se dava. "

Vale a pena continua a citar a descrição bastante colorida e vida do "baile das sortes":

(...) "E o bailarico lá começava. O cheiro a perfume espanhol que as raparigas transportavam, começava a misturar-se com os odores a álcool que cada mancebo consigo trazia, mas que o som da música e a alegria geral tudo abafava. 

"De quando em vez ouviase, o já costumeiro, 'bota cá licença', e trocava-se de par. A sala enchia-se de cores que rodopiavam ao som da música. Menos vezes do que os espectáveis, lá tocavam os tão desejados 'slows'. O rodopio dava lugar a curtos e apertados passos de dança e o salão parecia crescer. O centro do espaço apertava-se e cada um chegava-se ao
máximo ao seu par. 

"Quando algum par aquecia um pouco mais via-se entrar em cena o Ti Garlito, funcionário da Sociedade, com a caninha na mão que com ela tocava no ombro do rapaz e com voz, de quem autoridade para isso tinha, dizia, 'vamos lá a afastar um pouco'. 

"O par, algo atabalhoadamente, afastava-se um pouco. A rapariga espreitava para a cara da mãe que lhe fazia sinal de quem, depois lá em casa, alguma coisa teria para dizer". (...)

Era também uma excelente ocasião para se arranjar madrinhas de guerra e namoradas:

(...)  "Muitas 'Madrinhas de Guerra' se arranjavam nessa noite inesquecível, muitos namoros começavam e promessas de casamento após o regresso da tropa ficavam aprazados.
 

6, Mas tudo tem um fim...  Em 1999, é decretado  o fim do Serviço Militar Obrigatório (com efeito a partir de 2004)... Cria-se, em alternativa às "sortes" o Dia da Defesa Nacional. Desta vez, portugueses e portugueses que em cada ano perfazem 18 anos,  passam um dia num quartel, para terem um "cheirinho" do que é a tropa... 

É também a ocasião para o Exército recrutar voluntários, nomeadamente para as tropas especiais.

E arremata o autor: 

" Diga-se, em abono da verdade, que este aliciamento, até agora, não tem surtido o efeito desejado, porque dizem os que por lá andam que qualquer dia são mais os generais que os soldados."

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25829: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (29): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 (Francisco Baptista, ex-alf mil inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)

sábado, 10 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25829: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (29): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 (Francisco Baptista, ex-alf mil inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)

Capa do livro do Francisco Baptista,  "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor,  2019, 388 pp.)


Francisco Baptista 

(i) ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); 

(ii) natural de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Nordeste Transmontano;

(iii)  é autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor, 2019, 388 pp.);

(iv) integra a nossa Tabanca Grande desde 19/8/2013;

(v) tem cerca de 160 referências no nosso blogue;

(v) autor das séries: 

  • Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71); 
  • Brunhoso há 50 anos.

1.  Diversos camaradas já abordaram aqui, ao longo dos vinte anos do blogue, o tema da ida às sortes (ou, seja, a inspeção militar) (*)... Todos passámos por essa "experiência", no ano em que perfazíamos os 20 anos. Alguns ainda guardam memórias vivas  desse "rito de passagem" que, naquele tempo, para a nossa geração, representava verdadeiramente a entrada na vida adulta... 

Deixavam de nos chamar mancebos, rapazolas, gaiatos, canalha, meninos e moços, adolescentes, imberbes, etc., e  passávamos a ser adultos, homens de barba rija (... mesmo que a maioridade, legalmente, fosse aos 21 anos... até 1977!).

E tinha outras consequências, não apenas simbólicas, mas mais práticas,  para a grande maioria de todos nós o ser considerado "apto para todo o serviço militar", num tempo em que estava em vigor o SMO (Serviço Militar Obrigatório) e o país estava em guerra a milhares de quilómetros de casa, em Angola, Guiné e Moçambique... Dali a um ano, no máximo, éramos chamados para fazer a recruta, jurar bandeira, tirar uma especialidade, ser "mobilizado para o ultramar", formar uma unidade (batalhão) ou subunidade (companhia), fazer IAO, embarcar, desembarcar, pegar na G3 e ir para o mato, matar, morrer...

Há muita gente com muito talento para  a escrita no nosso blogue. Há textos que tèm direito a ser relidos como este, do Francisco Baptista, perdido na série "Estórias avulsas" (**). Esperemos que seja mais um incentivo para outros mandaram também, por escrito, para a publicação, agora no píncaro do verão, na série "Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços"... as suas lembrança desse dia da  "ida às sortes"! 



Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 

por Franscisco Baptista


Éramos homens, tínhamos força, confiança, tínhamos sonhos, queríamos conquistar as mulheres, queríamos conquistar o mundo, queríamos ser nós a governar a nossa vida.Éramos capazes de transportar sacos de trigo de 80 quilos ou mais, de ceifar três sucos de trigo como os mais velhos, de varejar as oliveiras e cavar tanto as oliveiras como as vinhas.

Sabíamos lavrar com vacas como com bestas, sabíamos semear o trigo e o centeio, plantar as batatas, as abóboras e as hortaliças.

Estávamos confiantes e preparados para entrar na sociedade dos adultos, era o nosso dia e toda a aldeia de Brunhoso iria ter orgulho nos seus filhos que tinham atingido a maioridade.

Tínhamos 20 anos e tinha chegado o dia das sortes.

Pela manhã fomos todos, a pé, até à vila, eram só cinco quilómetros e nós estávamos habituados a calcorrear os carreiros e caminhos do termo da aldeia. No dia anterior tínhamos ido todos, como a tradição mandava, tomar banho ao ribeiro da Lagariça.

Vestimos as nossas melhores roupas porque o dia era solene e de festa. Éramos quatro nascidos em 1947, o Amílcar, o José Luís, o Ernesto e o Chico (sou eu, pronuncia-se quase tchico por lá).

Outros quatro já tinham emigrado, eram eles, o António Borges e o Adelino para o Brasil, o José Maria e o Manuel da Glória para Angola.

Os meninos mortos de 1947, pois morriam tantos nesse tempo, não eram nomeados, nem chorados, pois eram anjos que tinham ido diretamente para o céu. Importa falar dos vivos e de todos, presentes ou ausentes, porque a tradição estabelecia uma irmandade entre todos os nascidos no mesmo ano.

Os da mesma idade eram os praças.
A razão deste tratamento teria a ver com o facto de todos assentarem praça no mesmo ano. O dia das sortes significava naquelas terras o dia da passagem à idade adulta, o dia da emancipação.

A inspeção não foi muito demorada. Numas instalações que a Câmara Municipal punha à disposição das Forças Armadas, despíamo-nos e íamos passando pelos médicos militares que avaliavam a nossa masculinidade e a nossa saúde.

Ficamos os quatro aptos para o serviço militar o que era sempre motivo de contentamento para o grupo, pois ninguém gostava de ser excluído. Era sinal de saúde e de que passávamos a ser cidadãos capazes de defender a nossa terra.

Ficar excluído era um anátema terrível que marcava um homem pela vida fora.

Ainda recordo tal como ele contava, a história da inspeção do "tio João Passarinho" que ouvi várias vezes, pois ele trabalhou muitos anos à jeira na casa do meu pai e já tinha trabalhado antes na casa dos meus avós paternos.

O tio João Passarinho era um homem valente e trabalhador, que sabia fazer todos os trabalhos do campo melhor do que ninguém. Desde cortar a erva nos lameiros à gadanha para feno, a tirar a cortiça dos sobreiros, ele sabia fazer tudo com destreza. Era todavia um homem franzino e baixo, com um metro e cinquenta de altura ou pouco mais. Viveu até aos oitenta ou mais anos e trabalhou sempre enquanto pôde.

Nunca teve férias nem reforma, como a maioria dos trabalhadores do campo desse tempo. Hoje se fosse vivo já teria mais do que 110 anos pois conheço um filho dele, o Joaquim, muito parecido com ele que apesar da idade avançada continua a trabalhar, já com 85 anos.

O tio João talvez nunca conformado por ter ficado isento do serviço militar, nos anos 20 ou 30 do século passado e porque gostava de efabular, contava que quando foi visto pelo médico militar no dia da inspeção ele lhe disse:

- Aqui está um homem bem constituído, alto, forte, espadaúdo. Temos um marinheiro!

Nunca eu o contrariei quando ele fazia estas afirmações e ouvi-as várias vezes. Tinha muito respeito por ele, desde menino fui criado na companhia assídua dele, era um homem respeitável, bondoso e trabalhador.

Sempre soube que dizia uma grande mentira, bastava olhar para ele, mas ele tinha direito a ter os seus defeitos e essa mentira, como outras em que era pródigo, não prejudicava ninguém.

Comprámos quatro foguetes e muitos rebuçados e regressámos à aldeia. Quando estávamos a um quilómetro, numa colina sobranceira, lançámos o primeiro foguete, os outros foram lançados já na aldeia. 

Demos a volta a todas as ruas a distribuir os rebuçados pelas raparigas, sendo naturalmente mais saudados pelas da nossa idade. Éramos amigos, tínhamos crescido perto uns dos outros, tínhamos entrado na escola ao mesmo tempo, tínhamos sobrevivido aos desejos próprios da adolescência com estoicismo e às restrições que uma moral rígida imposta, através da mãe, do pai, do padre, da professora e do falar do povo nos era imposta.

Por elas, vá lá e pelas outras, tínhamo-nos batido, em dias de festa ou de baile, com os rapazes duma terra vizinha. Muitas vezes os escorraçámos à pedrada, porque elas eram nossas e eles não se podiam atrever a conquistá-las ou a dançar com elas se algum dos nossos não gostasse. Toda a aldeia nos saudava com agrado, éramos os heróis do ano.

Fomos todos almoçar a casa dos meus pais, pois a minha santa mãe quis convidar-nos e fez-nos um almoço melhorado, um almoço de dias de festa.

Há dois anos o José Luís falou-me nesse almoço que eu já não recordava. Dos quatro que fomos à inspeção, o Amílcar e o Ernesto foram mobilizados para Angola, eu pra Guiné, o José Luís como foi sempre um bocado despistado, deve ter perdido o barco que o levaria para algum lado e fez a tropa por cá.

Quando acabou a tropa eu emigrei para o Porto os outros três para França. Dos outros, o António Borges, que nunca mais vi desde a adolescência continua no Brasil, o Adelino continua por lá também tendo-o visto nas duas vezes que ele visitou a aldeia. O José Maria e o Manuel da Glória regressaram de Angola com a descolonização, tendo o primeiro infelizmente morrido o ano passado de doença em Lisboa onde se tinha estabelecido com um negócio de padaria-confeitaria.

Ao Manuel da Glória nunca mais o voltei a ver, disseram-me que morará na Beira Alta ou Beira Baixa.

As "raparigas" da nossa idade, que eram dez, somente uma mora na aldeia depois de ter vivido cerca de 30 anos em França.

Só uma delas foi além da quarta classe tal como eu. Pertencia a uma família numerosa, com poucos recursos, mas era uma pessoa muito inteligente e, sendo sobrinha bastarda da professora, que pertencia a uma das três casas grandes da terra, terá sido provavelmente ela que a encaminhou para um convento de freiras. Na maioridade deixou o convento, constituiu família e passou a dar aulas no ensino secundário.

Desloco-me com alguma frequência à aldeia para relaxar no contacto com a natureza e sentir o ar mais puro, quente ou frio, conforme a estação, mas sempre agradável. No inverno chego a sentir saudades do ar frio e seco da minha terra. Da varanda da casa, agora quase sempre vazia, avista-se grande parte do casario da aldeia bem como pinheiros, sobreiros e alguns freixos que fazem parte da área agrícola e florestal da terra, e ao longe a paisagem típica dos montes e vales de Trás-Os-Montes que se estende por muitos quilómetros.

Ouço o silêncio duma terra que foi morrendo, que eu por vezes procuro preencher com memórias de há quarenta ou cinquenta anos, e então ouço o barulho próprio de uma casa onde viviam nove pessoas, o palrar das vizinhas, os gritos das brincadeiras dos garotos, o chiar dos carros de bois, os sons dos diferentes animais domésticos e o pregão da minha vizinha, a tia Clementina, a anunciar a sardinha.

Um caudal de memórias como o do Rio Sabor na primavera, que corre num dos limites da área agrícola da freguesia. Recordo estes rapazes e raparigas, conterrâneos da minha idade, e as vidas duras e difíceis que tiveram na aldeia e depois nos caminhos da diáspora.

Dizer que seriam pobres seria uma ofensa para eles, pois por lá os pobres eram os miseráveis que tal como os ciganos andavam a pedir de porta em porta. Os pais deles teriam uma pequena horta, algum campo para semear trigo e talvez algumas oliveiras. O sustento para a família vinha sobretudo das jeiras diárias, em tempo de colheitas para os lavradores. Sei que muitas vezes só comiam pão, batatas e caldo, mas nunca os ouvi queixar-se a mim que pertencia a uma família que sem ser rica era mais abastada.

Mas falar sobre esse mundo antigo e quase feudal é um assunto que dá pano para mangas. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_____________

Notas do editor LG:


(*) Excerto de 4 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)


Guiné 61/74 - P25828: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (28): Inspeção militar: "Ir às sortes", Sardoal, julho de 1972 (Luís Manuel Gonçalves, 1952-2019) (Excerto)


Sardoal é uma terra ribatejana que merece a nossa visita. 

Tinha c. 7,1 milhar de habitantes em 1950, hoje tem metade (3,5 mil). 

Perdeu seis filhos na guerra do ultramar / guerra colonial  (2 em cada um dos 3 teatros de operações).





"Ir às sortes", Sardoal, julho de 1972 

por Luís Manuel Gonçalves (1952-2019) 
(Excerto)



(...) A Inspecção Militar foi, durante muitos anos, um acontecimento de grande impacto social no concelho de Sardoal, e todos os anos mobilizava largas dezenas de mancebos para um ritual que marcava os mancebos para o futuro, porque cumprir o serviço militar não era uma rotina, especialmente em tempo de guerra, do que a Guerra Colonial é o exemplo mais recente.

Na forma como se descreve para 1839 ou com formas diferentes,  as “sortes” ou inspecções militares realizavam-se, anualmente, na Vila de Sardoal, nos Paços do Concelho (...)

A última inspecção militar que teve lugar no concelho de Sardoal e nos seus Paços do Concelho ocorreu em julho de 1972 e nela participaram os mancebos nascidos em 1952 (nos quais o autor destas linhas se incluía). 

Estava-se no auge da Guerra Colonial que se arrastava desde 1961 e que exigia contingentes militares cada vez mais numerosos. Só os jovens com graves deficiências físicas ou psíquicas ficavam “livres”, o que significava dizer dispensados de cumprir o serviço militar (em 1972, tanto quanto me lembro, foram apenas dois), podendo ficar “esperados”, voltando à inspecção no ano seguinte. 

Nos “apurados”, a maior parte era para todo o serviço, havendo, no entanto, os apurados para o serviço auxiliar, se portadores de uma deficiência física ligeira, de que a mais frequente eram os “pés chatos”. 

No final da inspecção, os inspeccionados iam à “Loja do Tramela”, também conhecida por “Casa do Pombo” comprar fitas, verdes e vermelhas para os “Apurados”, que prendiam à lapela com um alfinete, havendo de outras cores para as situações de “Livre” ou de “Esperado”, mas já não me recordo quais eram essas cores. 

Recordo-me de ninguém querer ficar “livre” porque, segundo se dizia, era um sinal de menor hombridade e virilidade.

Como já referi, o dia da Inspecção Militar era um dia importante na vida dos jovens rapazes e, de certa forma, marcava a passagem da adolescência para a idade adulta. Nas décadas de 40 e 50 do século XX era o dia em que muitos rapazes estreavam o primeiro fato completo, o “fato da inspecção”, só voltando a estrear outro no dia do casamento. (...)
_______________

Observ.:

(*) "Luís Manuel Gonçalves (Entrevinhas, 1952 — Sardoal, 2019) interessou-se pela história do Sardoal enquanto professor do Externato Rainha Santa Isabel de Sardoal (1975-1980), tendo dedicado ao seu estudo uma parte significativa da sua vida.

Foi também associativista, com destaque para a direção do GETAS – Centro Cultural de Sardoal, entre 1986 e 1992. Foi ainda Vereador a Tempo Inteiro da Câmara Municipal de Sardoal entre janeiro de 1994 e outubro de 1999, seguindo como Vice-Presidente até 2009.#

Autor da página Sardoal com Memória.

Email de contacto do editor da página Memórias Sardoalenses: goncalves.m.tiago@gmail.com"


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25826: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (27): A inspeção militar: "Ir à sortes", Sabugal, 1968 (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1969/71)

Guiné 61/74 - P25826: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (27): A inspeção militar: "Ir à sortes", Sabugal, 1968 (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1969/71)



Foto nº 1 > Sabugal > 1968 > Briosos mancebos acabados de ser specionados e apurados  para  todo o serviço militar... Aqui a cavlo, com saudosismo do passado. Foto tirada no dia da inspeção, no Sabugal, junto ao antigo edifício camarário onde teve lugar a inspeção. É também visível, àq esquerda,  o edifício da antiga prisão.


Foto nº 2 > Sabugal > s/d (c. 2013) > Largo das Eiras, no centro da aldeia de Vale de Espinho. Nas redondezas não havia outra povoação que tivesse um largo tão grande, embora já tenha sido roubado pelas construções da estrada, escola, lar de idosos, junta de freguesia, etc.








Fotos nº 3, 3A e 3B > Sabugal > 1968 > Tirada em 1968, no Freixial, junto ao rio Côa, durante o assado, onde estão a meia dezena de mancebos que foram nesse dia à inspeção, juntamente com juventude convidada e onde não podia faltar o meu professor da 4.ª classe, Zé André, que está de pé no canto direito da foto, com camisa preta.






Fotos nº 4. 4A e 4B > Castelo Branco > BC 6 > Dezembro de 1968 > O início da Guerra Colonial praticamente acabou com a tradição festiva do dia da inspeção. Provocou uma reviravolta de 180 graus no valor do conceito de apto e inapto para o serviço militar. É surpreendente, que no espaço de dois ou três anos o conceito de opinião que se tinha da seleção de apto, que era considerado o boníssimo, se tenha invertido o valor, e o apto passou a ser o maligno, pois a partir do início da guerra o que se valoriza, no querer dos familiares e mancebos, é que fiquem inaptos para o serviço militar, a condição de inapto passou a ser o ótimo! São os dinamismos sociais da adaptação dos interesses!

Fotos (e legendas): © José Corceiro (2013(). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José Corceiro (ex-1.º cabo trms, CCaç 5, "Gatos Pretos" , Canjadude, 1969/71): 

(i) natural de Sabugal

(ii) mora em Lisboa; 

(iii) era de rendição individual (maio de 19969/julho de 1971); 

(iv) integra a nossa Tabanca Gradne desde 25/12/2009; 

(v) tem 62 referências no nosso blogue;

(vi) são 36 os nossos camaradas do Sabugal que morreram na guerra do ultramar / guerra colonial (segundo a preciosa informação do Portal UTW -  Dos Veteranos da Guerra do Ultramar);

(vii) o concelho raiano do Sabugal perdeu 3/4 da população em 70 anos (era de 43,5 mil em 1950, é de cerca de 11,3 em 2021)


1. Excerto do poste P7737 (*), sobre o dia de "ir às sortes",no Sabugal, terra do forcão, terra da capeia arraiana, mas também terra de Ribacoa, terra do demo, terra do lince, e  terra dos cinco castelos (incluindo Sortelha).... E diz a quadra popular: “Castelo de cinco quinas /, só há um em Portugal,/ Fica à beira do rio Côa,/ na vila do Sabugal”.

A inspeção militar: "Ir à sortes", Sabugal, 1968

por José Corceiro


(...) Tanto quanto me lembro desde a minha meninice, que na minha aldeia, Vale de Espinho, concelho de  Sabugal, distrito da Guarda, o dia da inspecção militar ou sortes era um dia festivo para toda a povoação, mas com proeminente destaque para os mancebos naturais da aldeia, que completassem nesse ano o 20.º aniversário, pois a festa era deles.

Nos anos 1950 e princípios de 1960, na minha aldeia, o grupo de rapazes que iam anualmente a dar o nome para a tropa ultrapassavam sempre as duas dezenas, ou bem mais, e era raríssimo que quando chegasse o dia das sortes algum deles faltasse.

O dia da inspecção revestia-se dum certo ritual, tradicional. típico, que continha valor e particularidades para um estudo etnográfico.

Os preparativos para o esperado dia iniciavam-se com algum tempo de antecedência, pois era determinante que no dia da festa tudo corresse de feição. Sempre foram perceptíveis ao longo dos anos, explícitos laivos de ciúme, meio encapotado é certo, mas que levava alguns dos ex-inspeccionados a vangloriar-se ao dizer que a festa deles tinha sido a melhor. Ora, este espírito de geração competitiva impulsionava a rapaziada a um apego de brio viril, que os empenhava em melhorar a sua festa em comparação com as dos anos anteriores.

Para muitos dos jovens, o dia da inspeção seria também a primeira vez que iriam estrear um fato novo, composto por calças, casaco e colete (terno), pois até ao presente não tinham tido a possibilidades de comprar o tecido e mandá-lo confeccionar no alfaiate da terra, visto ser escasso o suporte económico da família.

Era também provável que a partir dessa data, o jovem pudesse começar a amealhar um pezinho de meia, fruto de algum trabalho que executasse com direito a remuneração, jornal ou a passar contrabando, pois até esta altura tudo o que tinha ganho reverteu a favor do agregado familiar.

Quando o esperado dia chegava, nada podia falhar. O fato estava à espera de ser vestido…

Os foguetes já tinham sido comprados e entregues ao mestre-de-cerimónias, que os utilizava conforme a mensagem que queria anunciar, lançando-os para estoirar no ar. A primeira mensagem é logo cedinho, às 05h00, a lembrar que é preciso deixar a cama e levantar, para aqueles que nela se deitaram, nessa noite,a porque alguns fizeram direta. Pois têm que se apressar, ainda há um percurso longo de 16 quilómetros que é preciso trilhar, sempre a cavalgar, até chegar ao Sabugal, concelho da freguesia, onde tem lugar a inspeção.

O cavalo, adereçado com os seus melhores arreios estava pronto e à espera. Ricamente aparelhado. A sela, a cinta, o cabresto, as rédeas e o freio foram diligentemente limpos e engraxados, as fivelas e os estribos foram polidos até ficarem a brilhar, sem esquecer as patas do equídeo que foram aparadas, limadas e convenientemente ferradas, pois há mais de 30 quilómetros para calcorrear, ida e regresso, com o mancebo sempre montado e a espicaçar, e quiçá poderá surgir algum amigo mais íntimo que o queira apadrinhar e arrisque a boleia no lugar da garupa, e o ritmo tem que ser constantemente a trotear.

O acordeonista foi atempadamente contratado, personagem aglutinadora e imprescindível, que nunca pode faltar esperando-se sempre dele alguma novidade musical, para excitar o bailarico e a festa abrilhantar.

Os vitelos ou cabritos, cuja quantidade depende do número de mancebos e seus convidados, foram antecipadamente encomendados ao açougueiro, e já estão prontos e preparados com algum tempero à espera para se dar início ao apetecido assado, realizado sempre em local aprazível, junto à margem do rio Côa e por tradição no sítio do Freixial.

Por volta do meio-dia o povo aguardava impacientemente, no Largo das Eiras, a chegada do mensageiro, que se antecipava ao regresso dos mancebos. O arauto, açoitando o seu cavalo, incutia-lhe celeridade, para se adiantar e mais rápido chegar para a notícia poder dar, metia-se por atalhos e veredas para o caminho encurtar, e lá chegava ele ofegante à freguesia onde revelava, com voz de pregão, os nomes dos mancebos que ficaram livres e os que foram apurados para o serviço militar.

Quando se ouvia o nome dum mancebo que ficou apurado era sempre um momento de regozijo, algazarra geral, com aplausos, acompanhados de vivas e parabenização à família, contrastando com o comportamento da multidão que, ao ouvir o nome do mancebo que ficou livre, reagia com tristeza e constrangimento, sobretudo os seus parentes.

Mais uma largada de foguetes, anunciavam que a comitiva dos heróis estava prestes a chegar. A multidão eufórica, que não tinha arredado pé do Largo das Eiras, estava curiosa e queria ver ao vivo a chegada dos briosos mancebos. 

Uns ostentavam com orgulho e altivez na lapela do casaco a insígnia, fita verde, que os declarava aptos para o serviço militar. Esta distinção podia ser um trampolim para uma vida melhor, com mais possibilidades para um emprego, quiçá Polícia, Guarda-Fiscal ou Republicana, ou Exército, ou alguma Repartição Estatal.

A fita vermelha era colocada nos inaptos, e notava-se neles um ar de acanhamento, quase vergonha, por suportar na lapela o estigma que os remetia para a exclusão de prestar serviço militar, era como que o apontarem-lhes que eram débeis, ou tinham uma deficiência física, e isso não era tranquilizante para o seu ego.

Depois de dadas as boas-vindas, procedia-se a mais uma largada de foguetes, a convidar toda a povoação para que houvesse união e acompanhassem festivamente os mancebos, que iriam desfilar montados nos seus cavalos, ao som da concertina, pelas ruas da procissão. Findo esse percurso, duma maneira geral, toda a juventude se dirigia para o local onde os esperava o assado, já devidamente confeccionado.

Manjar ansiosamente esperado, a desejada carne grelhada era um pitéu divinal. A carne é seleccionada, excelentemente grelhada com apuro na brasa, bastante condimentada com um molho assaz apimentado, comida acompanhada de batata bem apaladada acabada de tirar da terra e assada na borralheira, tudo regado convenientemente com molho, iguaria que provoca no mais prudente dos mortais anseios que o incitam a deixar-se seduzir, e a exagerar no beber a boa pinga, que inebria qualquer convidado fazendo-o esquecer as amarguras do dia-a-dia, até surgir um comensal mais inspirado, que se encoraja e ousa desafiar a qualquer um para uma salutar desgarrada… e a partir daqui tudo incita a que a folia seja inflamada!

E toda a tarde era passada em farra agitada, sempre regada de boa pinga em ambiente de animado bailarico, onde não era permitido a nenhuma moça recusar dançar com qualquer que fosse o mancebo dos inspeccionados, uma recusa dessas, era interpretada como ofensa familiar.

Com o surgir da guerra nos anos 1961/1962, a juventude da minha terra abandona a aldeia, em massa, e vai a salto para o estrangeiro. O número dos mancebos que anualmente iam a dar o nome para a tropa caiu das duas ou três dezenas que eram habituais, para menos de meia dúzia.

Continuaram-se a comprar vitelos, cabritos e até porcos inteiros, para satisfazer a gula dos falsos profetas que só anunciavam desgraça e tinham bem estudada a arte da mentira, pois aos crédulos muito prometiam, mas nada faziam. Convenciam os inocentes que lhes livravam os filhos da guerra, e alguns caíram na ratoeira, mas cedo se convenceram que nada lhes tinha sido feito. E lá vinham a terreiro os profetas com argumentações abonatórias, utilizando desculpas esfarrapadas… (**)

José Corceiro

PS1: - Significado do termo “sortes” aqui utilizado, que creio estar certo, pela ideia que me ficou segundo aquilo que ouvi noutros tempos:

Antigamente, devido ao grande número de jovens que se apresentavam à inspecção, eram muitos os que ficavam aptos, e para os aptos não havia lugar para todos no serviço militar. Para solucionar o excesso dos já seleccionados, procedia-se a um sorteio aleatório entre os que tinham ficado aptos, para assim se apurar aos que cabia a sorte de cumprir o serviço militar.


PS2 -  Por terem já passado tantos anos, creio que me terei enganado no significado simbólico, que era atribuído às cores das fitas que eram colocadas na lapela do casaco, no dia da inspecção, para distinguir os mancebos que ficaram esperados, livres, ou apurados para o serviço militar.

Falei com um conterrâneo da minha geração, que me lembrou: A fita vermelha que simbolizava apuramento para o serviço militar, fita verde que ficava esperado, ou seja que no ano seguinte tinha que ir novamente à inspecção, e fita branca que ficava livre do serviço militar. Penso que assim estará correcto.

 José Corceiro | 7 de fevereiro de 2011 às 17:57

(Seleçáo, revisão / fixação de texto, negritpos: LG)
 
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(**) Último poste da série > 9 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25823: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (26): A inspeção militar: "ir às sortes", em Alcanena, em 1 de junho de 1965 (Carlos Pinheiro, ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, Bissau, 1968/70)

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25823: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (26): A inspeção militar: "ir às sortes, em Alcanena, em 1 de junho de 1965 (Carlos Pinheiro, ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, Bissau, 1968/70)



Alcanena  > 1 de junho de 1965  > Reprodução do Cartaz do Baile da Inspecção de 1965, devidamente selado e assinado por um companheiro que já nos deixou, o Arlindo Abrantes.




Alcanena  > 1 de junho de 1965  > Mancebos de 1945 - Fotografia do jantar da véspera da Inspecção no Restaurante do “Primo” Necas que nessa noite esteve por nossa conta.



Alcanena  > 1 de junho de 1965  >Fotografia do palco do baile da Inspecção de 1965, com dois Conjuntos, no Pátio do lagar de azeite da Viúva de José Bento, junto à Igreja, 

Fotos ( e legendas): © Carlos Pinheiro (2024. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Carlos Pinheiro (ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, Bissau, 1968/70: 

(i) de seu nome completo, Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro

(ii) é natural de Alcanena e reside em Torres Novas; 

(iii) assentou praça na EPC em Santarém em 10 de outubro de 1967: 

(iv) chumbou  no CSM, como tantos outros; 

....  (v) tirou a especialidade no RTM no Porto; (vi) veio para o  BT em Lisboa; (viii)  foi colocado no QG da 2.ª RM em Tomar;  (ix) foi mobilizado pelo RI 15 de Tomar; (x) embarcou  em rendição individual destinado ao BCAÇ 1911; (xi) passou a sua comissão no Centro de Mensagens do STM no Quartel General de Bissau; (xi) integra a nossa Tabanca Grande desde 25/10/2010; (xii) tem 83 referências no nosso blogue.


Data - 03/08/2024, 19:28
Assunto -  Inspecção Militar 


A Inspecção Militar era um acontecimento local, regional e nacional pois era aí que eram lidas “as sortes” dos rapazes que nesse ano faziam vinte anos, os “mancebos”, já em linguagem militar. 

A mesma era feita nos primeiros dias de Junho no ano em que os “mancebos” completavam 20 anos. Não era preciso fazer-se inscrição. Eles não se esqueciam de convocar a malta através de edital e ninguém faltava porque era perigoso.

De qualquer forma, sempre havia um ou outro que antecipadamente, à socapa, dava à sola e ia até França. Era a época da emigração clandestina, a “salto” como se dizia, porque não nos esqueçamos, o país estava em guerra em três frentes – Angola, Guiné e Moçambique.

Mas o acto da Inspecção em si merece ser recordado. Em Alcanena, a malta comparecia no Salão Nobre do Edifício dos Paços do Concelho. Depois de identificados, passado pouco tempo era distribuído um papel para ser apresentado aos médicos militares que estavam no Gabinete ao lado, o Gabinete do Presidente da Câmara, mandavam despir o pessoal e ali estavam, todos nus com um papel na mão, até à chamada ao Gabinete.

Os mancebos eram medidos, pesados, auscultados e lá vinham todos contentes, “apurados” para todo o serviço militar. Logo ali, havia sempre um soldado ou um cabo que vendia uma fita verde e vermelha a significar o apuramento e que a malta, para ser bem referenciada, colocava logo na lapela do casaco do fato que era estreado nesse dia.

Os raros, raríssimos, que ficavam “livres” também tinham direito a uma fita, mas neste caso branca, que também era paga e nesse ano, em Alcanena, falando da freguesia, houve dois que ficaram “livres”,  sabe-se lá porquê.

Havia ainda os “esperados”, que passavam para o ano seguinte, porque não tinham peso, porque tinham peso a mais, ou por outro motivo qualquer. 

Depois o dia era de festa por um lado, mas por outro também de alguma preocupação acerca do futuro que já estava marcado, primeiro com a Índia e depois com a Guiné, Angola e Moçambique. Nesse dia havia almoço em casa com a família, mas o jantar era de convívio entre todos e o baile até às tantas estava garantido e era sempre muito concorrido.

Carlos Pinheiro

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Sobre a inspeção militar, vd. também:

4 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)


24 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P4075: O trauma da notícia da mobilização (2): No dia da minha inspecção, ali estava eu, em pelota... (Joaquim Mexia Alves)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje ignorados ou mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

Contos com mural ao fundo: 
nada como ter um bom pai

por Luís Graça

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (à compita), no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!... E era  competitivo!

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso velho mestre-escola, ou o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa. Como o Jorge,o Nando e todos os demais da sua geração...

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o historiador da terra, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o senhor Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado... uma amante! 

− Vinte e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho − confidenciou o Jorge.

− Era assim que os "industriais" faziam... para salvar as aparências... Mas… exilado, o Ulisses, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

  À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como se costuma dizer em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do 'Pandita' Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube isso muito mais tarde... Também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do senhor Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e promissores, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

− Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadamizada.− relembrou o Jorge.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. 

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamentos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era um fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros...).

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).  

− O senhor Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar, diziam as "cuscas" das betas.

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até por ter uma bomba da Shell).

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958 o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... 

Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verosimil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... 

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam,  preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores que os roubavam "à grande e à francesa"... 

Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, "antes que fossem ocupadas". 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. 

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico". 

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). 

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi  uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. Ficou na lista de espera, tendo de voltar à inspeção militar no ano seguinte.  A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1965 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, conservadora,   beata e amiga dos pobres. 

E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes. 

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o senhor Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos de réis era muito dinheiro...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá. Nunca fomos à bola um com o outro.

− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem um nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o  Fernando.

© Luís Graça (2023). Última revisão:  7 de agosto de 2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte