Mostrar mensagens com a etiqueta Carlos Lopes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Carlos Lopes. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24494: Notas de leitura (1599): A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se retomam as teses do historiador Carlos Lopes quanto à necessidade de ter sempre em conta, quando se estuda a história da Guiné-Bissau e a definição das fronteiras de 1886 o que era o Kaabu do século XIII ao século XVIII, como não se pode iludir a historicidade e os dados vitais do Kaabunké, a despeito das divisões criadas pelas potências coloniais. O Kaabú, herdeiro do Império Mali, desintegrou-se no século XIX mas a sua herança é um dado permanente que ultrapassa as fronteiras criadas por fatores exógenos, daí as manifestações independentistas no Casamansa, tentativas de golpes de Estado, circulação de produtos agrícolas em toda a região, resistências camponesas ao pagamento de impostos, as importantes correntes migratórias e a explosão cultural com origem na cultura Kaabunké. Como diz o historiador, há que encontrar uma fórmula para que nesta região de África se consiga integrar os espaços em harmonia com a sua história.

Um abraço do
Mário



A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes

Mário Beja Santos

Numa pesquisa recente na revista Soronda, n.º 10, de julho de 1990, na revista Lusotopie, n.º 1-2, L’Harmattan, 1994, encontrei dois importantes artigos de Carlos Lopes, o primeiro referente ao Kaabú do século XIII ao século XVIII e quais as suas relações de poder, o segundo alusivo aos limites históricos de uma fronteira territorial – o que aproxima ou demarca a Guiné Portuguesa da Guiné-Bissau.

Para Carlos Lopes é indubitável que o estudo da estrutura do estado da Guiné-Bissau leva a constatar que existe um cruzamento de várias conceções de poder: uma tradicional, da qual os Malinké ou Mandingas seriam talvez a principal raiz, uma outra ligada ao desenvolvimento de certos aspetos sociopolíticos durante a luta de libertação nacional, e ainda uma outra que obedece ao modelo clássico exógeno de Estado. Portanto o estudo de relações entre o poder antigo e o moderno. A estrutura do Estado Malinké situa-se na Gâmbia, no Casamansa e na Guiné-Bissau atuais, contribuíram de uma forma decisiva para que se possa fazer um estudo pormenorizado do que foram as estruturas políticas Kaabunké. Este espraiava-se entre a Gâmbia, o Casamansa, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo. Os navegadores dos séculos XV e XVI registaram esta região do Norte da Gâmbia e os cursos de água que ofereceram boas condições para a navegação, até aparecerem os obstáculos do Futa-Djalon. Era um território onde o eixo económico andava à volta da orizicultura de mangal, havia uma pequena indústria de extração do sal; o ouro de Bambuk também desempenhou um papel importante no desenvolvimento da região. Os rápidos existentes nos rios Gâmbia e Corubal garantiam fronteiras naturais que protegiam as rotas comerciais.

Observa o autor:
“Muitos historiadores consideram, no entanto, que esta região constituía uma espécie de beco sem saída do mundo Malinké, pois ela era apenas o ponto ocidental mais extremo do Império do Mali. Quando, no século XVII, o Mali desaparece completamente da cena, o Kaabú encontra-se no seu apogeu. A influência Malinké torna-se também cultural, e o grande processo de malinkização vai ser uma das grandes originalidades do Kaabú. Os viajantes que visitaram a região descrevem uma forte dominação Malinké, sem, no entanto, muitas vezes fazerem referência ao centro político deste poder – o Kaabú era o provável herdeiro da riqueza comercial que estava na origem do poder maliano”. E um tanto à semelhança do seu trabalho para tese de doutoramento, Carlos Lopes enumera a decadência do Kaabú no século XIX, a estrutura social existente no Kaabunké, as razões da decadência. Assim chegamos a um argumento muito caro a Carlos Lopes, a herança política Kaabunké, uma conceção original da relação espaço e poder.

E escreve:
“É possível constatar que as estruturas atuais dos estados atrás citados (Gâmbia, Senegal, Guiné Conacri e Guiné-Bissau) continuam impregnadas das inter-relações construídas pelo Kaabú ou (a partir do século XIX) em oposição à existência deste. Embora a ideologia da construção nacional na Guiné-Bissau seja sobretudo obra dos crioulos, isso não devia impedir o estabelecimento de certas alianças étnicas em função da história antiga dos povos da região. A memória contemporânea esquece-se que os sistemas políticos tradicionais outorgavam pouca importância ao controlo territorial centralizado. No sistema de gestão do Kaabú a regra de ouro era a descentralização. A territorialidade ganha uma dimensão política com a reestruturação do espaço imposta pelas novas formas de troca introduzidas pelos europeus, nos fins do século XVIII. É nesse momento que o Kaabú perde o seu controlo político, mas a sua influência histórica não será apagada facilmente”.

No que toca aos limites históricos da fronteira territorial, o historiador lembra que defende uma hipótese que não é muito popular: a de que a existência das delimitações territoriais atuais tem contribuído para historicidades cruzadas entre o que é hoje a Guiné-Bissau, Casamansa e Gâmbia. Neste seu trabalho, o autor argumenta que o território da Guiné-Bissau é uma realidade ainda mais artificial do que a Guiné Portuguesa. Existem fundamentalmente duas formas de ler a realidade guineense: uma privilegia a componente exógena baseada na presença e historiografia europeias, outra concentra-se na historiografia endógena, obviamente que esta colide com a anterior. Quanto à tese exógena, tem a ver com a presença europeia cinco séculos num território chamado Rios da Guiné, presença europeia de Portugal, França, Inglaterra e Holanda, isolados ou associados do comércio transatlântico. Logo os navegadores portugueses fizeram distinções na região entre o norte da Gâmbia e os chamados rios do Sul.

O modelo exógeno leva os líderes africanos a pugnarem por uma conjugação de progresso, modernidade e desenvolvimento de acordo com o modelo ocidental. Foi o tratado luso-francês de 1886 que dividiu o espaço Kaabunké e procurou uma identidade para a Guiné Portuguesa. O Movimento de Libertação Nacional jamais utilizou argumentos de extensão territorial, só reivindicava a unidade política com as ilhas de Cabo Verde que obviamente nada têm a ver com o espaço Kaabunké. A defesa que a direção do PAIGC fazia baseava-se numa historicidade limitada a referências coloniais, enfatizando que os dois territórios foram geridos por uma mesma administração cuja sede se encontrava na ilha de Santiago. Ora, jamais existiu em terra firme continental um qualquer controlo territorial português. “A base ideológica justificou a construção teórica do movimento nacionalista, tal como todos os exemplos africanos deste tipo, era uma base que não podia ser articulada à existência de uma nação. A nação, tal como concebida pelo movimento nacionalista, não só se baseava no território de 1886 mas também nas estruturas que o justificam”. Tal tese assentava no credo propugnado pelo modelo ocidental e dava muito jeito às elites crioulas oriundas de Cabo Verde e da Guiné.

Passando para a tese endógena, esta é naturalmente inovadora mas muito polémica. “Trata-se de demonstrar a necessidade de perceber os fenómenos sociopolíticos da Guiné-Bissau e da região onde está inserida, a partir de uma historicidade endógena, que minimiza a relação com o exterior. É possível constatar aquilo que a tradição oral Mandinga tem vindo a martelar desde sempre: que do século XII até meados do século XIX, o território entre os rios Gâmbia e Nuno foi dominado por estruturas políticas Mandingas, primeiro criadas, depois herdeiros dos Estados do Alto Níger, nomeadamente do Império do Mali”.

O autor dá como provado que os povos desta região resistem à estruturação do seu espaço e às atuais fronteiras que o dividem, e dá exemplos que vão desde a manifestação independentista no Casamansa, aos golpes de Estado, ao recurso das línguas francas da região, à tensão militar constante nas fronteiras, às correntes migratórias, à explosão cultural, nomeadamente musical com origem na cultura Kaabunké – exemplos que demonstram que os Estados e os seus espaços estruturados não estão a ser respeitados. Segundo o autor, cabe aos intelectuais africanos o papel de conceber os argumentos que permitirão uma solução para estas irracionalidades, de modo a existir em África a integração de espaços em harmonia com a sua história. Reconheça-se como é bastante interessante esta argumentação de Carlos Lopes de o endógeno ser muito mais forte e permanente que o exógeno.

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Mapa da sociedade Mandinga, 1906
O korá
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24484: Notas de leitura (1598): "Memórias Duma Vivência em Ambiente de Guerra", por José Inácio Sobrinho; Edição de Autor, 2019 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23801: Notas de leitura (1520): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
As efemérides em torno de figuras consagradas devem merecer uma organização que permita desvelar olhares renovados sobre o pensamento e ação do dito consagrado. Este fórum Amílcar Cabral que teve lugar na cidade da Praia em 2013 tem muita parra e pouca uva, muito salamaleque e pouca visão repercutente de como o pensamento de Cabral continua a ser atual em África. Do desapontamento de tanta comunicação deslavada, com o mais do mesmo, chama a atenção a capacidade reflexiva de Carlos Lopes, a investigação cuidada do historiador Julião Soares Sousa, o mais influente biógrafo de Cabral, que desvela o realismo e a profundidade da visão do líder do PAIGC que jamais ignorou que conduzia uma luta em que não podia dar muitos exemplos edificantes do sucesso da era pós-colonial, o PAIGC alargava-se enquanto novas nações viviam atormentadas por elites cúpidas e corruptas, prometendo unidades e desunindo-se rapidamente, o historiador, bem documentado, olha para a África de hoje e pondera que o pensamento de Cabral, hoje, tem a mesma frescura que há mais de cinquenta anos atrás, lamentavelmente.

Um abraço do
Mário



Cabral, o pensamento revolucionário no mundo contemporâneo (1)

Mário Beja Santos

Por Cabral, Sempre, comunicações e discursos apresentados no Fórum Internacional Amílcar Cabral, em janeiro de 2013, na Praia, com organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016, tinha como tema central a leitura do pensamento de Amílcar Cabral à luz da contemporaneidade. Para além da sessão inaugural, das mensagens, dos discursos e dos anexos, ao longo de mais de quinhentas páginas discorre um bom punhado de oradores, lê-se tudo do princípio ao fim à busca de tratamentos inovadores, olhares refrescados sobre o líder político ainda hoje considerado como figura de pódio do pensamento revolucionário, há um travo amargo de muita parra e pouca uva, muito incenso e pouca convicção, bastante retórica e palavreado fácil, mais escória do que metal sonante. No entanto, impõem-se três nomes com comunicações que apraz registar e fazer a síntese da essência do que ficou registado: Carlos Lopes, Julião Soares Sousa e Miguel de Barros com Redy Wilson Lima.

Carlos Lopes ventilou o temário “Amílcar Cabral como promotor da ideia pan-africana”. Foi aos primórdios da ideologia pan-africanista e como esta afetou os jovens africanos oriundos das colónias portuguesas. Equiparando a pujança intelectual de Cabral com a de Frantz Fanon, escalpeliza três conceitos dominantes no seu pensamento: a definição de unidade, a falta de ideologia em África e o combate pelo lugar na História. Muito cedo os novos estados emergentes do pós-colonial, com a boca cheia de promessas de unidade, desentenderam-se e fragmentaram-se. Cabral justificava a unidade Guiné – Cabo Verde em congruência com o pan-africanismo, não ignorando a corrente refratária em Cabo Verde de um sentimento de hostilidade na Guiné, por razões históricas, em relação a Cabo Verde. Assumiu a unidade como um compromisso com o pan-africanismo, não iludindo que precisava de promover uma defesa anticolonial contabilizando aquilo que ele chamava a história em comum. Serviu-se da cultura como elemento primordial que daria no decurso da luta armada a identidade da nova nação. Pouco dado a ilusões, nunca deixou de supor que a sua luta triunfasse mas não se mentia com os tremendos riscos postos, alcançada a independência. Como observa Carlos Lopes no termo da sua comunicação:
“Desde cedo, Cabral e Mário de Andrade, alertados pelas derivas totalitárias de Sékou Touré, Nkrumah e Kenyatta, se preocuparam com a utilização identitária como forma de construção de uma ideologia travesti do pan-africanismo. Para proteger os movimentos a que estavam associados tais perigos, multiplicaram os apelos à democracia popular e direta. Esta revelou-se, porém, ser uma muito débil resposta a tendências que se revelaram fortíssimas.
A famosa chamada de atenção de Cabral para o suicídio da pequena burguesia deve ser entendida como um eufemismo para confessar a impossibilidade de conter as derivas dos movimentos nacionalistas, ou o seu aproveitamento para fins menos nobres. Na realidade, trata-se de uma confissão indireta de que o processo histórico, expressão tão usada nos anos 60, tomaria o seu rumo. Para mal do pan-africanismo e do próprio projeto nacional”
.

Mais adiante, Julião Soares Sousa discreteou sobre “Os desafios da construção do Estado em África: uma releitura do pensamento de Amílcar Cabral na perspetiva da contemporaneidade". O historiador propôs-se analisar os desafios atuais da construção do Estado em África mediante uma releitura contemporânea do pensamento de Cabral. Cabral advogava uma proposta de rutura radical com a herança político-administrativa colonial, era imperativo barrar o caminho de qualquer modalidade de neocolonialismo ou criar elites negras prontas a repetir as mesmas táticas dos colonos. Daí ter sempre tratado a luta de libertação como um ato de cultura, a necessidade de o novo Estado se pautar pela autonomização económica e daí a sua permanente advertência para o desenvolvimento da agricultura, dizia repetidamente que era imprescindível a descentralização dos ministérios e que esta devia ser implementada de acordo com as necessidades das massas camponesas. Cabral também foi premonitório sobre os perigos da elite política se concentrar em Bissau, seria um íman para atrair e empolar o centro urbano em detrimento do desenvolvimento dos campos. Realista, punha em destaque os objetivos sociais e as necessidades básicas da população, atormentando assim os ideólogos de pacotilha quando asseverou: “Lembrar-se sempre de que o povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em paz e melhor, para ver a sua vida progredir e para garantir o futuro dos seus filhos”. A luta armada foi crescendo enquanto África continuava à espera de uma verdadeira revolução, Cabral tinha consciência dos problemas da Nigéria, mesmo tendo sido contrário à secessão do Biafra, tinha plena consciência das diferenças gritantes entre os detentores dos cargos públicos e o povo, era profundamente crítico das novas cliques políticas que rapidamente se enriqueciam e pavoneavam com carros luxuosos, indiferente a um povo pobre e desgraçado. Igualmente se mostrava apreensivo com a má gestão dos dinheiros públicos, do mesmo modo como tecia considerações para os golpes de Estado que assolaram África entre 1965 e 1966, um caráter golpista que se prendia com o tribalismo, a ganância do poder e a tentação neocolonial. Como observa o historiador Julião Soares Sousa, foi um processo eivado de contradições em que se tentou forjar o desenvolvimento do sentimento nacional perseguindo chefes tradicionais, ficcionando tentativas de golpes de Estado, gerando estados de terror entre as populações, afastando-as de todo e qualquer sentimento revolucionário. Não era por acaso que Cabral insistia na questão da pequena burguesia e de que lado ela iria estar, ou na contrarrevolução. O historiador aborda o contexto de uma rutura epistemológica essencial dada pela crise do socialismo e pela chegada em pleno do liberalismo económico a África que acarretou novos quadros de instabilidade e a anomia do Estado. Como ele escreve, “Em África muitos Estados, nomeadamente os frágeis, não têm conseguido cumprir com alguns critérios básicos devido às fracas ou nulas infraestruturas do poder, que nem sempre penetram toda a sociedade, associadas a outras importantes dimensões internas (fraco controlo sobre o território e sobre a população e ausência de estudos e de estatísticas) e externas (excessiva dependência do exterior)”.

Em jeito de epílogo, Julião Soares Sousa pondera a pouca eficiência dos Estados, o modelo de boa governação, regressando ao pensamento de Cabral e foca diretamente o que se tem passado na Guiné: “Como a classe política tem tentado encobrir, ao longo do tempo, a sua grande responsabilidade, criando a ilusão de que de facto os reais problemas residem nas Forças Armadas. A elite política tem-se aproveitado da situação de instabilidade por ela criada para acumular riqueza proveniente das ajudas internacionais, proventos ilícitos e até submergir o Estado em negócios obscuros ou transformando-o numa autêntica máfia (…) Cabral afirmava que deveriam ser os melhores filhos a assumir a liderança do processo de reconstrução nacional na era pós-colonial. Isto é, todos aqueles que, pela sua conduta moral e política, entregassem todo o esforço, sacrifício e capacidade ao serviço do povo (…) Na sua perspetiva, o dirigente deveria ser ‘o intérprete fiel da vontade e das aspirações da maioria revolucionária e não dono do poder, o senhor absoluto que se serve do Partido e não serve o Partido. Caberia ao Partido [entenda-se Estado] expressar a vontade popular no âmbito da democracia revolucionária, isto é, as aspirações do povo livremente expressas’.”

E de seguida, iremos dar a palavra a um curiosíssimo trabalho sobre o pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.

(continua)

Carlos Lopes
Julião Soares Sousa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21941: Historiografia da presença portuguesa em África (253): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A tese de doutoramento de Carlos Lopes na Sorbonne constitui um indesmentível esforço para procurar clarificar a presença Mandinka e a fundação do reino do Kaabú, que se espalhou essencialmente nas terras do que são hoje os países da Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal. Este reino do Kaabú marca o fim do Império do Mali, deu origem a um Estado autónomo em que os Mandinka detinham grande poder político e cultural. Carlos Lopes consultou inúmera documentação que permite trazer luz à estruturação social Kaabunké, à organização do seu território e à sua consolidação graças fundamentalmente ao tráfico de escravos. Chegados ao século XIX, os Mandinka envolveram-se numa prolongada guerra com a etnia Fula, perderam a capital Cansalá, o Mansa suicidou-se, acabou o seu reinado, os Fulas ascendiam ao poder.
Iremos no próximo número apreciar as conclusões apresentadas por Carlos Lopes face à herança Kaabunké, há ali observações com muita dinamite.

Um abraço do
Mário


A Guiné antes e durante a presença portuguesa:
Kaabunké, um trabalho admirável de Carlos Lopes, historiografia incontornável (2)


Mário Beja Santos

O
importantíssimo trabalho do historiador Carlos Lopes sobre o reino do Cabo detalha a expansão Kaabunké, o seu declínio e a sua herança. Sobre a expansão e lógica do poder falou-se no número anterior, vejamos agora como se passou da consolidação ao declínio. O Kaabú era um reino de escravatura, vivia do tráfico negreiro. E o autor observa: 

“O tráfico prejudicou o desenvolvimento de outros sistemas de produção orientados para a produção de mercadorias e enviesou o comércio para uma troca ainda mais desigual do que as anteriores”.

 O fenómeno decorria do acordo das aristocracias do Kaabú, da sua aliança de interesses e dos negócios com os europeus. A aristocracia vive dos impostos e da guerra, e esta lógica de funcionamento desce até às aldeias, tem a caução dos poderes religiosos. O autor estuda atentamente as lendas sobre a queda de Kansalá e retém uma frase de um autor português de 1945, Viriato Tadeu, em Contos do Caramô: 

“Na Guiné de bandeira portuguesa, só há brancos e Mandingas. O resto são os pobres coitados”

Subentende-se que estava a subir de tensão a luta entre poderes a partir do século XVIII. O Kaabú entrara em declínio devido ao permanente sobressalto da guerra e à reorientação do comércio transatlântico. Os Fulas tinham começado a revoltar-se contra a exploração Malinké, vão começar as longas guerras entre dois Estados – Kaabú e Futa-Jalo. Os Malinké não desistiam de ser os senhores do território e vão enfrentar os franceses no Senegal. Os territórios do Kaabú precisavam cada vez mais do poder militar, a centralização política ia-se esboroando. 

Chegara-se também a um limiar intolerável na coexistência pacífica entre o Islão e o animismo, quer Fulas quer Mandingas estavam agora confrontados com uma lógica de Guerra Santa. Isso devia-se ao papel crescente do Islão, até então o poder islâmico tratava o relacionamento interétnico com uma enorme flexibilidade. Não é novidade para ninguém que ainda hoje os chamados islamizados da Guiné não prescindem de amuletos tradicionais, aliás, a penetração do Islão no meio animista socorreu-se do uso de talismãs que encerravam versículos do Corão. Escreve Carlos Lopes: 

“O Kaabú é o símbolo de uma coabitação islamo-animista desde o século XII e esta relação foi sempre favorável ao primeiro, através dos tempos. Foi por o Sudão Ocidental estar em plena transformação no século XVIII que o Islão continuou a progredir. Os Fulas do Futa-Jalo não são a principal razão, mas antes a ponta do icebergue”

Mas também na Senegâmbia meridional os europeus iam pondo de pé uma nova estratégia de conquista territorial, a partir do momento em que o tráfico de escravos tem os seus dias contados havia que redefinir a presença colonizadora, e franceses, ingleses e portugueses facilmente se entenderam neste ponto: havia que destruir os grandes espaços políticos, sabendo de antemão que teriam que conviver com sociedades islamizadas.

A situação do Kaabú também se agravara devido a novos conflitos relacionados com as interpretações islâmicas de diferentes confrarias (a Tijaniya e a Kadiriya), apoiadas por chefes diferentes. Havia lugares de peregrinação até aos centros religiosos islâmicos. 

“No século XVIII, o Islão tornou-se mais militante que nunca, não apenas devido à existência das confrarias, mas também por ser apenas desse meio que provinham as elites educadas e alfabetizadas. Hoje em dia, ainda é possível distinguir diferenças significativas entre as práticas religiosas das diferentes confrarias, mas as grandes querelas dos séculos XVIII e XIX estão ultrapassadas, o que prova bem como o essencial dos argumentos tinha sido uma natureza política”.

Algo de profundamente novo tinha acontecido nas sociedades Fulas, a partir do século XVIII eram inteiramente dirigidas por chefes religiosos. 

“A evolução política do Futa-Jalo introduzirá discórdias graves entre os Fulas que estão cativos dos Malinké do Kaabú, que podiam aliás contar com aliados no interior da estrutura social Kaabunké. Uma parte das camadas intermédias Kaabunké está insatisfeita e recetiva a uma aliança com novos interesses, que utilizarão o Islão como porta-estandarte”

Portugueses e franceses estavam atentos ao crispar destas tensões, reduziram o volume de trocas com os chefes Malinké, começou o isolamento das regiões e no Futa-Jalo sentiu-se que o apoio europeu estimulava os Fulas a lançar uma ofensiva. É exatamente o que escreve Carlos Lopes, o Kaabú já não conseguia manter o controlo indireto das várias províncias que constituíam a sua base territorial. Havia por um lado a penetração europeia e a pressão do Futa-Jalo fazia perigar as formações políticas existentes desde a época medieval. E vão-se dar batalhas que culminarão com a queda de Kansalá. Atenda-se agora a considerações um tanto controversas, umas, e complementares ao que nós já sabíamos sobre o colonialismo português na Guiné no século XIX: 

“O verdadeiro fim do Kaabú e o verdadeiro início da colonização coincidem no tempo. Estão ligados, pois ambos se desenvolveram a partir do tráfico negreiro. O fim deste foi o princípio do fim do Kaabú. Mas os colonos tinham uma estratégia económica. No final do século XIX, os colonialismos vão intervir indiretamente no jogo político com o objetivo confesso de controlarem o território – era a lógica da Conferência de Berlim. 

"No Senegal, os franceses produziram estratégicas económicas virando-se para a exploração da mão-de-obra local e para a sua utilização como mercadoria de troca. Vai ser assim com a cultura do amendoim. Em 1846, Aurélia Correia já tinha uma plantação respeitável em Bolama, bem como João Marques de Barros. A presença portuguesa ia-se reduzindo a Norte, a hostilidade africana era clara, como Andrade Corvo escreveu em 1884, falando de um gentio bárbaro e indómito, que raramente está em completa paz, e que muitas vezes abusa da nossa falta de força na Senegâmbia Portuguesa. Não devemos iludir-nos acerca das condições do nosso domínio da Guiné”

Ao tempo, e segundo ainda Andrade Corvo, havia concelhos em Bissau, Bolama e Cacheu; dependendo do primeiro Geba, do segundo Buba, e do terceiro Farim e Ziguinchor. Quem irá dar configuração a uma boa parte do que é hoje a Guiné-Bissau foi Honório Pereira Barreto.

No Sul da colónia, a situação era muito instável, como recorda Carlos Lopes: 

“Os portugueses tinham procurado assinar tratados no Forreá para controlarem integralmente esta região, mas tiveram problemas com Bakar Kidali. Um dos indícios disto é o ataque de Mamadu Paté de Koyade ao entreposto de Buba. Aliás, os portugueses não intervieram nas lutas intestinas do Forreá, embora apoiassem indiretamente os escravos a revoltarem-se contra os seus donos, fornecendo-lhes armas”

São tempos de acordos com os Fulas. Mas a lógica colonialista era imparável, houve destituições e nomeações de chefes locais impostas por Paris ou Lisboa. 

“O exemplo de Alfa Yaya que procurou desesperadamente manter o controlo do Labé, Kaabú, Forreá e Kadé ilustra bem o desespero dos últimos grandes homens políticos africanos dessa outra época. Nem ele nem Mussa Molo serão bem-sucedidos. O século XIX terminava uma História de África. E o Kaabú tornava-se para a história da região o fim de um ciclo histórico: o dos poderes independentes africanos. Os colonialismos invasores acabavam de destruir um sistema político e económico secular”

Iremos seguidamente falar da herança Kaabunké, sem dúvida o ponto mais polémico da tese de doutoramento de Carlos Lopes.

(continua)
____________

Notas do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21911: Historiografia da presença portuguesa em África (252): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10971: Recortes de imprensa (64): Morte de Cabral interessava a todos (Carlos Lopes, em declarações à Agência Lusa, reproduzidas na página da Angop - Angola Press, 19/1/2013)

1.  Excerto da página da Angop - Angência Angola Press, aqui reproduzido com a devida vénia:

19-01-2013 16:52
Guiné-Bissau/Cabo Verde

Morte de Cabral interessava a todos - secretário executivo de Comissão da ONU

Cidade da Praia - A morte de Amílcar Cabral, há 40 anos, interessava a todas as partes envolvidas nas independências das então províncias portuguesas da Guiné e Cabo Verde, disse hoje à agência Lusa um dirigente guineense das Nações Unidas.

O secretário-geral adjunto das Nações Unidas e secretário executivo da Comissão Económica para África (CEA) da ONU, Carlos Lopes, lembrou que são conhecidos os autores materiais do assassínio de Cabral - Inocêncio Kani e outros guerrilheiros do PAIGC -, não interessando analisar pormenorizadamente a sua morte.

"Os autores físicos do assassínio são conhecidos e as várias justificações que podem estar por trás dos autores físicos têm a sua validade. Não vale a pena estarmos a fazer uma análise mais detalhada para saber a quem interessava a morte de Cabral.  "Interessava a todas as conglomerações de interesses que estão por trás da sua morte", sustentou.


Segundo Carlos Lopes [, foto à direita, arquivo das  Nações Unidas, Cabo Verde ], após o assassínio de Cabral, abatido a tiro em Conacri a 20 de Janeiro de 1973 e cujos contornos nunca foram devidamente apurados, todos os dirigentes do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) pensavam que tinha morrido apenas "a personagem" e que muitos outros poderiam continuar o trabalho.

"Isso foi, de certa forma, verdade, porque conseguiu-se atingir as independências. Mas já não é verdade porque a profundidade do pensamento de Cabral não foi substituída até hoje. Não se deve deixar que se responsabilize Cabral pelo que se passou (na Guiné-Bissau e em Cabo Verde) após a sua morte", frisou. "São as pessoas que utilizam o seu pensamento da forma que mais lhes interessa: uns para dizer algo negativo e outros para dizer algo positivo. Todas as grandes personagens são sujeitas a um escrutínio muito mais apurado", sustentou.

Questionado pela Lusa sobre se Cabral foi "ingénuo" ao acreditar ser possível a unidade entre Cabo Verde e Guiné-Bissau, Carlos Lopes lembrou o então muito em voga pan-africanismo, cujo conceito foi expressado de várias formas pelo líder do PAIGC.  "No fundo, se acreditarmos no pan-africanismo como utopia mobilizadora, pode-se concluir que valeu a pena, pois levou os dois países à independência. Mas tudo o que se passou após a sua morte é da responsabilidade dos protagonistas pós-Cabral", frisou, aludindo ao corte de relações entre os dois países após o golpe de Estado guineense de 14 de Novembro de 1980. 

No entanto, para Carlos Lopes, há o facto de Cabral ter sido capaz de vislumbrar que a luta de interesses e entre elites dentro do próprio PAIGC ia ser o grande problema depois das independências.  "Era preciso construir o Estado e os princípios da igualdade como os principais motores que poderiam evitar certas contradições. E Cabral, na forma como analisou os factores, previu que seria uma luta muito difícil ou mesmo inglória", concluiu. 
___________

Nota do editor;