Guiné- Bissau _ Região do Cacheu > Barro > 1998 > O A. Marques Lopes (1944-2024), atravessando de piroga o Rio Cacheu, no decurso da sua primeira viagem à Guiné, depois do regresso a casa em 1969. Voltaria lá ainda em abril de 2006.
Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Da autobiografia (ficcionada) do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 578 pp.), reproduzimos as pp. 564/572) a partir do ficheiro em pdf que ele disponibilizou na sua página do Facebook, para os seus amigos e camaradas poderem ler e lembrar-se dele quando chegasse a sua hora de se despedir da Terra da Alegria.
É uma homenagem a um dos 111 históricos do nosso blogue, falecido ainda recentemente (em 4 de julho de 2024) e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ 3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército: faleceu, aos 80 anos, com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma. Conheci-o, pessoalmente, na vésperad e Natal de 2005, na casa dos meus cunhados, na Madalena, Vila Nova de Gaia. Tem mais de 290 referências no nosso blogue.
É uma homenagem a um dos 111 históricos do nosso blogue, falecido ainda recentemente (em 4 de julho de 2024) e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ 3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército: faleceu, aos 80 anos, com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma. Conheci-o, pessoalmente, na vésperad e Natal de 2005, na casa dos meus cunhados, na Madalena, Vila Nova de Gaia. Tem mais de 290 referências no nosso blogue.
De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento
por A. Marques Lopes (1944 - 2024)
(...) Passara dez meses ali ao pé do Senegal. Ao fim desse tempo mandaram-no ir para Bissau, era para regressar à metrópole. Estava livre, até que enfim, pensou. Mas, afinal, não esteve.
Tinha chegado há poucos dias e disseram-lhe que tinha de ir montar uma emboscada em Bissalanca, perto do aeroporto, pois suspeitavam de um ataque lá. Deram-lhe um pelotão de uma companhia que não soube se tinha acabado de chegar ou se era das que já lá estavam. Nem quis saber, porque ficou é lixado.
Antes, decidiu ir ao Bar de Oficiais do QG beber uma cerveja. Foi ao balcão, pediu uma e foi sentar-se com ela num dos sofás que lá havia. Tentava acalmar-se, pois não lhe agradara nada ter de ir para o aeroporto armar uma emboscada. Estava em Bissau para curtir antes de embarcar, não para isso, já lhe chegara no mato. No meio destas reflexões chega-se à frente dele um tenente-coronel. Já lhe tinham dito que ele era o gerente da Messe de Oficiais, chamavam-lhe “O lavrador” porque gostava muito de tratar de uma horta que havia na zona da Messe.
– Não pode estar aí, nosso alferes – lança-lhe ele.
Ficou mesmo espantado. Não estava a ver porquê.
– Não posso porquê, meu tenente-coronel? perguntou-lhe, sem se levantar.
– Porque o seu camuflado está a sujar o sofá.
De facto, era tudo gente fina que estava ali naquele bar. Camisas de manga curta e calças limpinhas e passadinhas a ferro, impecáveis, sapatos pretos brilhantes. E ele com o seu querido camuflado, pele da sua carne em muitos dias e noites de mato, com as suas botas calcorreadoras de zonas de capim e de bolanhas. O camuflado estava já muito amarelado e debotado pelo uso, tinha até um buraco ou outro, ali destoava um bocado, é verdade, mas estava limpo, tinha sido lavado. As botas eram de lona mas estavam limpas da lama do tarrafe. Levantou-se para ver se havia de facto alguma sujidade. O grupo que estava ao balcão observava.
Olhou para as pernas, levantou os braços e mirou para cada um, deu meia volta à esquerda e à direita e observou os flancos.
– Não vejo nada sujo.
– Não interessa, assim fardado não pode estar aí.
Tinham-no mandado para uma emboscada e vinha agora este com estas merdas. Foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?, ficou com vontade de lhe dar um murro. Todo ele estava para isso. Um major que estava ao balcão topou e chegou-se ao pé deles.
– Tenha calma, nosso alferes. Meu tenente-coronel, deixe o homem beber a cerveja. Ele vai-se já embora, não é?
Aiveca não disse nada, bebeu o resto da cerveja, pôs a garrafa em cima da mesinha com força e saiu. Alguém lhe disse mais tarde que o major se chamava Carlos Fabião.
Atrás dele veio um alferes que conhecera lá no bar, trabalhava no Gabinete de Justiça do QG. Era magro, moreno, e tinha uma barbicha à passa-piolho.
– É pá, se quiseres fazer queixa do gajo o Spínola dá-lhe uma porrada com certeza.
– Não faço nada. Quero que o tipo se foda e o Spínola também - e foi-se embora.
Já com o pelotão em viaturas, a caminho do aeroporto, chegaram ao pé do palácio do Governador. Ao lado estava o edifício da Associação Comercial. Havia lá grande festa, janelas iluminadas, ouvia-se música de dança. Mandou parar.
– Porque é que paramos, meu alferes? – pergunta-lhe um furriel ao pé dele.
– Estou com vontade de ir ali e dar cabo daquela merda toda. A gente aqui e eles a gozar.
O furriel abriu os olhos.
– Mas isso não pode ser. Levávamos uma porrada das grandes. Era mau. Sobretudo para o meu alferes que está prestes a ir embora.
– Está bem, tens razão. Mas daqui a uns meses vais perceber este sentimento. Vamos embora.
E foram para o aeroporto. Não houve nada e lá para as cinco da madrugada regressaram.
Foi para os anexos à Messe de Oficiais onde dormia e onde dormiam também vários alferes que estavam de passagem ou à espera do embarque de regresso. Apeteceu-lhe fazer qualquer coisa para acalmar a fúria. Viu um bidão que estava ali com garrafas de cerveja. É isto. Agarrou em várias garrafas e começou a atirá-las para cima dos telhados do anexo. Que gozo! Bum, bum! Em cima dos telhados de zinco, bum, bum! Riu-se à brava a vê-los sair das portas todos alarmados e em cuecas.
– Que merda é esta?! – gritavam.
Viram que era ele a atirar garrafas e ficaram mais descansados, mas chamaram-lhe todos os nomes antes de voltarem para as camas. Aiveca foi também. Estava mais satisfeito, tinha desopilado.
De manhã, o Almeida Campos, um alferes que andava por lá, convidou-o para ir com ele ao Bento. Era onde se sabia de tudo, porque por lá passavam quase todos os que vinham ou ainda estavam no mato e contavam coisas, tudo, operações, ataques, mortos. Era o sítio das informações, por isso lhe chamavam a 5ªREP, que era a Repartição de Informações do QG. Todos ficavam a saber coisas, todos e também os miúdos e miúdas que entre eles andavam a vender camarão, caju e mancarra ou a engraxar as botas dos mais aprumados. Muita coisa o PAIGC devia saber também através deles.
Comeram uns camarões e beberam umas canecas. O Almeida Campos tinha sido apontador de obus lá para o sul e estava também à espera de embarque para ir embora.
– É pá, e se a gente fosse dar uma volta? – perguntou a Aiveca, que estava de má cara, ainda lixado com o “Lavrador”.
– Uma volta aonde?
– Para fora de Bissau.
Não lhe desagradava.
– Mas precisamos de um jipe para isso – disse Aiveca.
– Eu requisito um jipe ao QG.
– E vão dar-to?... – Aiveca duvidou.
– Está descansado que eu conheço lá um sargento.
E o Almeida Campos conseguiu-o. Saíram de Bissau não sem antes meterem uns whiskys no bar da Messe de Oficiais. Chegaram a Nhacra eram horas de almoçar. Pararam numa tasca á beira da estrada para comer. Foi frango de chabéu regado a muito vinho fresquinho. Era o preferido de Aiveca.
Estavam bem aviados e ele já estava por tudo.
– Claro – disse o Almeida Campos . – Metemos pela estrada sempre em frente e logo se vê.
Grande homem, era dos dele!
Foram pela estrada cerca de uma hora. Nada, não viram nada pelo caminho, só mato dum lado e doutro, até que chegaram a uma povoação. Muita gente os olhou, admirada, quando entraram.
– Eu acho que isto é Mansoa – pareceu a Aiveca.
Era. Um grupo de militares veio ao encontro deles. Cumprimentos, interrogações.
– Que vieram cá fazer?
– Nada. Só passear.
– São doidos. De Bissau aqui só em coluna militar.
Havia um jogo de futebol e foram até lá para ver. No fim do jogo houve festa com muita cerveja e eles entraram nela.
– Ó Almeida Campos, é melhor irmos embora que está a fazer-se tarde.
Já tinha passado muito tempo.
– Tá bem. Mas antes vamos pedir aqui umas cervejas para o caminho.
Eles deram-lhas, e um fuzileiro, nunca soube porque é que ele lá estava, pediu-lhes boleia. Foi com eles.
Uma viagem de regresso muito alegre. O Almeida Campos ia a conduzir e Aiveca ao pé dele, de pé, sempre a cantar. O fuzileiro ia no banco de trás. Iam bebendo as cervejas ofertadas e a cantar.
Já tinha começado a escurecer quando viram ao longe as luzes do aeroporto. Aiveca ia de pé, agarrado ao para brisas e sempre a cantar. Às tantas o Almeida Campos sai da estrada. O jipe andou uns metros e espetou-se contra uma árvore.
Foi uma sensação já vivida quando fora projectado pelo rebentamento da mina. Foram uns segundos, ou minutos?... Não deu para saber, porque é um tempo de nada. Há o choque, ou o rebentamento, e a seguir é o vazio completo, sem ah! nem oh!, só se sabe quando se bate no chão. Foi o que sucedeu. Deu por si no meio do capim. Levantou a cabeça e viu o jipe a arder, ao seu lado o fuzileiro gemia. Olhou melhor e viu o Almeida Campos estendido sem dizer nada. Chegou-se ao pé dele e pegou-lhe na cabeça. Ficou alarmado pois a mão ficou-lhe cheia de sangue.
– O fuzileiro ainda mexe mas este não.
Viu umas casas não muito longe. Levantou-se e foi bater às portas mas ninguém lhe respondeu. Estava preocupado com o Almeida Campos. Umas luzes aproximavam-se vindo do lado do aeroporto.
Era uma patrulha que vira as chamas do jipe e queria saber o que se passava. Foram eles que os levaram para o hospital.
O Almeida Campos e o fuzileiro ficaram lá. Este tinha uma costela partida, vinha atrás e batera no banco da frente. O alferes tinha um lanho na cabeça e uma ferida profunda na perna direita. Aiveca não tinha nada, só a farda chamuscada, e regressou ao anexo da Messe de Oficiais.
No dia seguinte foi ao hospital. O fuzileiro tinha sido transferido para a enfermaria da Marinha. O Almeida Campos estava na cama com uma perna engessada, a cabeça ligada e uma cerveja na boca. Riu-se para Aiveca e perguntou-lhe:
– Estás bom, pá?
– Eu estou, mas tu não pareces.
– Estou, sim senhor. Cervejas não faltam.
Dois dias depois, um major, encarregado da peritagem chamou Aiveca para ir com ele reconstituir o acidente.
– Ó meu major, nós íamos devagar. Houve qualquer problema com a direcção do jipe.
Ele riu-se e mostrou-lhe o sulco dos pneus fora da estrada. Eram uns vinte metros na berma capinada, antes da árvore em que tinham batido.
Aiveca foi apenas testemunha. O Almeida Campos, que requisitou o jipe e o ia a conduzir, e era mais antigo, levou uma porrada de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe e ficou mais uns tempos na Guiné.
Foi curta a estadia em Bissau, porque de alguns dias apenas lá passados antes de embarcar para o puto, mas foi intensa, porque aproveitada como oportunidade para dar largas à loucura que se apossara dele durante todo o tempo em que estivera no mato. Ali não necessitou de cautelas e precauções para garantir a sobrevivência, dele e dos outros. E aquelas do “lavrador” e do aeroporto até o incentivaram para isso.
Muito boas recordações dos restaurantes, onde fez grandes tainadas e apanhou grandes bebedeiras com outros camaradas tão necessitados disso como ele. Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa, um quarto apenas, dormiu algumas noites, numa cama onde dormia também o bebé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, numa das noites lhe fez a proposta de ele trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes.
– Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.
Boas noites lá passou. Uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:
– Está ocupado.
E ele a ajudá-la dizendo:
– Estou eu, vão pra outra.
Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que teve de sair a meio. É que o bebé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, teve de lhe dizer:
– Fatinha, já não dá. Assim não. Vou-me embora.
Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha umas filhas mulatas. A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Foi lá uma ou outra vez, só para beber porque, perante aquela situação, sentia que o raio da consciência ainda lhe zurzia e não quis mais nada..
Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Mas houve uma que até lhe deu muito gozo. Tinham-no encarregado da elaboração do processo a um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG, onde só estes e as suas respeitáveis e limpas senhoras é que podiam tomar banho. Fora escandaloso, inadmissível porque pegajoso. Na véspera do seu embarque de regresso olhou para o processo e achou que não lhe devia dar futuro. Rasgou-o aos bocadinhos e meteu-o num caixote de lixo. Ninguém lhe perguntou por ele. (...)
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título : LG)
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Nota do editor: