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sábado, 23 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26183: Roteiro dos museus e outros lugares de memória e cultura, abertos (ou a abrir) ao "antigo combatente" (4): Museu da Guerra Colonial, V. N. Famalicáo, de visita gratuita


1. O Museu da Guerra Colonial (MGC), em Vila Nova de Famalicão, é de entrada livre (no caso de grupos e escolas há marcação prévia).

Localização, horário e contactos:

Famalicão Central Park, Lote 35 A
4760-727 Ribeirão

Telef: 252 217 998
Email: info@museuguerracolonial.pt


Horário:
  • Terça a sexta: 10h00 às 17h30
  • Sábado: 14h30 às 17h30
  • Domingo (sob marcação)
  • Encerra às segundas e feriados nacionais, sábado de Páscoa, 24 e 31 dezembro

2. Faz parte da notável rede municipal de museus (de que só conheço dois, e que recomendo: Casa-Museu de Camilo, e o Centro Português do Surrealismo):


O  objetivo do 
 Museu da Guerra colonial (MGC) em Vila Nova de Famalicão é fazer o levantamento e a recolha dos espólios dos combatentes utilizando a metodologia da história oral.

Como resultado o MGC recupera aquilo a que os seu criadores chamam “o Baú da Guerra” que, depois de aberto, fornece fontes importantíssimas para o estudo do combatente português na guerra colonial.

Recuperam-se e ordenam-se vários documentos tais como:

  • processos de morte e de ferido,
  • correspondência,
  • diários pessoais e de companhia,
  • documentos de ação social e psicológica,
  • relatos e processos confidenciais,
  • objetos de arte,
  • fotografias,
  • objetos religiosos,
  • bibliografia, e
  • documentos vários,

O Museu está organizado segundo temas, tem um perfil pedagógico de informação histórica e cultural para as gerações do pós-guerra e para o público em geral com a intenção de preencher lacunas sobre este período recente da História de Portugal.

Visitar o MGC ajuda-nos a conhecer o itinerário do combatente português neste conflito armado que decorreu de 1961 a 1974 (13 anos).

3. Recorde-se aqui, em síntese, a sua génerse e desenvolvimento:


(i) o MGC nasceu no ano de 1999,

(ii) através de uma parceria entre:
  • o Município de Vila Nova de Famalicão;
  • a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas);
  • a ALFACOOP (Externato Infante D. Henrique de Ruilhe);

(iii) tendo por base um projeto pedagógico intitulado “Guerra Colonial, uma história por contar”;

(iv) o conteúdo e a metodologia, recolha, tratamento, organização e estudo das fontes resultaram de um projeto pedagógico dirigido pelo Dr. José Manuel Lages e 32 alunos em colaboração com as Entidades referidas.

(...) "Mais do que um espaço museológico, é um local que pretende transmitir ao visitante um real conhecimento sobre este período da História de Portugal, contado por quem a viveu e sentiu na primeira pessoa. " (...)

A exposição permanente retrata o itinerário do combatente português na Guerra Colonial (1961-1974), abordando as seguintes temáticas:

  • O Embarque;
  • O Dia-a-Dia;
  • As Operações Militares;
  • Os Nativos;
  • A Ação Social e Psicológica;
  • A Religiosidade;
  • Os Horrores da Guerra;
  • A Morte;
  • A Correspondência;
  • As Madrinhas de Guerra.
Todo o acervo museológico foi cedido ou doado por:
  • antigos combatentes ou seus familiares;
  • delegações da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA);
  • e vários ramos das Forças Armadas Portuguesas.
O visitante poderá ainda ver os objetos usados pelos nossos Militares, como:

  • Baús da Guerra (objetos pessoais, alimentação, vestuário);
  • Fardamentos e Equipamento Militar (torres de transmissões, paraquedas, capacetes, armas);
  • Veículos de Guerra

O MGC foi inaugurado no do 23 de abril de 1999 e situa-se no Lago Dicount lote 35A, na freguesia de Ribeirão, ocupando uma área de mil e quinhentos metros.

A gestão do Museu é da responsabilidade da Associação do Museu da Guerra Colonial na qual figuram os sócios fundadores Coletivos e Individuais. Esta estrutura integra a Rede de Museus de Vila Nova de Famalicão e tem protocolos de colaboração com as Forças Armadas Portuguesas.
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26113: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (31): o terror do "exame de admissão" (à escola técnica e/ou ao liceu) (Joaquim Costa, "Crónicas de paz e guerra", 2024, excerto, pp. 207/209)


Joaquim Costa (na foto à esquerda, quando miúdo): 

(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74); 

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, com mais de 7 dezenas de referências no blogue;

 (iii) engenheiro técnico (ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto), foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar: 

(iv) minhoto, de Vila Nova de Famalicão, vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;

 (v) tem página no Facebook;  e, por fim, e não menos importante,  

(vi) perdeu recentemente a sua querida Isabel;

 (vii) e vai lançar o seu livro "Crónicas de paz e guerra", no próximo dia 9 do corrente, sábado, às 15:00 na Biblioteca Municipal de Gondomar (*)


1.  É o relato, sucinto mas magistral, além de bem-humorada, do que era o terror, no nosso tempo de meninos e moços (**), o dia do exame de admissão ao liceu (na capital de distrito, neste caso em Braga) ou de admissão ao ensino técnico (na sede concelho, Vila Nova de Famalicão).  

O autor, Joaquim Costa, fez os dois exames, com 11 anos, em 1961 (já a guerra colonial tinha "rebentado em Angola", sobrando para a ele, mais tarde, a da Guiné, em 1972/74).  

Acabaria por entrar no ensino técnico, no ano letivo de 1961/632. 

No excerto que selecionámos, interessa-nos a primeira parte do seu depoimento, as peripécias que viveu antes de poder entrar no curso de montadores eletricistas (na sede de concelho da sua terra natal) e depois na Escola Industrial do Infante Dom Henrique, no Porto, e finalmente no Instituto Industrial do Porto (hoje, Instituto Superior de Engenharia do Porto / Instituto Politécnico do Porto). Com a tropa, pelo meio...

Enfim, um percurso escolar muito semelhante ao que muitos de nós trilhámos: recorde-se, em todo o caso, que não havia ensino técnico em todas as sedes de concelho e o ensin0 liceal era para uma minoria relativamente privilegiada, funcionando apenas nas capitais de distrito.

E ainda foi do tempo da Mocidade Portuguesa, enquanto frequentou  a escola técnica, durante 4 anos:

 "Aos sábados de manhã, equipado de calções e camisola branca com o emblema das cinco quinas ao peito, lá ia ele, contrariado, para atividades da Mocidade Portuguesa. Marchar 'contra os canhões' e cantar o seu hino: 'Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim'..."  (pp-. 209/210).



O terror do "exame de admissão" (à escola técnica ou ao liceu) 

por Joaquim Costa
 

Sete anos feitos,  lá vai ele conhecer a D. Natália (a fera!), carregando a sacola de serapilheira devidamente equipada: livro da primeira classe, lousa, “riscotes”, uma tabuada e uma pequena almofada de trapo velho para limpar a lousa depois de lhe cuspir.

Tal como na cateques,  as raparigas que faziam o percurso para a escola com ele, aqui desapareciam e só as voltava a ver no regresso a casa.

Aos onze anos, da sua sala, apenas ele foi para explicações para casa de uma outra professora para fazer o exame de admissão à escola técnica.

Foi na casa desta simpática professora que viu, pela primeira vez, a beleza de um pavão abrindo as suas penas coloridas em leque.

Foi também aqui que viu em direto, na televisão, a colocação da última parte do arco da Ponte da Arrábida. Meio país dizia que a “coisa” ia acabar no rio. Foi um dia em que o povo se encheu de orgulho dos seus engenheiros.

No final,  foi convidado a fazer uma redação sobre o acontecimento já que a professora tinha uma convicção muito forte que ia ser o tema do exame.

Mais convicto que a professora,  acabou por memorizar a sua redação que esta classificou de Muito Bom.

A sua convicção era tão forte que “despejou” tudo no exame sem olhar ao que lhe era pedido: foi quase ao lado, já que o pedido era uma redação sobre os Descobrimentos. Mas a redação comparava os dois extraordinários feitos!

A professora estava toda entusiasmada. Não tinha dúvidas que, depois dos dois meses de explicações, o rapaz se ia safar.

Chegado o dia, logo pela manhãzinha, ainda o galo não tinha cantado, já sua mãe lhe vestia o fato que o pai tinha mandado fazer, por medida, ao alfaiate da terra. Tudo novo: fato, camisa, gravata e sapatos. Até o cão fadista estava espantado.

Lá vai ele apanhar a carreira para a vila, metido num colete de forças, completamente desconfortável, transpirando por todos os poros e com os pés a moerem-lhe.

Chegou à vila com tonturas e enjoado, acabando mesmo por vomitar sujando o impecável fato, pois foi a primeira vez que andou de camioneta. Da vila só conhecia a feira, percurso que sempre fez a pé com a sua mãe.

Lá o levaram até ao ginásio da Escola, com dezenas de alunos sentados, e com ar de assustados, cada um na sua mesa devidamente equipada com uma pena e um tinteiro.

Uma velha professora e mal-encarada coloca na sua frente uma folha de papel,  indicando o sítio onde devia colocar o seu nome e número do bilhete de identidade.

Já com o suor a cair-lhe na folha de papel e com as mãos a tremerem, lá tentou entender-se com a pena e o tinteiro para cumprir a tarefa que lhe foi imposta.

Vai com a pena ao tinteiro e começa a tarefa. Por muito que carregasse na pena a tinta não corria.

Começou a ficar atrapalhado já que se tinha apercebido que todos tinha acabado a tarefa e ele ainda não tinha começado.

Nova ida ao tinteiro e nada. Começa a abanar a pena para ver se a tinta corria. Correu tipo ketchup, acabando por borratar toda a folha. Logo tentou limpar pelo que, obviamente, a inutilizou .

Chamou a velha e mal-encarada professora que, ao ver todo aquele estardalhaço, ainda ficou mais velha e mais feia com a cara toda vermelha de raiva. Contudo,  lá mandou limpar a mesa, tendo-lhe entregado uma nova folha e uma nova pena que felizmente deixava a tinta correr.

A prova, depois de todos estes percalços, não podia ter corrido pior.

No final, já aliviado de toda aquela odisseia, lá contou à professora o desastre que foi a sua prova. Ele estava aliviado e feliz por tudo ter acabado, mas a sua professora estava muito triste, tendo-lhe mesmo corrido uma lágrima pelo seu lindo rosto.

A professora não se resignou e convenceu o seu pai que acompanhasse um outro aluno das explicações, com familiares em Braga, a fazer o exame de admissão aos liceus. Ele e o pai acederam mais por respeito à professora, já que estava fora de hipótese, com onze anos, ir estudar para Braga. Na altura só havia Liceus nas capitais de distrito.

Lá foi ele numa de passeio, com uma roupinha lavada e mais confortável, numa “carrimpana” do pai do seu amigo até Braga, vencendo as voltas de macada onde toda a gente vomitava.

A sua professora ficou maravilhada com o seu desempenho.

Entretanto saíram os resultados e para surpresa sua e da professora tinha entrado na escola técnica. Ainda hoje não sabe os resultado do exame de admissão ao liceu. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

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Fonte: Excerto de: "O sistema de ensino antes do 25 de Abril de 1974: caso prático. In: Joaquim Costa - "Crónicas de paz e guerra", Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, pp. 207/209 (Com a devida autorização do autor...)


Também disponível, a história na íntegra, na página do Facebool > Joaquim Costa > 13 de março de 2024, 11:46 > O sistema de ensino antes do 25 de abril de 1974: caso prático

Capa do livro de Joaquim Costa - "Crónicas de paz e guerra: o Minho a Tombali (Guiné)... e o Porto Por perto". Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp, il. (+ de 80 fotos)


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Notas do editor:

(*) Vd.poste de 31 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26098: Lembrete (48): Biblioteca Municipal de Gondomar, sábado, dia 9 de novembro de 2024, lançamento do livro "Crónicas de Paz e Guerra" (2014, 221 pp.; posfácio de Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25250: 20.º aniversário do nosso blogue (2): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (II): Rosa Serra, história de vida de uma enfermeira paraquedista

Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1964/66) e CCAÇ 1565 (1966/68) > Domingo, 10 de julho de 1966 > Um dia trágico: pormenor da evacuação do cap mil inf Rui Romero, na foto a ser transferido para a maca do helicóptero Alouette II... A enfermeira paraquedista era a alf Maria Rosa Exposto.

Foto (e legenda): © Artur Conceição (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro de que a Rosa Serra foi coautora e coordenadora,
"Nós, enfermeiras paraquedistas" (Porto, Fronteira do Caos, 2014, 
439 pp., Prefácio de Adriano Moreira)... Tinha, entretanto, em 2022
um livro,  de teor autobiográfica, à espera de ser  editado... 
Em princípio o livro deveria ter por título a divisa do BCP 21, 
"Que Nunca Por Vencidos Se conheçam"... Algums das melhores 
memórias da Rosa, como enfermeira paraquedista, 
estão intimamemte ligadas à hstória desta unidade.
 

Mão amiga, a do Jaime Bonifácio Marques da Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, e membro da nossa Tabanca Grande) fez-nos chegar, por volta de dezembro de 2022,  uns excertos (cerca de  duas de folhas) do manuscrito do livro de memórias que a Rosa Serra estava a acabar de escrever,  com autorização da parte dela para, depois de serem revistos por nós,  os publicarmos no nosso blogue.

O Jaime e a Rosa ficaram amigos, estiveram juntos no BCP 21, em Angola: o livro da Rosa tem conhecido, entretanto, algumas peripécias, tendo estado inclusive agendado para ser "lançado... de paraquedas"... Infelizmente,  e até por razões de saúde, ela ainda não arranjou um sítio seguro e confortável para  "saltar"...com este "seu filho"...

Minhota de Vila Nova de Famalicão,  vive aqui no Sul, em Paço de Arcos, Oeiras... Membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010, foi alf graduada enfermeira paraquedista, tendo passado pelos três TO: Guiné 1969-70, Angola 1970-71 e Moçambique 1973.

No Dia Internacional da Mulher e nos 20 anos do nosso blogue, que já estamos a celebrar (*), aqui vai a republicaçáo, num só, de três postes que publicámos  em finais de 2022 (Postes P23858, P23862,  e P3874). Voltámos a falar com ela ao telefone e obtivemos, de novo,  a sua plena autorização para juntar num só poste estes três excertos. 

Não é preciso lembrar que as enfermeiras paraquedistas são as únicas mulheres a quem, "de jure" e "de facto", podemos chamar camaradas. no sentido puro e duro da etimologia da palavra...


Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/70; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


História de vida: sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)


(i) A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira


Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?;  (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?;  (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?;  e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?

Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:

– O meu marido é militar paraquedista.

Sorri…

– Só conheço paraquedistas velhotes como eu – respondi.

Continuei com as minhas explicações.

– Quando fui para a Escola de enfermagem, e até muito depois disso, ouvi muitas colegas dizerem que foram para a enfermagem por vocação. Várias dessas enfermeiras faziam questão de acrescentar que queriam muito ajudar e cuidar as criancinhas, os velhinhos, os doentinhos e até os pobrezinhos. Ouvi de tudo... ao ponto de me interrogar se eu algum dia seria boa enfermeira.

Diz-me ela:

– Hoje ninguém vem para enfermagem por vocação.

E continuou:

– Nós vamos para a enfermagem porque não entramos em medicina, farmácia ou outro qualquer curso mais de nosso agrado.

Eu respondi:

– Eu também não fui. No meu caso foi por conveniência familiar. Eu fui porque um dia um dia a minha mãe, que eu já tinha reparado andar muito pensativa, disse-me que o dinheiro era pouco para pagar o meu Externato, que era particular, porque não havia liceu na minha Vila. E assim sendo, talvez fosse melhor eu interromper e ir para um curso para que me permitisse, ao fim de 3 anos ter uma profissão, um ordenado e logicamente ser independente monetariamente. Respondi, à minha mãe, que gostava de ir para a Universidade.

– Que curso gostavas de fazer? – perguntou ela.

– Não sei…

Pegou-me nas mãos e continuou:

– Sabes que eu acho que tinhas jeito para seres enfermeira ... Penso que era bom para ti...

E acrescentou:

– Verás que vais gostar.

Ficou logo ali, definido o meu destino.

Apesar das minhas dificuldades, sobretudo económicas, lá fui aprender a ser enfermeira sem saber muito bem o que me esperava.

Fui para o Porto estudar. Na minha primeira escola, adquiri obrigatoriamente um livro; Técnica de Enfermagem, que era da Escola da Imaculada Conceição (Casa de Saúde da Boavista no Porto) que alguém informou a minha mãe ser uma boa escola, e foi aí que fiz o primeiro ano.

Os dois anos seguintes foram feitos numa outra escola que, passado pouco tempo descobri, que ficava mais económica.

Uma coisa que pesou muito era haver nesta segunda escola, um lar onde residiam as alunas que não eram da cidade do Porto, isso não acontecia com a Escola da Boavista, ficando assim bem mais barato.

Dessa primeira escola, não esqueci os desenhos logo na primeira folha do livro de Técnica de Enfermagem. O primeiro era uma cabeça feminina, com uma touca de enfermeira da época, sobre cabelos curtos e várias setas apontando para os mais diversos pontos da mesma, onde estavam enumeradas as qualidades indispensáveis de uma boa enfermeira: inteligência, memória, conhecimento, espírito de observação autodomínio, reserva.

Um pouco abaixo, mais dois desenhos. Um deles era um coração (forma humana), com três setinhas apontando para as palavras: compreensão, sensibilidade, bondade.

Do outro lado mais um desenho, duas mãos segurando uma seringa com mais três setas indicando: segurança, desembaraço, leveza.

Estas eram as qualidades indispensáveis a uma boa enfermeira no Ano de 1963. Dessa mesma Escola de Enfermagem.

Com a continuação do tempo, fui interiorizando estes conceitos e aceitei-os como compromisso. Mesmo quando me deparava com determinada tarefa que me custasse fazer, sempre pensava nas setinhas do coração e nunca deixei de as executar e muito menos pedir a alguém que a fizesse por mim, por mais que me custasse ou até mesmo me enfastiasse...

A minha vocação se calhar só a minha mãe a viu...! O certo é que sempre vivi a minha profissão com gosto, com proximidade daqueles que em determinado momento precisavam de uma enfermeira que se entregasse em plenitude.

A enfermagem, para mim, passou a ser vivida com grande rigor ético e com permanente desafio na aquisição de saberes, para melhor cuidar.

Hoje mais que adulta, penso: é impressionante como sempre me apercebi da mutabilidade dos conceitos, da sua significação ao longo dos tempos, da importância do progresso e da evolução da enfermagem.

É um gosto ver o enriquecimento que, ano após ano, se verifica na formação dos enfermeiros, na perceção da necessidade da existência das especialidades em enfermagem, do avanço científico da mesma. Orgulha-me ver o patamar que atingiu a enfermagem de hoje, e a respeitabilidade que os países estrangeiros manifestam ter pelos Enfermeiros Portugueses.

Em relação a mim, sempre fui movida pelo desejo de um saber abrangente na arte do cuidar em enfermagem.

Assim para fazer frente aos mais variados desempenhos que tive durante quarenta anos, e fazê-los de forma responsável e eficaz, apostei na formação contínua durante toda a minha vida profissional.

Ainda pensei fazer uma especialidade, um pequeno grupo de enfermeiras paraquedistas a fizeram, quando estas começaram a surgir. Mas logo percebi que não encaixava na minha personalidade ter sempre o mesmo tipo desempenho e conclui que só serviria para obter mais um título.

Sempre tive uma grande vontade de um saber alargado, para dar resposta às variadas necessidades do ser humano, num período desafinado do seu estado físico ou mental.

Essa simbiose entre um crescendo desejo de experiências e o dinamismo aportado pela minha juventude, foi o motor causador para uma formação variada e contínua.

Nesta caminhada transformadora, tive um desempenho multifacetado e a formação contribuiu muito para um crescimento profissional que, embora despretensioso, foi significativo, permitindo-me para além de aquisição de vários saberes, entender melhor a alma humana e sempre me senti feliz por isso.

Não fui para nenhuma Faculdade na minha juventude, mas completei, bem mais tarde, todo o Liceu (designado hoje como Ensino Secundário).

Quando do Acordo de Bolonha, a enfermagem passou a Curso Superior, já tinha passado quarenta anos e depois de ter iniciado o antigo Curso Geral de Enfermagem, eu regressei à escola para fazer mais um ano, o que fiz na Escola Superior de Enfermagem Francisco Gentil (anexa ao IPO e hoje integreda na ESEL - Escola Superior de Enfermagem de Lisboa) sendo me conferido o grau de licenciada em enfermagem. Sou agora Licenciada em Enfermagem desde 2003, quando ainda eu estava a exercer funções.

Por graça costumo dizer que iniciei o meu Curso de Enfermagem e só o terminei quarenta anos depois.

Também confesso que a obtenção de várias competências, e tão variados desempenhos que tive no contato direto com doentes, proporcionou-me um sentimento de realização muito intenso, e ainda hoje me sinto orgulhosa pelo percurso que tive e, muito, muito feliz, por ter sido uma simples Enfermeira Generalista (sem especialidade). (...)



Rosa Serra, hoje (2020)


(ii) A guerra e a sua violência... mas também havia situações  "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos, tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...) 


No Hospital de Cascais onde há tempos estive  internada,  ficaram admiradas, as jovens  enfermeiras, quando, ao responder a uma pergunta delas,  comecei a desfiar os vários locais e as experiências de trabalho que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista.

Naturalmente que não escondi que foi uma experiência profissional interessante, mas acrescento sempre que essa realidade foi muito específica e muito diferente da prestação de cuidados em outros contextos, mas talvez não superior aos desempenhos como enfermeira, antes e depois, dos anos que estive ao serviço da Força Aérea.

A Arte do Cuidar é muito variável e sempre adaptada ao contexto onde se exerce. A nossa ação, como enfermeiras paraquedistas, foi num palco de guerra, que desencadeava estados de stresse elevado, sendo necessário geri-lo com mestria, para que a nossa intervenção fosse útil e eficaz. Tínhamos de ter atenção ao nosso estado emocional, pois ele refletia-se naqueles que eram socorridos por nós.

Foi uma mais valia fazermos o curso de paraquedismo, que não nos ensinou a ser enfermeiras, pois já o eramos antes de entrar no RCP - Regimento de Caçadores Paraquedistas, mas foi durante o curso de paraquedismo que aprendemos a controlar os nossos medos e emoções, para que aterrássemos em segurança. Esse treino repercutiu-se na nossa ação, que passou a ser mais calma e mais eficaz.

Os nossos combatentes tinham uma confiança ilimitada nas enfermeiras paraquedistas, foram eles que nos apelidaram de “Anjos“ que desciam do céu para os socorrer. Acredito que a maioria de nós, se não todas, se via como seres espirituais, mas foi uma expressão carinhosa, utilizada pelos nossos combatentes.

Com os pilotos, quando alguma coisa os preocupava, nós, mesmo não entendendo nada de aviões, tentávamos acalmá-los.

Recordo de uma vez na Guiné. O sr. capitão, piloto aviador Cartaxo, ao atravessar o Rio Geba, o maior rio da Guiné, que ficava em frente à cidade de Bissau, par irmos buscar um paraquedista à outra margem desse rio, deparou-se com um inesperado nevoeiro que, sem qualquer “aviso”, fechou o nosso caminho, impedindo que o rumo que estava traçado inicialmente, teria de ser alterado ou adiada a missão. Já estávamos a sobrevoar Tite quando esta alteração climática aconteceu.

De início, o piloto tentou ultrapassar as nuvens, e eu também fiquei atenta ao comportamento das mesmas e andamos ali um bom bocado a sobrevoar Tite, na expetativa de não ser necessário regressamos a Bissau, sem a nossa missão cumprida que era trazer o nosso ferido.

– Olha ali, as nuvens estão a abrir e a nosso favor – disse eu, mas o Capitão mexia na manche,  alheio à minha informação.

Eu sem perceber por que razão o seu foco era apenas os instrumentos da aeronave. Só no fim de uns bons minutos, acedeu ao meu pedido e acabámos por aterrar no aldeamento donde vinha o pedido.

A pista que nos recebeu era de terra batida, cujas pedrinhas batiam na fuselagem da frágil avioneta, uma DO-27. O ferido que íamos buscar era um paraquedista da companhia do, na altura,  capitão paraquedista Terras Marques [CCP 121 / BCP 12],   que na noite anterior pernoitara nesse quartel do Exército, vindo de uma operação.

Quando aterrámos, chegou até nós o militar ferido,  que já apresentava alguma dificuldade respiratória, porque ao cair da tarde foi tomar banho a um pequeno rio, mergulhando numa parte baixa e lesionou a coluna cervical, razão suficiente para eu pedir ao capitão que pedisse à BA 12, em Bissalanca, para ter um helicóptero disponível na pista à nossa chegada.

O hospital militar [ o HM 241, em Bissau, ficava relativamente perto da BA 12, mas não seria indicado ser transportado por terra, percorrendo uma estrada de piso degradado até lá.

O sr. capitão piloto aviador acedeu ao meu pedido e, quando aterrámos na BA 12, lá estava o Alouette III à espera. Fez-se transferência do ferido para o helicóptero e, antes de ele descolar, coloquei dois frascos de soro em cada lado do seu pescoço, para o manter minimamente estável e já não o acompanhei até ao hospital. O trajeto era demasiado curto, não justificava minha presença durante a viajem.

Depois do helicópetero levantar voo rumo ao Hospital Militar de Bissau, virei-me para o aviãozinho, para perguntar ao capitão se queria acompanhar-me ao bar dos pilotos para tomarmos o pequeno almoço, e qual não é o meu espanto quando vi num buraco na asa do avião, e em cima dela estava um cabo mecânico da Força Aérea que, com ar animado, informa:

– Meu capitão, já a encontrei.

Foi quando vi o furo no DO-27 e ingenuamente disse ao capitão:

– Eu,  quando ouvia as pedras a bater na barriga do avião,  pensei que estas iriam criar moça ao nosso aviãozinho. 

Ele não reagiu à minha observação. Só no bar dos pilotos, não ele, mas quem ouviu a sua narrativa, ria descaradamente na minha cara. Até eu ri pela minha ignorância e estupidez.

Por vezes parecia que vivíamos num mundo de “anedotas”, estou a lembrar-me de outra reação que os pilotos tinham quando chegava um avião da TAP, com passageiros idos de Lisboa.

Após o almoço no Bar dos Pilotos, onde geralmente eu tomava café, de repente alguém me segura por um braço e diz:

– Vamos já para a pista.

E um deles arrasta-me me para dentro de um jipe que já estava à espera dos meninos pilotos, nesse dia acompanhados por uma enfermeira paraquedista. Explicaram-me:

– Vamos ver as miúdas que vêm de Lisboa.

Quando chegamos muito perto da pista, e na distância permitida, estacionaram o jipe e lá ficamos a olhar o belo avião TAP, de portas abertas com um assistente de bordo à espera da colocação das escadas, por onde desceriam os passageiros que chegavam de Lisboa.

Colocada a escada, os passageiros aparecem começando a descer os passageiros e iniciou-se o alvoroço:

– Olha a loiraça que aí vem, é o máximo – diz outro.

E eu pensava:

– Estão todos apanhados pelo clima, o que é que eu tenho a ver com isto?!

Até que de repente se instala a desilusão total e começaram a lamentações, dizendo:

– Ó, pá, é a Rosa Exposto (uma enfermeira paraquedista)

Eu arregalei os olhos, pensando como é enfermeira paraquedista já não interessa!... Mas, ri com gosto, pela desilusão dos nossos amigos pilotos.

"Essa enfermeira é gira mas é... uma enfermeira paraquedista", acredito que a frase, dita à minha frente, os incomodou por considerar o comentário pouco respeitoso.

Foi bom confirmar que, para além dos paraquedistas, também os pilotos tinham alguma preocupação em terem atitudes delicadas, pelo menos na nossa presença. (...)


(iii) Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)  ... O último salto que fiz,  foi em dezembro de 1973,  quatro meses antes de passar à disponibilidade

E continuei seguindo a ordem das perguntas, agora sobre as desilusões  que expliquei não ser no plano pessoal, mas que foi nesta passagem pela Força Aérea, que despertei para os interesses de algumas pessoas, uma delas que serviu mal a Força Aérea, mas aproveitou-se bem dela, com incapacidades falsas, dadas por médicos sem escrúpulos, e que todos nós pagámos com os nossos impostos, para essa pessoa estar isenta de IRS com uma alta incapacidade há mais de quarenta anos.

É a única mulher “combatente” na lista dos deficientes das Forças Armadas, dos antigos combatentes da guerra do Ultramar Português. Desculpem a expressão, é uma “ovelha tresmalhada”, para nossa tristeza e desilusão, que não pode servir de exemplo para ninguém.

É triste ver uma nossa enfermeira, sempre saudável, que ignora os princípios éticos, inerentes à sua profissão, a Enfermagem.

Foi ainda como enfermeira paraquedista que despertei para muitos outros interesses que me escandalizaram:  caso dos Açores.

Sempre achei estranho situar-se na Ilha Terceira, um minúsculo hospital, rotulado como Hospital da Força Aérea, existindo apenas nessa ilha uma única Unidade Militar (BA 4) que, se algo acontecesse aos jovens militares, poderiam recorrer ao hospital civil, de Angra do Heroísmo, enquanto que no Continente existiam várias Bases Aéreas espalhadas pelo País, e sem qualquer hospital desse Ramo.

Os militares da Força Aérea só poderiam ser tratados ou socorridos no Hospital Militar da Estrela.

Nesta ilha açoriana existia um médico, salvo erro graduado em tenente coronel, que,  ao saber da existência de enfermeiras paraquedistas e sendo amigo do Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, pediu a este se poderia enviar duas delas aos Açores, pois gostaria de as conhecer.

O Senhor Diretor assim fez, enviou duas enfermeiras que, ao chegarem lá, arregaçaram as mangas e com o seu profissionalismo, deram uma volta tal à orgânica, dos fracos serviços de enfermagem lá prestados, que o sr. Diretor gostou tanto que avançou logo com novos pedidos, ao seu amigo de Lisboa. Como os argumentos que iria usar, acreditava ele, que o Diretor de Lisboa não iria recusar.

A primeira proposta foi para que as enfermeiras paraquedistas, após o curso de paraquedismo e como forma de adaptação aos Serviços de Saúde Militar, passassem a fazer um estágio no Hospital da Terra Chã e só depois seguiriam para o Ultramar.

(Note-se: nessa altura havia uma enfermeira que quando se candidatou a paraquedista, desempenhava as suas funções no Serviço de Urgência do Hospital Central da Cidade onde trabalhava e, pasmem-se, também essa foi fazer estágio aos Açores no pequeno hospital da Ilha Terceira. Enquanto que o primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas, após concluído o curso de paraquedismo, foi fazer um estágio no Serviço de Urgência do Hospital de S. José. Espantados…? Eu também.)

Voltando ao nosso Diretor da Terra Chã:  pouco tempo depois, deparou-se com um obstáculo, houve anos em que nenhuma enfermeira se candidatou a Enfermeiras Paraquedista.

Esperto como era, o Senhor Diretor dos Açores apresentou nova ideia ao seu amigo de Lisboa:  

–  Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea Portuguesa  argumentou ele –, coitadas das nossas enfermeiras, com um trabalho tão desgastante no Ultramar, bem merecem descansar nesta pequena, pacata e linda Ilha Açoriana durante uns tempos.

E para lá foram descansar algumas. Mas,  como em tudo, há sempre alguém que não está na Força Aérea para fazer favores a este tipo de pessoas, até que chegou o dia em que o sr. Diretor de Lisboa informou essa enfermeira que teria de ir para os Açores.

Essa senhora enfermeira foi, mas apenas para arranjar argumentos suficientes para nunca mais lá pôr os pés. Passado pouco tempo da sua estadia na bela Ilha Açoriana, a mesma enfermeira foi à BA 4,  pediu uma viagem para Lisboa e apresentou-se na Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, colocando os seus motivos para não voltar aos Açores.

Perante os argumentos apresentados,  o sr. Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa ligou logo para a  ilha, informando o seu amigo e lamentando que a dita enfermeira tinha argumentos demasiado fortes para não ir para os Açores. E acrescentava que, de facto, as enfermeiras paraquedistas, não tinham sido  criadas para essas funções.

O diretor Açoriano, com a sua prepotência, barafustou até se cansar e rematou que não era a sra. enfermeira que se recusava, era ele que não a queria lá, pelo seu mau feitio.


A então ten enf pqdt Ivone Reis, em Cacine,
12/12/1968. Nasceu em 1929, faleceu em 2022.
Foto: António J. Pereira da Costa (2013)



Como curiosidade, que eu saiba, do primeiro curso de enfermeiras paraquedistas foi esta a única enfermeira paraquedista que,  no ano seguinte após concluído o curso de enfermeiras paraquedistas, lhe foi atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência,  dada pelo sr. Presidente da República Américo Tomás, visto e registado a fl. 109 L.2 Decreto de 28 de fevereiro 1962, publicado no Diário do Governo nº 73, 2ª série de 27/3/1962, Expedido pelo Chancelaria das Ordens Portuguesas aos 3 de abril, de 1962, nº 1588. Por tanto cerca 6 meses depois, do primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas terminar a meio de agosto de 1961.

Em cima  a foto do respetivo diploma cujo original foi oferecido para o museu do 
Regimento de Caçadores Paraquedistas (RCP), em Tancos, no dia 15 de outubro de 2022.

Entretanto o  RCP, em Tancos, que tinha uma elevada noção de guerra, sabia que os primeiros socorros em terra, mesmo antes do Helicóptero de Socorro chegar, são importantes e, como tropa organizada e inteligente que é, teria de ter sempre alguém capaz para analisar qualquer situação, como: proteção à clareira onde o Helicóptero pudesse aterrar em segurança, assim como alguém devidamente preparado, que prestasse os primeiros socorros aos seus camaradas feridos, até esta aeronave chegar e os levar para o hospital.

A Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea apenas se preocupava com os ditos “enfermeiros” da Força Aérea, que nos Açores aprendiam a dar comprimidos, injeções e a desinfetar pequenas escoriações e com fracas noções de assepsia.

Os paraquedistas resolveram a sua questão, não deixando que a Direção de Saúde da Força Aérea de Lisboa resolvesse o seu problema. Assim, nomearam enfermeiras paraquedistas, em anos diferentes para,  no próprio Regimento,  darem um Curso Avançado de Primeiros Socorros aos seus camaradas paraquedistas, acompanhando-os no respetivo estágio feito no Hospital Militar Principal em Lisboa.  

E os socorristas Paraquedistas ficaram mais bem preparados, e de forma mais adequada e mais eficaz, para poderem cuidar dos seus camaradas quando feridos ou doentes, até o Helicóptero chegar e os levar para o hospital.

Deixaram assim os “enfermeiros” da Força Aérea, sossegados nas suas Bases Aéreas,  a fazerem precárias tarefa tal como lhes ensinaram.

Foram três enfermeiras paraquedistas que, em anos diferentes, foram nomeadas para darem formação adequada aos seus camaradas socorristas paraquedistas e os acompanharam no seu estágio no Hospital Militar da Estrela em Lisboa.

Quando chegou a minha vez, após dar à formação aos nossos socorristas paraquedistas, com respetivo acompanhamento do estágio feito no Hospital Militar da Estrela, aproveitei e formulei um pedido ao nosso comandante, sr. coronel Fausto Marques, autorização para fazer o curso de instrutores e monitores, tal como a enfermeira Manuel França o tinha feito 2 ou 3 anos antes. 

Fui autorizada e concluí-o com muito gosto. Fiz este curso apenas pelo prazer de saltar e considero ter sido mais um contributo para o meu próprio equilíbrio. Devo este prazer de saltar ao meu instrutor do curso de paraquedismo, na altura o senhor sargento pqdt Nogueira, meu querido instrutor, que me estimulou o prazer de saltar.

Sempre me disse que eu saltava muito bem da torre e por isso podia perfeitamente tirar partido desses momentos mágicos que os saltos nos proporcionam. Dizia-me ele; 

–   Primeiro logo que larga a porta,  mantem o corpo recolhido e conta 232, 233, 234, que é o tempo para a calote se soltar do arnês e abrir. Depois é necessário verificar se todos os cordões não estão enrolados, e saber de que lado vem o vento. Com os pequenos minutos que lhe restam,  aproveita para olhar mais longe, ver o horizonte, ver a terra de cima. Depois certifica-se de que lado vem o vento e,  se necessário,  fazer trações, para que este não a leve para zonas não aconselhadas, evitando assim acidente.

Sempre fiz isso, tudo como ele me ensinou. Apenas me surpreendeu o silêncio, que o “escutei“ com surpresa e foi maravilhoso. Razão por que anos mais tarde pedi ao nosso primeiro comandante Fausto Marques, para fazer o curso de instrutores e monitores só pelo prazer de saltar. Foi meu instrutor neste curso o sr. capitão pqdt João Costa Cordeiro que, quando acabei o curso me convidou para um jantar em Abrantes com ele e com a sua esposa.

Fiquei tristíssima quando,  poucos anos depois,  ele foi para a Guiné e morreu num salto de queda livre.

Fiz vários saltos, sendo o último feito na Beira,  em Moçambique. quando de passagem para Lisboa, vinda de Mueda no fim da minha comissão, aguardando no BCP 32 pelos feridos, que vinham de Lourenço Marques. 

O primeiro foi um salto automático e,  acabada de chegar a terra e logo de seguida,  vi a filha do engenheiro Jardim, a Carmo, junto a um Helicópetro da Força Aérea,  equipada para fazer um salto manual, eu que estava junto de um paraquedista perguntei-lhe se havia um paraquedas para eu fazer um salto manual. Como foi buscar de imediato um, eu informei o piloto, que estava já dentro da aeronave,  que também eu ia saltar. 

Assim foi,  entrámos as duas, e a Carmo nem “tugiu nem mugiu", simpática pensei eu, mas ignorei a presença da dita filha do engenheiro Jardim, entrámos. Ela ficou mais perto da porta quando já estávamos numa altura suficiente,  já não sei a quantos metros de altitude, ela saltou e, de seguida, saltei eu. Foram os dois últimos saltos que dei e a última comissão que fiz. Fins de dezembro de 1973.

É de notar que nunca viemos como passageiras, mesmo em fim da comissão, sempre viemos prestando cuidados e assistência aos feridos durante toda a viagem até Lisboa. (...)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas: LG]
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Nota do editor:

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24956: E depois da peluda... a luta continua: as minhas escolas (Joaquim Costa) - Parte IV: Enfim, em casa!... Famalicão, a minha terra...

 


Foto nº 1 > Vila Nova de Famalicão > Edifício, emblemático,  da Câmara Municiap (1961), da autoria do arquiteto Januário Godinho.


Foto nº 2 > Vila Nova de Famalicão >   O Edifício da Lapa, antigo hospital, e posteriormente liceu da cidade, hoje sede da Universidade Lusíada.
 


Foto nº 3 > Vila Nova de Gaia > 2023 > O Joaquim Costa, num esplanada ribeirinha, com o casarinho histórico da sua amada "Invicta"  ao fundo.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1. Continuação da nova série do Joaquim Costa:  "E depois da peluda... a luta continua: as minhas escolas"... (*)


(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022) , e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;

(v) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar;

(vi) minhoto, de Vila Nova de Famalicão , vive em Rio Tinto, Gondomar;

(vii) tem página no Facebook.


E depois da peluda... a luta continua: as minhas escolas (Joaquim Costa) - Parte IV:  Enfim,, em casa!... Famalicão, a minha terra...


Enfim, em casa!!!

O sonho de qualquer professor é ser colocado na sua terra (Foto nº 1). Contudo, eu não aconselho.

Ser professor de filhos de colegas, de familiares, de conhecidos, etc. não é tarefa fácil. Seja em casa, no café, na rua, no jardim, na feira ("ó mãe,  olha o meu professor!"), mil olhos sempre postos em nós. Nunca podíamos pôr o pé na "poça".

Por todas estas razões estavam criadas as condições para não ser um ano fácil. E assim foi:

− Só um 4 para o Francisco!?

− Médio, Médio, Médio, Médio! Ao menos um Elevado!!

− Na reunião do conselho de turma um pouco de água benta para a Maria!

Algumas das amizades azedaram um pouco e alguns familiares deixaram de me convidar para os batizados.

Fiquei ao menos de consciência tranquila, não obstante acabar por reconhecer que alguns destes alunos acabaram por ser prejudicados porque me coloquei, algumas vezes, no papel de mulher de César: "Não basta sê-lo,  é preciso parecê-lo."

A coisa não correu bem logo no meu primeiro dia.

Apresentei-me ao diretor, que me recebeu cordialmente, pois, embora não fosse alguém das minhas relações de amizade,  conhecíamo-nos por frequentar o mesmo café. Perguntei se se encontrava na escola um colega professor, meu amigo, de longa data, de nome António.

Resposta pronta do homem:

−  Se é o que eu penso está na cadeia. 

Fiquei atónito. O António na cadeia!? Ainda há dois dias estive com ele!

Estava eu a digerir aquela bombástica notícia, com suores frios e as pernas a cederem, enquanto o homem com toda a calma do mundo e um sorriso cândido procurava o meu horário no meio de uma selva de papeis.

Com a voz trémula ainda afirmei: 

− Tem a certeza?!...

Entretanto entra no gabinete outro elemento da direção a quem o diretor pergunta:
 

 Ó Francisco, o professor António está na cadeia, não está?!

Responde a criatura,  parecendo-me com voz de compaixão:

− Ainda hoje estive lá a conversar um pouco com ele. 

Fiquei de rastos, o meu amigo António na cadeia, o que terá feito de tão grave?!

Entretanto o Diretor lá encontra a agulha no palheiro (o meu horário) e afirma com um sorriso de menino:

− E o colega também vai para a cadeia!

É então que olho para o meu horário e vejo escrito no lugar do nome da sala de aula a palavra: CADEIA.

Assim mesmo, a escola funcionava no antigo hospital (a sede) (Foto nº 2).   e na antiga cadeia, que distava 500 metros da sede. Embora eu já não residisse na cidade há vários anos,  tinha conhecimento que o antigo liceu funcionava no hospital, mas desconhecia em absoluto que também funcionava na antiga cadeia e mesmo que existia.

Aqui a sala de professores funcionava no antigo recreio dos reclusos e as salas de aula nas antigas celas. O edifício não sofreu nenhuma alteração estrutural da antiga cadeia, pelo que as salas de aulas (as celas) mantinham uma pequena abertura junto ao teto, onde entrava apenas um fio de luz. Mantinha a porta de ferro reforçada que pesava uma tonelada, que fechava só da parte de fora com uma ferragem dos anos 30.
 
Todos os professores davam aulas de porta aberta.

Eu, para além de dar as aulas de porta aberta, ficava sempre de pé junto à mesma com medo que alguém a fechasse, pois sempre sofri de claustrofobia. Era uma brincadeira frequente quer de alunos quer mesmo de professores.

Com a massificação do ensino, com muita imaginação, se encontraram soluções de recurso para acomodar tantos alunos: antigos hospitais, antigas cadeias, antigos tribunais bem como os famosos pavilhões pré-fabricados em madeira.

Joaquim Costa (Foto nº 3)

(Revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24932: E depois da peluda... a luta continua: as minhas escolas (Joaquim Costa) - Parte III: Primeiro, Santo Tirso, a seguir, Portalegre e logo... Santarém (onde fiz a minha formação pedagógica)

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24673: Convívios (973): Rescaldo do 36.º Convívio do pessoal da CART 3494 / BART 3873 levado a efeito no passado dia 16 de Setembro, em Abade de Vermoim - Vila Nova de Famalicão (Sousa de Castro)



A CART 3494 / BART 3873 CONFRATERNIZOU EM ABADE DE VERMOIM – V. N. FAMALICÃO, FOI O 36.º CONVÍVIO


No passado dia 16 de setembro realizou-se em Abade de Vermoim, freguesia do concelho de Famalicão o 36.º Encontro da CART 3494 / BART 3873 [NA GUERRA CONSTRUINDO A PAZ] que no cumprimento do dever ao serviço do Estado Português participou na guerra do Ultramar na Guiné, na zona leste, nomeadamente no Xime com 1 pelotão destacado no Enxalé, transitando mais tarde para Mansambo de 22/12/1971 até 03/04/1974.

O evento esteve a cargo do ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas – Adelino Alves Pereira com a colaboração do ex-1.º Cabo Radiotelegrafista - Sousa de Castro.


Tivemos algumas ausências de última hora, justificadas pela intempérie que se abateu em todo País, mesmo assim 34 “antigos combatentes” muitos com seus familiares mobilizaram-se e fizeram-se à estrada para mais um encontro e assim conviver, relembrando histórias passadas, mas que nunca esquecem. Foram 70 comensais. Muito Bom! Tem sido a média dos últimos anos.

Lembro, que é do nosso conhecimento a desencarnação de 38 camaradas, a quem prestamos a mais sentida homenagem, guardando 1 minuto de silêncio.

Uma palavra de ânimo para o nosso camarada d’armas, Celestino da Cunha Rodrigues (foto abaixo) que devido às suas limitações impostas pela saúde precária de que padece, a sua família, especialmente sua esposa, fez questão para que o Celestino mesmo em cadeira de rodas, convivesse uma vez mais com os seus camaradas. Era a sua vontade! Força nessa vida Celestino, estamos juntos!


Por fim dizer que para o próximo ano iremos comemorar as bodas de ouro da nossa chegada a Portugal. Já temos data, será no dia 08 de junho de 2024 em local a designar.
Foram nomeados o ex-Fur Mil TRMS – Luís Coutinho Domingues e o ex-Fur Mil Art – Manuel Benjamim Martins Dias (fotos abaixo).


Bem hajam!
Muita saúde da boa,
Setembro 2023
Sousa de Castro


FOTOGALERIA

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)

domingo, 18 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23891: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte I: A pomada milagrosa

Vila Nova de Famalicão  > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), seguindo-se os irmãos: Maria, Avelino, Manuel (que esteve na Guiné), Eduardo (o columbófilo) e na fila da frente o João (o Don Juan da família) a Noémia e o Joaquim, o mais novo.

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Joaquim Costa, ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74); membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021; autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022).

Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.


 1. Mensagem do Joaquim Costa, com data de 27 de novembro passado:

Bom dia, Luís: como vai essa perna? Espero que em plena recuperação.

Por sugestão do nosso camarada Beja Santos envio partes do meu livro, no qual faço referência à família e infância, para caso de consideres pertinente o partilhares com os camaradas e amigos do blogue.

Sempre a considerar-te e um grande abraço. Joaquim Costa. 


2. Comentário do editor LG: 

Obrigado, Joaquim. São histórias dos primórdios do "Tigre Azul" e  "Furriel Pequenina", que complementam o teu  livro "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel pequenina".  É verdade, todos temos uma origem, uma mãe, e quase sempre um pai e, naquele tempo, um bando de irmãos... E, na maior parte dos casos, uma alcunha... A infância e a adolescência da geração que fez a guerra e a paz, não diferem muito de Norte a Sul, de Vila Nova de Famalicão à Lourinhã.  Estas memórias, que faziam parte do plano original do teu livro, têm todo o cabimento no nosso blogue.  Para mais, estão recheadas com o teu saudável e fino humor. Saúdo, por isso, a tua reaparição. E aproveito para te desejar, a ti e a toda a família, um Bom Natal e um Melhor Novo Ano de 2023. Em meu nome e dos demais editores e colaboradores permanentes do blogue. Eu, por cá, vou indo... Um alfabravo fraterno. LG
 

 Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã. 1972/74) - Parte I:  A pomada milagrosa

O tigre azul ou tigre maltês (espécie muita rara), foi visto na província chinesa de Fujian. Eu asseguro que existiu uma família desta linda espécie em Vila Nova de Famalicão

Sendo o sétimo filho do José e da Gracinda, tendo em conta a época, nasci em berço de ouro,
o mesmo não podem dizer-se dos meus irmãos.

O pai Zé e a mãe Gracinda viveram a miséria dos tempos da primeira e da segunda guerras mundiais e da gripe espanhola, saindo destes conturbados acontecimentos sem esmorecerem, continuando a lutar, resilientes, por uma vida melhor para a família

O Zé, naquele contexto, trabalhou numa pedreira (de granito), mais escultor que pedreiro, tal a arte como trabalhava a pedra. Não tendo frequentado a escola, lia o jornal (devagar, devagarinho), e fazia contas como ninguém. Quase “bacharel”, na aldeia abriu uma pequena mercearia/taberna, que para além de melhorar as sua condição de vida, lhe deu estatuto social e garantia de eleitor, na União Nacional, claro! (manga de ronco).

A minha memória está cheia de memoráveis e ternurentas histórias vividas com o meu pai, mas a da ida ao médico...!!!

O meu pai andava há vários dias a queixar-se com dores nas costas, situação que não o deixava dormir nem fazer as suas lides diárias no amanho de um pequeno terreno. A minha mãe já não suportava tanto queixume, lembrando que também lhe doía um joelho e que não se queixava tanto. Contudo, sugeriu, para sossego dela e dele, que fosse ao médico, ao Dr. Cândido, proprietário de uma quinta na região, e grande produtor de vinho.

A insistência da minha Mãe acabou por o convencer. Vai daí, convidou-me para ir com ele ao dito médico. O percurso acidentado para a casa do médico foi feito em esforço, com paragens frequentes para dar descanso às costas do meu pai. As queixas eram tantas que até eu sentia as dores do Velho.

Chegados à casa senhorial do médico, depois de uma caminhada sofrida, demos dois puxões ao arame que acionava uma sineta de bronze, acordando os cães, que foram os primeiros a chegar ao portão. Logo de seguida chega a empregada, de avental branco de linho com “folhinhos” de renda, que lhe dava um ar angelical, nossa conhecida, que saúda o meu pai:

  Então, sr. José! Tudo bem lá em casa? O que o traz por cá? Coisa boa ou coisa má?... (coisa boa se vinha comprar vinho, coisa má se vinha por causa de alguma maleita.)

Respondeu o meu pai que gostaria de ser consultado pelo Doutor, sobre uma ligeira, mas incomodativo, dor de costas:

 Muito bem,  sr. José, entre e espere um pouco neste banco de pedra que eu vou chamar o patrão que está lá para baixo para o lameiro.

Passados uns bons minutos chega o Dr. Cândido, de galochas enlameadas, de enxada na mão, chapéu de palhinha na cabeça, camisa branca salpicada de suor, mancando ligeiramente:

  Boa tarde,  sr. José, desculpe a minha demora mas ultimamente tenho andado com umas dores nas costas que nem me deixa dormir nem fazer o que mais gosto que é as minhas caminhadas pelos campos. Mas não vale a pena a gente queixar-se Sr. José, tal como sabiamente dizem os homens na sua taberna, é o “PêDêI”, e quanto a isso nada há a fazer a não ser aligeirar esta maldita dor com a pomada da adega.

Fomos então encaminhados para a dita adega (o consultório) onde o bom homem e excelente médico (o nosso João Semana) partiu um pouco de pão de milho, ainda quente, acabado de sair do forno, e avantajadas fatias de presunto. Enquanto ia tirando o batoque da pipa para vazar vinho para uma caneca de barro, pergunta ele ao meu pai:

  Então o que o trás por cá, sr. José?

O meu pai ficou desarmado pelo desabafo do médico e já não teve coragem para dizer ao que vinha e começou a gaguejar, acabando por dizer que vinha saber se ainda tinha alguma pipa disponível para venda.

“Bucha” de pão e naco de presunto puxa pela pinga… a pinga puxa pelo pão e pelo naco de presunto e este pela pinga e assim sucessivamente até a conversar começar a tropeçar no arrastar das palavras.

Abruptamente, enquanto se sentia, ainda, algum discernimento, avançou-se para o negócio

Selou-se o mesmo com mais um brinde, e, já com as dores de costas atiradas para trás das costas, regressamos a casa, com o meu pai curado, dada a desenvoltura e alegria como caminhava, e ainda com uma garrafa de vinho no alforge oferecida pelo médico.

Chegados a casa, logo a Gracinda perguntou ao Zé:

  Então! e o médico, receitou-te alguma coisa para as costas?

  Deu-me lá uma pomada milagrosa que me limpou logo a dor.

  Ainda bem! E trouxeste mais dessa milagrosa pomada?

 
  Trouxe...

  Dá cá então para eu pôr também aqui no meu joelho a ver se me dá cabo desta dor malvada…

 
   Diacho de mulher!…     desabafa o Zé.

(Continua)

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