
Queridos amigos,
Testemunhar é um assunto sério. Pode-se falar de cabriolices, encontros com sardinhadas, recordações de figuras patuscas, peripécias de erotismo juvenil e muito mais, em dado momento chega a hora da veneração e a veneração é o encontro e o reencontro, em nome do que se experimentou naquele conjunto que agora convive periodicamente, diminuindo os efetivos de ano para ano, imensuravelmente.
Tomo estes testemunhos como porta-estandartes ou lampiões alumiados que se recusam a diferenciar a noite do dia, estão acesos em nome de uma causa que se chama o dever de memória, e nesse dever de memória cabe o homem por inteiro, é o que José Ferreira faz falando de todas as suas experiências de vida, dos cruzamentos que se teceram, de tal modo que em dado momento chegamos ao teatro de operações e ele não se cansa, impante, de falar de uma flâmula que enobrece a história da CART 1689, a mesma que lançou as bases do tenebroso octógono de Gandembel.
Um abraço do
Mário
Recordar, recolher, semear alegrias e solidariedades:
Um incansável ex-combatente que ata e desata entre o passado e o presente
Beja Santos
O José Ferreira teve a gentileza de me enviar o terceiro volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", matéria publicada no blogue que, curiosamente, ganha outra expressão na dimensão do livro. O epicentro da trama é a sua unidade, a CART 1689 e depois o rodopio dos locais percorridos, não faltaram Catió nem Gandembel, e muito menos Cabedú, Dunane e Canquelifá. Dei comigo a pensar noutro peregrino em Dunane, Cristóvão de Aguiar, o seu livro "O Braço Tatuado" aqui aconteceu o desfecho dramático que ele primorosamente narrou.
Estes relatos obedecem à lei do Caleidoscópio, remexemos as pedras e recriam-se novas visões do muito semelhante que qualquer outro combatente experimentou: amores de ocasião ou paixões furibundas; a homenagem aos enfermeiros, gente desveladíssima que atendia desafortunados da saúde nos postos e que eram conhecidos por doutores; salta-se imprevistamente para a adolescência do José Ferreira, dos seus convívios e encontros por sucessivas décadas, até porque esses encontros podem ter acontecido na Guiné ou em Cabinda ou em Crestuma, pelo menos; há páginas de muita ternura, como aquele rapaz do “sorriso parvo” e da sua Jacinta; há as peripécias dos festejos, das caçadas, entre a guerra e os seus preparativos, o caso da tasca da Rua dos Polacos, na Serra do Pilar; há o orgulho dessa mesma CART 1689 ter sido distinguida com a “Flâmula de Ouro do CTIG”; lembra-se o Capitão João Bacar Djaló, um bravo precocemente desaparecido… Para alguém que já dobrou os 75 anos, mesmo que recolha, como bom aedo, as histórias dos outros, há que reconhecer que mantém uma memória prodigiosa.
Tudo se vai contando sem qualquer rigor pelo calendário nem pelos teatros de operações, contam-se aspetos facetos passados no Sul e depois caminha-se para o Norte, e em dado momento, depois de muita reinação, depois de muita recordação de infância, aliás textos tocantes, entramos numa vibração de guerra, que destoa do cenário geral em que decorrem estas narrativas onde primam a amizade, a boa camaradagem e o humor. É o que se passa naquela tarde de 10 de junho de 1967, a Norte de Banjara, no Oio, para ali houve forte tiroteio, o Simões entra em estado de choque quando descobre que afinara à pontaria sobre uma mulher idosa, ainda hoje é uma chaga aberta na vida do Simões. Segue-se a Operação Inquietar II, em julho de 1967, estavam há escassos setenta dias na Guiné, e capturaram armas, muitas delas tiveram que as abandonar num regresso que foi um suplício onde não faltou o horror da sede. Estamos a falar de uma CART que ajudou a fabricar Gandembel, aquele octógono que era uma pedra no sapato para o PAIGC, em plena terra de ninguém, junto ao corredor de Guilege.
José Ferreira sabe ultrapassar as atmosferas fúnebres, isto a propósito do último almoço-convívio da CART 1689. Assinalam a data da partida para a guerra. Estiveram onze anos sem se reencontrarem, os convívios, de um modo geral, decorrem no Norte, de onde quase todos são provenientes. O número de participantes diminui, a idade não perdoa. Em 2016, houve missa na Igreja da Falperra, passaram pelo Sameiro e pelo Bom Jesus e o banquete foi para os lados da Povoa do Lanhoso. A memória de alguns já não funciona muito bem, deturpam-se e inventam-se histórias e há mesmo casos de amnésia. Houve discursos. Alguém que estava silencioso e que foi interpelado pelo autor, respondeu: “Olha, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa companhia? 153! Sabes quantos militares estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias”. Há discussões entre nortistas e sulistas.
E o rol de memórias culmina com uma ida de José Ferreira ao Porto, vê gente indigente, um desses que ele viu a comer magro tinha uma tatuagem que dizia “Amor à Pátria, Guiné, 1967-1969”. É a amargura pelo abandono, pelo puro esquecimento, o abjeto esquecimento de uma Pátria madrasta que renega facilmente todos os compromissos do passado, incluindo a veneração e o direito à dignidade de quem a dita Pátria mandou combater e trata como fantasmas.
E há um outro aspeto fundamental destas memórias de José Ferreira que aqui exalto: ele é um exemplo acabado do dever de memória, implica-nos sub-repticiamente na obrigação de tudo contar para que nada se perca, para que não se venha dizer que quem andou com as armas na mão prefere ser ignorado, talvez com o receio de que a História nem lhe confira o direito a uma singela nota de rodapé.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)