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sábado, 19 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26059: In Memoriam (514): José Luiz Gomes Soares Fonseca (1949 - †2024), ex-Fur Mil TRMS da CCAV 3366 / BCAB 3846 (Susana e Varela, 1971/73)

IN MEMORIAM

José Luiz Gomes Soares Fonseca (1949 - †2024)
Ex-Fur Mil TRMS da CCAV 3366 / BCAV 3846

O Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro da CCAV 3366, deu-nos conhecimento ontem da triste notícia do falecimento do seu e nosso camarada Luiz Fonseca, ex-Fur Mil TRMS, ocorrida já em Janeiro deste ano.

O Luiz tinha como hábito enviar todos os anos as Boas Festas aos editores e à tertúlia, não o tendo feito na quadra natalícia de 2023/24. Provavelmente estaria já doente.

Embora tardiamente, a tertútila e os editores, associam-se à dor da família do nosso camarada Luiz que nos deixou em Janeiro.

É já um muito doloroso calvário assistirmos à partida dos nossos camaradas e amigos. Cada dia que passa se torna maior o "batalhão celestial" e cada vez somos menos os que nesta dimensão vamos resistindo ao toque de silêncio. 

O Luiz Fonseca aderiu à nossa tertúlia em Agosto de 2007(*).

A sua Unidade esteve em quadrícula em Suzana e Varela, no chão Felupe, pelo que a sua prestação no Blogue se centrou em dar-nos a conhecer os usos e costumes daquele povo. Certamente apaixonado por aquela etnia guineense que povoa o noroeste da Guiné, deixou-nos preciosos textos e fotos que podem ser acedidos na série "Cusa di nos terra".

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Nota do editor

(*) - Vd. post de14 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2047: Tabanca Grande (32): José Luiz Soares da Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73)

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14856: Cusa di nos terra (17): Uma raridade, o disco "Djiu di Galinha", do pai fundador da música moderna guineense, José Carlos Schwarz (1949-1977)


Capa do disco de José Carlos [Schwarz], "Djiu di Galinha" [Ilha das Galinhas], Bissau, 1979.  José Carlos no palco com a Mama Afrika, a sul-africana Miriam Makeba. Gentileza do António Estácio, guineense nascido no chão de papel, de ascendência transmontana, meu querido amigo e camarada,  que me permitiu fotografar a capa e a contrapa. (As fotos são de fraca qualidade, tiradas em cima do joelho, no nosso último encontro anual, em Monte Real. O Estácio e o Zé Carlos foram colegas de liceu). 

Este disco é hoje uma raridade.  Foi editado, em 1979,  pelo Departameno de Edição-Difusão do Livro e do Disco, do Comissariado de Estado da Guiné-Bissau da  Informação e Cultura.




Contracapa > Nota biográfica



Contracapa > Palavras de Miriam Makeba (1932-2008)










José Carlos Schwarz
 (Bissau, 6 de dezembro de 1949 - Havana, Cuba, 27 de maio de 1977)



Letra (em crioulo e português) do "Djiu de Galinha". Ouçam aqui as vozes fabulosas do José Carlos e da Miriam Makeba, numa atuação conjunta de 1976,,,  Vídeo (a  preto a branco) disponível no You Tube, na conta de Vital Sauane (a quem agradeço)... Há também uma interpretação, do tema "Djiu di Galinha", a solo, pela Miriam Makeba, em 1979. Confesso que prefiro o original... A morte prematura do Zé Carlos foi uma perda brutal para a música guineense e africana, eu diria mesmo, para a música do mundo...

Sobre a Ilha das Galinhas, no arquipélago Bolama-Bijagós, e sobre a curta passagem (3 meses) do José Carlos pela "colónia penal e agrícola" da Ilha das Galinhas, ver aqui várias referências no nosso blogue.

Fotos (e legendas): © António Estácio / Luís Graça  (2015). Todos os direitos reservados {Edição: LG]

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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6529: Cusa di nos terra (16): A propósito do último livro do António Estácio, Nha Carlota... e as suas comidinhas (Luís Graça)

1. Vamos continuar a relembrar e a divulgar os sabores 'di nos terra' (*)... Todos ou quase todos os entrevistados do António Estácio (foto à esquerda), amigos, conhecidos, clientes ou visitas frequentes da casa de Nha Carlota (no Cumeré e depois em Nhacra), recordam a excelente cozinheira que ela foi e evocam alguns dos seus pratos famosos, um mix da cozinha portuguesa, cabo-verdiana e guineense:


“(…) Era habitual, no final dos bailes realizados nas instalações da UDIB, irem de carro de Bissau a Nhacra, até casa de Nha Carlota, para mata-bicho, onde não faltava a bem temperada linguiça, gazela assada, ovos estrelados, etc.” (p.30).

Ferreira Pinto, um antigo magistrado, frequentava com a esposa a casa de Nha Carlta, “exaltou os dotes culinários da anfitriã, pondo à cabeça a saborosa sopa de peixe, seguida das iscas com caril, com que se deliciavam sob a acolhedora sombra duma frondosa árvore” (p. 34).

O ex-Alf Mil Sérgio Sebastião Alves, da CCAÇ 564(**), e que comandou, de Novembro de 1963 a Maio de 1964, o pelotão destacado em Nhacra com a missão de defender um ponto estratégica, a ponte de Ensalmá que ligava a ilha de Bissau à plataforma continental), descreve Nha Carlota como “uma senhora extraordinária, que fazia uma maravilhosa sopa de peixe” (p. 39).

Alda Maria Simões Tomé, com 40 anos de Guiné, aonde chegou em 1936, conheceu bem, primeiro no Cumeré e depois em Nhacra, essa Mulher Grande, agora biografada pelo nosso amigo António Estácio (capa do livro, edição de autor, à direita):

“Era pessoa que recebia muito bem e estava sempre pronta para fazer uns petiscos deliciosos, como cachupa, linguiça picante, cuscus de arroz. Ai, era tudo tão bom” (p. 42).

O nosso camarada e amigo Nuno Rubim também a conheceu em 1964, quando jovem capitão e destaca “o saboroso pitche-patche de ostra” (p. 44) que uma vez comeu lá em casa dela.

José Alberto Câmara Manoel, ex-colega do Liceu de Bissau, mandou ao autor um depoimento escrito sobre o tempo em que, sendo ele miúdo, ia aos domingos a Nhacra, com os pais e os irmãos, almoçar no restaurante de Nha Carlota:

 “Combinada com antecedência a ementa (cabritinho assado, chabéu ou cachupa), começávamos sempre por um balaio, o de ostras e/ou camarão, tudo divinal e cuidadosamente preparado” (p. 49).

Locutora da extinta Emissora Oficial da Guiné Portuguesa, Maria Rosete Pereira da Silva, destaca, da lista de pratos, “o saboroso pitche-patche de ostra, o frango, quer de churrasco, quer à cafreal, assim como os saborosos camarões que ela preparava muito bem” (p. 50).

Outra admiradora da culinária de Nha Carlota, fala da “saborosa galinha à cafreal, com molho de manteiga, cebolada e piripiri”, bem como da “deliciosa caldeirada de cabrito” (p.54).

O caldo de peixe e o pitche-pacthe de ostras voltam a ser recordados mais dois entrevistados, na p. 55. Parecem ser unânimes as opiniões: Nha Carlota “tanto cozinhava uma deliciosa cachupa, um excelente chabéu ou qualquer prato de comida europeia” (p. 57)… E até o café parecia ser diferente:

(…) “Mandava-o vir, em grão, de Cabo Verde, depois trorrava-o e moía-o com particular mestria. Que maravilha de café” (p. 57).

A sobremesa era, em geral, fruta, da sua propriedade:

“Nós comíamos na varanda e os nossos pais almoçavam no alpendre, existente na traseira da residência. A sobremesa era à base de fruta apanhada nas redondezas e era ela mesma a que nos incentivava a ir buscá-la. Ai, era tão animado!” (p. 48).

Ao livrinho do António Estácio (116 pp), fomos ainda 'roubar' esta receita, A  sopa de marisco à Nha Carlota (p. 57)... Para terminar em beleza esta nota de leitura, isto é, para terminar...a salivar:

Ingridientes: Camarão, Arroz, Farinheira ou chouriço, Azeite, Polpa de tomate, Cebola, Limão, Piripiri

Coze-se o camarão, o qual, em seguida, se descasca e são-lhe retiradas as cabeças. Guarda-se essa água e passam-se as cabeças e as cascas retiradas, no ‘passe-vite’. Mói-se bem e com a água a correr, para que a água remova a pasta proveniente das cabeças. Junta-se esta água à da cozedura do camarão e, em função do número das pessoas, acrescenta-se água normal.

Aparte faz-se um refogado com azeite, cebola bem picada e junta-se polpa de tomate. Quando a água da sopa começar a ferver, junta-se ao refogado o chouriço e deita-se arroz, em quantidade para que a sopa não fique aguada. Por fim junta-se piripiri (moído ou não) e o camarão descascado. É servido com limão e, se necessário, adiciona-se piri-piri.
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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > 23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2474: Cusa di nos terra (15): Susana, Chão felupe - Parte IX: Os indomáveis guerreiros felupes (Luís Fonseca)

(**) Na verdade trata-se da CART 564 e não CCAÇ como é referido

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2474: Cusa di nos terra (15): Susana, Chão felupe - Parte IX: Os indomáveis guerreiros felupes (Luiz Fonseca, ex-Fur Mil TRMS)


Guiné > Região do Cacheu > Susana > Junho de 1972 > Dia de ronco... dia da morte do comandante do PAIGC, Malan Djata, cuja cabeça foi cortada por elementos da população, felupe, após a sua captura na sequência de um ataque falhado ao aquartelamento de Susana.

Foto: © Luiz Fonseca (2007). Direitos reservados.


Guiné > Ilha de Bolama > Bolama > CCAÇ 13 > 1969 > O Dudu, à esquerda, e o nosso camarada e amigo Carlos Fortunato que, tal como o Luiz Fonseca, privou com (e tem uma grande admiração por) os felupes.

(...) "O recruta africano que surge na foto é Dudu, 2º comandante de um pelotão de milícias felupes, o 1º comandante chamava-se Ampánoa, cada felupe tem apenas um nome. Foram enviados para Bolama, para serem treinados por nós e integrado nas forças regulares, mas não irão integrar a nossa companhia, pois regressarão à sua região em Varela (região norte zona de Cacheu), no entanto contrariamente ao planeado, acabarão depois por integrar temporariamente a CCaç. 14, antes de irem para Varela.

"Adversários temíveis, os felupes possuem elevada estatura (a minha altura é 1,84m, e como se pode ver na foto ele é praticamente da minha altura),e grande robustez física" (...)


Foto e legenda: Carlos Fortunato > Guerra na Guiné - Os Leões Negros (com a devida vénia...)


1. Texto de Luiz Fonseca , ex-Fur Mil Trms, CCAV 3366/BCAV 3846 (Suzana e Varela , 1971/73), enviado em 5 de Janeiro último:

Caro Luis:

Vi algum tempo atrás Flags of our Fathers (Bandeiras dos nossos pais) [, o filme de Clint Eastwood]. Os primeiros 5 minutos do filme transportaram-me à nossa realidade. Quarenta anos depois aqueles ex-combatentes dizem, na película, que "... qualquer parvalhão julga que sabe o que é a guerra... sobretudo aqueles que nunca combateram... heróis e vilões não faltam, mas geralmente não são aquilo que pensávamos... só os seus companheiros podem testemunhar os seus feitos"

Perguntarás por que carga de água esta introdução e o tem que ver com aquilo que já escrevi em anteriores intervenções. As relações são, a meu ver, evidentes.

Os heróis e os vilões, sejam militares ou civis, não nascem por decreto nem tão pouco por meras conveniências de uma qualquer conjuntura.

Falei, ainda que superficialmente, do João Uloma (2). Herói para uns, vilão para outros. Mas esta personagem, foi apenas mais um guerreiro felupe, produto de uma ancestral forma de vida num mundo já bem próximo do século XXI.

Já referi que, para entender os Felupes, a sua forma de agir e de estar, era preciso, com alguma certeza, não só viver com eles como recuar alguns séculos. Eles aprenderam, a expensas suas, que a frase Honra aos vencidos nunca lhes foi aplicada.

Reagiram sempre a domínios locais, regionais e extra-continentais. Os portugueses no séc. XIX (Djufunco ou Bolor - 1879) e no séc. XX (Varela, Catões e Suzana - 1934), já o tinham comprovado.

Não tenho outro conhecimento que me ajude a avaliar quantos, quais e quando esse espírito de chão foi igualmente utilizado contra os vizinhos do Norte. Os do outro lado do grande rio (Casamance, em francês ou Casamança, em português) que se dizem muçulmanos, não djolas [ou diolas, em português; jolas, em francês]. Passo a exemplificar.

Os incidentes que vou citar ocorreram em 1972 (Abril/Setembro), entre a população de um grupo de tabancas fronteiriças (Cassolol) e elementos das forças armadas do Senegal, mais propriamente tropas pára-quedistas, as chamadas forças especiais.

Questões antigas, talvez com algumas dezenas ou mais que uma centena de anos dizendo respeito ao cultivo das bolanhas e seus produtos, à colheita de vinho de palma e a tentativa de ter temporariamente bajudas. De quando em vez alguém se lembrava de desenterrar o machado de guerra. Das vezes anteriores, que se saiba pela diplomacia felupe, tudo tinha ficado no campo das ameaças mútuas.

Desta feita tudo foi mais longe. A tropa senegalesa veio até à zona dos Cassolol para obter vinho de palma e os favores de algumas bajudas. Só que, como sempre sucedeu, os habitantes negaram-se a aceitar tais pedidos.

Pelo que me foi referido, a tropa senegalesa forçou a entrada na zona do palmal da tabanca, chegando a disparar sobre um dos recolhedores de vinho que se encontrava no cimo duma palmeira. A população destas tabancas, em regime de auto-defesa, portanto armada, reagiu. Estranhamente, tendo em vista o armamento utilizado (Mauser e arco e flecha de um lado, espingardas automáticas FN do outro), da troca de tiros resultou um saldo desfavorável aos intrusos que, além de muito material de guerra, deixaram no terreno seis mortos. A população sofreu dois feridos ligeiros, tratados pela tropa, sendo um deles o recolhedor de vinho que caiu da palmeira.

Quanto o nosso Grupo de Combate chegou ao local, não encontrou um cenário agradável. Estávamos em chão Felupe e, como referido em anteriores escritos, assim foram tratados os senegaleses, como invasores. Mais uma vez não houve prisioneiros, nem honra aos vencidos.

O que se encontrou foram seis corpos decapitados, embora soubessemos posteriormente que na retirada os paraquedistas senegaleses levaram mais cinco feridos. Claro que para a população a ocasião foi de ronco.

Em Bissau a notícia caiu como uma bomba. Havia conversações com o Senegal, reunião de alto nível em Cap [ou Cabo] Skirring (voltarei a esse assunto), e este incidente caía na pior altura.

Na noite seguinte novos confrontos se travaram. Os senegaleses flagelaram a povoação com morteiros a partir, agora, do seu território. Dir-se-ia que foi uma flagelação em rajada, tal a sequência de saídas e rebentamentos, perfeitamente audíveis em Suzana, distante alguns quiómetros. Cerca de uma hora foi quanto demorou o festival.

Era impensável, naquelas circunstâncias, sair em socorro da população pelo que foi decidido que logo que fosse possível, mínimo de claridade, se rumaria para o objectivo.

Quando da saída, estranhos pressentimentos acompanhavam os que foram escalados para o efeito. Felizmente que esses receios provaram-se infundados. A população, que face ao poder de fogo utilizado, deveria ter sofrido grandes baixas, não teve um único ferido. Quase que me atrevia a dizer, digo, que, na melhor estratégia de guerrilha, as morteiradas senegalesas bateram uma zona vazia, isto é, a população tinha-se posto a bom recato. Informação, suspeição, antecipação, inteligência, sorte, chama-lhe o que achares melhor.

Aproveitando a oportunidade foi efectuado patrulhamento ao longo do trilho dos marcos de fronteira, mostrando-nos ostensivamente, e nada foi detectado, nem sequer os restos mortais dos militares abatidos para os quais havia ordem expressa de serem recolhidos e entregues à autoridades senegalesas. Existiam apenas marcas de rasto de botas de quem veio por trilho e fugiu a corta-mato.

Foi-nos permitido, pela população, trazer os despojos materiais, como sendo uma honra concedida a poucos.

A diplomacia Felupe sempre funcionou, muito mais em circunstâncias que pudessem trazer benefícios. Situações houve em que a verdade apenas veio à luz do dia bastante mais tarde. Às vezes por mero acaso.

O ataque à tabanca de Elia, também em auto-defesa, em Setembro de 1971 é bom um exemplo. No dia seguinte ao ataque a informação recolhida foi de que não tinha ocorrido nada de especial e que os homens do PAIGC, não conseguindo entrar na tabanca, tinham fugido causando apenas um ferido de média gravidade que conseguiu fazer a pé a distância entre Elia e Suzana e que, quando o médico verificou o seu estado, decidindo evacuação para Bissau, diria Bissau nega, cose indicando gestualmente tal acto. A sua chegada coincidiu com a saída do Grupo de Combate que iria verificar o que se havia passado.

Veio a saber-se, um ano após, que as coisas não tinham corrido bem assim e que os nossos inimigos na altura deixaram no terreno mais de duas dezenas de baixas, de que na manhã seguinte, quando da chegada das NT, não havia qualquer sinal.

O que pretendo evidenciar, por agora, é o que está subjacente ao conceito de chão, não partilhado por outras etnias guineenses. Para os Felupes, o seu solo é inviolável. Podem não ter bandeira nem hino, mas têm pátria, terra que é sua e dos seus antepassados e que deve ser venerada e defendida porque faz parte da sua história, é a sua história.

Não ouso dizer se estão certos ou errados na sua forma de agir. Respeito-os, por muito mal que os seus rituais e crenças possam horrorizar o dito mundo civilizado (3).

As minhas desculpas por tão longa dissertação.

Nota: A foto diz respeito ao ronco da população, quando da morte de Malan Djata.

Kassumai
Luiz Fonseca
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Notas dos editores:

(1) Vd. último poste desta série > 6 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2410: Cusa di nos terra (14): Susana, Chão Felupe - Parte VIII: Onde se fala dum Tintin em apuros... (Luiz Fonseca)

(2) Vd. poste de 1 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2397: Cusa di nos terra (12): Susana, chão felupe - Parte VII: O guerreiro João Uloma (Luiz Fonseca)

Vd. restantes postes sobre os felupes, da autoria do nosso camarada Luís Fonseca (que reside em Vila Nova de Gaia):

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luiz Fonseca)

31 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2074: Cusa di nos terra (6): Susana, Chão Felupe - Parte II: Religião (Luiz Fonseca)

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luiz Fonseca)

16 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luiz Fonseca

6 de Outubro de 2007 >Guiné 63/74 - P2156: Cusa di nos terra (10): Susana, Chão Felupe - Parte V: Casamento (Luiz Fonseca)

25 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2215: Cusa di nos terra (11): Suzana, Chão Felupe - Parte VI: Princípio e fim de vida (Luiz Fonseca)

(3) Foram encontrados 5 registos sobre os felupes, num total de cerca de 200 mil, na base de dados bibliográfica Memória de África ® , da Fundação Portugal-África, Universidade de Aveiro:






[154540] Agência Geral das Colónias
Felupes / Agência Geral das Colónias. In: Boletim Geral das Colónias. - Ano XXII, Nº 252 (Junho 1946), p 104-106. Descritores: Guiné Portuguesa, Usos e costumes, felupes. Cota: s/cota. INEP

[152845] CISSOKO, Mário A.R.
Birassu : Povo e Escola: Nos Reinos Felupes e noutras regiões da margem direita do rio Cacheu / Mário A.R. Cissoko. - Bissau : ASDI, 1994. - 234 p. ; 30 cm. - Programa Educação pos-graduação. Copenhaguem - Bissau. Descritores: Guiné-Bissau, Cacheu, Felupes, Educação, Etnologia. Cota: 37.014.53(665.7). BPINEP.

[94194] ALMEIDA, Carlos Lehmann de
Inquérito etnográfico sobre a alimentação dos felupes / Carlos Lehmann de Almeida. In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. - Vol. 10, nº 40 (1955), p. 617-634. Descritores: África, Guiné Bissau, População autóctone, Alimentação humana, Felupes. Cota: PP373. AHM.

[154514] MOTA, Teixeira da
Músicos felupes / Teixeira da Mota. In: O Jornal Bolamense . - Ano III, Nº 31(Fevereiro de 1959), p 6. Descritores: Guiné Portuguesa, felupes, Profissão artística. Cota: s/cota. INEP.

[152247] JOURNET, Odile
Sens et fonction de la maladie en milieu Felup : Nord Guinée-Bissa: Rapport final du project : Prophylaxie et carences dans les systémes de protection et d'hygiéne infantiles, traditionnels et modernes, en Guinée-Bissau / Odile Journet, André Julliard, colab. Yves Gallot. - Lyon : A.D.R.E.S.S., 1987. - [5], 247 p. : map., quad. ; 30 cm. Descritores: Guiné-Bissau, felupes, Doença. Cota: 397+613.95(665.7)(047). BPINEP.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2410: Cusa di nos terra (14): Susana, Chão Felupe - Parte VIII: Onde se fala dum Tintin em apuros... (Luiz Fonseca, ex-Fur Mil TRMS)








ex-Fur Mil Trms, 
CCAV 3366/BCAV 3846, 
Suzana e Varela , 1971/73


Texto, de 15 de Dezembro último, de Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73):

Caros camaradas

Depois de uma série de rascunhos sobre a vida Felupe (1), ouso fazer uma intromissão num tema que, fazendo parte da história do Chão, pode ajudar a entender algumas tomadas de posição.

Foto 1> Susana> Felupes recolhem lenha com unimogs cedidos pelas NT

Foto 2> Chão Felupe> Casa Varela

Texto e fotos: © Luiz Fonseca (2007). Direitos reservados.

A verdadeira guerra da Guiné terá sido desencadeada pelo PAIGC em 1963 (Tite).

Contudo as primeiras manifestações foram anteriores, através do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), embora ainda de pequena envergadura, revestiram-se de algum carácter de banditismo, pois visavam apenas o aterrorizar as populações próximas da fronteira com o Senegal, entre Varela e S.Domingos culminando em 21 de Julho de 1961 com um ataque ao aquartelamento desta última povoação.

Todavia existem referências a acções do mesmo tipo, a partir de Janeiro do mesmo ano. A zona turistica de Varela e a povoação de Susana, foram dois dos alvos escolhidos, embora tivessem existido ataques a outras pequenas povoações o que provocou uma animosidade por parte dos habitantes, Felupes, que nunca perdoaram aos inimigos a malvadeza cometida, o que em termos de segurança militar foi benéfica às NT, enquanto e quando o mereceram.

A partir dessa data toda a intromissão no seu território foi penalizada severamente, fosse ela efectuada por elementos inimigos (FLING, PAIGC), fossem tropas senegalesas ou ainda algum aventureiro que tentasse utilizar o Chão apenas para passagem.

Poderia sem receio afirmar que, excluída a nossa guerra, que muito pouco ou nada os afectava, muito embora houvesse elementos da região ao serviço das NT (Pelotão Caçadores Nativos 60, vulgo Pelotão 60, alguns Comandos Africanos e uma Secção de Milícias), bem como algumas tabancas em regime de auto-defesa, o dia-a-dia era perfeitamente normal nas suas actividades, fosse a colheita de vinho de palma, o tratamento das bolanhas, a pastorícia, a pesca, a recolha de lenha (com a ajuda dos nossos Unimog), a caça, desde que dentro do seu território, a realização das actividades mercantis (mercado semanal), enfim, tudo o que uma sociedade normal realiza, em tempos normais.
Devo acrescentar que, durante a minha permanência na zona, as baixas Felupes foram de 1 morto e 1 ferido, em emboscada (mal) preparada por páras senegaleses na zona de Cassolol.

Quando refiro que uma intromissão era quase uma invasã, o vem à minha memória o mês de Novembro de 1971. Isto porque um cidadão de nacionalidade belga a que chamarei de Guy Paul, provavelmente cansado da monótona e pacata vida no seu país, decidiu realizar uma volta a África, de bicicleta e percorrendo toda a costa.

Segundo a sua narrativa entrou por Argel e tudo decorreu normalmente até Cap Skirring. Havia gasto dois meses de viagem desde que a iniciou em Bruxelas. Nesta localidade turística do Senegal - já o era na altura - , foi alertado pelas autoridades locais de que, a seguir o percurso traçado, iria entrar num território em conflito armado e com população pouco amistosa (deviam estar a referir-se aos Felupes), pelo que o melhor seria contornar a Guiné-Bissau e prosseguir a sua aventura a partir da Guiné-Conacri.

Contudo o nosso viajante decidiu manter a ideia inicial e entrou na Guiné pela zona de Cassolol.

Foi de imediato detectado por elementos da população que o rodearam e falando uma linguagem para ele não perceptível, apenas teria percebido cubano, pelo menos ele referiu que foi isso que entendeu, pessoalmente não creio que o seu aspecto fosse o de um instrutor daquela nacionalidade e muito menos que se arriscasse a andar só naquela zona. Mas para os Felupes, um indivíduo branco, de cabelos compridos e aloirados, barba crescida, blue jeans e camisola estragada (estampado do tipo camuflado) , de certeza que, não sendo português, não sendo dos seus, logo, dedução lógica, só podia ser inimigo e decidiram fazer justiça pela invasão.

Valeu ao nosso belga a pronta intervenção de um dos milícias que o guardou, é o termo, até à chegada dos militares que o trouxeram para Susana.

Que o homem estava aflito, mesmo muito aflito, isso foi patente para os que com ele falaram inicialmente, acrescentarei que o caso não era para menos.

Depois de um banho, nas circunstâncias obrigatório, antes das formalidades habituais e também de uma refeição quente e enquanto aguardava transporte para Bissau, o Guy Paul foi esclarecendo os contornos da situação vivida, incluindo os largos minutos de terror puro com uns índios de arco e flechas à sua volta, com expressões nada amistosas.

Na hora da despedida agradeceu a forma como foi recebido, mas deixou transparecer que iria continuar a sua aventura que tinha como objectivo final a capital do Egipto (Cairo).

Não sei se conseguiu atingir o seu desiderato.

Bastante mais graves as arremetidas das tropas senegalesas e os ataques do PAIGC. Esses ficarão para próximas oportunidades.

Por hoje, Kassumai

Luiz Fonseca
ex-Fur Mil Trms
CCAV 3366

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Nota de CV:

(1) Vd. último post da série> Guiné 63/74 - P2397: Cusa di nos terra (13): Susana, chão felupe - Parte VII: O guerreiro João Uloma (Luiz Fonseca)

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2397: Cusa di nos terra (13): Susana, chão felupe - Parte VII: O guerreiro João Uloma (Luiz Fonseca, ex-Fur Mil TRMS)

Guiné > Região do Cacheu > Susana > Junho de 1972 > Cabeça do Comandante de Bigrupo do PAIGC, Malan Djata, cortada por elementos da população, felupe, após a sua captura na sequência de um ataque falhado ao aquartelamento de Susana. Segundo esclarecimento, acabado de dar pelo Luís Fonseca (estamos no concelho de Vila Nova de Gaia, eu neste momento na Madalena e ele presumivelmente em Gulpilhares, aqui ao lado, sem nos conhecermos pessoalmente), "naqueles momentos foi de todo impossível determinar o 'autor' da decapitação. Creio que nessa data, fins de Junho de 1972, o João Uloma nem sequer estaria em Susana"...


Guiné <> Susana > c. 1972 > Visita ao Alferes Comando João Uloma, por parte de jornalistas nacionais e estrangeiros, entre os quais uam equipa do New York Times. O então Cap Otelo Saraiva de Carvalho, da REP/ACAP (Assuntos Civis e Acção Psicológica), fez as honras da casa e o elogio do guerreiro felupe.

Texto e fotos: © Luiz Fonseca (2007). Direitos reservados.


1. Texto, de 19 de Dezembro último, do Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73), que tem aqui publicado uma série de apontamentos sobre o chão felupe (1):

Assunto - João Uloma...

Provavelmente mais uma vítima que um réu em todo o cenário da guerra. Provavelmente mais que usado e abusado, utilizando palavras tuas.

Conheci pessoalmente João Uloma haviam já decorrido largos meses de comissão. Mas o seu nome, dentro da etnia e tradição felupe, sempre nos chegou como símbolo de respeito e tido como exemplo. Daí a minha curiosidade pela pessoa.

Era de facto um guerreiro felupe, em estatura. Dos seus predicados operacionais não posso nem devo emitir qualquer comentário pois não tive oportunidade de os constatar.

A imagem que junto é prova de mais uma das demonstrações da utilidade do João Uloma. Durante uma das muitas visitas de jornalistas, nacionais e estrangeiros, esta creio que do New York Times (Alice Barstow e John Burton), ao chão Felupe, ele é apresentado como um herói na defesa do território.

O enquadramento é oficial, com direito a DO privada, e com pessoal da REP/ACAP presente (Cap Otelo Saraiva Carvalho), que faz as honras da casa, com o respectivo e longo elogio. Ao lado esquerdo do João Uloma, seu pai, homem grande da tabanca.

Foi uma das suas poucas visitas a Susana durante a minha comissão, que me recorde apenas mais duas vezes, sempre por períodos de tempo relativamente curtos.

Nessas ocasiões não era demasiado visível, diria que era até recatado. Dedicava-se à caça, quando tal era possível e a algum convivio com camaradas dos seus tempos de Pelotão 60, quase todos.

Não era uma visita constante no aquartelamento, aparecia de quando em vez, e, quando picado, relatava algumas das suas histórias, sendo no entanto parco em detalhes, o que me pareceu estranho face ao que dele se propalava.

Na sua morança não existiam, pelo menos nas casas que vi, crâneos de inimigos, o que já não sucedia em muitas outras moranças de outros guerreiros menos notáveis. Tal trofeú era, para um felupe, apanágio de valentia e quantas mais cabeças tivesse cortado mais respeitado era.

Diga-se que esse foi o encontro com o destino do Cmdt Bigrupo Malan Djata quando, em Junho de 1972, foi capturado, após ataque falhado a Susana. Mesmo com a oposição do graduado da CCAV 3366 ("tu ou ele") cumpriu-se o ritual...

Essa tradição ancestral marcava ainda a vida daqueles que sentiram o primeiro impacto de uma guerra que jamais foi sua, pelo menos no sentido de libertação, porque isso os Felupes foram-no sempre, desde o tempo da luta contra a dominação mandinga: Livres!

Acrecente-se que a imagem que envio, deixando a sua edição ao vosso critério, foi já aproveitada por João Melo (Os anos da guerra - II volume, Cap. III - Operação Nó Górdio -Moçambique - pg. 51 - Circulo de Leitores e Publicações D. Quixote) tendo eu alertado o autor da imprecisão. Nunca soube se recebeu a missiva.

Do Alf Comando João Uloma guardo uma placa dos Comandos Africanos, oferecida, não sei porque razão especial, já no final da minha estada no seu Chão. Recordo ter havido alguém que lhe pediu o crachat de Comando o que ele recusou afirmando que "aquele era dele até à morte"... Premonição...

Sobre a sua morte poderei afirmar que não foi fuzilado, mas sim morto por espancamento, à paulada, creio que em Brá, para onde teria sido convocado para ser integrado no novo exército (2).

De felupes ao serviço das NT, em número relativamente reduzido, tanto quanto me foi referido posteriormente por um militar guinéu do Pel [Caç Nat] 60, não teria havido mais desaparecidos, já que a grande maioria e após lhe terem sido retiradas as armas optou por se refugiar na região do Casamance (Senegal) ou voltar à vida civil embora com uma ameaça velada ("tropa tira arma mas fica com arco e flecha, para lutar contra bandido"). Tal terá sido a sorte que coube ao primeiro comissário político dos novos senhores que apareceu na zona, ser morto e corpo sem cabeça (degolado ritualmente com a curta faca felupe?) para não voltar a nascer noutra qualquer tabanca.

Se os meus editores me permitem, nesta faca de dois gumes, ficaria por aqui e não virava o gume para a outra face pois poderia ferir susceptilidades de alguns, de ambos os lados, que, com as suas tomadas de posição e demonstrações de poder, em nada honraram os militares que nasceram, passaram, lutaram e ficaram naquele território.

Penso voltar ao assunto.

Por hoje

Kassumai

Luiz Fonseca
ex-Fur Mil Trms CCAV 3366

2. Comentário de L.G., em resposta ao Luiz Fonseca:

Luiz Fonseca:

É um notável texto teu, assertivo, objectivo, que ajuda a compreender melhor o comportamento do João Uloma ao serviço das NT... (Conheci-o, superficialmente, nos comandos, em Fá) (3).... Não o vou publicar já, sobretudo por causa da foto do comandante do PAIGC, degolado... Por estarmos na altura do Natal, e isso poder ferir algumas pessoas mais sensíveis... Fá-lo-emos a seguir, ao Natal...

A ti, peço-te que entretanto completes o texto... Sei que não queres ferir susceptibilidades, de um lado e de outro... Mas, bolas, tu podes falar de cátedra, como ninguém, porque conheceste o João e os felupes, os seus costumes, o seu chão... Se deixas o dossiê inacabado, é pior...

Passados estes anos todos, temos o direito à verdade... No meu tempo, o João cortava cabeças, com o beneplácito (?) dos seus superiores hierárquicos... Ele estava nos comandos africanos e havia a cultura do ronco... Temos de perceber tudo isto: havia homens, muito perturbados, nos comandos, com comportamentos patogénicos... Não estou sugerir nomes...E evito julgá-os. Hoje quero compreendê-los...

Luiz: Connosco estás à vontade, não há tabus... Peço-.te, portanto, que não deixes o assunto "para melhor oportunidade", o que na nossa terra equivale a dizer "para as calendas gregas" ou para o Dia de São Nunca... Aqui não conhecemos amigos e protegidos... Mas, claro, tens sempre o direito de omitir nomes... Boas Festas. Kassumai.

Luís Graça

PS - Luiz, não chegaste a receber o livro do pai do Pepito sobre os costumes jurídicos do felupes, pois não?! Creio que o Pepito enganou-se no nome, e em vez de mandar para ti, mandou para um outro gajo que ainda não descobri quem é... e que se antecipou a ti.
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 6 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2244: Cusa di nos terra (12): Ainda vi burros em Bafatá (Beja Santos)

(2) Vd. post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

(3) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2244: Cusa di nos terra (12): Ainda vi burros em Bafatá (Beja Santos)

Fonte: João Barreto, História da Guiné, 1418-1918.Lisboa: 1938. (1).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Paisagem, pintura de Augusto Trigo (n. 1938). Em exposição no hall de um banco, em Bissau, o BCAO. Com a devida vénia ao pintor (que vive actualmente em Portugal), ao Rui Fernandes (autor da foto) e à AD (que detém os direitos da imagem no seu site Guiné-Bissau) (2).



Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1965 > CART 703 > NO Oio também havia burros, como se comprova nesta foto com o João Parreira, um cavaleiro à maneira, embora ele fosse de artilharia e tivesse mais tarde trocada a sua dama pelos comandos (3)..

Foto: © João S. Parreira (2007). Direitos reservados.





Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Esta foto, com a Zélia Neno, ex-companheira do Xico Allen, chegou-nos por mão do Albano Costa, com a seguinte legenda: “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia [Neno] a puxar o burro, mulher de armas!" (4) ...

Foto: © Albano Costa / Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do Beja Santos, com data de 11 de Outubro:

Ainda vi burros em Bafatá e arredores. Mas o régulo [do Cuor,] Malã, como seu pai, Infali, deslocavam-se pelo regulado a trote de burro. Malã contou-me que precisava de 8 a 9 horas para percorrer as picadas de Sansão e Missirá até Sinchã Corubal e Madina (5).

2. Comentário de L.G.:

Mário: A provar alguma coisa, estas fotos mostram-nos que também eles, os burros, parecem querer resistir à extinção em África, em geral, e na actual República da Guiné-Bissau, em particular...

Na Guiné sempre houve burros, pelo menos desde os anos 30, a avlaiar peloa foto do livro do médico João Barreto... Onde há comerciantes, gilas, havia burros...

Se a memória me não falha, o único burro (fora os humanos) que vi na Guiné foi a caminho de Madina/Belel (6), a 31 de Março de 1970: estava num estado lamentável, morto por abelhas selvagens e em vias de decomposição, já coberto de formigas... Deveria pertencer aos teus amigos de Madina... Mas tudo indicava que o PAIGC e a respectiva população - nomeadamente ao longo do corredor do Óio - também usavam os bons serviços do burro, no transporte de armas, mantimentos e outras mercadorias... Enquanto nós aturávamos as nossas bestas!

E já agora, sobre o pobre do burro encontrei os seguintes provérbios crioulo-guineenses:

Buru tudu karga ki karga si ka sutadu i ka ta janti (O burro, com pouca ou muita carga, se não é açoitado não anda);

Karna di buru ta kumedu na tenpu di coba, di fugalgu na tenpu di seku (= carne de burro se come na estação, a de animal nobre na seca);

Praga di buru ka ta subi na seu ou Praga a di buru ka ta ciga na seu (Praga de burro não sobe ao céu).

_________

Notas dos editores:

(1) Vd. post de 5 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2241: Álbum das Glórias (32): Um livro comprado em Bissau, no alfarrabista, de João Barreto, médico de saúde pública (Beja Santos)

(2) Vd. posts de:

14 de Outubro de 2007Guiné 63/74 - P2177: Artistas guineenses (1): Augusto Trigo, nascido em 1938, em Bolama

25 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 – P2213: Dando a mão à palmatória (2): Rui Fernandes, o fotógrafo do pintor Augusto Trigo (Virgínio Briote)

(3) Vd. post de 12 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1584: Um choro no mato e as (des)venturas de um futuro comando em Bissorã (João Parreira)

(4) Vd. posts de:

1 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVI: A viagem do Xico e da Zélia em 1998 (Zélia)
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1106: A ubiquidade dos nossos mortos (Zélia)

(5) Vd. post de 26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2218: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7): Afundem a armada de Madina

(6) Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2215: Cusa di nos terra (11): Suzana, Chão Felupe - Parte VI: Princípio e fim de vida (Luiz Fonseca, exFur Mil TRMS)

Guiné> Região do Cacheu> Susana> Vista aérea do Aquartelamento

Foto: © Major J. Mateus (BCAV 3846) (2007). Direitos reservados

1. Em mensagem do dia 22 de Outubro de 2007, o nosso camarada Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73), enviou-nos a VI Parte de Suzana, Chão Felupe (1).

Caros camaradas
As minhas notas anteriores disseram respeito ao Casamento.
Agora é a vez da sequência lógica: Princípio e Fim da Vida.

2. Comecemos pelo "Princípio".

Quando uma mulher engravida, a sua actividade sexual é interrompida até que nasça a criança. O mesmo não acontece nas suas actividades normais, mesmo as mais pesadas, que se prolongam práticamente até ao acto de parir.

Existem alguns tabus, quanto ao nascimento. O costume é a mulher prestes a dar à luz ir para um local reservado da tabanca (maternidade?). Ela é semi-despida na entrada do local, sendo as suas roupas abandonadas no exterior para depois serem removidas e queimadas.

O marido não é informado desta deslocação, nem tão pouco do seu estado de saúde ou do sexo do bébé, até que a mãe volte para casa com a criança.

A mãe e o filho apenas podem aparecer em público quando o cordão umbilical cair e, para tal aparecimento, ambos terão a cabeça rapada.

Se a criança nascer morta ou morrer antes da apresentação pública, o seu corpo é enterrado sem qualquer cerimónia especial e o pai é informado de que não nasceu filho algum.

Se a mãe morrer durante o parto, o seu corpo é levado para casa tendo lugar uma cerimónia pública.


Fim de vida

Quando morre um Felupe, o seu corpo é enterrado, no máximo, no fim do dia seguinte ao falecimento. Toques de bombolom são o meio utilizado para anunciar o acontecimento e todos os que podem interrompem o seu trabalho para visitar a família do falecido, cujo corpo é lavado, vestido e exposto.

O toque de bombolom era utilizado para este fim e muitos outros, embora para o meu ouvido, habituado aos Beatles e aos Rolling Stones, o toque fosse sempre igual. Só para o fim da comissão é que comecei a detectar algumas (poucas) diferenças.
Se o morto é um adulto, todos, exceptuando os familiares dançam. Quem não tem vontade ou não quer ou não pode dançar, canta. O corpo é envolto em panos e depois numa esteira sendo levado ao terreiro da dança.

Para os Felupes a morte de um adulto é um sinal de que o Emitai havia decidido que o seu ciclo de passagem terrena tinha sido concluído. Daí haver lugar a Ronco (festa), podendo ser morto um animal em honra do defunto.

Se pelo contrário, a morte for de uma criança ou adolescente, incluindo mulher nova mas casada, haverá lugar para Choro, que será de dois dias se se tratar de um recém -nascido.

Tive a oportunidade de assistir a alguns. O choque foi grande, mormente no primeiro. Devo dizer, por ser verdade, que não estava preparado para aquele tipo de cerimónias, muito embora estivesse avisado do que se iria desenrolar.

A presença de militares graduados era, desde que suficientemente discreta, considerada uma honra para a família. Não me apercebi em qualquer das situações da presença de outras etnias, embora vizinhos.

No primeiro funeral, em Bujim, a falecida foi colocada sentada sob o maior poilão da tabanca, vestida com pano novo, que pode ser substituído pelo pano que ela mais gostava em vida, nada diferente do que se passa em muitos dos funerais realizados nas nossas terras.

O tempo do funeral é, se possível, de um dia solar. Durante todo esse tempo um pequeno grupo de mulheres roda em circulo, no sentido contrário ao ponteiro do relógio, para os Felupes no sentido do ocaso para o nascer do sol. Um outro circulo exterior ao referido e com um número mais elevado de mulheres roda no sentido oposto.

Todas as mulheres pertencem à família da falecida, à tabanca onde tinha morança ou eram amigas da família. O significado, tal como me foi explicado, é bem simples. O circulo interior (menor número de mulheres) representará a morte, o retrocesso. O circulo maior, exterior, representa a vida, o seu contínuo avanço, a vitória. E a vida leva sempre a melhor.

Existe uma diferença significativa entre um Choro de um recém-nascido e o de uma criança ou adolescente. A diferença é que no do recém-nascido não existem circulos de mulheres, aparecendo apenas os familiares e amigos com a cabeça coberta de lama, sinal de luto.

Devem situar-se, normalmente, na periferia do terreiro onde se realizam as cerimónias do funeral.

O tumulo é circular, alargando abaixo da superfície. Foi-me referido que a posição final seria a sentado na posição de nascimento (posição fetal). Foi-me impossível confirmar tal facto, bem como se acompanham o morto quaisquer objectos ou alimentação, embora tal me fosse sugerido.


Foto 1> Túmulo circular Felupe

Foto 2 > Familiares de Felupe falecido


Tudo o que tenho escrito corre o risco de não corresponder à total realidade.

Os motivos são vários e podem ir da minha falta de percepção até erros de tradução fortuitos ou involuntários.

Devo acrescentar que a jornalista Isabel Silva Costa, fez um óptimo trabalho em meados dos anos 90, do século passado, exactamente sobre o funeral de Mulher Grande na etnia felupe.

Por hoje terminado
Kassumai
Luiz Fonseca
ex-Fur Mil Trms
CCAV 3366


Texto e fotos: © Luiz Fonseca (2007). Direitos reservados)
_______________

Nota do co-editor CV:

(1) Vd. Posts anteriores desta série:

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luiz Fonseca)

31 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2074: Cusa di nos terra (6): Susana, Chão Felupe - Parte II: Religião (Luiz Fonseca)

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luiz Fonseca)

16 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luiz Fonseca

6 de Outubro de 2007 >Guiné 63/74 - P2156: Cusa di nos terra (10): Susana, Chão Felupe - Parte V: Casamento (Luiz Fonseca)

sábado, 6 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2156: Cusa di nos terra (10): Susana, Chão Felupe - Parte V: Casamento (Luiz Fonseca, exFur Mil TRMS)

Foto 1 > Guiné-Bissau > Chão Felupe > 2 de Novembro de 2006 > A magia do pôr do sol na África Ocidental...

Foto: © Jorge Rosmaninho (20906). Africanidades > 2.11.06 > Por aí... (com a devida vénia e o nosso Alfa Bravo para o Jorge...).


Foto 2> Pôr-do-sol no Chão Felupe

Foto: © Luiz Fonseca (2007) (Direitos reservados)


1. Mensagem do dia 1 de Outubro de 2007, do nosso camarada Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73)

Caros editores:

Enviadas que estão algumas notas(1) chegou, talvez, a altura de questionar sobre o real interesse das mesmas, no presente contexto, para a maioria dos camaradas. Para isso conto com a vossa habitual frontalidade.

É evidente que todas elas, com todas as imprecisões que possam conter, resultam da possibilidade de, durante a minha comissão de serviço, procurar conhecer, em curtas e espaçadas incursões, com alguma (bastante) diplomacia à mistura, um pouco do mundo de uma etnia que, para os próprios guinéus, é praticamente desconhecida e, como consequência, motivo de medos e desconfianças.

Terminada a minha permanência naquele chão, o bichinho da curiosidade e, porque não dizê-lo desde já, admiração, já exponenciado, aumentou pelo que, de uma forma ou outra, tentei manter-me ao corrente, com grandes dificuldades na obtenção de informação fidedigna, do que ali se passava.

Africanidades, do Jorge Neto [opu melhor, Jorge Rosmaninho], foi o meu blog de sustentação e através dele tomando conhecimento do esquecimento a que, voluntária ou involuntariamente, votaram aquela gente e aquela região. Ela só surgia nas notícias dos media quando existiam problemas, na sua grande maioria envolvendo os vizinhos do norte, já antigos, e a que voltarei quando se afigurar oportuno.

No espaço que mantenho, 5ª Rep, já fiz sentir algumas opiniões sobre tal facto.

Mas voltemos ao que me propus.
Desta feita para falar em: Casamento.
Luiz Fonseca
(ex-Fur Mil Trms CCAV 3366)

2. Comentário dos editores

Caro Luiz Fonseca:

Os editores não têm qualquer dúvida em afirmar que os teus apontamentos sobre a etnia Felupe, com que nos tens presenteado regularmente, são do interesse da esmagadora maioria das pessoas que acedem à nossa página, combatentes ou não, porque dão a conhecer uma etnia com costumes muito próprios e desconhecidos de quase todos nós.

A África toca todos os portugueses e a Guiné, particularmente, a nós tertulianos do Blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné.

O Casamento (Felupe), que nos mandas agora, é um exemplo do que se acaba de escrever.
A tua narrativa é tão sugestiva que dispensa imagens.

Se cada um de nós tivesse recolhido elementos sobre o uso e costumes do Chão que pisou e o transmitisse nestas páginas, teríamos um fabuloso compêndio de antropologia sobre a Guiné dos nossos tempos.

Já agora fica a sugestão para que se houver entre nós mais alguém, a exemplo do Luís Fonseca, que tenha escritos sobre os usos e costumes dos povos da Guiné, apresente os seus trabalhos e contribua assim para aumentar o nosso conhecimento.
CV

Foto 3 > Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Varela > Iale > 2004 > Festa da saída da Cerimónia de Circuncisão (fanado, em crioulo) da etnia Felupe em Iale.

Foto: © Guiné-Bissau, portal da AD - Acção para o Desenvolvimento (2007) (Com a devida vénia)


3. Casamento (Felupe)

Por Luiz Fonseca

O casamento na etnia Felupe tem regras muito especiais que demoram anos a cumprir. Os preliminares podem começar quando um rapaz tem entre 10 e 14 anos. Ele pode escolher uma rapariga para sua namorada ou ser aconselhado nessa escolha pelos pais, mantendo, no entanto, a possibilidade de não aceitar as sugestões. Tal sucede com pouca frequência, embora a partir dos 15 anos os rapazes não necessitassem de autorização paternal para andar por qualquer lado do território.

Uma vez feita a escolha, o rapaz, pede ao seu pai para falar ao pai da rapariga escolhida que, por sua vez, perguntará à mesma se quer ficar "amiga" do rapaz em questão. Normalmente e por uma questão de pudor, simulado, a rapariga dirá que não conhece o rapaz pelo que numa próxima festa a sua mãe lhe dirá, indicando-o às escondidas, quem é o pretendente. Em qualquer altura posterior a rapariga tem a liberdade de recusar.

Depois da festa, o pai do rapaz leva ao pai da rapariga uma cabaça de vinho de palma e retira-se. Se a cabaça for devolvida vazia significará que o namoro foi aceite. Se a rapariga não aceitar o namorado devolverá o vinho.

A cerimónia do Edjurorai

Quando o rapaz tiver entre 15 e 16 anos tem lugar a cerimónia do Edjurorai. O rapaz tem que arranjar um galo (castrado) e uma galinha e irá, com alguns amigos da tabanca, antes do sol nascer, acordar a rapariga.

Esta deve matar o galo, batendo com a cabeça do animal no chão ou num tronco de árvore, enquanto o rapaz fará o mesmo com a galinha. Após esta cerimónia o rapaz trará os animais para a sua morança e vai comê-los com os amigos.

O Edjurorai é uma cerimónia colectiva feita na mesma madrugada por rapazes (cerca de 15) com namorada já escolhida. Depois desta cerimónia o pai do rapaz começa a criar um ou vários porcos, conforme o seu poder económico, para, passado cerca de um ano, ter lugar a cerimónia do Ebandai.

O porco ou porcos são mortos e divididos rigorosamente, exceptuando as cabeças. Uma das metades da carne é levada, no dia seguinte, muito cedo, pelas mulheres da tabanca do rapaz, à casa da rapariga, onde é distribuída pelos moradores. A família da rapariga retribui a oferta com mandioca e bananas, géneros que são consumidos pelas mulheres carregadoras, uma vez regressadas a casa do rapaz. A outra metade da carne de porco é distribuída pelos moradores da tabanca do rapaz. Nesse mesmo dia, começa a cozinhar-se, para serem comidas no dia seguinte, a cabeça ou cabeças dos porcos, com arroz fornecido por todos os elementos da tabanca do rapaz. A essa refeição assistem, como convidados, os elementos da tabanca da rapariga.


A cerimónia do Bubapassabu

Quando atingir os 21/22 anos, o rapaz começa a construir a sua casa nova, com o precioso auxílio dos amigos e outros rapazes da tabanca e o pai a juntar vinho de palma e galinhas para a cerimónia do Bubapassabu. O vinho e as galinhas são levados para casa do pai da rapariga, procedendo-se a várias cerimónias num santuário anteriormente combinado. Quando se acabam as galinhas o pai da rapariga avisa o pai do rapaz que pode ser realizado o casamento (Buiabu).

Quando existe já suficiente vinho de palma, o pai do rapaz avisa os moradores da sua tabanca enquanto os pais da rapariga fazem igual aviso aos seus, relativamente à data certa do casamento, realizado normalmente num Domingo Felupe (salvo erro Quinta-Feira no nosso calendário).


A cerimónai do Buiabu

Na manhã do dia do casamento há um toque especial do Bombolom, na tabanca do rapaz, após o que os jovens, rapazes e raparigas, vão ao mato buscar o vinho de palma que o noivo juntou, transportando-o para a casa nova. Ao princípio da tarde desse dia, a família da noiva leva para a casa nova um balaio com arroz, um pilão e o respectivo pau de pilar. Nessa noite os homens que são pais, levam o noivo para a mata. Igualmente na tabanca da noiva, as mulheres casadas, que já são mães, levam a noiva para a mata.

Os dois grupos ministram, separadamente, conhecimentos sobre o casamento. Passadas algumas horas, a noiva, chega à casa nova onde espera, acompanhada pela família, a chegada do noivo. A noiva tem, obrigatoriamente, de entrar na casa nova pela porta da frente. A chegada do noivo, que entra pelo quintal, carece do ritual de atravessar a casa seis vezes. Depois disso, o ritualista do Fanado conduz o noivo, para junto da noiva, ficando ambos sentados.

Segue-se a festa em que todos cantam, dançam e... bebem o vinho do noivo. Quando este terminar todos abandonam a casa ficando apenas o Arrontchenau, escolha do pai do noivo. Esta figura é uma espécie de encarregado do casamento e ao mesmo tempo padrinho. A mulher do padrinho leva a noiva ao quarto e ambas colocam uma esteira no chão, a mulher deve ficar sempre do lado da parede. Depois os padrinhos retiram-se, sendo consumado o casamento.

Na manhã seguinte, antes do nascer do sol, a noiva vai novamente para a casa paterna.


A cerimónia do Etuiai.

Nos dias seguintes, à noite, e durante cerca de três semanas, a noiva vai a casa dos padrinhos, pedir-lhes para a acompanharem à casa nova, onde dorme, voltando a sair na madrugada seguinte. Passadas as cerca de três semanas a noiva avisa a mãe que vai começar a fazer comida para o marido.

Esta avisa a sua tabanca e o pai do noivo, que por sua vez avisa a sua tabanca, que vai ter lugar a cerimónia do Etuiai.

O noivo deve arranjar arroz, peixe e vinho de palma. As mulheres da tabanca da noiva é que cozinham, só elas, não a noiva, e só se alimentam os jovens da tabanca do noivo, mas não este. No final da refeição toda a gente lava as mãos numa grande panela de barro com água que entretanto se tinha aquecido.

Após ter sido posta mais lenha no lume, de modo a fazer uma grande fogueira, o rapaz mais velho da tabanca do noivo, sem a presença de testemunhas, levanta a panela no ar e larga-a de modo a que ele se parta e apague o lume.

Depois disso todos saiem, com excepção dos padrinhos que transmitem à noiva que já pode cozinhar. Todavia, embora cozinhando, durante a primeira semana não come na sua casa, indo fazê-lo a casa dos padrinhos.

No final da semana, entra finalmente na rotina diária.

Tanto quanto consegui entender a lei Felupe não admite poligamia. Os casamentos são monogâmicos, permitindo-se no entanto a separação dos casais. O mais comum, contudo, é ver casais que permanecem unidos até morrer um dos conjuges.

Depois desta longa dissertação, o melhor é dizer
Kassumai

Luiz Fonseca
(ex-Fur Mil Trms CCAV 3366)

___________________

Nota do co-editor CV

(1) Vd. posts anteriores:

16 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luiz Fonseca

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luiz Fonseca)

31 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2074: Cusa di nos terra (6): Susana, Chão Felupe - Parte II: Religião (Lui Fonseca)

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luiz Fonseca)

domingo, 16 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luiz Fonseca, ex-Fur Mil TRMS)


Guiné > Susana > Recolha de lenha para a população

Em mensagem do dia 10 de Setembro de 2007, o nosso camarada Luiz Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73), enviou-nos a IV Parte de Susana, Chão Felupe (1).

Dizia, então:

Caríssimos editores:
A prosa de hoje versa a mulher Felupe.

Parte IV: Mulher Felupe

Comecemos por dizer que a povoação mais importante do Chão Felupe, que não da zona norte do Cacheu, tem nome de mulher: Suzana (com z).

Tendo em atenção os nossos padrões de sociedade, poderemos afirmar que a mulher felupe é uma mulher emancipada. Recebe todas as honras e desenvolve um papel extremamente importante na sociedade em que se integra.

Como exemplo, as suas actividades na família estão claramente definidas.
Ocupam-se dos trabalhos ligados à casa (fazer cestos, esteiras, redes de dormir, bem como trabalhos de olaria: vasos, potes e panelas). Podem, igualmente, ocupar-se da extracção do óleo de palma para ser vendido ou trocado, ou ainda proceder à colheita de palha nova para a substituição da existente na cobertura da casa. Cabe-lhes também armazenar madeiras e fabricar carvão para uso na cozinha.

É responsável pela culinária da morança, que pode ser providenciada também pelo marido, faz a limpeza da casa que o marido construiu, tira a água do poço que o marido cavou.

É sempre consultada pelo marido no que diz respeito à educação dos filhos ou outros assuntos do âmbito familiar.

Pode ainda, em determinadas condições, tornar-se uma sacerdotisa.

Quando casa, conserva o nome de solteira, o que de certa forma a faz ainda mais emancipada, tomando como termo comparativo as mulheres de outras etnias e de outros continentes.

Ocorrendo a morte do marido, a casa que ele construiu, os campos de arroz que ele plantou e todos os demais bens não são entregues à viúva mas sim ao irmão mais velho do falecido, que, por norma e bondade, permite que ela continue a habitar a morança. Confesso que nunca me ocorreu questionar o que seria feito se o falecido não tivesse irmãos, dado tratarem-se de famílias, normalmente, numerosas. Também nas pesquisas feitas não encontrei, até ao momento, resposta a tal dúvida.

Se a viúva for ainda jovem, regressará a casa dos pais e voltará a casar. Temos que ter em consideração o significado de jovem na etnia felupe, quando a esperança média de vida é de 47 anos e apenas 3% atingem os 65 anos.

Se for já de idade terá os cuidados dos filhos que além de casa onde morar providenciam também o seu sustento.

Em termos de direito de propriedade o Felupe só admite como privado a sua própria casa e os objectos de uso pessoal, nomeadamente os utensílios de lavoura, caça e pesca. São igualmente propriedade privada um reduzido número de cabeças de gado e os galináceos.

Pertencem à tabanca: a bolanha, as matas e a manada de gado bovino. A bolanha encontra-se distribuída em lotes atribuídos pelo homem grande (ancião mais velho) aos vários elementos da aldeia. As colheitas dos lotes são propriedade de quem a trabalha.

As palmeiras das várias matas, propriedade colectiva, são distribuídas a cada um dos moradores que se entregam à sua limpeza e donde só os próprios podem extrair o vinho.

A manada pode incluir as poucas cabeças de gado particular, mas só com o conhecimento e consentimento dos restantes moradores da tabanca. A manada é entregue ao cuidado dos jovens, alguns mesmo muito jovens, e pasta livremente porque as pastagens não têm dono.

Por decisão do Comandante da nossa Unidade, foi estipulada uma rotatividade das tabancas que entendessem fornecer um animal da sua manada para abate e alimentação da Companhia. Com as tabancas que aceitaram nunca se manifestou qualquer problema, sendo a carcaça pesada e o pagamento feito, à boa maneira Felupe, em géneros (farinha, açucar, muito raramente batatas, que apenas engordam e não criam força e músculos, como o arroz - afirmação felupe).

A grande dificuldade residia no apanhar do bicho que, desde longe, era indicado pelo chefe de tabanca. Tinha que ser aquele e só aquele, sem hipótese de troca. A tropa lá tinha que se preparar para uma pega de caras ou cernelha, com técnica TM (tudo a monte) com a ajuda de cordas, de forma a capturar o animal para o transportar para o aquartelamento. Sinal de melhoria de rancho.


Guiné > Susana> Caçar o bicho era uma autêntica tourada... para a nossa tropa

Os poços ou outros bens de utilidade pública são, como é bom de ver, propriedade de toda a tabanca. Uma bolanha está sempre vinculada a uma dada família, existindo um laço místico com os antepassados. Mesmo que uma dada família não tenha, temporariamente, homens válidos para o cultivo da sua bolanha, esta será explorada, depois de cerimónia religiosa para o efeito, por alguém estranho à mesma que voltará à "sua" família quando esta tiver individuo apto para retomar o seu cultivo.

Que melhores provas de espírito comunitário e solidariedade podemos pedir ?!

Por hoje terminado.
Kassumai

Luiz Fonseca
Ex-Fur MilTrms
CCAV 3366

Texto e fotos: © Luís Fonseca (2007). Direitos reservados.

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Nota do co-editor CV

(1) Vd. post anterior, de 5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luiz Fonseca)

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2091: Cusa di nos terra (8): Bolama, caminho longe (Beja Santos)

1. Mensagem de Beja Santos, com data de 9 de Agosto último, enviada ao Henrique Matos, que foi o primeiro comandante do Pel Caç Nat 52, com conhecimento aos editores do blogue:

Querido 1º Comandante,

Gostei muito das tuas informações sobre Bolama (1), uma cidade onde temos pesadas responsablidades culturais, por satisfazer e com urgência.Visitei-a num fim de semana, lá para Dezembro de 1991, no decurso da minha cooperação na área da política dos consumidores(ainda houve um despacho presidencial a criar a Comissão Interministerial de Defesa do Consumidor, fizeram-se 5 programas televisivos que me deram um trabalhão, tudo sem quaisquer consequências).

Apanhei um ferry que se viu em apuros na entrada da baía, tais as toneladas de areia por remover, depois é aquela beleza de uma cidade colonial decrépita, prédios de grande valor estético em ruínas (como o cinema, que só restava a fachada Art Deco), tudo fora do tempo e desprezado, como a estátua do Presidente Ulisses Grant, a quem a Guiné deve e não é pouco (3).
Foi uma odisseia encontrar onde comer, um dirigente do PAIGC deu-me dormida, tive a sorte de encontrar um guia conhecedor, pude visitar a magnífica Imprensa da Província, um verdadeiro museu. As praias, outrora um mimo, como te recordarás e se sente a lembrança, estavam num completo abandono.

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1966 > Rua, com casas de arquitectura colonial, com o cais ao fundo... Na foto, o Alf Mil Domingos Matos, acabado de chegar, com o Alf Mil Baptista que estava colocado em São João, um destacamento de Tite, que ficava mesmo frente a Bolama do outro lado do canal.

Foto: ©: Henrique Matos (2007). Direitos reservados.

Pouco tempo antes de regressar à Guiné, o INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, que me pareceu trabalhar com seriedade, promovera um colóquio internacional sobre Bolama, as implicações históricas da capital da Província (Bolama, caminho longe). Não consegui as comunicações, só um conjunto de postais que certificavam o esplendor relativo de Bolama. Infelizmente, ofereci esses postais que mereciam ser mostrados no blogue. Talvez o Pepito, o Leopoldo Amado ou o Paulo Salgado possam ajudar.


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > Hotel Turismo (3)

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados

Bolama tinha um cachet que Bissau nunca possuiu. Fizeste bem em recordar esse esplendor perdido! A propósito, e contado pelo tal dirigente do PAIGC: com a independência, procurou-se pulverizar com trotil o monumento oferecido por Mussolini. Puseram-se cargas poderosíssimas, o monumento nem tugiu. Desistiu-se... ainda bem para a História.

Então, para quando as tuas primeiras memórias do nosso Pel Caç Nat 52? Vou agora para umas férias com vários episódios a aboberar: um furriel que destrambelhou, um comandante que à terceira flagelação a Missirá em pouco tempo insinuou que não parulhávamos o suficiente, e depois um mina anti-carro em que tire culpas no cartório.. mas tudo será contado. Até breve, e não esqueças a nossa gente, Mário.~

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Notas dos editores:

(1) Vd. post de 3 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2025: O cruzeiro das nossas vidas (7): Viagem até Bolama com direito a escalas em Leixões, Mindelo e Praia (Henrique Matos)

(2) O património da Guiné-Bissau anda pela rua da amargura... Ainda recentemente desapareceu, da cidade de Bolama, em condições rocambolescas (!), a estátua em bronze do antigo presidente norte-americano Ulisses Grant (1822-1885), erguida em memória do papel decisivo que este estadista teve no desfecho do diferendo entre Lisboa e Londres sobre a ilha guineense.

Segundo noitícia da Lusa/SOL, de 4 de Setrembro último, uma empresa de sucata ligada a Alpoím Galvão teria comprado parte da estátua... O antigo militar português está em Bissau desde 2004 com um projecto de investimento no sector de recolha de sucata e transformação de caju, principal produto agrícola do país. Alpoim Calvão dá emprego a cerca de 1.500 guineenses na ilha de Bolama. O empresário ficou sujeito a termo de identidade e residência em Bissau, por alegado envolvimento no desaparecimento da estátua e até o assunto ficar esclarecido não poderá sair de Bissau...

(3) Vd. post de 5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)