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domingo, 2 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16546: Manuscrito(s) (Luís Graça) (98): Requiem para Iero Jaló, um bravo soldado

Requiem para Iero Jaló
um bravo soldado,

 

por Luís Graça





A guerra,
essa coisa tão primordial que é a guerra,
que estaria inscrita no teu ADN,
segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução

...por outros meios,
dirão os entomólogos,
especialistas em insetos sociais,
para quem a morte de um
ou de um milhão ou mais
de formigas, de alforrecas ou de seres humanos,
é-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
um projeto de ADN,
forte e bem musculado.

Para ti, "tuga", 
a guerra é a aprendizagem da morte,
aos vinte e dois anos,
é a inocência que se perde para sempre
ao ver morrer pela primeira vez um homem, 

a teu lado.
É o impossível luto,
é a descoberta do mal absoluto.
─ Fight or flight!─
Não precisaste de fugir nem de lutar.
Recusaste o egoísmo genético,
recusaste a lógica absurda de matar ou morrer,
recusaste o cinismo,
recusaste a fria e calculista resignação
com que se juntam e amortalham
os cadáveres seguintes
e se contam nas paredes da caserna
os dias que faltam para a peluda.

Quarenta e cinco anos depois, venho dizer-te,
Iero Jaló, meu querido "nharro",
as palavras que ninguém te disse
no teu grotesco enterro:
– Descansa em paz, Ieró Jaló,
meu herói,
soldado atirador do 2º Grupo de Combate
da CCAÇ 2590
que virá mais tarde a chamar-se CCAÇ 12,
companhia de tropa-macaca,
o nosso bando de primatas sociais,
territoriais, 

predadores,
"tugas" e "nharros"...


Fazíamos parte da nova força africana
de Herr Spínola, o prussiano,
como eu lhe chamava, 

ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues, são outros contos,
outras histórias,
outros ajustes de contas
com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Iero Jaló,
descansa em paz
debaixo do poilão secular,
sagrado,
na tua tabanca, 

no chão fula,
belíssimo poilão de uma triste tabanca,
cercada de arame farpado,
trincheiras 

e valas de abrigo.


Sei que eras do regulado de Cossé,
lá para os lados de Galomaro.
Desculpa-me ter esquecido o nome 

da tua tabanca
e a cara dos teus filhos
e o rosto das tuas mulheres,
agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis,
já não dão o milho painço 

nem o fundo
nem a mancarra 

nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra,
voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os feios e macabros jagudis,
poisados no alto da tua morança,
cheirando a morte,
pressagiando a desgraça.


Oito de setembro de 1969,
região do Xime.
operação Pato Rufia.

Progredimos toda a noite,
desde as 1h30 até ao amanhecer.
Morreste em linha,
aprumado como o teu poilão,
no assalto a um aquartelamento temporário do IN,
próximo da antiga estrada da Ponta do Inglês.
IN ?
Que estranho termo ou expressão,
uso-o por força do hábito,
por comodidade,
por lassidão,
por economia de análise.

Regressamos ao Xime com o teu cadáver às 16h00.
O heli só levou os feridos, incluindo o Malan Mané...

Curioso, nunca soube a tua idade,
não tinhas bilhete de identidade
de cidadão português.
Eras um fula preto,
um fula forro, não creio que fosses futa-fula.
Mas eu e o teu comandante de pelotão

levámos-te a enterrar na tua aldeia,
mais os teus camaradas, cristãos e muçulmanos,
que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares,
tiros de salva,
e a bandeira verde-rubra dos "tugas" 

por cima do teu caixão.
De pinho,
do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer, o teu enterro,
à boa maneira dos teus,
o corpo embrulhado num pano branco,

metido na vertical...
sem o inútil caixão de verde pinho.

Portugal ? 

Ainda te lembras, Iero Jaló ?
Os brancos, os "tugas",
os senhores que vieram do norte e do lado do mar.
Não, já não tens que saber de geografia,
nem de história,
nem de geopolítica,
no sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
eu deveria saber o nome da tua aldeia, no chão fula.
O teu nome, esse não esqueci: Ieró Jaló.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
e onde foste enterrado,
talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
mas não faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
confesso que chorei por ti,
que morreste a meu lado,
e que levavas um prisioneiro,
teu irmão, negro, pela mão.
E que não eras meu irmão,
nem grande nem pequeno,
nem tinhas a mesma cor de pele,
nem a mesma religião,
nem a mesma língua,
nem a mesma pátria,
nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu, um "nharro",
soldado-atirador de 2ª classe,
ganhavas 600 pesos de pré,
mais um saco de arroz por mês para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
da espécie "Homo Sapiens Sapiens",

o que em latim quer dizer homem duplamente sábio,
a única que chegou até aos nossos dias,

o que primeiro que eu vi morrer a meu lado.


Nunca mais chorei por ninguém,
chorei por ti, Ieró Jaló,
chorei de raiva,

pela tua morte e pelo teu enterro.
Nascemos meninos,
mas fizeram-nos soldados,
azar o meu e o teu,
por termos nascido no sítio errado,
no tempo errado.
Imagino-te "djubi", 

à volta da fogueira,
na morança do marabu ou do cherno da tua tabanca,
decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua terra,
e que eu guardo na minha memória,
são os "djubis" à volta da fogueira,
soletrando tabuinhas em árabe ou coisa parecida.
Lembro-me de quereres aprender as letras dos "tugas"
para poderes ser soldado arvorado
e um dia chegares a primeiro cabo,

e, quem  sabe, sargento, alferes, capitão 
dos comandos africanos.

E
de repente, o capim,
o capim alto,
o sangue,
o capim pisado e empapado de sangue.,,
Pobre Ieró,
morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte,
alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
na tua cara,
na nossa cara.
Defeito de fabrico, alegou o autor do relatório, 

acidente de serviço no auge da batalha,
quando avançávamos em linha, no assalto
ao acampamento do IN,
levando pela corda o teu "turra",
o teu guia, o teu prisioneiro,
ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga,
tão crente como tu,
tão observador dos preceitos corânicos
como tu, meu querido "nharro".

E agora, Ieró,
que foste poupado à humilhação da derrota
e provavelmente até ao poilão dos fuzilamentos de Bambadinca,
e não viste o teu país sentar-se de pleno direito
à falsa mesa redonda do mundo...
Que farias tu com esta independência
contra a qual lutaste
sem querer,
sem saber,
sem poder ?
Onde estarão os teus filhos ?
E as tuas mulheres ?
E os teus netos ?

E os homens grandes da tua tabanca do Cossé ?
E os líderes do teu povo
que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?


Spínola, o homem grande de Bissau,
esse já morreu há uns anos largos atrás.
Não lês os jornais,
não chegaste a aprender o alfabeto latino
e a juntar as letrinhas e ler,
com a torre de Belém ao fundo:
– Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande da Guiné morreu,

o Caco Baldé, 
como os "tugas" lhe chamavam, morreu,
não de morte matada, como a tua,
mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
na parada de Bambadinca,
tal como aconteceu ao poderoso régulo de Badora,

Mamadu Bonco Sanhá,
tenente de milícias,
que havia trocado o cavalo branco
da gesta heroica do Futa Djalon,
por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado, dizia-se,
e de uma harém de cinquenta mulheres,
uma em cada aldeia de Badora…
(Sei que não é verdade, 
segundo me jurou um dos seus netos,
nem o nosso puto Umaru Baldé era filho dele,
o Umaru que também já lá está  na terra da verdade, 
como a maior parte dos nossos camaradas guineenses,
da CCAÇ 12).

Hoje o que resta dos heróis do passado sucumbem
sob o peso das cruzes de guerra
ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
às portas do templo da deusa Europa,
em Ceuta e em Melilla,
em Lampedusa,
em Lisboa ou em Paris
e até em Lesbos, ilha grega à porta dos otomanos.


Que voltas o mundo deu, meu soldado,
desde esse dia já distante
em que a tecnologia da guerra
ou a lotaria do ADN te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
três meses depois de jurares bandeira
e te comprometeres,
por tua honra,
a defender uma pátria,  que não era tua,
até à última gota do teu sangue ?!
E do Malan Mané não tenho notícias,
se é isso que queres saber,
duvidava que ele tivesse sobrevivido
aos graves ferimentos do dilagrama dos "tugas".
Mas alguém me disse,
um camarada de Mansambo,
que sim, 

que o vira no hospital de Bissau,
em novembro de 1969.

E agora deixa-me dizer-te, amigo e camarada,
à laia de despedida:
não sei se um dia ainda terei coragem de voltar
à tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
gostaria de perguntar pela tua aldeia,
e de procurar-te
e de ter tempo para conversar contigo,
só tu e eu, debaixo do teu poilão,
tendo apenas como testemunhas
Deus, Alá e os nossos bons irãs.

Guiné, Bambadinca, 8/9/1969
V9 24set 2016


PS –Voltei à tua terra, Iero Jaló, 

em março de 2008, 
mas não pude ainda, dessa vez, 
cumprir a minha promessa... 
Atravessei Badora e Corubal, a caminho do sul, 
mas não o Cossé, 
onde imagino que seja a tua tabanca...

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 23 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16519: Manuscrito(s) (Luís Graça) (97): O 'prisioneiro' Malan Mané... a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram um arma e uma bandeira e um hino

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16519: Manuscrito(s) (Luís Graça) (97): O 'prisioneiro' Malan Mané... a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram um arma e uma bandeira e um hino


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Interrogatório a um prisioneiro, o guerrilheiro Malan Mané. Quem preside ao interrogatório é o slf mil at art Torcato Mendonça. A foto é do alf mil Cardoso, e chegou-nos à mão através do ex-fur mil Carlos Marques dos Santos, de Coimbra. "Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita, Torcato Mendonça".

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


O 'prisioneiro' Malan Mané

por Luís Graça (*)


Guiné. 
Bambadinca. 
3 de Setembro de 1969.


Malan Mané 
(**)
terás vinte anos, vinte luas ? 
Menos de vinte ? 
Talvez sejas da idade dos nossos soldados mais novos,
temos alguns com dezasseis ou dezassete. 
Não tenho qualquer jeito para adivinhar idades,
muito menos dos africanos. 
Mas tu próprio não saberias responder-me: 
aqui ninguém tem 
certidão de nascimento, 
cédula pessoal, 
bilhete de identidade
Os nossos, esses, sim,
têm (ou vão ter) caderneta militar...
Para a tropa, do recrutamento local, 
é-se escolhido a olhómetro: 
etnia,
altura, 
peso, 
massa muscular… 
A idade não conta,
é o régulo de Badora, quem põe e dispõe,
o poderoso Mamadu Bonco Sanhá,
tenente de 2ª linha...
Experiência de combate,
quase todos a têm, 
os fulas desta região,
de Badora e de Cossé…


Malan Mané: 
mandinga do regulado do Cuor, 
a norte de Bambadinca, para lá do Rio Geba,
podias ter sido nosso soldado, 
temos dois mandingas 
na nossa companhia,  a CCAÇ 12,
Malan Nanqui e Ussumane Sissé… 
Mas há mais outros dois Malan,
de etnia fula: 
Malan Baldé e Malan Jau…


Malan Mané: 

com que então
eras o roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, 
o terrível, 
o famigerado comandante de guerrilha,
também ele de etnia mandinga 
(ou talvez biafada ?)...
Não me sabes ou não me queres responder,
não importa,
à pergunta sobre o teu chefe.


Olhando,  para ti de alto a baixo,
sem sobranceria, com empatia,
vejo que vestes um dolmen, velho, 
de cor já irreconhecível, 
calças rotas no joelho…
Estás descalço…,
perdeste as chanatas ? 
Por outro lado, estás com ar deprimido, 
talvez mesmo aterrorizado,
não consigo ler as emoções do teu rosto impassível.
Tal como os nossos fulas, usas um amuleto,
contra a bala do tuga
e os demónios da floresta.
Tens razão, djubi, 
cair, vivo, nas mãos dos tugas 
pode ser pior desgraça 
do que morrer em combate, 
aos vinte anos, vinte luas
 – deves ter pensado tu muitas vezes no mato. 
Ou se calhar nunca pensaste nisso. 
Na guerra quem pensa na morte, 
morre mesmo,
dizem que dá azar.
Aliás, na guerra, não convém pensar muito.
É uma pergunta que tu não entendes 
ou a que não queres responder. 
Pelo menos, em público, 
neste cenário de circo, 
enjaulado como um animal selvagem, 
rodeado de homens, brancos e pretos... 
Os páras do BCP 12 / COP 7, esses, 
não tiveram grande dificuldade em desatar-te a língua:
bastou-lhes encostar a faca de mato à tua barriga. 
Foste apanhado com o teu RPG-2,
boquiaberto, 
aparvalhado,
com o helicanhão por cima da tua cabeça,  
numa clareira da mata do Rio Biesse, 
na região de Camará, 
lá para os lados de Candamã, 
quando o céu desabou em cima de ti.


Estás agora às ordens do comando do sector L1,
de mãos algemadas, 
metido numa espécie de gaiola de jardim zoológico. 
Espetáculo degradante, 
para mim, para alguns de nós
que nos consideramos uns gajos decentes…
A Convenção de Genebra
sobre os prisioneiros de guerra 
não se aplica aqui:
oficialmente o meu país não está em guerra,
com ninguém do planeta, 
com nenhum outro estado soberano. 
Oficialmente não há, 
nem pode haver, 
prisioneiros de guerra 
no meu país, 
do Minho a Timor, passando pela Guiné.
Oficialmente tu, Malan Mané,  não és
nem podes ser prisioneiro de guerra
nem tratado como tal.


Malan Mané,  és bandido, 
homem do mato,
fora da lei e da ordem,
turra. 
Fazes-me lembrar o moçambicano Gungunhana, 
passeado em gaiola por Lisboa, 
em 1896, 
como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. 
Estás aqui mesmo ao lado 
das instalações do rancho, 
o refeitório dos praças,
entre a escola e o posto administrativo.


Há um correpio de gente que vem ver o turra (sic),
capturado pelos páras, 
na Op Nada Consta, em 18 de agosto de 1969, 
no subsector de Mansambo. 
Participámos na operação,
mas a nós, 
mais ao Pelotão de Caçadores Nativos 53
e aos camaradas de Mansambo 
os velhinhos da CART 2339,
coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.
montando o cerco à alcateia de lobos
que aterroriza o chão fula,
desde o início da estação das chuvas.
O lobo alfa é o teu comandante, Mamadu Indjai: 
conseguiu escapar-nos, 
embora gravemente ferido.


Repara na plateia de mirones:
básicos, 
cozinheiros, 
padeiros, 
pintores, 
carpinteiros, 
fiéis de depósito de géneros, 
faxinas de bar, 
maqueiros, 
corneteiros, 
mecânicos, 
desempanadores, 
condutores auto, 
malta das daimlers,
escriturários, 
amanuenses, 
contabilistas, 
quarteleiros, 
sapadores, 
ajudantes de capelania, 
sacristães,
operadores de transmissões, 
radiolegrafistas, 
cabos cripto, 
municiadores e apontadores de metralhadora Browning, 
cipaios,
crianças e bajudas, 
caçadores e suas presas, 
todo o mundo tem hoje espetáculo de borla. 
Até os jagudis.
Até o chefe de posto.
Até a senhora professora.


Também ela é alvo
de curiosidade mórbida,
a única mulher branca que ainda reside,
com a sua mãe, 
dentro do perímetro do aquartelamento.
Espreita à janela da escola,
deve estar a olhar para ti 
como o bicho do mato 
que lhe apareceu nos pesadelos noturnos. 
Ou talvez não. 
Nunca lhe soube a idade nem o nome. 
Vejo-a agora de relance
e pergunto-me como terá reagido ela 
ao ataque ao aquartelamento em 28 de maio de 1969. 
Se calhar portou-se com mais dignidade 
do que alguns dos militares 
que deveriam saber defender a sua unidade
e este pedaço de terra verde e rubra
onde flutua a bandeira portuguesa.


Malan Mané, 
desculpa-me este devaneio,
este aparte:
não deves ter visto muitos brancos
na tua vida,
talvez o médico cubano do Fiofioli
e poucos mais...
Intriga-me a situação desta estranha personagem,
uma mulher branca, 
mestre escola, 
de meia idade,
ainda longe  da reforma, 
que insiste em viver aqui, 
no cú do mundo,
numa terra inóspita, 
em Bambadinca,
a "cova do lagarto",
como se diz na  língua mandinga. 
Não sei donde veio nem por que veio,
a senhora professora,
em tempo de guerra,
dizem-me que é caboverdiana,
o chefe de posto é de Cabo Verde, 
como manda a tradição. 
Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, 
dono de escravos,
tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, 
governador de Bissau, 
de Cacheu 
e da província da Guiné, 
herói nacional,
comendador da Ordem de Cristo, 
cavaleiro da ordem da Torre e Espada.


Na realidade, a Guiné é (ou foi) 
uma subcolónia, 
uma colónia de Cabo Verde,
um arquipélago, como os Bijagós,
que tu não conheces
nem aonde irás algum dia. 
Missionários e missionárias, 
oriundos da Europa, 
nem sequer os há aqui. 
Já os houve, italianos,
mas foram expulsos,
também eram turras...
Samba Silate, deves ter ouvido falar,
tabanca balanta
em que o pessoal foi para o mato,
a tropa cercou Samba Silate,
missionário turra foi preso…
Comerciantes tugas, só dois, 
que eu conheça,
perfeitamente cafrealizados, 
como se dizia no vocabulário colonial e racista 
dos europeus do séc. XIX 
que demandavam estas paragens inóspitas.


Os dois comerciantes tugas 

vivem fora do perímetro do quartel. 
Um deles tem um bando de filhos, 
de mãe negra, mandinga como tu, 
de sangue azul, 
filha e neta de régulo...
Já me convidou, a mim e outros camaradas,
para lá ir comer 
o seu famoso chabéu de galinha
e beber uns bons uísques. 
Fala dos filhos com ternura, 
uma das raparigas está a estudar na Metrópole. 
Contou-nos a sua história:
veio da Murtosa, salvo erro, 
muito jovem ainda, 
aos dezassete anos. 
Compra mancarra, vende arroz. 
Procura cultivar boas relações com a tropa, 
mas eu acho-o demasiado afável.


Malan Mané: 
uns mandam-te uns piropos, 
outros dão-te um cigarro, 
e outros ainda oferecem-te  garrafas de cerveja, 
que tu recusas, delicadamente, 
como bom muçulmano que deves ser. 
Não entendes as provocações que te dirigem:
 Então, pá, quantos tugas 
já mataste com o teu RPG 2 ?


Há ordens, do comando do batalhão, 
os "homens grandes" dos tugas, 
para te tratar bem. 
Afinal tens-te mostrado colaborante
E, depois de uns meses na ilha das Galinhas,
irás tornar-te um bom guinéu
e um melhor português. 
E, para começar,
nada como um bom prato de bianda, 
arroz com mafé,
filetes de cavala,
comida gourmet.
Comes com dignidade,
a mão servindo de faca e garfo. 
No mato a vida é dura:
uma refeição por dia, 
um maço de cigarros russos por mês, 
farda e botas novas só para os chefes,
bajudas, manga di sabe, 
também só para os chefes,
o Mamadu Indjai, o Mário Mendes...
Todos iguais, diz o camarada Cabral, 
mas uns mais iguais do que outros, 
Malan Mané...


Tinhas começado a aprender o português 
há pouco tempo, 
na escola do mato,
lá no Fiofioli, 
foi isso que eu percebi.
Sabes algumas letras do alfabeto latino,
o suficiente para alinhar as cinco letrinhas do teu nome:
M-A-L-A-N.
Não sei se chegaste a aprender o Alcorão,
nas tabuinhas de algum cherno,
à noite, à volta da fogueira... 
Com a guerra, 
a tua gente, a tua tabanca, desintegrou-se. 
Muitos mandingas foram no mato, 
com os balantas e os biafadas. 
Só falas o crioulo e o teu dialeto mandinga 
O crioulo é a língua tanto do colonizador
como dos inimigos que o combatem.
Ninguém se entende nesta Babel, Malan, 
sem o crioulo,
que é uma genial criação dos homens, 
de diferentes grupos étnicos, 
que querem comunicar entre si,
brancos e pretos.
O exército dos tugas não faz, porém, qualquer esforço 
para nos ensinar o crioulo.
Mas o teu Amílcar Cabral
quer que tu aprendas o português.


Malan,  falas pouco, a custo. 

As tuas respostas às minhas perguntas são lacónicas, 
arrancadas a ferro 
e misturadas com um leve sorriso resignado. 
Eu bem procuro, em vão, 
transmitir-te sinais de simpatia e de compaixão.
Afinal, Malan, tu és um homem, não és um bicho.
Se bem percebi, 
foste no mato ainda djubi, 
talvez em 1962...
Se sim, não podes ter vinte anos, vinte luas... 
Não deves ter conhecido outra vida. 
Chefe da tabanca levara menino e mulher 
para o Morès 
com medo de avião dos tugas...
Foi a história que te contaram…
Mas no Morés ganhaste ainda mais medo dos aviões.
Mal cresceste,
deram-te uma semi-automática Simonov,
uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser 
que está distribuída ao pessoal das tabancas, fulas, 
em autodefesa. 
Começaste como milícia, traduz o Abibo:
fazias segurança à tabanca 
e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. 
Mais tarde, és promovido a combatente 
como municiador do RPG-2. 
Passarias depois a apontador,
substituindo o teu camarada que morreu. 
Há um ano atrás 
foste ferido por estilhaço de obus, 
no Xime, 
quando atacavas barco em Ponta Varela.


Não sabias quem era o novo homem grande de Bissau.

– E home grandi di bó ? – perguntei-te eu.
 Amílcar Cabral! – respondeste-me, de pronto, 
não sem uma certa expressão de orgulho 
(ou foi impressão minha,
se calhar foi impressão minha). 
Não, nunca o tinhas visto no mato,
só o conhecias de nome e de retrato,
no livro de leitura da 2ª classe. 
Comissário político falava dele 
e da "luta di partido africano".


O intérprete é o Abibo Jau, 
o bom gigante,  epilético, da CCAÇ 12, 
com o seu metro e noventa e tal de altura 
e os seus mais de 100 quilos de peso. 
Não sei quem lhe descobriu o seu talento 
para intérprete e... torcionário. 
É visível o medo que o Abibo te inspira,
pobre Malan Mané. 
Um fula e um mandinga, frente a frente, 
velhos ajustes de contas 
com a memória coletiva e a história de cada grupo 
a virem provavelmente ao de cima.
Malan,
fulas e mandingas já foram os donos destas terras,
cada um no seu tempo. 
Foram  os vencedores,
orgulhosos, 
de lutas contra os animistas,
os povos ribeirinhos.
Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, 
ao subjugar os nómadas, místicos e guerreiros fulas. 
Em contrapartida, deixou a estes 
os papéis subalternos, 
mais sujos, 
da pacificação
e do aparelho de repressão... administrativo-militar. 
Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, 
aos olhos dos outros povos da Guiné. 
Amílcar Cabral, dizem,  odeia-os.
Os mandingas e os balantas odeiam-os.
Aqui, pelo menos na zona leste, 
os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação 
aos fulas. 
Um ódio que é recíproco. 
Não sei se concordas
mas sabes, Malan, 
o poder sempre soube dividir 
(e aterrorizar) para reinar.


Malan, olhando para ti, 
vejo que  és um bocado franzino e frágil, 
embora de estatura normal. 
És uma criança crescida na guerra... 
Não adianta, 
procuro tranquilizar-te,
mas vejo que já vêm  buscar-te
para mais interrogatórios. 
O interrogador  da CCS
é um famigerado sargento, chico
conhecido pelo seu cavalo marinho...  
Alguém tem de fazer o trabalho sujo, 
diz-me , a meu lado,
um homem das informações e operações,
E daqui vais para a PIDE de Bafatá, Malan.



Explorando o teu cansaço físico e psicológico, 
e talvez sob tortura ou ameaças
(que eu, a essa parte, não assisti...), 
acabarás por dar com a língua nos dentes, 
pobre Malan
arrancam-te mais algumas informações preciosas, 
comprometendo a segurança dos teus companheiros.
Para nós, CCAÇ 12,
e para as unidades de quadrícula,
vão ser mais dias infernais, 
de operações no mato. 


Confesso que foi minha primeira grande deceção 
em relação aos guerrilheiros do PAIGC. 
Ingenuamente, julgava-os 
da estatura  humanal, moral e até intelectual
de um 'Che' Guevara ou de um Amílcar Cabral.
Que pateta, que ingénuo, sou eu!, 
apanhado como um cão nesta maldita guerra!
Acreditava, romanticamente,
antes de embarcar,
que a escola de guerrilha do PAIGC 
tenha formado já grandes combatentes e comandantes. 
Mas tu, Malan Mané, não és muito diferente 
dos meus soldados e de mim próprio: 
fomos todos apanhados na rede como cães vadios, 
somos todos vítimas da História, 
nascemos no sítio e na data errados… 
Se eu fosse guinéu, 
muito provavelmente estaria a combater, 
com ou sem convicção, 
num dos dois lados da barricada.
Como tu, como os meus soldados,
sem convição,
e muito menos sem grande hipóteses 
de escolha.


Malan Mané:
se hoje ainda fores vivo, 
o que me parece de todo improvável,
terás 60 e tal anos. 
Há muito que ultrapassaste a esperança média de vida, 
à nascença, 
estimada para os homens 
da tua terra e da tua geração. 
Se alguém te descobrir, 
lá para os lados do Enxalé,
na tua enxerga de moribundo, 
ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, 
peço que te mandem um abraço meu,
de tuga para turra,
de soldado para soldado, 
de homem para homem.


A última vez que te vi, 
ias preso por uma corda, 
à guarda do Iero Jaló.
Foste gravemente ferido por um dilagrama nosso, 
um estúpido dilagrama nosso,
no assalto a um das tuas 'barracas',
como vocês chamavam aos vossos acampamentos,
perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês. 
Lembro-me muito bem,
foi na madrugada do dia 7 de setembro de 1969,
foi o meu batismo de fogo. 
O Iero Jaló morreu,
morreu a meu lado. 
Tu, também a meu lado, ficaste gravemente ferido 
e foste evacuado para Bissau. 
Mesmo que tenhas sobrevivido 
(e o Torcato Mendonça disse-me que sim,
que te viu dois meses depois, 
em Bissau,  no hospital militar)...
mesmo que tenhas chegado a ver a independência 
da tua terra, por que tanto lutaste, 
não sei o que te terá acontecido depois. 
Não sei como é que o teu partido,  
organizado à boa maneira marxista-leninista, 
terá lidado com o teu  caso e outros casos 
de colaboracionismo...
de antigos militantes e combatentes, 
feitos prisioneiros dos tugas,
e que, na prisão, deram à língua. 
Fraqueza humana ?
Colaboracionismo ? 
Delação ? 
Traição ?
Crime de lesa-pátria ?


Malan Mané, um homem não nasce herói,

um homem não feito para matar e morrer,
um homem não foi feito para ser 
aprisionado e torturado,
mas pode ter dignidade,
e eu posso testemunhar que tu 
tentaste resistir, 
tentaste ludibriar-nos. 
Não demos com o acampamento à primeira, 
em 25 de agosto de 1969. 
Tu alegaste que o capim estava muito alto 
e que te perderas. 
O tanas! 
Tu conhecias aquilo de cor e salteado, 
de olhos vendados,
tinhas lá estado há três meses atrás. 
Enfim, resististe enquanto pudeste, 
meu pobre diabo,
par dares tempo aos teus camaradas
para se porem na alheta. 
Arriscaste a vida, brincaste com o fogo...
Só lá voltaríamos, à toca do lobo, 
para um golpe de mão, 
no dia 7 de setembro,
o primeiro dia do resto da tua vida:
chamámos-lhe a Operação Pato Rufia.


Os espíritos da floresta 
(bons ou maus, quem saberá distingui-los ?) 
não te perdoaram. 
Se tu morreste, 
de morte natural, 
em consequência dos teus ferimentos de guerra, 
ou de morte matada, 
mais tarde,
sob as balas das Kalash raivosas dos vencedores,
dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários 
que acabam sempre por devorar os seus filhos, 
espero ao menos 
que o teu fantasma continue a vaguear, 
agora mais tranquilo, 
e definitivamente livre,
pela orla da bolanha do Poindon, 
com o teu RPG-2 ao ombro, 
ou a tua velha Simonov a tiracolo, 
transformadas em peças de museu,
ou brinquedos de madeira,
que nunca tiveste quando criança,
guardando desta vez os bons espíritos da terra, 
da bolanha, 
da floresta-galeria do Fiofioli,
e do selvagem e majestoso rio Corubal,
o único verdadeiro rio da Guiné, 
como nos dizia o teu homem grande,
Amílcar Cabral.
Para que eles, os bons irãs,
iluminem o presente e o futuro 
daquela terra 
onde um dia nasceste,
e foste djubi 
e puseram-te o nome de Malan Mané, 
e a quem cedo, 
talvez demasiado cedo, 
deram uma arma e uma bandeira e um hino. 


PS – Olha, ao Abibo Jau, da CCAÇ 12, 
não lhe perdoaram,
os teus antigos camaradas do PAIGC:
crivaram-no de balas
contra o poilão de Madina Colhido, em 1975.
E o teu antigo comandante, Mamadu Indjai,
já antes havia sido executado sumariamente,
no Boé, em 1973, por alta traição,
por ter as mãos sujas de sangue 
do pai da Pátria...
Tu terás tido melhor sorte, Malan Mané ?
Oxalá / Inshallah / Enxalé!

Versão original: 3/9/1969 | Última versão: 21/9/2016

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16491: Manuscrito(s) (Luís Graça) (96): Em Bambadinca, à noite, íamos ao nimas e sonhávamos com gajas boas...

(**) Sobre o Malan Mané, vd,  os postes:

28 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)

14 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6984: (Ex)citações (97): Tinha 22 anos e ainda sonhava... quando levei o prisioneiro Malan Mané a jantar comigo no café do Sr. Regala, em Galomaro (Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil Heli AL III, BA 12, Bissalanca, 1968/70)

8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6953: Estórias avulsas (94): A captura do incaracterístico guerrilheiro Malan Mané, no decurso da Op Nada Consta (Salvador Nogueira)

7 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai... (Luís Graça).

26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2683: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (9): O Jorge Félix e o Prisioneiro

15 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o

(...) O [Carlos] Marques dos Santos deu-me a conhecer este blogue. Há muito que a guerra acabou para mim, só que quase diariamente ela aparece…! Não resisti, fui à Net e tenho navegado pelo blogue.

Fui alferes miliciano na CART 2339 [Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69](1). Li certos eventos que os vivi: por exemplo, o Malan Mané (...)  estava vivo em Novembro de 1969 e recebia tratamento no Hospital Militar de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido (... Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama)... (...)