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domingo, 22 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26300: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (56): Os capitães de março de 1961 que eu conheci em Angola...


Angola > Luanda > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, beirão,  vivia já em Angola há uns anos (foi para lá adolescente e fez lá a tropa; amava Angola, pensava lá vibver poara sempre e lá morrer, quando chegasse a sua vez)...

Vemo-lo aqui a desfilar com o seu pelotão, que parece ser composto apenas por militares do recrutamento local (ele nunca nos disse a que unidade ou subunidade pertenceu, e por onde andou, em concreto; sabemos que teve uma "guerra" relativamente tranquila, apesar dos acontecimentos de 1961...). 

Foto: © António Rosinha (2006). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



1. Era furriel miliciano aparece na foto acima: depois do alferes ( cmdt do pelotão em primeiro plano), o Rosinha,  todo garboso, na segunda fila, a dos comandantes de secção: é o primeiro a contar da direita para a esquerda, está de óculos escuros e empunha, durante o desfile, a pistola-metralhadora FBP, tal como os restantes graduados... As praças usavam, evidentemente, a velha espingarda Mauser 7,9 mm m/937 ... A farda, em 1961, era a do "caqui amarelo"... E, em plenos trópicos, os combatentes da época usavam capacete de aço. Uma foto icónica, histórica...

Topógrafo em Angola, africanista de alma e coração, regressou a Portugal em novembrto de 1974, emigrou para o Brasil da ditadeura militar (que vigortou de 1964 a 1985), e mais tarde para a Guiné-Bissau do partido único, onde trabalhou, de 1878 a 1993,  na empresa TECNIL, ao tempo do Luís Cabral e do 'Nino' Vieira, "camaradas", "heróis da liberdade da pátria",  que ele conheceu bem no poder. 

Entrou para o nosso blogue, em 2006, é um histórico da Tabanca Grande (desde 29/11/2006).  E aqui sempre foi tratada, estimado e acarinhado. Que Deus, Alá e os bons irã lhe continuem a dar saúde e ganas de viver (e de partilhar as suas memórias e opinióes sobre as nossas "blogarias").

É autor da série "Caderno de Notas de Um Mais Velho". Tem cerca de 150 referências no blogue (o que é uma marca notável para quem estava com "acanhamento" de entrar)... 

Deixem-me,  em plena época natalícia, partilhar aqui um pequeno segredo: a entrada do Rosinha foi incentivada e apadrinhado por mim, pelo Vitor Junqueira e pelo Amílcar Mendes. Se a Tabanca Grande fosse uma equipa de futebol, eu diria que foi uma grande aquisição, "a custo zero"... E a prova é que, dezoito anos depois (!), ele ainda "toca na chincha" como poucos dos mais novos... Seja como autor seja como comentador... É uma alegria vê-lo nestas "peladinhas"... bloguísticas.  

Sem nunca ser chato, inconveniente, demagógico, intolerante, grosseiro... Pelo contrário: nunca os editores tiveram que o censurar ou pòr os pontos nos ii. Saber estar e saber ser,  por inteiro, neste blogue plural,  como homem, cidadão, português, "angolano" e "guineense", é uma das suas virtudes, e seguramente não a menor. 

Boas Festas, Rosinha. Está feita a tua prova de vida!.


1. Mensagem do nosso veteraníssimo António Rosinha, que ainda é do 
tempo da farda de caqui amarelo, do capacete metálico, da espingarda Mauser, da pistola metralhadora FBP e do "Angola É Nossa" (aqui à esquerda, fot0 de 2007, II Encontro Nacional da Tabanca Grande, Pombal):

 Data - terça, 17/12, 23:14 (há 4 dias)

Assunto - Os capitães de março de 1961

Agora, hoje, 50 anos que os capitães de Abril de 1974 acabaram com a Guerra do Ultramar, e sabemos em geral o que uns pensavam sobre essa guerra e outros que misturavam no mesmo saco Salazar e essa Guerra... Será que em 15 de Março de 1961, os capitães daquele tempo tinham ideias aproximadas aos dos capitães de 1974?

Não, pelo menos alguns que eu conheci.

Lembrar que os capitães de 1974, eram o máximo alferes em 1961, não vou mencionar nomes, mas podem consultar as biografias de alguns, na internet.

Estes alferes, da minha geração (eu, furriel), com 22/23 anos, a politização seria semelhante à minha, pouco mais ou menos nicles..

Pelo que vi em Angola, onde a Guerra começou em força, no norte de Angola, na zona do Café,  principalmente, pelo movimento UPA, absolutamente tribalista, racista e jamais com sentido nacionalista angolano, notava-se que os capitães estavam em geral, de acordo com Salazar, "para Angola e em força".

E provavelmente, embora alguns pouco conhecedores da vida angolana (lembrar que a Guiné era muito desigual de Angola), esses capitães traziam algumas ideias preconcebidas sobre aquela guerra.

E, aqui, vou mencionar uma ideia bem real que traziam quando desembarcaram em Luanda, logo no início, em maio/junho de 1961.

Evidentemente que não se deve generalizar, quando se fala de uma classe.

Eis a ideia:

(i) nós, militares, temos que "educar" ("obrigar") os brancos a tratar bem os pretos.

(ii) os pretos revoltaram-se porque os brancos os tratam mal..


E muitos alferes milicianos aceitavam que seria plenamente essa uma das intenções independentistas.

E surgiu, passados poucos meses, a política da psicossocial,  creio que exclusiva ideia dos militares, e creio que inicialmente seria para compensar "os maus tratos", na cabeça dos primeiros militares chegados a Angola.

Não mencionando nomes, mas dizia-se em Luanda que um capitão que teria feito o primeiro ensaio da Psico, no Norte de Angola, teria ficado alcunhado de capitão-rebuçado.

Em 1962, eu furriel, distribui muitas pomadas, muitos antipalúdicos, muito tabaco, muitas aspirinas, dentro dessa política

Como a guerra era no Norte de Angola, de onde as populações fugiram, constou que passados uns tempos algumas populações regressaram.

Seria efeito da Psicossocial?

Mas que os capitães em 1961 ainda tinham ideias de poder salvar o império, isso não se pode duvidar.

Todos os esforços eram bons, inclusive tornar os brancos mais bem comportados.-

Cumprimentos, Antº Rosinha

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24297: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (55): aqueles 13 anos de guerra do Ultramar deram-nos tanta ou mais divulgação de Portugal e da língua do que os 500 anos anteriores

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Guiné 61/74: P26275: Agenda cultural (874): "Crepúsculo do Império: Portugal e as guerras de descolonização", Pedro Aires Oliveira e João Veira Borges, ed. lit. (Lisboa, Bertrand, 2024, 800 pp.): a História não é o somatório das vidas dos santos e heróis...

1.  Organizado sob os auspícios da Comissão Portuguesa de História Militar, e reunindo a colaboração de 37 autores, oriundos de diversas instituições universitárias portuguesas e estrangeiras, bem como de especialistas de reconhecido mérito em áreas como a história, a estratégia, as ciências sociais e as ciências militares, este livro vem fazer o "ponto da situação" ou o "estado da arte" em matéria de conhecimento sobre  Portugal, o fim do império e as "guerras de descolonização"... 

Para os antigos combatentes, com0 nós, passa a ser um livro de cabeceira  para o ano (novo) que aí vem. Só não é "livro de bolso", porque é um verdadeiro "tijolo",. uma calhamaço de  800 páginas e capa dura.

Caro leitor: acho que é a melhor prenda de Natal que te podes dar a ti mesmo. Vê, mais abaixo, a ficha técnica, e o índice.  Já comecei a ler alguns capítulos. Vamos partilhando notas de leitura. 

O livro foi lançado recentemente, em 21 de novembro passado, e simbolicamente na Torre do Tombo, em Lisboa. Ao fim de 50 anos, do 25 de Abril e do fim do mítico Império Português de 500 anos, é chegada a altura de deixarmos de usar a "guerra de África / guerra do ultramar / guerra colonial" como arma de arrremesso, político-ideológica,  uns contra os outros... 

Este livro ajuda-nos a obter o necessário distanciamento (e o desejável apaziguamento) em relação ao "sangue, suor e lágrimas" que os últimos soldados do império e os "insurgentes" (angolanos, guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos, indianos, tiomorenses, etc.), todos "heróis", todos vencidos e vencedores, verteram num e no outro lado dos campos de batalha...

Como escrevem, na introdução,  os dois coordenadores literários, Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges,  "a historiografia 'heroicizante' das lutas independentistas terá ainda os seus praticantes. Mas é inquestionável que, desde a década de 1990,  com a derrocada dos socialismos africanos e a crise dos regimes de partido único, tem-se verificado uma outra predisposição para questionar muitos dos mitos fundadores das lutas de libertação e submeter as narrativas hagiográficas a um outro crivo, como nos dá conta um dos capítulos deste volume, da autoria de  Eric Morier-Genoud" (pág. 17).

Boas Festas, boas leituras. (LG)

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Ficha técnica:

Crepúsculo do Império
de João Vieira Borges, Pedro Aires Oliveira
ISBN: 9789722546072
Edição/reimpressão: 11-2024
Editor: Bertrand Editora
Idioma: Português
Dimensões: 156 x 242 x 48 mm
Encadernação: Capa dura
Páginas: 800
Tipo de Produto: Livro
Classificação Temática: Livros > Livros em Português > História > História de Portugal
Preço de capa: c. 25 euros


SINOPSE

As guerras travadas por Portugal entre 1961 e 1975, com vista à preservação do seu secular império ultramarino, são impossíveis de ignorar em qualquer balanço histórico ao 25 de Abril de 1974.

Quando se assinalam 50 anos sobre essa data e se revisitam as circunstâncias do tumultuoso processo de descolonização que se desenrolou em várias partes de África e da Ásia, e também na metrópole, este volume apresenta um grande estado da questão sobre os últimos anos do colonialismo português.

Reunindo a colaboração de mais de três dezenas de autores oriundos de várias instituições portuguesas e internacionais, bem como de especialistas reconhecidos na área da história, da estratégia e das ciências militares, esta é uma obra que familiarizará o público com algumas das investigações mais inovadoras acerca

Autores:

JOÃO VIEIRA BORGES

(i)  major-general; 

(ii) presidente da Comissão Portuguesa de História Militar;

(iii)  doutorado em Ciências Sociais;

(iv) antigo comandante da Academia Militar e fundador do Centro de Investigação da Academia Militar;

v) académico honorário da Academia Portuguesa da História, autor e coautor de 26 livros e de cerca de 160 artigos;

(vi) agraciado com a distinção Grande-Oficial da Ordem Militar de Avis.


PEDRO AIRES OLIVEIRA;

(i) professor associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / NOVA (FCSH-UNL);

(ii) investigador integrado no Instituto de História Contemporânea da mesma faculdade;

(iii) autor de dezenas de livros e artigos sobre relações internacionais e a história contemporânea de Portugal;

(iv)  membro do conselho editorial da revista Relações Internacionais;

(v) membro do Conselho Consultivo do E-Journal of Portuguese History, entre outras diversas funções.

Fonte: Bertrand Editora

Recolha bibliográfica e filmográfica:





Sobre a recolha bibliográfica e filmográfica (disponibilizada no final da obra em ficheiros em formato pdf, "on line", no sítio da editora):  

Os coordenadores da obra, como bons académicos, desprezaram soberanamente  (espero que não arrogantemente...) a "literatutra cinzenta", a literatura memorialistica, as edições de autor,  os livros de ficção, de poesia, de fotografia, etc., já para não falar dos blogues e  outras páginas da Web, produzidos e mantidos por antigos combatentes de um lado e do outro, com informação riquíssima para a produção de conhecimento relevante do ponto de vista historiográfico: como nós lhe chamamos, são  os afluentes dos rios da pequena história que alimentam os rios da História com H Grande... 

No que respeita à bibliografia, por exemplo, há lacunas óbvias, não se percebendo bem qual foi o critério usado: por exemplo, porquê o António Lobato e não também o Amadu Bailo Djaló ou o José de Moura Calheiros ou o Mário Beja Santos ou o Armor Pires Mota,  autores de memórias como antigos combatentes ?...E os textos teóricos ou doutrinários, de Cabral a Spínola ? E porquê jornalismo de investigação, algum sensacionalista e qualidade duvidosa ?...

São para já os pequenos grandes reparos que eu faço a esta monumental obra, que passa a ser de referência,  sobre as "guerras da descolonização". 

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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25925: Notas de leitura (1725): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
De Rui de Azevedo Teixeira conhecia a sua tese de doutoramento intitulada "A Guerra Colonial e o Romance Português" e o seu romance "O Elogio da Dureza", ambos já referenciados no blogue, este I Congresso Internacional incluiu uma plêiade de intervenientes, tais como António Costa Pinto, John P. Cann, Álvaro Guerra, Roberto Vecchi, A. do Carmo Reis, jornalistas e cineastas reputados. Na impossibilidade de todos escutar, faz-se uma seleção de textos em função dos 10 temas escolhidos, a saber a guerra e os militares; a oposição e guerra; a natureza da guerra, consequências físicas e psicológicas da guerra; a guerra e a literatura, a guerra e o jornalismo, e a guerra e o cinema. Como observou no ato inaugural Rui de Azevedo Teixeira: "Decidimos desde o início recusar qualquer forma de segregação, fosse ela disciplinar, política ou mesmo geográfica. Acolhemos especialistas das mais diversas áreas; não impusemos qualquer controle político-ideológico. Convidámos estrangeiros, lusófonos e lusófilos. Também abrimos as portas aos mais jovens, porque é neles que o futuro da investigação sobre a temática da guerra colonial, ou do Ultramar, reside."

Um abraço do
Mário



A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional) (1)

Mário Beja Santos

O volume "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de atas do I Congresso Internacional), teve como organizador o professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira, Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional. Participaram dezenas de comunicadores. Na altura em que foi editada, a obra era assim apresentada:
“Neste livro, que recusa a tirania da coisa política sobre a História ou a Literatura ou a insidiosa pressão do mediaticamente correto, correm textos de estudiosos da guerra e de grandes guerreiros, de portugueses e estrangeiros (lusófilos, lusófobos e lusófonos), de homens e de mulheres, de nomes consagrados e de novos investigadores da temática da Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar. Académicos, militares, académicos militares, escritores, psiquiatras, cineastas, jornalistas, gestores e outros contribuem nesta obra para uma compreensão mais alargada e mais profunda da guerra de guerrilha que, fechando o Império, obrigou a uma definitiva mudança de paradigma da nossa História.”

Na impossibilidade de aqui se reproduzirem súmulas de todas as comunicações, iremos respigar alguns parágrafos de diferentes intervenientes. Vejamos algumas observações do professor Fernando Rosas:
“Há alguma responsabilidade concreta entre o Estado Novo e a guerra? A resposta que proponho é a seguinte: é claro que o Estado Novo foi o único regime que foi colocado perante uma situação histórica absolutamente específica, é o único regime que foi colocado perante a tarefa da descolonização e não a fez. E isto pelo simples facto de que os outros não podiam, historicamente, fazê-la porque o problema não se colocou, historicamente, nem no fim do século XIX, nem na primeira parte do século XX. E, quando ele se colocou historicamente, aquele regime não foi capaz de descolonizar, e preferiu à política da descolonização uma política que se traduziu, com efeito prático, na guerra.

Portanto, a relação específica que há entre o Estado Novo e a guerra é que ele foi o regime que, historicamente, em Portugal, foi colocado perante a tarefa de descolonizar e que não soube, não pôde, não quis – deixemos essa discussão –, e que por não o ter feito, precipitou o país numa guerra de 13 anos. Há, a meu ver, uma relação entre a guerra e aquele regime político particular. A orientação política para aquela questão, naquele momento histórico, foi fazer a guerra, enquanto, noutros países, outros regimes não a fizeram ou fizeram-na, mas encontraram uma solução política para ela e este não encontrou.

Porque é que o regime seguiu essa política e não seguiu outra?
O discurso ideológico do regime do Estado Novo em relação a África não foi sempre o mesmo. O ministro das Finanças Salazar é singularmente desinteressado da questão africana, estava dominado pela questão orçamental. O regime de Salazar, até à guerra, do ponto de vista das despesas públicas que estão calculadas, é um regime que nunca gasta com o Império, apesar da retórica imperial, mais de 4% das despesas públicas.

Digamos que é uma retórica que não tem correspondência, é um Salazar muito pouco interessado com a visão colonial. Então, quando é que muda? Muda com Armindo Monteiro, ministro das colónias, o homem que introduz o discurso imperial, a mística. Mas, atenção, é um império com cabeça e membros, é um império darwinista, é um império onde os brancos têm um papel superior aos outros. Em 1951, e com a descolonização à vista, há uma mudança de política. É que entre o império colonial de supremacia branca e o Ultramar de Minho a Timor, há uma alteração de filosofia, a filosofia é a que substitui na retórica ideológica do regime, a supremacia branca pelo luso tropicalismo.”


Retenho da intervenção de Carlos de Matos Gomes os seguintes parágrafos:
“Porque suscitou a guerra colonial nos primeiros tempos uma assinalável adesão popular?
No estado de desinformação e de férreo controlo em que a sociedade portuguesa se encontrava quando a guerra colonial começou, tudo era novidade e os propagandistas do Estado Novo lançaram, como D. Quixote, a mão à História e reescreveram-na de modo a comparar a situação de 1960 com a do século XV, quando o Infante iniciou o programa de expansão marítima. 

Diga-se que realizaram este truque com alguma eficácia, embora apenas num ponto a comparação fosse legítima: num posto de comando estava um homem, Salazar, que tal como Henrique, dito o Navegador, jamais saíra, nem estava disposto a sair de terra firme (o Infante ainda foi a Ceuta). Tudo o resto era radicalmente distinto.

Ao contrário da época do início da expansão da Europa para outros continentes, o Portugal de Salazar e dos seus ministros estava agora contra a História. Na época das Descobertas, a Europa e o mundo ocidental expandiam-se, Portugal era uma nação que dominava as técnicas mais evoluídas do tempo, da construção naval, à artilharia, da cartografia à matemática, enquanto em 1960 a Europa se retraía e Portugal era o mais atrasado país europeu em todos os domínios.
Felizmente, restou, para contrariar a insensatez, a avidez e a beata arrogância dos poderosos, o povo de que se fez a tropa.

Convocado pelos editais dos regedores das freguesias, instruída à pressa, despedido à beira Tejo com lágrimas, missas e palavras inflamadas, desembarcado nas costas de África com uniformes amarelos tão desajustados ao corpo como as armas que lhes entregaram estavam para a guerra, o povo a quem desta feita os poderosos queriam que fosse soldado (como já fora marinheiro), percebeu rapidamente que, mais uma vez, o haviam metido em maus lençóis. 

Em vez da ficção de um Império de cristandade, descobre a realidade da exploração colonial e do abandono que, na curiosa sintaxe de alguns dos seus impenitentes defensores tem sido considerada a bondade e especificidade do relacionamento dos portugueses com os outros povos.

Uma bondade tão específica que contemplava o trabalho forçado, os impostos ignominiosos e a justiça ad hoc, a deslocação obrigatória de populações, tudo assente numa hipócrita base de racismo ou de relaxe puro e simples, patente na ausência de serviços e infraestruturas, da educação à saúde, das estradas aos equipamentos básicos de recolha de água ou produção de energia.

A ficção que se desenrolou à volta da guerra promove, assim, a descoberta de duas realidades com as quais os militares portugueses para ela convocados se têm de confrontar:
- A descoberta de África, tendo de um lado o encanto do território e dos seus povos e do outro a iniquidade das relações que ali se haviam estabelecido;
- A descoberta da guerra, com os seus horrores e sacrifícios e também com os novos e fortíssimos sentimentos da camaradagem entre os guerreiros nos momentos de perigo.

Estas duas descobertas levam os soldados mobilizados a interrogar-se (mesmo que de forma pouco elaborada, ou inconsciente) sobre a justeza da sua missão. Levam também os que combateram em África a criar e a manterem uma corrente de afetos com aquele território, com aquelas gentes e com os seus companheiros de armas que se prolongou até hoje.

Atrevo-me a dizer que a ação das Forças Armadas portuguesas em África é pautada por este estado do espírito dos seus soldados. Um tipo de atuação que só um velho e causticado povo poderia impor. Uma guerra em que os soldados aguentaram em condições dificílimas a situação militar durante 13 anos, precisamente porque não procuram a decisão da batalha, nem da guerra. E são os soldados que impõem aos seus oficiais e aos seus comandantes este tipo de atuação em que a norma é evitar um empenhamento.”

Embarque para Angola, 21 de abril de 1961

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 6 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25916: Notas de leitura (1724): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873 e 1874) (19) (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25897: Timor: passado e presente (19): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte X: O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli






Timor > Díli > c. 1945 > Ruínas de Díli após a II Guerra Mundial. Relatório do governo da colónia de Timor, 1946-47. Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Cortesia de RTP > 4.A II Guerra Mundial e o início das descolonizações (com a devida vénia...)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte X:   O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli (pp. 80-87)


(i) 1944 é  mais um ano de martírio para a pequena colónia portuguesa de Timor,  para a população timorense (que não seria mais do que 400 mil em 1940) e para a não-timorense (umas escassas 3 centenas de portugueses) com frequentes bombardeamentos da aviação dos Aliados, por um lado, e a continuação das arbitrariedades e prepotências dos ocupantes japoneses, por outro. 

O ano fica marcado pela prisão de dois elementos-chave da população portuguesa da colónia, o engenheiro Artur Resende do Canto e o tenente António Oliveira Liberato. O primeiro pertencia à Missão Geográfica de Timor, e estava a exercer, voluntária, abnegada e corajosamente,  as funções de administrador do concelho de Díli. O segundo era o adjunto da Companhia de Caçadores, que já tinha perdido, em 1942, o seu comandante, o cap inf  Costa Freitas.

Há uma novo cônsul nipónico, que fala espanhol, e um vice-cônsul que fala português (sendo casado com uma brasileira). Mas nem por isso a situação dos portugueses, detidos na ilha, vai melhorar. 
Nem muito menos a da população autótone, 
que os japoneses insidiosamente tentaram virar contra Portugal.

Quando se comemora os 25º aniversário do referendo de 30 de agosto de 1999, em que 4 em cada 5 timorenses (78,5%) se manifestaram livremente pela independência do território, curvamo-nos à memória de todos aqueles que, durante a ocupação japonesa, 
na II Guerra Mundial, 
 deram-nos exemplos de dignidade, coragem e patriotismo.  

A questão de Timor chegou a ser um foco de tensão entre Portugal e os seus velhos aliados ingleses. A invasão por tropas autralianas e holandesas foi a gota de água e o pretexto de que os japoneses precisavam para, por sua vez, ocuparem o território,  de importância estratégica para ambos os lados,

 Portugal chegou a estar em risco (ou foi ponderada a hipótese pelos ingleses) de entrar na II Guerra Mundial por causa da minúscula e longínqua parcela do império que era Timor, segundo revelam documentos do arquivo do Foreign Office, estudados pelo diplomata e investigador português, Carlos Teixeira da Mota (1941-1984),  "O caso de Timor na II Guerra Mundial : documentos britânicos", Lisboa,  Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, 202 pp.   

Em 28 de novembro de 1944, Portugal assina finalmente um acordo (secreto) com os EUA (com mediação inglesa):  em troca da concessão de facilidades militares nos Açores (ilhas de Santa Maria), Portugal conta com a ajuda americana para recuperar a soberania de Timor, território ocupado prlosd japoneses e objeto da cobiça dos australianos.

Timor é paradigmático: é aqui, no Sudoeste Asiático (mas também no norte de África, ambos sangrentos palcos de guerra) que, em boa verdade,  começa(m) a(s) descolonização(ões)...


(...) A 23 de janeiro recebemos em Lahane comunicação de Liquiçá informando-nos que, no dia anterior, aviões australianos haviam atacado Liquiçá tendo metralhado a enfermaria onde estava hasteada a bandeira portuguesa!

Haviam ficado feridos quatro timorenses e a esposa do chefe dos correios Fortunato Mourão, senhora D. Aida Cassagne Mourão, que ali estavam internados, tendo esta última cegado de um dos olhos atingido por um estilhaço de bala.

No dia 17 de fevereiro, com evidente prazer nosso embora não isento de natural desconfiança sobre as suas intenções, retiraram os japoneses as guardas ao hospital e ao palácio, cessando daí em diante qualquer fiscalização do trânsito dos portugueses entre esses dois edifícios. (...)

Em princípios de março, o engenheiro Canto trouxe de Liquiçá para Lahane, acompanhada de sua mãe, uma menina de 17 anos, filha do velho colono sr. Gregório José Morato. Apresentava uma volumosa tumefacção sobre a omoplata esquerda que diagnostiquei ser um lipoma que facilmente seria extirpado por uma operação de pequena cirurgia, se os dois médicos portugueses a praticassem, dispondo dos meios normais que antes tinham, sobretudo de material asséptico.

Verificada por mim a impossibilidade de tratarmos a menina pediu o engenheiro Canto a ajuda nipónica, no respectivo consulado, conseguindo que a operação se viesse efectuar no hospital japonês, no dia 15, sendo a menina, logo após a operação, transportada para a nossa ambulância onde terminou o tratamento.

Por este tempo, constou à população portuguesa que o engenheiro Canto havia pedido a exoneração do cargo de administrador do concelho de Díli. De facto, ele há tempos me confidenciara que a sua atuação em Liquiçá e Maubara se apresentava cada vez mais cheia de escolhos, sobretudo por nada de importante poder resolver, no momento preciso e no local, pois todas as medidas necessárias que poderia aplicar para a resolução de problemas prementes e urgentíssimos tinham, obviamente, de esperar por despacho favorável do Governador, necessariamente moroso pela dificuldade de comunicações entre a zona e o palácio.

Assim, ele estava na disposição inabalável de se demitir, no caso de o Governador não o nomear seu delegado na zona de concentração. Confirmada a apresentação do pedido de exoneração do administrador do concelho de Díli, foram presentes ao Governador duas exposições, uma de chefes de família e outra de «mulheres e mães portuguesas» pedindo a sua não concessão.

Redigidas e assinadas pela grande maioria da população da zona, foi, a primeira, trazida ao hospital de Lahane onde lhe foram apostas as seguintes assinaturas (1) : José dos Santos Carvalho, Roque da Piedade Pinto e Rodrigues, António de Oliveira Oscar Lemos, Manuel da Costa, Júlio Madeira, Adão Exposto, Joaquim Francisco da Silva.

O despacho do Governador a estas petições (1) não pôde ser favorável, o que nele era lamentado, pelo que foi nomeado administrador do concelho o capitão Manuel do Nascimento Vieira, por portaria de 9 de março de 1944. (...)


(ii) A visita, de uma semana, iniciada em 19 de março de 1944,  do cap art José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau, fazendo-se transportar numa aeronave japonesa, não trouxe benefícios percetíveis à população do território.

Em 29 de abril, dia em que se comemorava o aniversário do imperador do Sol Nascente, Dília sofre forte bombardeamento por parte da aviação  dos Aliados.  O engº Canto e o tenente Liberato são presos. Sabe-se também da prisão do tenente Pires, antigo administrador de Baucau.


(...) Após estes acontecimentos foi a população informada de que estava para chegar a Timor um enviado do Governo de Portugal.

De facto, no dia 19 de março aterrou no campo de aviação de Díli um avião japonês que trazia o capitão de artilharia José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau comandante Gabriel Teixeira, o qual vinha a Timor como delegado especial do Governo português.

Neste mesmo avião viajaram o novo cônsul japonês em Timor, senhor Sotaro Hossokawa e o vice-eônsul, senhor Suzuki.

O capitão Silva Costa demorou-se em Timor uma semana,  tendo-se deslocado a Liquiçá e Maubara, para entrevistar vários portugueses e assistido a um almoço no palácio e a um jantar no consulado, para os quais o engenheiro Canto e eu fomos convidados e em que estiveram presentes o general comandante dos japoneses e os seus oficiais ajudantes, os dois cônsules, o Governador e o seu ajudante, capitão Vieira.

Das entrevistas que o capitão Silva e Costa teve comigo e com outras pessoas, depreendeu-se que ele estava a fazer um inquérito sobre os acontecimentos passados e a situação atual na Colónia. Bem informado, regressou a Macau no dia 26, seguindo no mesmo avião o ex-cônsul, senhor Yodogawa e o chanceler senhor Irie.

O novo cônsul japonês falava espanhol e o vice-eônsul senhor Suzuki, falava fluentemente português, pois, segundo referiu era casado com uma senhora brasileira. O novo chanceler do consulado, senhor Yanaguiwara, não comprendia ou falava senão o inglês.

A vinda do capitão Silva e Costa não trouxe melhoria de situação, como se esperava. Logo a seguir a ela, no dia 9 de abril, o tenente Liberato foi preso, na sua residência em Liquiçá, por três agentes da Kêmpy, dois dos quais eram o sargento Nerita e o cabo Kato, acompanhando-os como intérprete o chinês Há-Hói, filho do comerciante Mie-Hap de Díli, e três soldados armados de espingardas (2).

Levado de automóvel para Díli, pelo sargento Nerita, foi metido na cadeia de Díli e aferrolhado numa cela. No dia seguinte começaram os seus interrogatórios, sempre acompanhados de pancada e violências físicas, feitos pelo comandante da Kêmpy, tenente Akusawa, e pelo sargento Nerita, com o Ha-Hói como intérprete (1).

No dia 29 de abril, manhã cedo, apareceram as barracas dos aquartelamentos nipónicos, à roda do hospital de Lahane, ornamentadas com bandeiras japonesas, nas portas e outros espaços, inclusivamente nos telhados, sentindo-se bem um ar de festa e alegria da tropa. Mais tarde soubemos pelos criados timorenses que era o aniversário do Imperador do Japão que estava a ser comemorado.

Porém, ainda não eram nove horas a sereia japonesa anunciou a aproximação de aviões inimigos que não se fizeram esperar. Seguiu-se um terrível bombardeamento por dezenas de aviões que, conforme era de prever pelo tremendo estrondo e depois soubemos, reduziu a escombros a cidade de Díli, não havendo qualquer espaço que não tivesse sofrido a acção aliada.

As bandeiras nipónicas, escusado seria dizê-lo, logo desapareceram como por encanto e nunca mais as vimos em qualquer lugar, até ao fim da guerra.

Também, este bombardeamento deu origem à destruição por cargas de dinamitei das altas e elegantes torres da catedral de Díli, o que constou ter sido motivado por constituírem um precioso ponto de referência para os aviões atacantes.

Aquando do bombardeamento, estava o tenente Liberato aferrolhado numa cela da cadeia de Díli pelo que pôde num dos seus livros (2) descrever o terrífico espectáculo com um realismo que ainda hoje nos esmaga.

Atingido o compartimento onde se encontrava, transferiram-no para outra dependência menos danificada e onde já tinham sido reunidos os restantes presos, entre os quais reconheceu, a custo por estar magríssimo, ferido na cabeça, e coberto de cabeça, o chefe de posto Augusto de Melo Matos e Silva (2) .

Recebeu deste, então, algumas informações. O tenente Pires havia voltado da Austrália, num submarino americano e ficara em Timor, em serviço de observação, com um pequeno grupo de portugueses, oferecendo informações aos aliados (3).

Obrigado o grupo a fraccionar-se, para escapar às "colunas negras", haviam sido, sucessivamente, presos o tenente Pires, os chefes de posto José Tinoco e Matos e Silva, o enfermeiro Serafim Pinto e os irmãos, cabos Cipriano Vieira e João Vieira (3).

Presos, durante meses, em Baucau, foram mais tarde transferidos para Díli (3) e aí havia já falecido o chefe de posto José Tinoco e os irmãos Cipriano e João Vieira (2) . Quanto ao enfermeiro Serafim Pinto nada sabia, pois vira-o entrar um dia na prisão, de olhos vendados, mas desconhecia o destino que lhe haviam dado. Provavelmente, já não pertencia, também, ao número dos vivos (2) .

O senhor Matos e Silva, ferido na cabeça por um estilhaço de bomba, foi transferido, tempos depois, para uma casa de China Rate, onde se presume que tenha morrido (3), a 8 ou 9 de maio (2) .

«Fora de dúvida é que todos eles sofreram horríveis maus tratos e as agruras da fome, que os japoneses impunham a todos os seus prisioneiros» (3).

No dia 4 de maio, o tenente Liberato foi algemado, vendaram-lhe os olhos, meteram-nos num automóvel e levaram-no para China Rate onde o meteram na casa que era das máquinas da T.S.F., num compartimento sem janela. Aí viveu ( !) sessenta e sete dias, completamente incomunicável, a juntar aos vinte e inco passados na cadeia de Díli (2) .

Por estes tempos e, infelizmente, nos que se lhe seguiram, o cabo Kato, chefe da polícia japonesa em Liquiçá, continuava  fazer tropelias, insultando e vexando com prepotência os não- timorenses da zona de concentração.

No dia 5 de julho registou-se um ataque aéreo aliado, com fogo de metralhadoras, a Liquiçá e Maubara. Em Liquiçá ninguém foi atingido, mas em Maubara sofreram ferimentos graves  (...).

Uma das mais infelizes e inexplicáveis prepotências da polícia japonesa surgiria, com uma bomba, a 10 de julho. Cerca do meio-dia, apareceu no hospital de Lahane o sargento Nerita acompanhado de alguns soldados armados, transortado num automóvel do exército.

Não procurando o engenheiro Canto, como costumava fazer, dirigiu-se à sala onde estava instalado o telefone que estabelecia comunicação com o palácio, arrancou-o e levou-o consigo.

Apareceu, então, o Engenheiro e logo compreendemos ser ele a vítima escolhida, pois o sargento não o cumprimentou, antes lhe disse qualquer coisa, com modos bruscos, que nós não ouvimos, por estarmos afastados.

O  Engenheiro dirigiu-se, então, ao seu quarto, já acompanhado por soldados, enquanto c sargento foi procurar o gerente do Banco Ultramarino, senhor João Jorge Duarte, para o intimar a acompanhá-lo, também. Tal com estavam, em mangas de camisa, tiveram de seguir com os esbirros, levando o Engenheiro uma malinha de mão e despedindo-se com um olhar que, para sempre, ficou no nosso
pensamento.

Logo que o automóvel se afastou, o chefe de posto Torresão correu para o palácio com o fim de avisar ao Governador, seu primo, o sucedido. Mas, em vão atuou. Chegado ao cruzamento com a estrada que liga ao palácio aí encontrou um soldado japonês que lhe impediu a passagem, forçando-o a regressar ao hospital.

No dia seguinte já não houve entraves e o Governador pôde ser inteirado do acontecimento, não tendo os protestos que, pronta, enérgica e repetidamente, pessoalmente apresentou no consulado nipónico, obtido resultado favorável nem qualquer explicação para tão arbitrário ato. (...)


(iii) Surpreendente, ou talvez ou não, é a situação do tesouro público: o gerente do BNU é preso, e o seu quarto fica trancado...É lá que ele guardava parte do pecúlio da colónia, ou seja, o "mealheiro" do Governador, o cofre forte do  banco... ~

Como pagar agora aos funcionários, civis e militares,  que restam na colónia, incluindo os deportados (que também comiam à "mesa do Estado" )?... Sem esse dinheiro, agravar-se-ia  a situação de miséria em que já todos viviam, apesar da solidariedade de muitos timorenses  que, apesar de tudo, tinham os seus meios de subsistência... 

Uma solução "ad hoc", expedidta, à portuguesa foi encontrada, o clássico "desenrascanço"... Um momento algo hilariante no meio de um drama coletivo...

 (...) Entretanto, verificáramos no hospital de Lahane que o Gerente havia fechado a porta do quarto onde estava instalado e não pudera entregar a chave aos seus dois funcionários ali presente ou a qualquer de nós, pois nem sequer lhe fora permitido calçar uns sapatos em substituição das chinelas que trazia quando foi preso.

Conforme, então, o Dr. Tarroso Gomes (4) me contou,  situação complicava-se porque o Gerente, visto lhe ser impossível ir ao edifício do Banco, situado em Díli, conservava guardados no seu quarto, uma parte dos fundos da Colónia. 

Aguardaram-se vários dias, na esperança de a detenção ser temporária, mas como não houvesse indícios duma libertação próxima, o Governador, obrigado pelas circunstâncias e porque não  era possível deixar a população sem dinheiro, porque isso representava a fome, determinou que se arrombasse a porta do quarto e se retirassem os fundos da Colónia que passariam à responsabilidade do Dr. Tarroso.

Coube esta tarefa a uma comissão, nomeada pelo mesmo espacho que determinou o arrombamento, constituída pelo capitão Vieira, o Dr. Tarroso, o secretário e o tesoureiro do Banco Nacional Ultramarino, senhores Anselmo Bartolomeu e Almeida e Fausto do Amaral e eu e o sargento Vicente, como testemunhas.

Encontrou-se bastante dinheiro em gavetas e malas, mas havia vários cofres que só mais tarde o deportado, senhor Serafim Martins, habilíssime serralheiro, vindo de Liquiçá para o efeito, conseguiu arrombar e depois tornar a reparar à força de muito trabalho e competência técnica.


 (iv) A "zona de concentração" fica agira reduzida a Liquição, com a transferência forçada dos portugueses "residentes" em Maubara, que perdem os seus parcos haveres e as suas pequenas hortas...

Os bombardeamentos continuam, mais intensos em outubro e novembro. Díli é agora um monte de ruinas. 

Timorenses e portugueses vão entrar no último ano da guerra, sem saber qual é o seu desfecho, completamente isolados do mundo...


(...) Em meados de setembro surgiu mais uma grande crise para a população não-timorense de Maubara que na sua totalidade, não poupando as mulheres e crianças, foi obrigada pelos japoneses e abandonar a vila, onde tinha todos os seus haveres e cultivava hortas pelos próprios meios, e seguir para a já superpovoada Liquiçá, fazendo o percurso a pé!

Chegaram esses desgraçados, mortes de fome e de cansaço,  Liquiçá, no dia 15, tendo pernoitado na noite da véspera em palhotas de timorenses caridosos que fraternalmente os acolheram (5).

Assim, na vila de Liquiçá mais se agravou o problema alimentar que só não se tornou completamente desesperado por os japoneses permitirem que alguns nossos serviçais timorenses se dedicassem a trabalhos agrícolas na Granja Eduardo Marques, fornecendo géneros alimentícios. 

Outra grande ajuda foi sempre a da plantação de Fátu-Béssi que nunca foi ocupada los japoneses, embora eles requisitassem daí o melhor para as suas tropas. Porém, a diplomacia do senhor Jaime de Carvalho conseguiu furtar-lhes quantidades preciosas para entregar aos seus famintos compatriotas.

No mês de outubro, violentos bombardeamentos aéreos incidiram sobre a área onde os japoneses se tinham instalado em Lahane, bem junto do nosso hospital, os quais só por milagre não nos atingiram. Ficaram memoráveis para nós os realizados nos dias 14, 29 e 30 (de setembro).

Continuaram os ataques aliados em novembro, ainda a Lahane, mas, agora, nas proximidades da residência do governador. Assim, no dia 8, caíram dezoito bombas a uma distância, entre 20 e 50 metros; no dia 10, sete bombas, à mesma distância; e no dia 15, mais nove, oito das quais muito próximas (entre 20 e 30 metros) e uma que providencialmente não rebentou, a dois metros de um dos torreões da frente da residência, onde cavou um buraco. (6) .

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

________________

Notas do autor (JSC):

(1) As exposições da população ao governador Ferreira de Carvalho, pedindo para não conceder a exoneração ao engenheiro Canto, podem ler-se no In Memoriam a Artur do Canto Resende, publicação do Sindicato Nacional dos Engenheiros Geógrafos, Lisboa, 1956, pp. 37 a 41.

(2) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(3) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(4) O Dr. Tarroso Gomes, desde Dezembro de 1942 que vinha regularmente a Díli, uma vez por mês, a fim de levantar da caixa de tesouro os fundos necessários para as despesas oficiais do mês e despachar com o governador os assuntos da Repartição de Fazenda. Hospedou- se  sempre no hospital.

(5) A odisseia dos portugueses de Maubara foi-me relatada pelo Dr. Tarroso Gomes que assistiu à sua chegada a Liquiçá onde o seu mísero estado provocou, em todos a maior indignação e profundos desejos de vingança.

(6) Os efeitos dos bombardeamentos da zona vizinha do palácio do governador, foram por mim directamente observados. O número de bombas caídas foi-me referido pelo próprio governador.
_____________

Nota do editor LG: 

(*) Vd. postes anteriores da série >





quarta-feira, 19 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25661: Timor Leste: passado e presente (8): Os últimos soldados do império que estiveram prisioneiros do IN, na Indonésia (de setembro de 1975 a julho de 1976): tiramos o quico, o chapéu, a boina, o barrete, o boné... à Ephemera - Biblioteca e Arquivo do José Pacheco Pereira

 






Foto de um grupo de 14  (e lista nominal dos  23)  militares portugueses, do Agrupamento de Cavalaria de Fronteira, em Bobonaro, Timor Leste), que, apanhados pela guerra civil, fratricida, entre  timorenses,  acabaram por ficar prisioneiros do IN (desde setembro de 75 a julho de 76). 

A lista nominal foi publicada pelo DP - Diário Popular, de 19/2/1976; o Diário de Lisboa, de 29 de julho de 1976, publicou, depois,  uma reportagem aquando do seu regresso: "Fim de um pesadelo: sãos e salvos regressaram a Portugal todos os militares prisioneiros em Timor"...  Estes nossos camaradas terão sido mesmo os últimos soldados do Império a regressar a casa, numa altura em que, em Portugal, ainda era escasso o conhecimento sobre o processo de descolonização de Timor. A Força Aérea foi buscá-los a Bali.

O IN neste caso era a Indonésia... Estes nossos camaradas estiveram detidos, a maior parte do tempo em condições infames, sem respeito pela Convenção de Genebra, um mês em Timor Leste e 10 meses na parte ocidental de Timor, indonésia, em Atapupo e, depois, também, em Atambua, no último mês... 

Timor ocidental, outrora colónia holandesa, é ainda de má memória para os portugueses e timorenses, vítimas da invasão e ocupação dos japoneses em 1942/45: foi de Atambua  que vieram as criminosas "colunas negras", armadas e alimentadas pelos ocupantes, e que espalharam o terror pelo território português) (*)...

O militar mais graduado, deste grupo de  23 prisioneiros, era então o  major inf 'cmd' António Ivo do Nascimento Viçoso, falecido com o posto de coronel na situação de reforma: em 1999, "23 anos depois", deu um entrevista ao "Público" onde falou deste duros tempos de cativeiro, e do tratamento frio, calculista, cínico, desonroso, que lhes foi dado pelos indonésios...


1. Estes documentos (que reproduzimos acima, com a devida vénia)  estão disponíveis na Ephemera - Biblioteca e Arquivo de José Pacheo Pereira, a quem temos de tirar o quico, o chapéu, a boina, o barrete, o boné... por se ter tornado,  não o maior "almeida" do mundo, mas seguramente o melhor: "recolhe o lixo de hoje" que nos falta para alimentar a nossa memória...

E não faz distinção entre o "lixo" de 1ª classe ou de 2ª classe, dos ricos e poderosos, ou dos fracos e pobres, das maiorias ou minorias,  dos de esquerda ou de direita, de Deus ou do Diabo, dos santos e pecadores... 

Estamos a falar do o "lixo" que a maior parte de nós deita fora... Ou que os nossos herdeiros consideram "lixo", quando batemos a bota... No nosso caso, de antigos combatentes na Guiné (1961/74) coisas como brasões, guiões, crachás das nossas antigas subunidades; diários, cartas, aerogramas, cartazes, fotografias, recortes de jornal; objetos pessoais ou de guerra, que trouxemos daquele território; documentos militares ou do PAIGC,  etc., etc. 

Porque não há conhecimento sem informação nem informação sem dados... O "lixo" de hoje, depois de tratado,  é "conhecimento" amanhã. Esse, é resto, também a missão do nosso blogue, que foi criado com o propósito de "não deixarmos que sejam os outros a contar (ou a ignorar, escamotear, esquecer) as nossas histórias", que são afinal os nossos pequenos rios da memória que vão confluir para o grande rio da História...

Como a Ephemera escreve, com piada, no seu sítio, "Se o Diabo publicar panfletos vamos ao Inferno recolhê-los"... Aliás, e como diz o nosso povo (que gosta de blasfemar), "tão bom é Deus como o Diabo".

3. Com a devida vénia a esta fantástica e generosa equipa de voluntários que faz o Arquivo Ephemera, reproduzimos o seguinte nota que  o José Pacheco Pereira escreveu, em 10/6/2018, sobre a documentação que lhe chegou às mãos, e que ainda está por tratar, relativa aos 23 militares portugueses prisioneiros na Indonésia, em 1975 e 1976 (quase um ano):

(...) Agradeço a Luís Manuel Barata de Carvalho (um dos 23 prisioneiros) e a José Mendes Lopes (então militar em Timor) a oferta do acervo recolhido por Palma Carlos que inclui a mais completa documentação sobre o que aconteceu aos soldados portugueses feitos prisioneiros quando da invasão indonésia. 

"O acervo inclui um vasto número de fotografias sobre o quotidiano em Bobonaro onde estavam aquartelados antes da invasão, e depois em Batugadé onde estavam detidos e nos diferentes locais de detenção. Entre a documentação inclui-se correspondência pessoal e oficial, todo o processo da sua libertação, e a posterior recepção, homenagens e regularização dos seus direitos militares e civis. 

"Foi um processo complexo, a que não faltou muita conflitualidade política e bastante acrimónia, mas sem o compreender e estudar não é possível analisar o processo de descolonização de Timor. (...)