Mostrar mensagens com a etiqueta descolonização. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta descolonização. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25925: Notas de leitura (1725): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
De Rui de Azevedo Teixeira conhecia a sua tese de doutoramento intitulada "A Guerra Colonial e o Romance Português" e o seu romance "O Elogio da Dureza", ambos já referenciados no blogue, este I Congresso Internacional incluiu uma plêiade de intervenientes, tais como António Costa Pinto, John P. Cann, Álvaro Guerra, Roberto Vecchi, A. do Carmo Reis, jornalistas e cineastas reputados. Na impossibilidade de todos escutar, faz-se uma seleção de textos em função dos 10 temas escolhidos, a saber a guerra e os militares; a oposição e guerra; a natureza da guerra, consequências físicas e psicológicas da guerra; a guerra e a literatura, a guerra e o jornalismo, e a guerra e o cinema. Como observou no ato inaugural Rui de Azevedo Teixeira: "Decidimos desde o início recusar qualquer forma de segregação, fosse ela disciplinar, política ou mesmo geográfica. Acolhemos especialistas das mais diversas áreas; não impusemos qualquer controle político-ideológico. Convidámos estrangeiros, lusófonos e lusófilos. Também abrimos as portas aos mais jovens, porque é neles que o futuro da investigação sobre a temática da guerra colonial, ou do Ultramar, reside."

Um abraço do
Mário



A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional) (1)

Mário Beja Santos

O volume "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de atas do I Congresso Internacional), teve como organizador o professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira, Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional. Participaram dezenas de comunicadores. Na altura em que foi editada, a obra era assim apresentada:
“Neste livro, que recusa a tirania da coisa política sobre a História ou a Literatura ou a insidiosa pressão do mediaticamente correto, correm textos de estudiosos da guerra e de grandes guerreiros, de portugueses e estrangeiros (lusófilos, lusófobos e lusófonos), de homens e de mulheres, de nomes consagrados e de novos investigadores da temática da Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar. Académicos, militares, académicos militares, escritores, psiquiatras, cineastas, jornalistas, gestores e outros contribuem nesta obra para uma compreensão mais alargada e mais profunda da guerra de guerrilha que, fechando o Império, obrigou a uma definitiva mudança de paradigma da nossa História.”

Na impossibilidade de aqui se reproduzirem súmulas de todas as comunicações, iremos respigar alguns parágrafos de diferentes intervenientes. Vejamos algumas observações do professor Fernando Rosas:
“Há alguma responsabilidade concreta entre o Estado Novo e a guerra? A resposta que proponho é a seguinte: é claro que o Estado Novo foi o único regime que foi colocado perante uma situação histórica absolutamente específica, é o único regime que foi colocado perante a tarefa da descolonização e não a fez. E isto pelo simples facto de que os outros não podiam, historicamente, fazê-la porque o problema não se colocou, historicamente, nem no fim do século XIX, nem na primeira parte do século XX. E, quando ele se colocou historicamente, aquele regime não foi capaz de descolonizar, e preferiu à política da descolonização uma política que se traduziu, com efeito prático, na guerra.

Portanto, a relação específica que há entre o Estado Novo e a guerra é que ele foi o regime que, historicamente, em Portugal, foi colocado perante a tarefa de descolonizar e que não soube, não pôde, não quis – deixemos essa discussão –, e que por não o ter feito, precipitou o país numa guerra de 13 anos. Há, a meu ver, uma relação entre a guerra e aquele regime político particular. A orientação política para aquela questão, naquele momento histórico, foi fazer a guerra, enquanto, noutros países, outros regimes não a fizeram ou fizeram-na, mas encontraram uma solução política para ela e este não encontrou.

Porque é que o regime seguiu essa política e não seguiu outra?
O discurso ideológico do regime do Estado Novo em relação a África não foi sempre o mesmo. O ministro das Finanças Salazar é singularmente desinteressado da questão africana, estava dominado pela questão orçamental. O regime de Salazar, até à guerra, do ponto de vista das despesas públicas que estão calculadas, é um regime que nunca gasta com o Império, apesar da retórica imperial, mais de 4% das despesas públicas.

Digamos que é uma retórica que não tem correspondência, é um Salazar muito pouco interessado com a visão colonial. Então, quando é que muda? Muda com Armindo Monteiro, ministro das colónias, o homem que introduz o discurso imperial, a mística. Mas, atenção, é um império com cabeça e membros, é um império darwinista, é um império onde os brancos têm um papel superior aos outros. Em 1951, e com a descolonização à vista, há uma mudança de política. É que entre o império colonial de supremacia branca e o Ultramar de Minho a Timor, há uma alteração de filosofia, a filosofia é a que substitui na retórica ideológica do regime, a supremacia branca pelo luso tropicalismo.”


Retenho da intervenção de Carlos de Matos Gomes os seguintes parágrafos:
“Porque suscitou a guerra colonial nos primeiros tempos uma assinalável adesão popular?
No estado de desinformação e de férreo controlo em que a sociedade portuguesa se encontrava quando a guerra colonial começou, tudo era novidade e os propagandistas do Estado Novo lançaram, como D. Quixote, a mão à História e reescreveram-na de modo a comparar a situação de 1960 com a do século XV, quando o Infante iniciou o programa de expansão marítima. 

Diga-se que realizaram este truque com alguma eficácia, embora apenas num ponto a comparação fosse legítima: num posto de comando estava um homem, Salazar, que tal como Henrique, dito o Navegador, jamais saíra, nem estava disposto a sair de terra firme (o Infante ainda foi a Ceuta). Tudo o resto era radicalmente distinto.

Ao contrário da época do início da expansão da Europa para outros continentes, o Portugal de Salazar e dos seus ministros estava agora contra a História. Na época das Descobertas, a Europa e o mundo ocidental expandiam-se, Portugal era uma nação que dominava as técnicas mais evoluídas do tempo, da construção naval, à artilharia, da cartografia à matemática, enquanto em 1960 a Europa se retraía e Portugal era o mais atrasado país europeu em todos os domínios.
Felizmente, restou, para contrariar a insensatez, a avidez e a beata arrogância dos poderosos, o povo de que se fez a tropa.

Convocado pelos editais dos regedores das freguesias, instruída à pressa, despedido à beira Tejo com lágrimas, missas e palavras inflamadas, desembarcado nas costas de África com uniformes amarelos tão desajustados ao corpo como as armas que lhes entregaram estavam para a guerra, o povo a quem desta feita os poderosos queriam que fosse soldado (como já fora marinheiro), percebeu rapidamente que, mais uma vez, o haviam metido em maus lençóis. 

Em vez da ficção de um Império de cristandade, descobre a realidade da exploração colonial e do abandono que, na curiosa sintaxe de alguns dos seus impenitentes defensores tem sido considerada a bondade e especificidade do relacionamento dos portugueses com os outros povos.

Uma bondade tão específica que contemplava o trabalho forçado, os impostos ignominiosos e a justiça ad hoc, a deslocação obrigatória de populações, tudo assente numa hipócrita base de racismo ou de relaxe puro e simples, patente na ausência de serviços e infraestruturas, da educação à saúde, das estradas aos equipamentos básicos de recolha de água ou produção de energia.

A ficção que se desenrolou à volta da guerra promove, assim, a descoberta de duas realidades com as quais os militares portugueses para ela convocados se têm de confrontar:
- A descoberta de África, tendo de um lado o encanto do território e dos seus povos e do outro a iniquidade das relações que ali se haviam estabelecido;
- A descoberta da guerra, com os seus horrores e sacrifícios e também com os novos e fortíssimos sentimentos da camaradagem entre os guerreiros nos momentos de perigo.

Estas duas descobertas levam os soldados mobilizados a interrogar-se (mesmo que de forma pouco elaborada, ou inconsciente) sobre a justeza da sua missão. Levam também os que combateram em África a criar e a manterem uma corrente de afetos com aquele território, com aquelas gentes e com os seus companheiros de armas que se prolongou até hoje.

Atrevo-me a dizer que a ação das Forças Armadas portuguesas em África é pautada por este estado do espírito dos seus soldados. Um tipo de atuação que só um velho e causticado povo poderia impor. Uma guerra em que os soldados aguentaram em condições dificílimas a situação militar durante 13 anos, precisamente porque não procuram a decisão da batalha, nem da guerra. E são os soldados que impõem aos seus oficiais e aos seus comandantes este tipo de atuação em que a norma é evitar um empenhamento.”

Embarque para Angola, 21 de abril de 1961

(continua)

_________

Nota do editor

Último post da série de 6 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25916: Notas de leitura (1724): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873 e 1874) (19) (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25897: Timor: passado e presente (19): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte X: O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli






Timor > Díli > c. 1945 > Ruínas de Díli após a II Guerra Mundial. Relatório do governo da colónia de Timor, 1946-47. Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Cortesia de RTP > 4.A II Guerra Mundial e o início das descolonizações (com a devida vénia...)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte X:   O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli (pp. 80-87)


(i) 1944 é  mais um ano de martírio para a pequena colónia portuguesa de Timor,  para a população timorense (que não seria mais do que 400 mil em 1940) e para a não-timorense (umas escassas 3 centenas de portugueses) com frequentes bombardeamentos da aviação dos Aliados, por um lado, e a continuação das arbitrariedades e prepotências dos ocupantes japoneses, por outro. 

O ano fica marcado pela prisão de dois elementos-chave da população portuguesa da colónia, o engenheiro Artur Resende do Canto e o tenente António Oliveira Liberato. O primeiro pertencia à Missão Geográfica de Timor, e estava a exercer, voluntária, abnegada e corajosamente,  as funções de administrador do concelho de Díli. O segundo era o adjunto da Companhia de Caçadores, que já tinha perdido, em 1942, o seu comandante, o cap inf  Costa Freitas.

Há uma novo cônsul nipónico, que fala espanhol, e um vice-cônsul que fala português (sendo casado com uma brasileira). Mas nem por isso a situação dos portugueses, detidos na ilha, vai melhorar. 
Nem muito menos a da população autótone, 
que os japoneses insidiosamente tentaram virar contra Portugal.

Quando se comemora os 25º aniversário do referendo de 30 de agosto de 1999, em que 4 em cada 5 timorenses (78,5%) se manifestaram livremente pela independência do território, curvamo-nos à memória de todos aqueles que, durante a ocupação japonesa, 
na II Guerra Mundial, 
 deram-nos exemplos de dignidade, coragem e patriotismo.  

A questão de Timor chegou a ser um foco de tensão entre Portugal e os seus velhos aliados ingleses. A invasão por tropas autralianas e holandesas foi a gota de água e o pretexto de que os japoneses precisavam para, por sua vez, ocuparem o território,  de importância estratégica para ambos os lados,

 Portugal chegou a estar em risco (ou foi ponderada a hipótese pelos ingleses) de entrar na II Guerra Mundial por causa da minúscula e longínqua parcela do império que era Timor, segundo revelam documentos do arquivo do Foreign Office, estudados pelo diplomata e investigador português, Carlos Teixeira da Mota (1941-1984),  "O caso de Timor na II Guerra Mundial : documentos britânicos", Lisboa,  Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, 202 pp.   

Em 28 de novembro de 1944, Portugal assina finalmente um acordo (secreto) com os EUA (com mediação inglesa):  em troca da concessão de facilidades militares nos Açores (ilhas de Santa Maria), Portugal conta com a ajuda americana para recuperar a soberania de Timor, território ocupado prlosd japoneses e objeto da cobiça dos australianos.

Timor é paradigmático: é aqui, no Sudoeste Asiático (mas também no norte de África, ambos sangrentos palcos de guerra) que, em boa verdade,  começa(m) a(s) descolonização(ões)...


(...) A 23 de janeiro recebemos em Lahane comunicação de Liquiçá informando-nos que, no dia anterior, aviões australianos haviam atacado Liquiçá tendo metralhado a enfermaria onde estava hasteada a bandeira portuguesa!

Haviam ficado feridos quatro timorenses e a esposa do chefe dos correios Fortunato Mourão, senhora D. Aida Cassagne Mourão, que ali estavam internados, tendo esta última cegado de um dos olhos atingido por um estilhaço de bala.

No dia 17 de fevereiro, com evidente prazer nosso embora não isento de natural desconfiança sobre as suas intenções, retiraram os japoneses as guardas ao hospital e ao palácio, cessando daí em diante qualquer fiscalização do trânsito dos portugueses entre esses dois edifícios. (...)

Em princípios de março, o engenheiro Canto trouxe de Liquiçá para Lahane, acompanhada de sua mãe, uma menina de 17 anos, filha do velho colono sr. Gregório José Morato. Apresentava uma volumosa tumefacção sobre a omoplata esquerda que diagnostiquei ser um lipoma que facilmente seria extirpado por uma operação de pequena cirurgia, se os dois médicos portugueses a praticassem, dispondo dos meios normais que antes tinham, sobretudo de material asséptico.

Verificada por mim a impossibilidade de tratarmos a menina pediu o engenheiro Canto a ajuda nipónica, no respectivo consulado, conseguindo que a operação se viesse efectuar no hospital japonês, no dia 15, sendo a menina, logo após a operação, transportada para a nossa ambulância onde terminou o tratamento.

Por este tempo, constou à população portuguesa que o engenheiro Canto havia pedido a exoneração do cargo de administrador do concelho de Díli. De facto, ele há tempos me confidenciara que a sua atuação em Liquiçá e Maubara se apresentava cada vez mais cheia de escolhos, sobretudo por nada de importante poder resolver, no momento preciso e no local, pois todas as medidas necessárias que poderia aplicar para a resolução de problemas prementes e urgentíssimos tinham, obviamente, de esperar por despacho favorável do Governador, necessariamente moroso pela dificuldade de comunicações entre a zona e o palácio.

Assim, ele estava na disposição inabalável de se demitir, no caso de o Governador não o nomear seu delegado na zona de concentração. Confirmada a apresentação do pedido de exoneração do administrador do concelho de Díli, foram presentes ao Governador duas exposições, uma de chefes de família e outra de «mulheres e mães portuguesas» pedindo a sua não concessão.

Redigidas e assinadas pela grande maioria da população da zona, foi, a primeira, trazida ao hospital de Lahane onde lhe foram apostas as seguintes assinaturas (1) : José dos Santos Carvalho, Roque da Piedade Pinto e Rodrigues, António de Oliveira Oscar Lemos, Manuel da Costa, Júlio Madeira, Adão Exposto, Joaquim Francisco da Silva.

O despacho do Governador a estas petições (1) não pôde ser favorável, o que nele era lamentado, pelo que foi nomeado administrador do concelho o capitão Manuel do Nascimento Vieira, por portaria de 9 de março de 1944. (...)


(ii) A visita, de uma semana, iniciada em 19 de março de 1944,  do cap art José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau, fazendo-se transportar numa aeronave japonesa, não trouxe benefícios percetíveis à população do território.

Em 29 de abril, dia em que se comemorava o aniversário do imperador do Sol Nascente, Dília sofre forte bombardeamento por parte da aviação  dos Aliados.  O engº Canto e o tenente Liberato são presos. Sabe-se também da prisão do tenente Pires, antigo administrador de Baucau.


(...) Após estes acontecimentos foi a população informada de que estava para chegar a Timor um enviado do Governo de Portugal.

De facto, no dia 19 de março aterrou no campo de aviação de Díli um avião japonês que trazia o capitão de artilharia José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau comandante Gabriel Teixeira, o qual vinha a Timor como delegado especial do Governo português.

Neste mesmo avião viajaram o novo cônsul japonês em Timor, senhor Sotaro Hossokawa e o vice-eônsul, senhor Suzuki.

O capitão Silva Costa demorou-se em Timor uma semana,  tendo-se deslocado a Liquiçá e Maubara, para entrevistar vários portugueses e assistido a um almoço no palácio e a um jantar no consulado, para os quais o engenheiro Canto e eu fomos convidados e em que estiveram presentes o general comandante dos japoneses e os seus oficiais ajudantes, os dois cônsules, o Governador e o seu ajudante, capitão Vieira.

Das entrevistas que o capitão Silva e Costa teve comigo e com outras pessoas, depreendeu-se que ele estava a fazer um inquérito sobre os acontecimentos passados e a situação atual na Colónia. Bem informado, regressou a Macau no dia 26, seguindo no mesmo avião o ex-cônsul, senhor Yodogawa e o chanceler senhor Irie.

O novo cônsul japonês falava espanhol e o vice-eônsul senhor Suzuki, falava fluentemente português, pois, segundo referiu era casado com uma senhora brasileira. O novo chanceler do consulado, senhor Yanaguiwara, não comprendia ou falava senão o inglês.

A vinda do capitão Silva e Costa não trouxe melhoria de situação, como se esperava. Logo a seguir a ela, no dia 9 de abril, o tenente Liberato foi preso, na sua residência em Liquiçá, por três agentes da Kêmpy, dois dos quais eram o sargento Nerita e o cabo Kato, acompanhando-os como intérprete o chinês Há-Hói, filho do comerciante Mie-Hap de Díli, e três soldados armados de espingardas (2).

Levado de automóvel para Díli, pelo sargento Nerita, foi metido na cadeia de Díli e aferrolhado numa cela. No dia seguinte começaram os seus interrogatórios, sempre acompanhados de pancada e violências físicas, feitos pelo comandante da Kêmpy, tenente Akusawa, e pelo sargento Nerita, com o Ha-Hói como intérprete (1).

No dia 29 de abril, manhã cedo, apareceram as barracas dos aquartelamentos nipónicos, à roda do hospital de Lahane, ornamentadas com bandeiras japonesas, nas portas e outros espaços, inclusivamente nos telhados, sentindo-se bem um ar de festa e alegria da tropa. Mais tarde soubemos pelos criados timorenses que era o aniversário do Imperador do Japão que estava a ser comemorado.

Porém, ainda não eram nove horas a sereia japonesa anunciou a aproximação de aviões inimigos que não se fizeram esperar. Seguiu-se um terrível bombardeamento por dezenas de aviões que, conforme era de prever pelo tremendo estrondo e depois soubemos, reduziu a escombros a cidade de Díli, não havendo qualquer espaço que não tivesse sofrido a acção aliada.

As bandeiras nipónicas, escusado seria dizê-lo, logo desapareceram como por encanto e nunca mais as vimos em qualquer lugar, até ao fim da guerra.

Também, este bombardeamento deu origem à destruição por cargas de dinamitei das altas e elegantes torres da catedral de Díli, o que constou ter sido motivado por constituírem um precioso ponto de referência para os aviões atacantes.

Aquando do bombardeamento, estava o tenente Liberato aferrolhado numa cela da cadeia de Díli pelo que pôde num dos seus livros (2) descrever o terrífico espectáculo com um realismo que ainda hoje nos esmaga.

Atingido o compartimento onde se encontrava, transferiram-no para outra dependência menos danificada e onde já tinham sido reunidos os restantes presos, entre os quais reconheceu, a custo por estar magríssimo, ferido na cabeça, e coberto de cabeça, o chefe de posto Matos e Silva (2) .

Recebeu deste, então, algumas informações. O tenente Pires havia voltado da Austrália, num submarino americano e ficara em Timor, em serviço de observação, com um pequeno grupo de portugueses, oferecendo informações aos aliados (3).

Obrigado o grupo a fraccionar-se, para escapar às "colunas negras", haviam sido, sucessivamente, presos o tenente Pires, os chefes de posto José Tinoco e Matos e Silva, o enfermeiro Serafim Pinto e os irmãos, cabos Cipriano Vieira e João Vieira (3).

Presos, durante meses, em Baucau, foram mais tarde transferidos para Díli (3) e aí havia já falecido o chefe de posto José Tinoco e os irmãos Cipriano e João Vieira (2) . Quanto ao enfermeiro Serafim Pinto nada sabia, pois vira-o entrar um dia na prisão, de olhos vendados, mas desconhecia o destino que lhe haviam dado. Provavelmente, já não pertencia, também, ao número dos vivos (2) .

O senhor Matos e Silva, ferido na cabeça por um estilhaço de bomba, foi transferido, tempos depois, para uma casa de China Rate, onde se presume que tenha morrido (3), a 8 ou 9 de maio (2) .

«Fora de dúvida é que todos eles sofreram horríveis maus tratos e as agruras da fome, que os japoneses impunham a todos os seus prisioneiros» (3).

No dia 4 de maio, o tenente Liberato foi algemado, vendaram-lhe os olhos, meteram-nos num automóvel e levaram-no para China Rate onde o meteram na casa que era das máquinas da T.S.F., num compartimento sem janela. Aí viveu ( !) sessenta e sete dias, completamente incomunicável, a juntar aos vinte e inco passados na cadeia de Díli (2) .

Por estes tempos e, infelizmente, nos que se lhe seguiram, o cabo Kato, chefe da polícia japonesa em Liquiçá, continuava  fazer tropelias, insultando e vexando com prepotência os não- timorenses da zona de concentração.

No dia 5 de julho registou-se um ataque aéreo aliado, com fogo de metralhadoras, a Liquiçá e Maubara. Em Liquiçá ninguém foi atingido, mas em Maubara sofreram ferimentos graves  (...).

Uma das mais infelizes e inexplicáveis prepotências da polícia japonesa surgiria, com uma bomba, a 10 de julho. Cerca do meio-dia, apareceu no hospital de Lahane o sargento Nerita acompanhado de alguns soldados armados, transortado num automóvel do exército.

Não procurando o engenheiro Canto, como costumava fazer, dirigiu-se à sala onde estava instalado o telefone que estabelecia comunicação com o palácio, arrancou-o e levou-o consigo.

Apareceu, então, o Engenheiro e logo compreendemos ser ele a vítima escolhida, pois o sargento não o cumprimentou, antes lhe disse qualquer coisa, com modos bruscos, que nós não ouvimos, por estarmos afastados.

O  Engenheiro dirigiu-se, então, ao seu quarto, já acompanhado por soldados, enquanto c sargento foi procurar o gerente do Banco Ultramarino, senhor João Jorge Duarte, para o intimar a acompanhá-lo, também. Tal com estavam, em mangas de camisa, tiveram de seguir com os esbirros, levando o Engenheiro uma malinha de mão e despedindo-se com um olhar que, para sempre, ficou no nosso
pensamento.

Logo que o automóvel se afastou, o chefe de posto Torresão correu para o palácio com o fim de avisar ao Governador, seu primo, o sucedido. Mas, em vão atuou. Chegado ao cruzamento com a estrada que liga ao palácio aí encontrou um soldado japonês que lhe impediu a passagem, forçando-o a regressar ao hospital.

No dia seguinte já não houve entraves e o Governador pôde ser inteirado do acontecimento, não tendo os protestos que, pronta, enérgica e repetidamente, pessoalmente apresentou no consulado nipónico, obtido resultado favorável nem qualquer explicação para tão arbitrário ato. (...)


(iii) Surpreendente, ou talvez ou não, é a situação do tesouro público: o gerente do BNU é preso, e o seu quarto fica trancado...É lá que ele guardava parte do pecúlio da colónia, ou seja, o "mealheiro" do Governador, o cofre forte do  banco... ~

Como pagar agora aos funcionários, civis e militares,  que restam na colónia, incluindo os deportados (que também comiam à "mesa do Estado" )?... Sem esse dinheiro, agravar-se-ia  a situação de miséria em que já todos viviam, apesar da solidariedade de muitos timorenses  que, apesar de tudo, tinham os seus meios de subsistência... 

Uma solução "ad hoc", expedidta, à portuguesa foi encontrada, o clássico "desenrascanço"... Um momento algo hilariante no meio de um drama coletivo...

 (...) Entretanto, verificáramos no hospital de Lahane que o Gerente havia fechado a porta do quarto onde estava instalado e não pudera entregar a chave aos seus dois funcionários ali presente ou a qualquer de nós, pois nem sequer lhe fora permitido calçar uns sapatos em substituição das chinelas que trazia quando foi preso.

Conforme, então, o Dr. Tarroso Gomes (4) me contou,  situação complicava-se porque o Gerente, visto lhe ser impossível ir ao edifício do Banco, situado em Díli, conservava guardados no seu quarto, uma parte dos fundos da Colónia. 

Aguardaram-se vários dias, na esperança de a detenção ser temporária, mas como não houvesse indícios duma libertação próxima, o Governador, obrigado pelas circunstâncias e porque não  era possível deixar a população sem dinheiro, porque isso representava a fome, determinou que se arrombasse a porta do quarto e se retirassem os fundos da Colónia que passariam à responsabilidade do Dr. Tarroso.

Coube esta tarefa a uma comissão, nomeada pelo mesmo espacho que determinou o arrombamento, constituída pelo capitão Vieira, o Dr. Tarroso, o secretário e o tesoureiro do Banco Nacional Ultramarino, senhores Anselmo Bartolomeu e Almeida e Fausto do Amaral e eu e o sargento Vicente, como testemunhas.

Encontrou-se bastante dinheiro em gavetas e malas, mas havia vários cofres que só mais tarde o deportado, senhor Serafim Martins, habilíssime serralheiro, vindo de Liquiçá para o efeito, conseguiu arrombar e depois tornar a reparar à força de muito trabalho e competência técnica.


 (iv) A "zona de concentração" fica agira reduzida a Liquição, com a transferência forçada dos portugueses "residentes" em Maubara, que perdem os seus parcos haveres e as suas pequenas hortas...

Os bombardeamentos continuam, mais intensos em outubro e novembro. Díli é agora um monte de ruinas. 

Timorenses e portugueses vão entrar no último ano da guerra, sem saber qual é o seu desfecho, completamente isolados do mundo...


(...) Em meados de setembro surgiu mais uma grande crise para a população não-timorense de Maubara que na sua totalidade, não poupando as mulheres e crianças, foi obrigada pelos japoneses e abandonar a vila, onde tinha todos os seus haveres e cultivava hortas pelos próprios meios, e seguir para a já superpovoada Liquiçá, fazendo o percurso a pé!

Chegaram esses desgraçados, mortes de fome e de cansaço,  Liquiçá, no dia 15, tendo pernoitado na noite da véspera em palhotas de timorenses caridosos que fraternalmente os acolheram (5).

Assim, na vila de Liquiçá mais se agravou o problema alimentar que só não se tornou completamente desesperado por os japoneses permitirem que alguns nossos serviçais timorenses se dedicassem a trabalhos agrícolas na Granja Eduardo Marques, fornecendo géneros alimentícios. 

Outra grande ajuda foi sempre a da plantação de Fátu-Béssi que nunca foi ocupada los japoneses, embora eles requisitassem daí o melhor para as suas tropas. Porém, a diplomacia do senhor Jaime de Carvalho conseguiu furtar-lhes quantidades preciosas para entregar aos seus famintos compatriotas.

No mês de outubro, violentos bombardeamentos aéreos incidiram sobre a área onde os japoneses se tinham instalado em Lahane, bem junto do nosso hospital, os quais só por milagre não nos atingiram. Ficaram memoráveis para nós os realizados nos dias 14, 29 e 30 (de setembro).

Continuaram os ataques aliados em novembro, ainda a Lahane, mas, agora, nas proximidades da residência do governador. Assim, no dia 8, caíram dezoito bombas a uma distância, entre 20 e 50 metros; no dia 10, sete bombas, à mesma distância; e no dia 15, mais nove, oito das quais muito próximas (entre 20 e 30 metros) e uma que providencialmente não rebentou, a dois metros de um dos torreões da frente da residência, onde cavou um buraco. (6) .

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

________________

Notas do autor (JSC):

(1) As exposições da população ao governador Ferreira de Carvalho, pedindo para não conceder a exoneração ao engenheiro Canto, podem ler-se no In Memoriam a Artur do Canto Resende, publicação do Sindicato Nacional dos Engenheiros Geógrafos, Lisboa, 1956, pp. 37 a 41.

(2) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(3) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(4) O Dr. Tarroso Gomes, desde Dezembro de 1942 que vinha regularmente a Díli, uma vez por mês, a fim de levantar da caixa de tesouro os fundos necessários para as despesas oficiais do mês e despachar com o governador os assuntos da Repartição de Fazenda. Hospedou- se  sempre no hospital.

(5) A odisseia dos portugueses de Maubara foi-me relatada pelo Dr. Tarroso Gomes que assistiu à sua chegada a Liquiçá onde o seu mísero estado provocou, em todos a maior indignação e profundos desejos de vingança.

(6) Os efeitos dos bombardeamentos da zona vizinha do palácio do governador, foram por mim directamente observados. O número de bombas caídas foi-me referido pelo próprio governador.
_____________

Nota do editor LG: 

(*) Vd. postes anteriores da série >





quarta-feira, 19 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25661: Timor Leste: passado e presente (8): Os últimos soldados do império que estiveram prisioneiros do IN, na Indonésia (de setembro de 1975 a julho de 1976): tiramos o quico, o chapéu, a boina, o barrete, o boné... à Ephemera - Biblioteca e Arquivo do José Pacheco Pereira

 






Foto de um grupo de 14  (e lista nominal dos  23)  militares portugueses, do Agrupamento de Cavalaria de Fronteira, em Bobonaro, Timor Leste), que, apanhados pela guerra civil, fratricida, entre  timorenses,  acabaram por ficar prisioneiros do IN (desde setembro de 75 a julho de 76). 

A lista nominal foi publicada pelo DP - Diário Popular, de 19/2/1976; o Diário de Lisboa, de 29 de julho de 1976, publicou, depois,  uma reportagem aquando do seu regresso: "Fim de um pesadelo: sãos e salvos regressaram a Portugal todos os militares prisioneiros em Timor"...  Estes nossos camaradas terão sido mesmo os últimos soldados do Império a regressar a casa, numa altura em que, em Portugal, ainda era escasso o conhecimento sobre o processo de descolonização de Timor. A Força Aérea foi buscá-los a Bali.

O IN neste caso era a Indonésia... Estes nossos camaradas estiveram detidos, a maior parte do tempo em condições infames, sem respeito pela Convenção de Genebra, um mês em Timor Leste e 10 meses na parte ocidental de Timor, indonésia, em Atapupo e, depois, também, em Atambua, no último mês... 

Timor ocidental, outrora colónia holandesa, é ainda de má memória para os portugueses e timorenses, vítimas da invasão e ocupação dos japoneses em 1942/45: foi de Atambua  que vieram as criminosas "colunas negras", armadas e alimentadas pelos ocupantes, e que espalharam o terror pelo território português) (*)...

O militar mais graduado, deste grupo de  23 prisioneiros, era então o  major inf 'cmd' António Ivo do Nascimento Viçoso, falecido com o posto de coronel na situação de reforma: em 1999, "23 anos depois", deu um entrevista ao "Público" onde falou deste duros tempos de cativeiro, e do tratamento frio, calculista, cínico, desonroso, que lhes foi dado pelos indonésios...


1. Estes documentos (que reproduzimos acima, com a devida vénia)  estão disponíveis na Ephemera - Biblioteca e Arquivo de José Pacheo Pereira, a quem temos de tirar o quico, o chapéu, a boina, o barrete, o boné... por se ter tornado,  não o maior "almeida" do mundo, mas seguramente o melhor: "recolhe o lixo de hoje" que nos falta para alimentar a nossa memória...

E não faz distinção entre o "lixo" de 1ª classe ou de 2ª classe, dos ricos e poderosos, ou dos fracos e pobres, das maiorias ou minorias,  dos de esquerda ou de direita, de Deus ou do Diabo, dos santos e pecadores... 

Estamos a falar do o "lixo" que a maior parte de nós deita fora... Ou que os nossos herdeiros consideram "lixo", quando batemos a bota... No nosso caso, de antigos combatentes na Guiné (1961/74) coisas como brasões, guiões, crachás das nossas antigas subunidades; diários, cartas, aerogramas, cartazes, fotografias, recortes de jornal; objetos pessoais ou de guerra, que trouxemos daquele território; documentos militares ou do PAIGC,  etc., etc. 

Porque não há conhecimento sem informação nem informação sem dados... O "lixo" de hoje, depois de tratado,  é "conhecimento" amanhã. Esse, é resto, também a missão do nosso blogue, que foi criado com o propósito de "não deixarmos que sejam os outros a contar (ou a ignorar, escamotear, esquecer) as nossas histórias", que são afinal os nossos pequenos rios da memória que vão confluir para o grande rio da História...

Como a Ephemera escreve, com piada, no seu sítio, "Se o Diabo publicar panfletos vamos ao Inferno recolhê-los"... Aliás, e como diz o nosso povo (que gosta de blasfemar), "tão bom é Deus como o Diabo".

3. Com a devida vénia a esta fantástica e generosa equipa de voluntários que faz o Arquivo Ephemera, reproduzimos o seguinte nota que  o José Pacheco Pereira escreveu, em 10/6/2018, sobre a documentação que lhe chegou às mãos, e que ainda está por tratar, relativa aos 23 militares portugueses prisioneiros na Indonésia, em 1975 e 1976 (quase um ano):

(...) Agradeço a Luís Manuel Barata de Carvalho (um dos 23 prisioneiros) e a José Mendes Lopes (então militar em Timor) a oferta do acervo recolhido por Palma Carlos que inclui a mais completa documentação sobre o que aconteceu aos soldados portugueses feitos prisioneiros quando da invasão indonésia. 

"O acervo inclui um vasto número de fotografias sobre o quotidiano em Bobonaro onde estavam aquartelados antes da invasão, e depois em Batugadé onde estavam detidos e nos diferentes locais de detenção. Entre a documentação inclui-se correspondência pessoal e oficial, todo o processo da sua libertação, e a posterior recepção, homenagens e regularização dos seus direitos militares e civis. 

"Foi um processo complexo, a que não faltou muita conflitualidade política e bastante acrimónia, mas sem o compreender e estudar não é possível analisar o processo de descolonização de Timor. (...)

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25544: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: As primeiras emoções e impressões


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Almoço de um grupo de amigos de Timor-Leste, no restaurante Foz: em primeiro plano, Rui Chamusco e Gaspar Sobral, cofundadores e líderes da ASTIL 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Rui Chamusco passou a integrar desde 10 de maio último a nossa Tabanca Grande (*). É cofundador da ASTIL, com a sua conterrânea,  Glória Lourenço Sobral, professora do ensino secundário,  e  com o marido desta, Gaspar Costa Sobral,  luso-timorense que, em Angola, antes da independência, era topógrafo.  

ASTIL é a sigla da Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, criada em 2015, com sede em Coimbra. Entre outros projetos desenvolvidos pela ASTIL,  destaque-se a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo) e o apadrinhamento de crianças em idade escolar. (Havia, então, em Boebau,  150 crianças sem acesso à educação.)

O Rui, professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, tem-se dedicado de alma e coração a este projeto no longínquo território de Timor-Leste. (A ESFA foi inaugurada em março de 2018: custou então 50 mil dólares, sem contar com muita da mão-de-obra "pro bono")

Regressou há dias, ao fim de 3 meses, de mais uma estadia (a quinta), desde 2016.  (Voltou lá em 2018, 2019, 2023 e 2024.) Falei com ele ao telefone, ainda estava "todo partido" da longa viagem (são mais de 14 mil quilómetros de distância, e uma diferença de 8 horas entre Lisboa e Dili).

Desde a sua primeira viagem a Timor-Leste, no início de maio de 2016, que ele vai escrevendo umas "crónicas" para os membros da ASTIL e demais amigos.  Na minha caixa de correio tenho  recuperar algumas dessas crónicas (de 2018 para cá). Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. 

Pedi-lhe, entretanto, cópia das crónicas de 2016, a primeira vez que ele pisou a terra sagrada de Timor Lorosa'e. (Partiu a 5 de maio e regressou a 7 de julho.)

Vamos publicar alguns excertos, dado o interesse documental que têm para os nossos leitores que querem saber mais da história e da cultura dos nossos amigos e irmãos timorenses.

 Viagem a Timor: maio/julho  de 2016 - Parte I: as primeiras  emoções e impressões

por Rui Chamusco 


Descrição pormenorizada – acontecimentos e peripécias dos amigos Gaspar Sobral e Rui Chamusco

Depois de muitos trabalhos de preparação (vacinas, consultas, contactos, marcação de dias da viagem, obtenção de bilhetes e outras coisas mais) eis-nos a caminho: a primeira etapa da consagração do projeto de solidariedade “ uma escola em Timor “. 

As expectativas são muitas, as dificuldades muitas mais, mas a força e o querer que isto aconteça superam qualquer intento de desânimo ou de desistência.

Dia 5, 6 e 7 (quinta, sexta e sábado), maio de 2016 

Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


Em casa dos amigos Tó Barroco e Mila em Odivelas, pelas 6 da manhã começam os primeiros rumores com os serviços da casa de banho que um a um utiliza, antes de um ligeiro pequeno almoço e da partida para o aeroporto da Portela (Lisboa). 

Às 8.30h começamos o chek-in e o controle de bagagens. Às 11.00h entrada para o avião da British Airways rumo a Londres. Aí permanecemos até às 20.00h, seguindo depois até.ao aeroporto de Singapura durante um percurso de mais de 13 horas de avião.

Chegada ansiada ao mundo indonésio e que ali nos albergou até às 9.00h do dia seguinte, com partida para Dili (Timor) onde chegamos pelas 14 horas, contando com as horas do fuso horário respetivo.

Em Dili descemos da aeronave sob um calor sufocante, tal o grau de humidade da temperatura ambiente. Mesmo assim nada que nos impedisse do grande regozijo de pisar o solo timorense. 

Grande expectativa, depois de cumprirmos as formalidades exigidas, de conhecermos a família do amigo Gaspar que, antecipadamente avisada, estava a nossa espera. Beijos e abraços, com momentos fortes de emoção. É que Gaspar há 16 anos que não visitava à sua terra natal.

Surpresa ou coincidência

Enquanto esperávamos pela realização do check-in Singapura / Dili, surge precisamente à minha frente uma figura conhecida e com a qual em tive contatos há quase meio ano na preparação desta visita a Timor. Nada mais nem nada menos que o frei Padre Fernando Cabecinhas, provincial dos Capuchinhos de Portugal, que vem em visita às comunidades missionárias de Tíbar e Laleia. 

Foi uma alegria imensa de parte a parte pois, para além de recordarmos tempos passados, eu como diretor do seminário menor e ele como aluno, pusemos em dia a conversa sobre a vida de capuchinhos que outrora foram meus companheiros. 

Ficou logo ali delineada uma visita a Tibar, a fim de encontrar e abraçar o Pe. António Pojeira. Por razões de circunstância a visita ficou adiada mas que, logo que possível será concretizada.

Surpresa nº2

Tinha que ser! Por mais voltas que desse a passadeira das bagagens as nossas malas não apareceram. Revisão dos espaços, contatos telefónicos não serviram de nada. À nossa preocupação juntaram-se muitos outros que abnegadamente tentaram resolver a situação, mas o único que nos garantiram é que no próximo sábado (oito dias depois) as malas seriam entregues. A ver vamos!...

Amanhã, domingo, dia 8,  iremos à Plaza de Timor ( supermercado ) a fim de comprarmos algumas roupas, pois o calor húmido que se faz sentir obriga-nos a mudar de trajes com frequência. Entretanto, como diz um ditado timorense, “ nada se perde; apenas se esquece” (Saçan lá lácon; só halu han deit). Que assim seja…

A visita ao cemitério de Santa Cruz

Com a família Soveral como guia, fomos de imediato visitar esta lugar de memórias, e particularmente a campa do pai desta família José Alves Sobral, vítima de doença em 1975. Muita emoção, lágrimas e choro sobretudo por parte do Gaspar. 

A mim impressionou-me imenso o facto de se verem ainda em várias campas (também do sr. Sobral) as marcas dos tiros que no ataque de 12 de Novembro de 1992 o exército indonésio disparou e matou mais de 200 timorenses. 

De seguida fomos de karreta até à zona habitacional da família, em Ailok laran – aldeia da Ribeira Maloa, também conhecido por suco de Bairro Pitê (nome do administrador que lhe deu o nome). 

Muita gente à espera do Gaspar e do malae (português), que sou eu. Irmã, irmãos, cunhadas, filhos, sobrinhos, vizinhos, amigos… um corrupio de gente e sobretudo de crianças que, em face dos visitantes, tudo querem ver e saber. 

Um ambiente stressante mas que sabe bem. Todos se desfazem em simpatia, mesmo que a linguagem falte. Vendo e ouvindo os seus clamores e as suas histórias até às tantas da noite, mesmo que caindo de sono. O tempo é pouco para tanta vida pujante. Só crianças à nossa volta são treze. Ou seja, crianças e adultos da família Sobral são mais de 20 pessoas a fazer serão.

A vida e o bem estar desta gente

Há 14 anos que Timor é independente, com órgãos próprios de governação. Muita coisa já foi feita mas muito mais há que fazer. Tenho o privilégio de estar a viver com as pessoas do povo e não em hotel. Isto permite-me embarrar-me, comer e beber, cantar, tocar, estar com eles à conversa, escutar as ânsias e anseios das pessoas quiçá mais desprotegidas. Nada que possa alterar as características deste povo que nasce, vive e morre com o sorriso sincero nos rostos.

 Hoje observei as três crianças do Anô que iam ser batizadas. A mais pequena, que nem dois anos tem, desfaz-se em sorriso impossível de descrever. Como não ficar ligado a esta gente? Não há nada que pague esta oferta.

Faltam muitas condições de conforto e de bem estar a que um europeu está habituado. Mas sobram valores e relações humanas que são riqueza e património deste povo. 

Destaco em particular o valor da família. Viver em família é um processo natural. Na família Sobral todos são de todos, não há portas nem barreiras, os maiores cuidam dos mais pequenos, o respeito dos mais velhos está garantido com o beijo e reverência (beija e encosta a cabeça na mão do adulto), gesto repetido todos os dias ao fazer o cumprimento. 

Tenho a sorte de já ter entrado no coração desta gente. Sou tratado como o Ti Rui ou, melhor ainda, como irmão Rui. Nada melhor que me possam oferecer do que esta fraternidade voluntária.

A empatia com a natureza

Aqui nada se perde. O aproveitamento da natureza é feito com respeito pela mesma, que tudo nos dá. É mãe… Ervas, plantas, aves, animais pessoas tudo aqui convive numa perfeita harmonia e promiscuidade. Sem agressões, com mútuo respeito. Gostaria que assim fosse em todo o mundo. Não se estraga, não se abusa. Não se vive em opulência, serve-se o necessário, chega para toda a gente. 

Que bom saborear os pratos típicos tradicionais! Sedok (arroz com feijão fore), mostarda em planta, papaia, folha de abóbora, betal, areca, calai, etc… etc… que para além de alimentação se utilizam também com fins terapêuticos. A envolver este cenário há um jardim natural bem conhecido dos residentes pelos seus nomes e utilidades. 

Um verdadeiro hino ao Criador.

A vontade enorme de aprender português

Quase todos os dias me deparo com crianças que, servindo-se de um manual escolar, tentam fazer os trabalhos de casa seja onde for, até em cima da campa da avó Felismina Sobral. Posso confirmar que estas crianças têm avidez de saber. A ler, a cantar, sozinhas ou em grupo mas quase sempre em português. É por isso que não posso ficar indiferente. 

Com a guitarra do irmão Eustáquio tento ensinar canções através do melhor processo de aprendizagem: lendo em voz alta, mandando repetir, tocando a melodia, fazendo os gestos, acompanhando… O resultado está à vista. Estão gostando tanto que já dizem: “ quando irmão Rui for embora a gente vai chorar”. Derretem-me literalmente o coração…

Hoje de manhã, dia 8, fui encontrar a Adobe, uma das filhas do Eustáquio, quase deitada no chão de mosaico sobre um livro e a soletrar palavras em português. Não aguentei mais. Chamei o pai e a mãe e propus-lhes: ” Eu gostava de ser padrinho desta menina. Apoiar os seus estudos e seguir o seu desenvolvimento. Aceitam?” 

De imediato foi dado o consentimento. Um beijo e um abraço selaram este acordo. De agora em diante procuraremos o que for melhor para a Adobe.

Dia 10 (terça-feira): encontro informal com ex-combatentes da resistência

Quase podemos dizer que, desta gente que habita o bairro, não há ninguém que direta ou indiretamente não tenha estado envolvida com a invasão indonésia. A casa que habitamos da família Sobral foi totalmente destruída e arrasada. Hoje está reconstruída.

Igual sorte tiveram as casas em redor. De modo que é muito fácil encontrar testemunhos e antigos combatentes normalmente afetos à Fretilin. Todos têm a sua história mas destaco em particular alguns ex-prisioneiros que com coragem e inteligência aguentaram e escaparam (sobreviveram) às torturas infligidas.

Abeca Sobral, homem de estatura franzina que o vento pode levar, relata que na prisão era torturado com socos no estômago que, segundo ele,  só por milagre não o mataram.

Diz que à frente das grades da prisão passou alguém de cujas botas se desprendeu um pequeno papel (recorte de revista ou jornal que ainda hoje guarda consigo e que me foi mostrado) que habilmente conseguiu obter e onde estava (está) escrita uma oração a Santo Exposito. Diz Aveca que esta oração lhe deu a força necessária para resistir a tudo: “davam-me socos no estômago e nada sentia; parecia que estavam batendo em borracha”. 

Aveca está vivo, com a sua família no bairro Ailok laran, como a maioria dos irmãos e com um cargo de funcionário público na administração do Estado: chefe de serviços no registo predial de Dili.

Eustáquio (alcunha de João Moniz Sobral), outro dos irmão que nos alberga, é taxista e conta que ele, a mãe, os irmãos tiveram que fugir e se refugiar na montanha durante três anos. Caminhavam de noite e de dia escondiam-se. 

Numa certa noite uma tempestade de chuva se anunciava. A mãe e os filhos procuravam refúgio para se albergarem do mau tempo. Foi então que a mãe lhes diz: “vamos para aquela casa que ficaremos a salvo”. Aí descansaram até de manhã e, surpresa das surpresas, quando acordaram não viram casa nenhuma. A mãe, já falecida, e os irmãos ainda presentes testemunham que isso foi verdade. Milagre talvez, mesmo que os psicólogos e psicanalistas digam que foi alucinação coletiva. Ouvir para crer, é o que nos resta… 

No entanto quero salientar a convicção de quem passou por isso e relata o acontecimento. O final desta fuga não foi feliz. Acabaram por ser apanhados pelas forças indonésias que os reportaram para Dili. Já na sua terra (arredores de Dili) constataram com tristeza que a casa de família tinha sido completamente arrasada e queimada. O Eustáquio prometeu que iria recuperá-la, o que hoje em dia é jáum facto.

Felisberto é um dos vizinhos do casal Sobral, foi preso pelos indonésios que o levaram para uma prisão na Indonésia. Já na cela bem apertada teve de socorrer-se da sua imaginação para se poder livrar dos calabouços. Quem não quiser ler feche os olhos porque o que vem a seguir nem todos os estômagos suportam. O Felisberto teve uma ideia de merda. Foi ao balde para onde fazia as necessidades, e com as mãos cobriu a cabeça de merda. Uma, duas, três vezes…até que os responsáveis da prisão o consideraram maluco e o libertaram. Dizem os vizinhos que ele ficou mesmo afetado, não regula bem. Ainda agora o avistei no seu território.

José Sobral, já falecido, também foi preso pelos indonésios e,  segundo contam os irmãos, foi sujeito a uma série de perguntas em linguagem Bahasa da qual ele nada entendia. Pelo sim pelo não decidiu responder sempre sim com aceno de cabeça. Cada resposta, cada sessão de pancadaria.

Enfim estes e outros testemunhos são para entender o que esta gente sofreu por  quererem continuar a ser portugueses. O amor e a paixão por tudo o que se relaciona com Portugal é impressionante.

Dia 10 (terça feira) – Viagem em microleta até Dili rumo à escola de Taibessi

Como já relatei anteriormente decidi apadrinhar uma menina do casal Eustáquio/Aurora e seguir o seu percurso. Adobe está no 4º ano de escolaridade na Escola Farol.

Devido ao seu interesse pela língua portuguesa procuramos uma escola de referência onde Adobe possa aprender corretamente o português. Indicaram-nos a escola de Taibessi para onde nos dirigimos em microleta

Bem atendidos pelo porteiro timorense e pelas duas professoras que nas suas salas lecionavam , expusemos a situação que não foi logo resolvida porque a professora coordenadora –Teresa Nora – já não estava. Por contato telefónico foi marcado encontro no dia seguinte às 8.00 horas. Esta viagem teve a particularidade de entrar na microleta com uma cabeçada estrondosa que me ativou as ideias, e uma grande chuvada ao chegarmos a casa em que os chinelos de dedo no pé são a melhor solução para não molhar os sapatos.

Não posso deixar de registar o grande jogo de futebol a que assisti no largo da casa Sobral: seis miúdos do bairro, sem camisa, descalços e com os calções a cair jogavam  desalmadamente sob chuva intensa com dribles impressionantes, fintas e defesas corajosas, em que o único interesse é o jogo pelo jogo, sem árbitros, sem limites de campo, sem faltas. Um verdadeiro jogo de amigos e de convívio.

Dia 11 (quarta feira) – De novo rumo a Taibessi

Eram 7 horas da manhã e já estávamos prontos para o arranque. Foi então que avistei o Eustáquio com a sua mota e dois capacetes. Só então compreendi que um era destinado para mim. 

Nunca pensei correr a cidade de Dili em mota. Eustáquio a conduzir, eu atrás do condutor e a Adobe à frente lá fomos de novo a caminho de Taibessi. Muito bem recebidos pela professora Teresa Nora. que compreensivamente resolveu o problema. A Adobe vai ficar na Turma B do 4º ano e hoje mesmo fomos tratar do boletim de transferência á escola de Farol. Amanhã iremos de novo entregar os documentos solicitados para conclusão do processo.

Dia 12 (quinta feira)

Dito e feito! A Zinigia (Adobe) já está na Turma do 4º ano B. Foi logo integrada na aula de ginástica. Mais uma vez realço pela positiva a forma amável e interessada da Professora Teresa Nora, bem como do professor da Turma. Orgulho-me da classe profissional a que pertenço, embora na reforma.

Noite atribulada deste dia 12!

 A partir das 3 horas da manhã tive de sair da cama e ir para o exterior porque o amigo Gaspar (raios o partam!... ) resolveu pôr-se à conversa vom o mano Eustáquio. Mais parecia um monólogo que um diálogo pois só ele é que pregava. Irritado com as sua baixas frequências, tomei a decisão de me livrar desse ruído perturbador e fui sentar-me no canto mais sossegado do recinto. 

Dormi um pouco mas os mosquitos (melgas) começaram a zunir, pelo que me levantei de mansinho na intenção de regressar à minha tarimba. Azar dos azares, todas as portas estavam fechadas. Daqui até o sol raiar foi um pandemónio de mudança de cadeiras, de posições, de pensamentos de revolta e eu sei lá que coisas mais. Sei que não foi por mal, pois pensavam que eu já estaria dentro, mas lá que custou a passar a noite custou.

 Hoje mesmo vou tentar recuperar a energia pois este santo corpinho ficou todo amassado das andanças da noite.

Viagem em Táxi

Mais uma experiência de viagem, em táxi, do mano Eustáquio à escola de Taibessi.

Pensando que seria melhor do que o transporte de ontem, tenho de concluir que, apesar das confusões de trânsito, a viagem de mota foi mais segura e agradável. Estranhei que o carro andasse, mesmo a cair aos bocados, mas lá fomos ao nosso destino e chegamos sãos e salvos a casa.. 

Tantas dificuldades materiais que esta gente suporta, mas nada que os impeça de chegar onde querem chegar. Cada um tenta desenrascar-se como pode, mesmo que para isso seja necessário dar um murro no carro para que uma porta se abra.

Aqui é assim: oficinas e mecânicos pouco se vêem. Cada um tenta ser mecânico à sua conta. Por isso não é de admirar que os carros e as motas estejam tão mal tratados. O que importa é que andem, porque de comodidades ninguém esteja à espera. Se o motor não arranca empurra-se, pois mão de obra é coisa que aqui não falta. E viva o desenrascanço!...

Mais uma vítima (política) inocente

Hoje o Gaspar estava atónito a pensar no que o irmão (Eustáquio) lhe contara. Um amigo foi interrogado (talvez por alguém das secretas indonésias, pelos vistos realidade existente em Timor), se conhecia o Gaspar Sobral. Como negou que o conhecia,  levou tanta pancada que o deixaram cego. 

O Gaspar,  profundamente chocado e desconhecedor do acontecimento,  manifestou de imediato a vontade de conhecer esse senhor e de lhe agradecer ter-lhe salvo a pele. Parece que este episódio e esta procura pelo Gaspar remonta aos tempos da Expo Sevilha, onde Gaspar e mulher (Glória Sobral, que é ntaural do Sabugal) participaram ativamente na manifestação Pró Timor contra a Indonésia.

Postal de Timor

Gostaria de uma pincelada poder descrever o que por aqui se passa mas não é nada fácil prescindir de pormenores que constantemente nos atraem pela positiva ou pela negativa.

Dalguns já dei conta mas muitos mais afloram sempre que ouvimos alguém. Por exemplo,  o fosso existente entre a classe política e o povo. Sabiam que um assessorde ministro ganha 5.000 dólares enquanto que um contínuo do ministério no escalão máximo ganha 200$? 

As estruturas do Estado e da Igreja são as mais vistosas da cidadea classe média vive em bairros na periferia onde o desenvolvimento e as condições sociais deixam muito a desejar. Existe lixo espalhado por todo o lado e a sensibilidade para a preservação e limpeza do ambiente é coisa de futuro. Muito caminho há a fazer…

O trânsito é intenso e bastante desordenado. Mesmo assim condutores de toda a classe de veículos manifestam grande destreza e habilidade pois o número de acidentes é pouco relevante. Os produtos locais chegam a todo o lado, ainda que não haja carros e câmaras de frio que acondicionem os materiais. Todos os dias, a toda a hora, são músicas e reclames a anunciarem o que se vende: carnes, peixes, hortaliças, sementes, água, roupas, bugigangas, cada vendedor com o seu estilo e meio próprio. Mas o que mais me chamou a atenção, pelos sons que produziam, eram dois leitões pendurados em vara levada ao ombro, que se desfaziam em gemidos apelando a socorro. Dói de ver, mas é assim a cultura deste povo.

Hoje, dia 12, véspera da Senhora de Fátima, anunciam-se procissões noturnas por todo o lado. O sentimento religioso deste povo é grande e creio que sincero. Crianças e adultos todos trauteiam melodias portuguesas a Nossa senhora bem conhecidas. Nas casas, nos carros, nas mikroletas avistam-se imagens de santos e santas que nos fazem crer estar numa grande igreja. Não têm medo nem vergonha de mostrarem a sua fé e aquilo em que acreditam. Fé ou religião… Mas quem somos nós para criticar ou julgar a convicção dos outros? Respeito meus senhores!...

Dia 13, sexta feira – O reencontro com as malas e a visita a Tíbar

Como diz o ditado timorense “as coisas não se perdem; apenas se esquecem”. Finalmente chegaram as nossas malas. Por onde andaram ninguém sabe mas, logo que se avistaram, os donos até sorriram. Foi uma alegria enorme poder tocar-lhes, abri-las e confirmar que nada faltava, mesmo tendo sido abertas. A simpatia dos funcionários do aeroporto foi imensa, (claro que houve gorgeta!), tudo facilitando para que a nossa alegria fosse completa.

Do aeroporto dirigimo-nos para Tíbar, visitar a comunidade de Capuchinhos que aí está radicada. Outra enorme alegria ao poder abraçar o meu amigo Pe. António Pojeira,colegas de seminário e de fraternidades durante bastantes anos. Foi uma conversa para recordar vivências e episódios das nossas vidas em comum, reforçada pelas intervenções do caro amigo Pe. Fernando, provincial do capuchinhos em Portugal e pelas intervenções adequadas do amigo Gaspar, seu irmão chaufer do táxi e sobrinhos Anô e Rosana que tanto nos ajudaram na recuperação das maletas e outras démarches.

A chegada ao pátio foi como já se esperava: uma curiosidade enorme em ver e ouvir o acordeão e depressa se transformou no “pátio das cantigas”. Toda a criançada acudiu deimediato e as canções já aprendidas desfilaram pelas gargantas de todos os presentes:saia velhinha, as pombinhas da Cat’rina, o mar é lindo e mais modas de que esta gentemuito gosta. Deu bem para suar… Logo a seguir tanta chuva, tanta chuva de que não hámemória no meu cérebro.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

________________

Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

_____________________

Nota do editor: