sábado, 25 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23384: Memória dos lugares (442): Apenas um mês em Bula e a Mata do Choquemone marcou para sempre a CCaç 4541/72 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 2 de Junho de 2022:

Amigos e camaradas da Guiné,
Apenas um mês em Bula e a mata do Choquemone marcou para sempre a CCaç 4541/72.

Chegados à Guiné em 21 de Setembro de 1972, estes "periquitos", numa das suas ações ofensivas no Choquemone e Ponta Matar tiveram o primeiro embate sério com o IN, na mata do Choquemone em 25 de Novembro de 1972 e são obrigados recolher a Bissau, embalar os seus mortos, para os enviar à família e tratar das suas feridas.

Ainda mal refeitos do desfecho desta operação, vão participar na Operação Grande Empresa em 12 de Dezembro de 1972 e posteriormente ocupar Caboxanque, na região de Tombali, onde estiveram mais de 15 meses e durante este período reforçaram ainda as posições de Jemberem, Cadique e Cufar.

Depois de quase 18 meses de Guiné, vão para Safim, onde chegaram em 6 de Março de 1974 e já com o estatuto de "velhos" foi o merecido descanso do guerreiro, mas para alguns durou pouco. O destacamento de Capunga a sul e o destacamento de João Landim a norte foram de seguida ocupados. Em Safim ficaram o Comando, a gestão corrente da Unidade e os restantes militares.

Fui ter com eles a Safim em Março de 1974, passados 15 dias escrevi um aerograma aos meus pais com uma pequena mensagem a dizer que estava na Guiné e bem. Escusado será dizer que nem eles sabiam que tinha sido mobilizado para a Guiné . Apesar de me sentir bem preparado física e psico e manobrar muito bem as armas, constatei que não era o suficiente. Aqui fui encontrar uma Unidade muito segura, disciplinada e eficiente, nas patrulhas pouco se falava e muito menos de noite, cada um sabia exactamente o que fazer e como fazer, o que tornava tudo muito simples.

Sob o comando do Alf. Mil. Pratas fomos ocupar o Destacamento de João Landim norte, constituído por um pequeno "Hotel" cavado debaixo da terra circundado por uma trincheira, com um chuveiro de água ligado a vários bidões de 200 litros, que deixava o cabelo duro como um capacete e um pequeno barraco com uma arca frigorífica a petróleo para bebidas normalmente quentes e dois unimogs, não existia arame farpado, mas também senti que não era necessário. Não havia nada em redor, nem árvores nem população e tudo isto localizado a meia distância entre Bula e o Rio Mansoa.

O abastecimento de água para os gastos gerais do destacamento, provinha de uma pequena fonte localizada nas imediações de uma Bolanha a uns escassos quilómetros da mata do Choquemone. Com um condutor e a Secção de infantaria armada, partimos na direcção de Bula com um auto tanque de 5000 litros atrelado ao unimog. Depois de passar o Quartel, virávamos à direita e íamos por uma picada que nos levava até à fonte e aqui, depois de encher o auto-tanque, regressávamos ao destacamento.

Tinham passado já 18 meses, todos haviam esquecido o nome Choquemone ou parecia. Na verdade os "velhos" pouco falavam disso, mas aquela mata e o dia 25 de Novembro de 1972 estavam bem presentes na sua memória e agora voltar ali a Bula, bem perto da mata foi quase como voltar ao princípio e vieram as recordações.

A minha integração foi muito simples, os problemas deles começam a interessar-me e passam também a ser meus. Fazer baixas ao IN era para mim estar do lado certo da História e bem, os nossos camaradas mortos assim o exigiam, sinto que pertenço a este corpo, o resto era conversa, a Figueira e a Metrópole eram para esquecer, tinham ficado para trás.

As patrulhas e as operações de segurança da travessia do Rio Mansoa, feitas pela secção de infantaria. decorriam sem problemas. Até parecia que a Maria-turra e o PAIGC também se lembravam bem da CCaç 4541/72, sabiam quem eram, de onde vinham e dos "coices de mula" que tinham trocado no Choquemone. Eu sabia apenas das nossas baixas mas não das deles.

Na Cronologia da Guerra Colonial - 1972 - 2/2-por José Brandão estão registados 6 mortos em combate (cinco da CCaç 4541/72 e um paraquedista do BCP 12) todos no dia 25 de Novembro de 1972.

Guardo na memória os lamentos e a revolta do Silva, um soldado experiente, (de 26anos) o de óculos escuros na fotografia à entrada da LDM no Rio Cumbijã, um dos que me relatou a operação na mata do Choquemone em 25 de Novembro de 1972, apenas 2 meses depois da CCaç 4541 chegar à Guiné e recordo também o 1.º Cabo Dantas de G3 na mão no meio da malta, ambos da minha Secção.
Choquemone > Posição relativa a Bula e Binar. Infogravura © Luís Graça & Camaradas da Guiné 

Tratou-se de uma emboscada seguida de outra, com envolvimento, numa mata densa do Choquemone de que resultaram 5 mortos e 12 feridos em combate e entre os feridos o Comandante Sr. Cap. Mil. Inf. Dias Silva, que obrigou à intervenção de 2 Fiat G91, 1 helicanhão e 1 helisocorro para evacuação de feridos, tendo a CCaç 4541/72 na sequência desta operação recolhido a Bissau.

Não sei se a morte do paraquedista das forças do BCP 12 neste mesmo dia, está relacionada com esta operação. Toda esta informação é resumida mas é tudo o que disponho.[1]

Será possivel tornar público o relatório desta operação na mata do Choquemone, comandada pelo Sr. Cap. Dias Silva no dia 25 de Novembro de 1972, ou alguma informação complementar da FAP, BCP 12 ou algum camarada, para conhecer em pormenor o que foi e como terminou esta operação, qual o número de baixas do lado do IN e corrigir algumas informações acima descritas que possam estar incorrectas.

Quero agradecer ao José Guerreiro da CCaç 4541/72 pelas fotografias do Sold. Silva e do 1.º Cabo Dantas aqui publicadas em 07 de Abril de 2013 e 31 de Janeiro de 2013, respectivamente, porque me permitiram recordar as acções e vivências do tempo de aprender com os "velhos", que influenciaram o meu percurso de vida ao longo destes anos. Por tudo isto eles merecem bem a minha homenagem.
1.º Cabo Dantas segurando a sua G3
Soldado Silva junto da LDM

Fotos: © José Guerreiro da CCAÇ 4541/72. Todos os direitos reservados

Junto fotografia da constituição da minha Secção de Infantaria

O meu obrigado e um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur. Mil. At. Inf.

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[1] - Notas do editor:

i - O militar paraquedista referido faleceu em combate durante a Op. Urso Vermelho em Cufar-Bedanda pelo que nada tem a ver com a emboscada sofrida pelo pelo pessoal da CCAÇ 4541/72. 

ii - Os militares da CCAÇ 4541/72 mortos na emboscada de 25 de Novembro de 1972, foram:

- 1.º Cabo Radiotelegrafista Fernando da Conceição Fernandes
- Soldado Atirador Germano de Jesus Almeida
- Soldado Atirador José António Ferreira Correia
- Soldado Atirador Manuel Gomes Neto

Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Era fatal como o destino, a primeira ancoragem depois do confinamento tinha de ser aqui, por razões do coração, pela aprendizagem recebida, há bem mais de meio séculos atrás. Em qualquer um destes lugares desta ilha, digo-o sem fanfarra, devo ter posto os pés. Logo à chegada à Lagoa, é assim que esvoaçam as lembranças, me recordei daquele Natal de 1967, que foi preparatório do milagre que se deu no Natal de Missirá, no ano seguinte, graças a mãos amigas, andei a saudar quem tinha feito a recruta comigo, andei pela Ribeira das Tainhas, Remédios, Lomba da Maia, Ribeirinha, e muitíssimo mais, as viagens multiplicaram-se, entranhou-se o gosto por este mundo ilhéu, o seu falar doce, com um picante um tanto francês, um certo espavento quando os familiares e os amigos se encontram, a gostosa comida e doçaria, tudo somado e multiplicado em trouxe a São Miguel, e já no rescaldo anda por aqui uma moinha a pedir para voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1


Mário Beja Santos

Aqui arribei no início da segunda semana de outubro de 1967, promovido a aspirante fui recambiado para dar recrutas no Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, sito nos Arrifes, a cerca de 7km de Ponta Delgada, aqui tinha quarto, janta, alguns fins de semana por minha conta, o entardecer, o anoitecer, era a descoberta de me ter por conta e risco, e sem nenhuma ilusão de que em breve seria convocado para uma área de combate nas Áfricas. Ainda não contei tudo sobre este período de felicidade, as amizades feitas e duradouras, a descoberta desta ilha esplendente, o prazer de conversar e ouvir o acento tão melódico do ilhéu, uma linguagem ímpar. Fizera a jura ser aqui a primeira deslocação depois do período do confinamento, vim em romagem de saudade, mesmo de gratidão, pois foi aqui que pude sentir, naquela convivência das recrutas, que possuía algum dom para a liderança, muito jeito me deu para a vida que levei até agosto de 1970, depois mudei de agulha, até na vida profissional fugi do comando, adquiri outros interesses. Guardo ainda a imagem daquele meio da tarde em que o Carvalho Araújo sulcava em direção a Ponta Delgada, sempre em paralelo com aquelas reentrâncias, falésias a pique, rochedos de negrume, a bruteza das águas a espumar sobre as penedias, a alvura das casas, um belo contraste, as grotas a verter caudais de água, como toda aquela massa vulcânica expelisse em permanência todo aquele líquido, por desnecessário. Aqui cheguei, era o fim do inverno, mão amiga me acompanhou até à Lagoa, havia que amesendar, foi um luxo, não pelo queijo fresco com pimenta da terra ou as lapas com molho Afonso, o banquete foi um peixe porco bem grelhado, inhames, legumes saborosos, e vinho do Pico para apaladar. Pois a primeira imagem era para homenagear quem preparou o banquete, aqui se mostra uma área portuária da Lagoa, tudo me remeteu para aquela segunda semana de outubro de 1967, a era do meu descobrimento.
Depois da Lagoa, pedi ao meu anfitrião que me deixasse ver as praias, muito antes do Pópulo temos a praia das Milícias, que tanto aprecio, sempre me deslumbrou esta articulação entre a rocha verdejante, a areia e a ondulação. Melhor receção eu não podia ter. Arrumada a tralha na cidade, houve o gosto de ir até aos jardins, todos eles são assombrosos.
Ponta Delgada tem alguns dos jardins mais aprazíveis que eu conheço, o Jácome Correia, foi palácio de marqueses, hoje é residência oficial do presidente do Governo Regional; o de José do Canto, outra formosura, tal como o jardim botânico António Borges, também cheio de plantas exóticas, é delicioso estar sentado num banco de jardim a contemplar o monumento a Antero de Quental, bem perto da biblioteca municipal da Igreja do Colégio, hoje núcleo de arte sacra do museu Carlos Machado. Mas tive saudades do jardim da Universidade dos Açores, aqui me receberam para palestrar, aqui entrevistei para um programa de televisão o professor Vasco Garcia, aqui vim visitar um querido professor, Machado Pires, que foi reitor desta casa. É um jardim modesto, mas tem o quanto basta para me lavar a alma, os metrosideros, as araucárias, as estrelícias, a terbentina, as obrigatórias azálias, a fiteira, a sumaúma, o dragoeiro. Entro no jardim e demoro a ver estas raízes que lutam contra o asfalto, bem podemos molestar a natureza, no fim ela é sempre imperativa e possidente.
Está no ADN do ilhéu a convivência floral, os primitivos povoadores, os que desembarcaram no que hoje se chama a Povoação devem ter ficado estarrecidos com tanto matagal, houve que o desbastar para produzir comida e habitação, tudo sempre cheio de temores, segundo o grande cronista Gaspar Frutuoso, viviam aterrados com os roncos que vinham do Vale das Furnas, houve quem pensasse que para lá daquela imensidão verde havia um inferno. A jardinagem e o gosto pelas flores faz parte do direito costumeiro, mesmo aqui, que não é um ambiente luxuriante como no jardim António Borges, onde não há nem estufas nem pavimentos em bagacina vermelha, apetece contemplar estes troncos rugosos, talvez fibras para têxteis ou cordas de ancoragem, ou cestas, esta palmeiras que lembram coqueiros, o dragoeiro com a sua seiva vermelha, lá fora, isso sim, proliferam os plátanos, permanentes sentinelas nas estradas.
E não falta uma gruta, já vi arcos armados em rocha vulcânica, aqui é tudo singelo, tudo rocha vulcânica, não há chamamento ao mistério ou caminhos sinuosos, ela lá se impõe e nos chama à atenção no meio de intensa vegetação.
Anoiteceu e ando em busca do meu passado, ali mais ou menos em frente à torre da Câmara Municipal e não longe da estátua dedicada ao Arcanjo havia um café-restaurante onde eu era comensal. Estou no Largo da Matriz, em frente de uma porta lateral ao sabor manuelino, mais tarde aqui irei entrar, sempre deambulei por estas Portas da Cidade, e percorria a avenida Infante D. Henrique, e lá longe me era dado avistar, entre as brumas, todas aquelas penedias em direção ao Salto do Cavalo, se não era bem assim eu imaginava. Pois aqui me detive para recordar doces lembranças de há 55 anos atrás.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fala de um dos mais escabrosos ditadores africanos, Idi Amin, e da tragédia do Ruanda. Desta, recordo-me perfeitamente, trouxe-me a convicção absoluta que naquele ano de 1994 eu já estava a viver, na plenitude, a civilização do espetáculo, mediada por talk shows, reality shows, arraiais de futilidades, mexeriquices, a morte em direto. Tinha ido fazer uma pós-graduação na Universidade de Lovaina a Nova, enquanto comíamos, tanto ao almoço como ao jantar, os ecrãs exibiam filas intermináveis de seres humanos em fuga, tudo sem comentários. Ninguém conversava enquanto levava à comida à boca, a olhar os tais caminhantes exaustos, esqueletos em movimento, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados e submissos, como os descreve Ryszard Kapuscinski. Talvez por pudor, o eminente jornalista polaco não revela que os esqueletos por vezes se transformavam em cadáveres, e era assim que partilhávamos a morte em direto, em estradas em direção ao Zaire.

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2)

Beja Santos

Em “Ébano”, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, escreve este magistral jornalista a propósito de Idi Amin: “É o ditador mais conhecido em toda a História da África moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo”. É preciso entender a identidade do monstro, e o autor é minucioso a descrever o seu percurso até se tornar, graças às promoções dos ingleses, general. Chega ao poder por golpe de Estado acompanhado de massacre, criam-se câmaras de tortura. Um mês depois do golpe, Amin autonomeou-se presidente, depois marechal, depois marechal de campo e, por último, tornou este título vitalício. Oiçamos Kapuscinski: “O carro em que se deslocava era escolhido em função do uniforme que envergava. Ao uniforme de gala correspondia o Mercedes preto, ao fato de treino para um passeio o Maserati, e ao uniforme de campo um Range Rover do Exército. Este último carro parecia um automóvel saído de um filme de ficção-científica: estava equipado com uma verdadeira floresta de antenas, arames de todos os tipos, tubos, faróis. No interior carregava granadas, pistolas e facas. Era um ditador que não confiava em ninguém, dormia cada noite em paradeiros diferentes. Era ele que entrava em contato com os seus ajudantes, era ele que decidia com quem falava, quem queria ver. Quando queria dar a conhecer remodelações no Governo transmitia-as via rádio. O seu poder era monopolístico, a comunicação centrava-se nele”.

E assim finda este currículo nefasto: “O domínio de Amin durou oito anos. De acordo com diversas fontes, o marechal terá assassinado durante a sua vida entre 150 mil a 300 mil pessoas. Depois foi ele quem se conduziu a si próprio para o abismo. Uma das suas obsessões era o ódio ao presidente da vizinha Tanzânia, Julius Nyerere. Em finais de 1978, atacou aquele país. O exército da Tanzânia reagiu. Os soldados de Nyerere invadiram o Uganda. Amin fugiu para a Líbia, depois instalou-se na Arábia Saudita, que o recompensou pelo seu esforço de divulgação do Islão. O exército de Amin desfez-se uma parte voltou para casa, a outra parte a viver de assaltos. Nessa guerra, o que perdeu o exército da Tanzânia: um tanque”. E Kapuscinski elenca o drama desse Uganda flagelado por ditadores e guerras tribais.

Não menos impressionante é o que ele escreve sobre o Ruanda, onde em 1994 ocorreu um monstruoso genocídio. Tenha-se em conta a descrição do jornalista:
“O Ruanda é um país montanhoso. Embora o continente africano se caracterize mais pelas planícies e pelos planaltos, no Ruanda predominam as montanhas. Algumas atingem os 2,3 mil metros de altitude e até mais. É por isso que, muitas vezes, se faz referência a este país como sendo o Tibete de África. Enquanto as populações dos estados africanos são geralmente compostas por membros de diversas tribos (no Congo, vivem 300 tribos, na Nigéria 250), no Ruanda existe apenas uma comunidade, a nação dos banyaruandas, dividida tradicionalmente em três castas: a casta dos proprietários das manadas de vacas – os tutsis (14% da população) –, a casta dos camponeses – os hutus (85%) – e a casta dos servos e criados – os twas (1%). Este sistema de castas (com algumas analogias em relação à Índia foi criado há séculos, mas é ainda hoje controversa a sua origem. Discute-se se terá sido no século XII ou XV, porque não existem fontes escritas sobre esta matéria”.

Era uma colónia pouco apetecível, o Ruanda tinha sido atribuído à Alemanha, facto que os ruandeses ignoraram, e os alemães nunca manifestaram grande interesse por esta colónia que passou para as mãos da Bélgica, depois da II Guerra Mundial, que também não mostrou muito entusiasmo, visto que o Ruanda ficava longe da costa e era na época um país pobre em matérias-primas. Por todas estas circunstâncias, o sistema social secular dos banyaruandas manteve-se intato até à segunda metade do século XX. Os ruandeses eram governados por um monarca, a vaca servia de medida para tudo, os tutsis eram proprietários de manadas por serem uma casta dominante, e os hutus formavam a casta dos camponeses. O autor explica o relacionamento interétnico: “Entre tutsis e hutus existiam relações de vassalagem; o tutsi tinha ascendente sobre o hutus, seu criado. Os hutus eram a clientelados tutsis. Eram camponeses que viviam do cultivo das terras. Uma parte das colheitas era entregue ao senhor, que os protegia e lhes dava uma vaca. Tudo como no feudalismo”. Em meados do século XX, vai crescendo a natureza do conflito, ambas as etnias precisam de terra, precisam de mais espaço e o país tem dimensões diminutas. Em 1959 rebenta no Ruanda uma revolta de camponeses que culminou com a destituição do rei, a gironda e o terror.

“Multidões de camponeses, massas de hutus libertados avançam armados com catanas, picaretas e lanças contra os seus senhores e mestres, os tutsis. Dá-se um enorme massacre, a que há muito já não se assistia em África, incendeiam-se propriedades, cortam-se cabeças. Fugiram dezenas de milhares de tutsis e os camponeses hutus tomaram o poder. Depois destes acontecimentos, a nação ficou dividida em dois campos inimigos. Os tutsis planeiam vingança, em 1963 atacam a partir do Sul, do vizinho Burundi. Dois anos mais tarde, dá-se uma nova invasão dos tutsis, segue-se um enorme massacre contra os tutsis pelo exército dos hutus. Há quem diga que 50 mil tutsis foram eliminados pelos hutus". Mas ao lado está o Burundi e Kapuscinski descreve alterações no regime político, e também no Uganda, onde se estava a formar um exército experiente de tutsis desejosos de vingança. Na noite de 30 de setembro de 1990, saem dos quarteis do exército ugandês e entram no Ruanda ao romper da aurora. Vai começar o genocídio, a França intrometeu-se, mandou paraquedistas, o país parecia dividido, era um estranhíssimo compasso de espera. Os estados africanos forçaram o entendimento entre o governo legítimo e a guerrilha, a Frente Nacional do Ruanda. Em abril de 1994 é abatido, não se sabe bem por quem, um avião que se fazia à pista do aeroporto de Kigali, a capital, onde vinha o presidente. Foi o sinal para o início do massacre dos opositores do regime. Estima-se entre meio e um milhão de mortos, uma chacina sistemática durante três meses. “A maioria das pessoas não morreu por causa das bombas e das metralhadoras, mas atacada por armas muito primitivas – catanas, martelos, lanças e paus; morreu espancada e triturada”.

E as multidões puseram-se em fuga, tornaram-se um acontecimento televisivo. E as observações de Kapuscinski terminam num elevado grau de acidez:
“Enquanto durante o nacional-socialismo e o estalinismo eram os membros de instituições especiais – SS ou NKVD – que matavam, e os crimes cometidos por estas brigadas eram cometidos longe dos olhares indiscretos, no Ruanda era importante que todos matassem, que o crime se tornasse produto de uma revolta popular maciça, quase espontânea, para que não restasse alguém que não tivesse as mãos manchadas de sangue daqueles que eram tidos como inimigos do regime. Os hutus fugiram depois de serem derrotados para o Zaire. As pessoas na Europa, que viam as intermináveis colunas de pessoas, não conseguiam perceber que força era aquela que movia estes caminhantes exaustos, o que é que ordenava àqueles esqueletos que estivessem em constante movimento, em longas e densas filas, sem parar, sem comer nem beber, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados, submissos e medindo com o seu olhar vazio o caminho-fantasma de culpa e dor”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23381: Convívios (934): 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): Caldas da Rainha, 28/5/2022: Fotos - Parte I (José Fernando Almeida)



Foto nº 1 > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) > Grupo só de ex-combatentes:

Sentados da direita para a esquerda; José Carlos Lopes (BCAÇ 2852); Fernando Sousa (CCAÇ 12); A. Adão (BCAÇ 2852); Beja Santos (Pel Caç Nat 52); João Ramos (CCAÇ 12); Humberto .Reis (CCAÇ 12); Fernando Oliveira (BCAÇ 2852); António F. Marques (CCAÇ 12); Luís Sousa (CCAÇ 12).

De pé; Otacílio Henriques (BCAÇ 2852); Silvino Carvalhal (BCAÇ 2852); Manuel Ferreira (CCAÇ 12); José Mourão (BCAÇ 2852); Joaquim Fernandes (CCAÇ 12); João Crisóstomo (CCAÇ 1439); Manuel Almeida (CCAÇ 12): "Mafra" (CCAÇ 1439); Bernardo Valente (BCAÇ 2852); Carlos Teixeira (BCAÇ 2852, Pelotão Daimler); Monteiro Valente (CCAÇ 12); Fernando Resende (BCAÇ 2852); Fernando Almeida (CCAÇ 12); Carlos Henriques (BCAÇ 2852); Virgílio Encarnação (CCAÇ 12); Francisco Patronilho (CCAÇ12); António Damas Murta (CCAÇ 1); Adelino Fernandes (BCAÇ 2852).


Foto nº 1A > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) > Grupo só de ex-combatentes (detalhe)... Recomheço, de imediato, na fila de pé, em 6º lugar, o José Fernando Almeida, e na ponta esquerda (11º), o Manuel Calhandra Leitão, o "Mafra, organizador do último encontro do pessoal da CCAÇ 1439, na Ericeira, em 18/5/2019. Em baixo, da esquerda para a direita, sentados, o Sousa (que veio do Funchal), seguido  do Antóno Marques (Cascais) e, em 4º lugar, o Humberto Reis (Alfragide), todos da CCAÇ 12. (Vd. legenda da Foto nº 1.)


Foto nº 1B > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) > Grupo só de ex-combatentes (detalhe)... Reconheço, de imediato, na fila de pé, logo à esquerda, o João Crisóstomo; e em baixo, sentados, o Mário Beja Santos (Pel Caç Nat 52) e e, em terceiro lugar, o Fernando Andrade Sousa (CCAÇ 12).  Dizem que o Fernando, o nosso valoroso  1º cabo aux enf, e que vive na Trofa, é totalistas dos 26 convívios até agora realizados. (Vd. legenda da Foto nº 1.)


Foto nº 2 > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) >  Todo o grupo de participantes, ex-combatentes, familiares e amigos (1)


Foto nº 2 A> Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) >  Todo o grupo de participantes, ex-combatentes, familiares e amigos (detalhe)


Foto nº 2 B> Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) >  Todo o grupo de participantes, ex-combatentes, familiares e amigos (detalhe)


Foto nº  3 > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) > Missa na Ermida de São Sebastião... Adjacente à Praça da República (também conhecida como a praça da fruta), é uma capela do séc. XVI, revestida, interiormente, de magníficos painéis setecentistas. Está classificada como imóvel de interesse público.


Foto nº  4 > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) >  O José Fernando Almeida, a Vilma e o João Crisóstomo.


Foto nº  5 > Caldas da Rainha > 28 de maio de 2022 > 26º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) + CCAÇ 1439  (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) >  O  Mário Beja Santos.

Fotos (e legendas): © José Fernando Almeia  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Fotos enviadas em 7 do corrente pelo José Fernando Almeida, o organizador do 26º Convivio do Pessoal de Bambadicna (1968/1), ex-fur mil trms, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (1969/71), a viver em Óbidos. 

O convívio, que se realizou no passado dia 28 de maio, nas Caldas da Rainha (*), reuniu mais de 7 dezenas de participantes, entre ex-combatentes, familiares e amigos. Estiveram presentes representantes da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) e Pel Caç Nat 52 (1968/70), entre outras subunidades que estiveram em Bambadinca nesse tempo (por ex., Pel Mort 2206 e 2268; Pel Rec Daimler 2046 e 2206)... Por iniciativa do João Crisóstomo, juntaram-se também a este convívio algumas camaradas da madeirense CCAÇ 1439 (1965/67).

O próximo encontro do pessoal de Bambadinca (1968/71), o 27º convívio, será em Coimbra e será organizado pelo António Damas Murta  (ex-1º cabo cripto, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).



Bonito puzzle de brazões de unidades e subunidades que passaram por Bambadinca (Setor L1 da Zona Leste) entre meados de 1968 e meados de 1971. Composição do nosso editor Eduardo Magalhães Ribeiro.

Parabéns aos organizadores destes eventos, pela sua dedicação, generosidade  e camaradagem. De destacar que o José Fernando Almeida e o Fernando Andrade Sousa já realizaram mais do que um encontro (o Almeida já vai em três, nas Caldas da Rainha). E que o António Damas Murta vai também realizar o segundo (de novo em Coimbra, onde reside; um abraço especial para ele que ficou recentemente viúvo). (LG)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


17 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23087: Convívios (921): XXVI Convívio do Pessoal de Bambadinca, 1968/71: Caldas da Rainha, sábado, 28 de maio de 2022 (José Fernando Almeida, ex-fur mil trms, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 1969/71)

(**) Último poste da série > 21 de junho de  2022 > Guiné 61/74 - P23376: Convívios (933): Rescaldo do XVI Almoço/Convívio do pessoal da CART 1742 - "Os Panteras", levado a efeito no passado dia 18 de Junho, em Moreira da Maia (Abel Santos, ex-Sold At Art)

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23380: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte X: A "guerra do cimento"


1. Mensagem do nosso camarada e amigo, João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez1967/fev1971)

Data - terça, 10/05/2922, 18:41
Assunto -  A minha história no BENH 447
 
Boa tarde,

Caro Luís, espero que tudo bem contigo.
Com um final e principio de anos tristes, primeiro por falecimento de minha Mãe, depois de um seu irmão, meu tio aí da Lourinhã, e depois da avó da minha nora. E do covid que atacou o meu netinho. Felizmente ele recuperou.

No entanto todos os dias tenho lido o blog. Recordado bastante e, ficando mais informado e mais culto.

Hoje a "reboque" de um dos últimos posts do Ex-Capitão Magro  (*)  resolvi mandar um texto. Se achares algum interesse,  publica antes do almoço do BENG 447 de 24 de Junho (**) , senão tudo bem.

Um abraço
João Rodrigues Lobo




A minha história no BENG 447

por João Rodrigues Lobo


Na sequência do post do ex-capitão “Magro” (*), relembro que, como comandante do PTE do BENG 447 nos anos de 1969 e 1970, fui o responsável pelos transportes de e para o BENG.

De salientar que, durante estes dois anos, contei com todo o apoio do Comando do Batalhão, nomeadamente. Ten-Coronel Bernardino Pires Pombo, Major Diogo da Silva e Major/Ten-Coronel João António Lopes da Conceição (Foi por escolha de Spinola como Major e lá graduado em Ten-Coronel) e Major Santos Maia.

Fui em rendição individual em Dezembro de 1968 e saí em Janeiro de 1971, não tendo conhecido quer o meu antecessor quer o meu sucessor. Gostava de os conhecer e trocar impressões, embora não saiba sequer os seus nomes.

Encontrei no P.TE  uma “equipa” de dois Sargentos do quadro e quatro Furriéis milicianos. Bem como cerca de noventa condutores-auto, com cerca de metade guineenses e outra metade “continentais”. Todos aregaçavam as mangas e cumpriam as suas missões. Nunca deixarei de dar o mérito que merecem aos Condutores-Auto, nestes teatros de operações em que por vezes injustamente tendem a ser esquecidos.

Como já referi o P.TE recebia, conferia e transportava todo o material que se destinava ao BENG desembarcado dos navios mercantes, no cais novo, vindos do Continente, e conferia, transportava e expedia, no Pigiguiti, pelas LDM e LDG da Marinha, e por coluna auto, para a Guiné. De salientar a excelente cooperação com a Marinha.

Dito isto, cheguei, ao BENG,  aparecendo num jeep do QG que lá me levou, pois pedi boleia, casual,a um condutor que tinha ido a Bissalanca, e que me deixou á porta do QG com a mala, onde o oficial de dia após várias diligências lá descobriu o meu destino, pois quando aterrei em Bissalanca ninguém me esperava nem eu sabia qual a unidade do meu destino (nem o BENG de mim sabia). Aliás estive cerca de uma semana em Cabo Verde a aguardar avião militar, pois tinha ido para lá também de avião
militar de Angola.

Fui então recebido e colocado no PTE. Tendo então começado a aperceber-me e a tomar conta da situação, o que gradualmente, com o strees operacional de um periquito que era, fui organizando o modo de trabalhar, racionalizando o uso de recuros humanos e viaturas disponiveis para a exigência dos vários transportes a realizar, com a pressão acrescida da prioridade aos Reordenamentos dada pelo Comandante Chefe e necessidades das obras nas estradas e aquartelamentos.

Nos primeiros dias, e com os transportes em curso sem parar, solicitei a lista completa dos Homens adstritos ao Pelotão, mapeando a localização de todos os condutores-auto. (com um episódio caricato que já contei no blog). Solicitei a listagem completa de todas as viaturas existentes (de todos os tipos, desde Jeep, plataformas de Transporte de Máquinas Henschel, de carga Mercedes, autotanques, de transporte de pessoal, Unimogs,Volksvagen, Land Rover e outras, e até o monstro gigante de aço Continental que só o grande condutor Simão conduzia! 

Com a colaboração das Oficinas auto e Tenentes Geraldes e Garcia. (Com ele numa foto no blog). Conferi a distribuição das viaturas pelos condutores, que actualizei, quais as viaturas inoperacionais ou paradas por avaria, quais os condutores eventualmente sem viatura, ou no desempenho de outras funções. Isto foi feito em prazo “util”.

Depois a operacionalidade: Avaliação da distribuição das viaturas, sua redistribuição perante as necessidades, Tendo em atenção que poderiam ser insuficientes para o tranporte do cimento dos
navios, para o qual solicitávamos ao Quartel General o aluguer de viaturas civis para esse transporte sempre que se justificava. (frequentemente devido ás várias solicitações de transporte para as obras).

A redistribuição fez-se com sucesso, e a falta de viaturas passou a não se fazer muito notada. Para as obras e deslocações locais foram sempre encontradas soluções e para as descargas e transporte de cimento reduziu-se ao minimo estritamente necessário o uso de viaturas civis fornecidas pelo QG (que mesmo assim eram muitas). 

Felizmente o mais “complicado” foi a redistribuição dos Jeep, pois todos os ilustres capitães precisavam de transporte para acompanhamento de obras e deslocações várias. Mas com apenas alguns pequenos “atritos” lá se convenceram perder o Jeep exlusivo e a requisitar o Jeep quando fosse preciso. Só alguns não gostaram que um Alferes tivesse o “seu” Jeep sempre disponivel, dia e noite, mas, como era mesmo necessário que eu acompanhasse sempre os movimentos e operações nos cais e era eu que o conduzia, lá me foram aturando. Bem-hajam.

Aqui chegados, e começando pelos materiais a receber nos armazéns do porto, sabia que os volumes e caixotes de Engenharia vinham todos sinalizados com um circulo vermelho e preto, também me apercebi da falta de alguns que deveriam ter chegado e não os encontrávamos. E, de outros que esperavam por “papelada” para sair do porto e que demoravam dias parados nesses armazéns. Era impensável a falta e o atrazo.

Consegui que uma vez descarregados e estando no Armazém, com ou sem “papelada” fossem listados e imediatamente transportados para o BENG, eu próprio com os Furriéis milicianos nos encarregámos dessa tarefa. O que resultou e poucos mais se “perderam” nesse período. 

Depois o cimento ! Assitindo á primeiras descargas, (entre 60.000 e 100.000 sacos cada), fiquei estupefacto com o cimento de que perdia, pois ao ler os autos de recepção sancionados pelo QG e, os que eu tinha de conferir, davam uma quebra de cimento entre 5% e 10% conforme a descarga. (A quebra seria dos sacos que se romperiam durante a manipulação no navio, do navio para o cais, do cais para as viaturas e das viaturas para o depósito do BENG. )

10% ou mesmo 5% de quebra era uma montanha de cimento. Das duas três, ou ficava no porão do navio e voltava para o continente ou caía no cais, onde seria dificil circular,e iria parar á água e o navio encalhava.!!!

De notar que juntamente com o cimento “militar” também vinha cimento importado pelos grandes comerciantes civis, nos mesmos navios.

Com a minha cabeça a trabalhar, e andando permanentemente no meu Jeep durante as descargas, percorrendo Bissau e os trajetos para o Batalhão descobri “coisas” interessantes. Algumas vou contar: Razão das quebras reais; O manuseamento dos sacos de papel do cimento. No porão colocavam-se os sacos nas lingadas que eram descarregadas no cais, os sacos eram transportados para zona própria e aqui manuseadas para um empilhamento, sendo depois manuseados para carregar as viaturas.
Perdia-se mesmo muito cimento, mas 10% ???.

Primeira acção: Escala de serviço com a permanência nos cais, em todas as descargas e algumas cargas ,de um Furriel Miliciano e um condutor-auto com Jeep. Estes Furriéis Mil, por quase imposição minha, foram dispensados pelo Comandante de prestar serviços de sargento de dia e de prevenção do Batalhão enquanto as descargas ou cargas durassem. Como os movimentos eram práticamente continuos, alguns Furriéis Mil poucos serviços fizeram, o que deu algum “atrito” com os Sargentos do Quadro, mas
sem hipóteses para estes, pois os resultados da acção começaram a ser evidentes.

As viaturas encostavam ao navio e as lingadas iam directamente para estas. Que grande diferença. E então o tempo poupado logo na carga das viaturas foi notório. Mesmo assim a quebra continuava grande e, a vinda do cimento ainda demorava, bom, como o calor era muito, nas minhas voltas encontrei viaturas civis, que trabalhavam á hora, encostadas a descansar á sombra em percursos alternativos. Também me chegou ás orelhas que algumas paravam para “conversar” nalgumas obras civis em curso. 

Como também havia descarga de cimento para firmas civis, por vezes simultaneamente, foi dificil perceber se essas viaturas eram dessas firmas ou nossas. (tendo acabado com uma dessas conversas, ainda um “sacana” da Pide que era empregado num restaurante local, me tentou demover com um falso facto por ele criado para me chantagear, mas teve azar e ficou bem caladinho depois). 

Acção: Mandei comprar cartolina amarela e recortámos castelos de Engenharia, com cerca de 40 cms de altura que colávamos no lado direito do parabrisas. Tiro certeiro, não mais as encontrei a descansar.

Acção: as viaturas eram registadas com a hora de saída do cais e registada a hora da sua entrada no Batalhão na porta de armas (o que nunca tinha sido feito antes).

Acção: Verifiquei também que era dificil ir acompanhando o volume da descarga, quanto tinha
sido desembarcado e quanto faltava, pois a quantidade de sacos variava por viatura,.

Acção: Cada viatura, independentemente da capacidade apenas transportava 100 sacos. (Aqui ainda me “chatearam” porque perdia capacidade de carga de algumas maiores).

Quando por necessidade e possibilidade utilizámos as plataformas estas só traziam 400 sacos. Assim o controle bastava ser por viatura e já não era preciso contar os sacos á chegada ao depósito.

Controlo total. Muitas horas de aluguer poupadas. Menos viaturas civis contratadas. As viaturas eram contratadas pelo QG mas havia uma muito interessante, que fazia sempre um bom serviço e era sempre contratada. ( De quem seria?, mas tudo legal, e não não era minha, um abraço para Tondela). Maior rapidez na descarga e recepção no depósito do Batalhão.

E, imprevisto: Os autos de recepção deixaram de mencionar quebras!

Mais ainda, O BENG 447 começou a ter mais cimento do que lhe era destinado ! Porquê?
Eis o segredo, com a devida vénia e, se algum dos intervenientes estiver a ver, as minhas desculpas.
Realmente ainda ficava bastante cimento no porão do navio dos sacos que se rompiam(e já não no cais devido á descarga direta).

Pedi, no que fui atendido, na carpintaria do Batalhão, que me fizessem umas caixas de madeira com 1 m3  de capacidade com 4 mosquetões na parte de cima aberta. E, no fim da descarga dos sacos, os “estivadores” enchiam, à pazada, as caixas que eram enviadas para o nosso depósito. Ora como as firmas civis que também importavam cimento não se podiam dar a esse luxo... Sem nossa intenção, o cimento dos sacos deles que se tinham rompido misturava-se com o nosso...

No fim de uma dessas maravilhosas descargas ainda tive a visita no Batalhão de um senhor importante do comércio local que me acusou de trazer cimento dele. Educadamente o acompanhei ao depósito onde lhe disse que todos os sacos com a sua marca que eventualmente encontrasse os poderia levar, assumindo eu a culpa de os ter indevidamnete trazido. É óbvio que não encontrou nenhum, o cimento a granel não tinha marca... E, já não muito educadamente, o acompanhei á saída do Batalhão.

Não posso esquecer como todos colocámos o grande espaço do PTE o seu parque de viaturas e suas instalações bem limpas e arranjadas, até com alguma sinalização!

Este poste já vai longo e, em breve, tentarei enviar outro a relatar mais episódios que agora relembrados possam ter algum interesse nostálgico após mais de 50 anos.

E, camaradas daqueles tempos no BENG 447, apareçam no próximo almoço, para trocarmos impressões sobre o que esrevi acima e mais que nos ainda lembramos. (***)
__________

Notas do editior:

(*) Vd. poste de 10 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco

(**) Vd. postes  de:

6 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23147: Convívios (922): XXXVII Encontro Nacional dos Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá/Bissau/Guiné, a ter lugar no dia 25 de Junho de 2022 na Tornada/Caldas da Rainha (Lima Ferreira, ex-Fur Mil)

(***) Último poste da série > 8 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22790: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte IX: Qual a razão da minha ida da RMA para o CTIG ? Duas histórias... A autorização, anual, passada pela PIDE para poder entrar a bordo dos navios no porto de Bissau, e o "motorista" protegido do capitão da Polícia Militar......

Guiné 61/74 - P23379: Tabanca Grande (535): Ramiro Alves de Carvalho Figueira, ex-Alf Mil Op Esp da 2.ª CART/BART 6520/72 (Nova Sintra, 1972/74). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 863

O médico Ramiro Alves de Carvalho Figueira


1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Ramiro Alves de Carvalho Figueira, médico na situação de reforma, ex-Alf Mil Op Especiais da 2.ª CART/BART 6520/72 (Nova Sintra, 1972/74), com data de 21 de Junho de 2022:

Boa tarde. Chamo-me Ramiro Alves de Carvalho Figueira, fui alferes de Operações Especiais na 2.ª CART do BART 6520/72 em Nova Sintra entre Julho de 72 e Julho de 74.

Sou médico já reformado, embora continue com alguma actividade, um médico reformar-se totalmente não é muito fácil…

Chegámos a Bissau em 23.06.1972, partimos para Bolama onde fizemos a IAO. Nesta altura, com duas semanas de Guiné, no batalhão aconteceu logo a morte de dois camaradas na carreira de tiro, o oficial de tiro (Alferes Carlos Figueiredo, também de Operações Especiais) e um soldado de que não me recordo o nome que pertencia a uma companhia independente que foi depois para Mampatá, ambos vitimados pelo manuseamento de um dilagrama em circunstâncias que não foram muito esclarecidas e também pouco importa agora.[1]

O comandante do batalhão “ofereceu-me” a prenda de ser eu a substituir o Figueiredo na carreira de tiro, onde estive durante toda a IAO. O Carlos Figueiredo era um companheiro desde os tempos de Lamego, fomos depois os dois colocados em Penafiel para formar batalhão e embarcámos para a Guiné, era um bom amigo e a morte dele foi duramente sentida, quer por mim quer por todos, especialmente os outros alferes que vieram de Lamego. O Carlos Barros se não me engano tem uma das histórias dele dedicadas a este triste episódio.[2]
O Alf Mil Op Esp Ramiro Figueira durante as filmagens das mensagens de Natal em 1973

Partimos depois para Nova Sintra, um aquartelamento meio perdido nos confins do sector de Tite, na ponta sul do Quínara que mais não era que um pequeno quadrado de arame farpado com cerca de 100m de lado rodeado de mato. Fomos recebidos pelos “velhinhos” com as habituais praxadelas (mas muito bem recebidos) e quinze dias depois a companhia assumiu o sector. Iniciámos a actividade operacional com patrulhamentos e logo, creio que em Setembro, num desses patrulhamentos um mina vitimou um dos alferes da companhia, o João Neves, natural de Avis, e feriu o guia Bunca Turé. Para início de comissão começávamos bem…
Vista aérea de Nova Sintra

A actividade operacional prosseguiu, com o ânimo que todos por aqui bem conhecem, e no mês de Outubro tive o meu primeiro contacto com o PAIGC. Durante um patrulhamento a uma tabanca abandonada, Aldeia Nova, o homem da bazuca, de seu nome Ribeiro pisou uma “viúva negra” e ficou de imediato sem uma perna. Seguiu-se a confusão e o medo, que todos também bem conhecem, socorremos o homem o melhor que foi possível e veio o helicóptero ali à bolanha fazer a evacuação. Logo que o heli descolou rumo a Bissau, começámos a levar pancada, trocaram-se tiros e morteirada que felizmente não maltratou ninguém do nosso lado e regressámos ao quartel sem mais percalços, já não era pouco…

A saga de Nova Sintra prosseguiu e no final de 1972 (cerca de Novembro) novo encontro com o PAIGC. Desta vez saíamos na direcção do local onde habitualmente nos bombardeavam, um local ligeiramente mais alto chamado Serra Leoa, e percorridos cerca de 100 a 200 metro do quartel demos de caras com um pequeno grupo que, aparentemente, se preparava para montar uma base de fogos para atacar o quartel. Armou-se uma enorme confusão e comunicando ao capitão o acontecido este decidiu chamar a Força Aérea e de repente vimo-nos sobrevoados por dois FIAT que lançavam foguetes e metralhavam por todo o lado a que se seguiu o helicanhão (o celebre Lobo Mau) que parecia perseguir alguma coisa capim fora aos tiros. Um espectáculo magnífico e terrivelmente assustador. O regresso ao quartel fez-se sem qualquer problema. Tínhamos ainda não seis meses e a coisa parecia compor-se…

Pouco depois vim de férias à Metrópole e voltei a Bissau penso que no dia 6 de Dezembro de 1972 e mal chego à messe a primeira coisa que me dizem foi “Então o teu aquartelamento levou porrada séria esta noite”, andei às voltas a tentar saber o que se tinha passado e fiquei a saber que três furriéis tinham ficado gravemente feridos num ataque ao quartel e tinha havido um morto. Fui logo para o HMBIS na tentativa de saber notícias, mas só consegui ver um dos furriéis e mesmo assim tinha sido operado e estava sedado pelo que só o pude ver, mas não falar. Os outros ainda estavam no bloco operatório. De regresso a Nova Sintra fiquei então a saber que tinham os três sido feridos quando fugiam da cantina, ao perceber-se do ataque, e o morto era um soldado do 4.º Grupo de que só conhecia a alcunha, o “Russo”. O moral no aquartelamento era deplorável. As descrições que me fizeram daquela noite eram simplesmente aterradoras, incluído a visita de uma alta patente do Comando-Chefe (cujo nome não recordo) logo no dia seguinte ao malfadado ataque, em que reuniu as tropas para arengar às massas com apelos ao patriotismo e grandes promessas (que nunca se cumpriram) da vinda de material de construção e arcas frigoríficas e mais não sei o quê…

O ano de 1973 trouxe-nos a ausência temporária (e depois permanente) do nosso capitão, o Armando Cirne, que acabou por ficar em Bissau. Só estávamos dois alferes na companhia, eu e o meu bom amigo Garcia, o alferes do 4.º Grupo, o Neves, tinha morrido logo no início e o 3.º Grupo estava destacado em GãPará, sendo eu o mais antigo fiquei a comandar, aguardando a chegada de um novo capitão. Foi um período relativamente calmo, continuou a actividade operacional e fomos sofrendo alguns ataques que, estranhamente, começavam a tornar-se uma rotina doentia. Ao fim de alguns meses lá chegou o novo capitão. Homem do quadro permanente de seu nome Campante de Carvalho, capitão de artilharia. Teve uma estadia curta em Nova Sintra, penso que cerca de dois ou três meses e acabou transferido para o QG em Bissau. Mesmo assim não se livrou de pelo menos um ataque violento em que caiu uma granada em cima de um poste de sustentação da caserna do 2.º Grupo de combate sem consequências. Novamente fico a comandar a companhia a aguardar novo capitão. Chegou um novo alferes para o 4.º Grupo e quase logo a seguir o Garcia é destacado para as companhias africanas e colocado em S. João, junto a Bolama, foi depois enviado para Guidaje onde passou pelas chamas do inferno que ali se viveu, voltando nós a ficar só com dois alferes. Passaram alguns meses e novo capitão chega a Nova Sintra, desta vez um capitão miliciano de seu nome Machado, homem do Porto.

Os dias iam passando de patrulha em patrulha que iam entremeando com alguns ataques e uma actividade que se repetia, penso que de dois em dois meses, que era o reabastecimento no, pomposamente chamado, porto de Lala. Ficava a cerca de 5 – 6 quilómetros de Nova Sintra e a descarga das caixas, sacos, bidons e mais sei lá o quê era feita à mão com água pelo peito. O reabastecimento implicava picagem da estrada, segurança e com o tempo contado. Se não se fizesse durante a maré cheia as LDM e as canoas iam embora ou então teríamos de ficar a fazer segurança toda a noite até que apanhassem calado para zarpar, apesar de tudo eram umas horas de descompressão e sempre dava para tomar uma banhoca.

Reabastecimento em Lala

Neste ano de 1973 chegou ao aquartelamento um novo alferes para comandar o 2.º Grupo substituindo do Garcia, o Felício, homem de Castro Daire que já tinha cumprido parte da comissão no Ingoré, bom amigo. Foi nesse ano que surgiu a necessidade de abrir novo poço para o abastecimento de água potável. Para isso foi necessário abrir a estrada Nova Sintra - S. João para transportar o material e pessoal que ia tratar do dito poço o que significou dias e noites de segurança, de ficar de emboscada de caminhadas sem fim. Ao mesmo tempo o novo comandante do batalhão em Tite, o Tenente-Coronel Almeida Mira, decidiu que se deveria abrir a estrada Tite – Nova Sintra o que duplicou os trabalhos do pessoal. Entretanto nova evolução nos alferes. O Felício terminou a comissão e vem novo alferes para o seu lugar, bem como um outro para o 3.º Grupo, o Domingues. O 3.º Grupo que tinha estado destacado em GãPará regressou a Nova Sintra, era furriel deste grupo o Carlos Barros que tem escrito algumas histórias no blog. A abertura da estrada para Tite trouxe ainda mais riscos e, como seria de esperar, começaram a acontecer mortos e feridos. No meu grupo um dos picadores, o Guedes, fez rebentar uma mina antipessoal e foi atingido na cara tendo ficado parcialmente cego. Foi um tempo terrível o que levou a abertura desta estrada onde para além do Guedes não houve mais nenhuma baixa na nossa companhia felizmente.

Muita coisa aconteceu durante esse ano de 1973 e seria fastidioso enumerar tudo, no entanto não poderia deixar de referir o período a partir de Março em que começamos a deixar de ter apoio da Força Aérea, os Strela tinham entrado na Guiné e o PAIGC fazia bom uso deles.

Depois disto passou o tempo e chegámos a Abril de 1974. As coisas acalmaram e depois pararam. A guerra tinha acabado assim de repente, até custava a acreditar. Em Julho de 74 recebemos um grupo grande de guerrilheiros, comandados pelo major (pelo menos dizia que era…) Quinto Cabi, todos armados até aos dentes. Dormimos uma noite em Nova Sintra com os guerrilheiros e partimos para Tite, depois no mesmo dia Enxudé, Bissau, Cumeré e finalmente o voo Bissalanca – Lisboa.

E fica alinhavada a minha passagem pela Guiné, com o andar das coisas escreverei mais alguma coisa.

Abraço
Ramiro Figueir
a

Fotos: © Ex-Alf Mil Op Esp Ramiro Figueira - Todos os direitos reservados


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2. Comentário do coeditor

Caro Ramiro Figueira, sê bem-vindo à tertúlia do nosso Blogue.

Muito obrigado pela tua apresentação, que nos trouxe uma panorâmica muito precisa, embora resumida, da actividade da tua Companhia. Na verdade não foi fácil para a maioria de nós cumprir a sua comissão de serviço e no vosso caso foi um osso duro de roer. Referes as habituais e sempre inoportunas substituições de capitães e alferes. Na minha Companhia, um alferes, falecido em combate, teve dois substitutos; capitães, comandantes de Companhia, tivemos 6. Em todas as Unidades, enquanto isso, os alferes assumiam o Comando das Companhias e os furriéis comandavam Pelotões. No teu tempo já quase não se encontrava um capitão do QP no comando das Companhias, eram os milicianos, feitos capitães à pressa, a assumir a responsabilidade de comandar mais de 150 homens, tivessem ou não jeito para a guerra. Estou convencido que a maioria não tinha.


Voltando a ti, vens juntar-te ao grupo de Médicos existente na tertúlia, alguns mesmo antigos Alferes Médicos. Se não esquecer de nenhum, serão: o ex-Alf Mil Médico Adão Cruz, o ex-Alf Mil Médico Amaral Bernardo, o ex-Alf Mil Art C. Martins, o ex-Alf Mil Cav Ernestino Caniço, o ex-Alf Mil At Francisco Silva, o ex-Alf Mil Médico Mário Bravo e o ex-Alf Mil At Vítor Junqueira.

Lembro que estamos disponíveis para receber e publicar o que tiveres para nos contar da tua vivência na Guiné, incluindo fotos, que assim ficarão a fazer parte do nosso espólio. Será o nosso testemunho enquanto antigos combatentes.

Só por uma questão estatística, és o 863.º elemento da nossa tertúlia, que inclui 120 companheiros e amigos, que nos tendo já deixado, continuam cada dia mais presentes.

Deixo-te o habitual abraço de boas-vindas em nome do editor e fundador do Blogue, Luís Graça, dos coeditores, dos colaboradores permanentes e da tertúlia em geral.

Abraço
CV

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Notas do editor:

- [1] - A outra vítima mortal do acidente com o dilagrama, em 10 de Julho de 1972, foi o Soldado Atirador José António Mata da CART 6250/72

- [2] - Vd. poste de 5 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo


- Mensagem de 20 de Junho de 2022 do nosso camarada Ramiro Figueira, enviada ao Blogue através do Formulário de Contacto do Blogger:

Boa tarde
Chamo-me Ramiro Figueira. Fui alferes miliciano de Operações Especiais na 2.ª CART do BART 6520/72 e sempre em Nova Sintra, sector do Quínara, com oa comando do batalhão em Tite.
Tenho seguido o blog há anos e lendo os testemunhos que lá vão colocando, mas até agora não aderi.
E é por isso que aqui venho contactar convosco.
Um grande abraço
Ramiro Figueira


- Mensagem de resposta com data de 21 de Junho:

Caro camarada de armas Ramiro Figueira
Permite-me o tratamento por tu, usual no nosso Blogue pelo facto de sermos irmãos de armas e termos pisado a mesma terra vermelha da Guiné.
Muito obrigado pelo teu contacto e pela tua vontade de aderires à nossa tertúlia.

Do teu Batalhão temos alguns camaradas, e da tua Companhia, particularmente, o ex-Fur Mil Carlos Barros, com vários textos publicados. Podes ver aqui:

 https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Carlos%20Barros 
A fim de seres recebido formalmente na tertúlia, manda-nos uma foto actual e outra, fardado, do teu tempo de combatente. Podes, a título de apresentação, falar de ti, julgo teres sido atirador, contares-nos alguma história vivida na Guiné e enviar-nos algumas fotos alusivas, acompanhadas das respectivas legendas.

Sendo tu nosso leitor habitual, saberás que o blogue tem como fim o registo de memórias escritas e fotográficas dos antigos combatentes da Guiné, no entanto confere aqui "O ESSENCIAL SOBRE O BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ": (https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/p/o-essencial-sobre-o-blogue-luis-graca.html).

Fico ao teu dispor para alguma dúvida suscitada.

A tua correspondência deverá ser enviada simultaneamente para luis.graca.prof@gmail.com e para carlos.vinhal@gmail.com para teres a certeza de ser lida pelo Luís e por mim.
Recebe um abraço e os votos de boa saúde.
Carlos


- Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23249: Tabanca Grande (534): António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Bula e Pelundo, 1969/71). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 861

Vd. também poste de 18 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23275: (In)citações (206): Maria Ivone Reis (1940-2022), a primeira enfermeira paraquedista que eu conheci, em 1967, no Porto (Rosa Serra)

(...) Este depoimento (poste P5971) é um bom retrato do perfil humano e psicoprofissional da nossa saudosa Maria Ivone Reis. Aproveitamos, entretanto, para suprir um lamentável lapso nosso: o seu nome já há muito, desde 2009, deveria figurar na lista alfabatética dos membros da Tabanca Grande. E estávamos convencidos que sim, que lá figurava. Entra agora, a título póstumo, sob o nº 862. Saibamos honrar a sua memória. (...)

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23378: Historiografia da presença portuguesa em África (322): A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
A coleção Batalhas da História de Portugal teve grande notoriedade, para além das livrarias chegou a vender-se nos quiosques e papelarias, teve imensa procura, recebeu apoio da Academia Portuguesa de História e vários investigadores consagrados colaboraram ativamente nos diferentes livros. Um deles foi dedicado às campanhas coloniais, poder-se-á dizer que não traz grandes novidades mas é uma boa síntese divulgativa e permite uma leitura num contexto comparativo com as campanhas que decorreram em Angola (Cuamato, Dembos, Lunda, I Guerra Mundial), Moçambique (Campanhas da Zambézia e a luta contra os Bongas, Barué, Chire, Macequece, Campanhas do Sul do Save, Marracuene, Magul, Coolela, Chaimite, a Campanha de Gaza, até à pacificação do Angoche), depois temos um quadro dos acontecimentos na Índia e Macau até às campanhas e revoltas em Timor. Enfim, uma obra que merece ser apreciada num meritório trabalho de divulgação que infelizmente parece ter arrefecido, é público e notório o abrandamento de trabalhos em torno do Império Colonial Africano e mesmo do Império Português em geral.

Um abraço do
Mário



A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925)

Mário Beja Santos

A Coleção "Batalhas da História de Portugal" consagrou um volume às campanhas coloniais que ocorreram entre 1850 e 1925 em Angola, Moçambique, Guiné e Timor. O texto principal deste volume é da responsabilidade do Prof. Doutor António Ventura, QUIDNOVI, 2006. Como é compreensível, vamos cingir as nossas observações ao que o historiador refere sobre a Guiné.

Vejamos como ele introduz a problemática das campanhas na colónia:
“Na Guiné, desde a década de 40 do século XIX que se sucederam as sublevações e os confrontos entre diversas etnias locais, por um lado, e entre estas e as autoridades portuguesas, por outro. Em 1844, os Grumetes atacaram a Fortaleza de Bissau, que contava com um reduzido número de defensores. Em 1853, foi criado o cargo de Governador da Guiné, com residência em Bissau, ficando-lhe subordinado o governo da Praça de Cacheu. Nesse ano, ocorreu a sublevação dos Papéis, que atacaram Bissau, que só foi salva graças à intervenção de forças francesas: o brigue Palinure desembarcou um destacamento em socorro da Praça. A 9 de Outubro de 1856, Honório Barreto conseguiu forçar a submissão destes sublevados”.
No período posterior dá-se uma nova organização administrativa, a Guiné é constituída como um só concelho, fica subdividida em Praças e Presídios, sob a administração de um Governador chamado da Guiné Portuguesa, residente em Bissau, virá a ser a sede de um Distrito Administrativo Militar, na vila é também criada a Comarca Judicial. Os conflitos interétnicos agudizam-se: a guerra sangrenta de Fulas contra Mandingas e Beafadas, que se estenderá ao Forreá em 1866. Em 1871 eclode nova rebelião dos Grumetes de Bissau, durante a qual foi morto o Governador-interino do Distrito. Em 1878, os Felupes atacaram em Bolor uma força comandada pelo Tenente Calisto dos Santos, morrem dois oficiais e 50 soldados. O acontecimento tem grande repercussão em Lisboa, decide-se romper com a dependência de Cabo Verde e estabelece-se autonomia da Província, pela primeira vez há uma capital na Guiné, Bolama.

Mas as sublevações não param, logo houve que reprimir uma revolta do Batalhão de Caçadores N.º 1, em Bolama. No ano anterior, os Felupes de Jufunco cediam todo o seu território a Portugal. Assinam-se tratados de paz com os Fulas do Forreá e com os Beafadas de Guinala. A despeito desta atmosfera de paz, em 1881 os Fulas e Futa-Fulas do Forreá atacaram a Praça de Buba, e pouco tempo depois revoltam-se os Beafadas de Jabadá, tudo fica aparentemente resolvido com acordos de paz. Não param as sublevações mas também as homenagens ao governo da colónia. Em 1885 é feita a paz em Buba entre os Fulas e Beafadas, depois de uma longa guerra de extermínio. No ano seguinte, Portugal confirma e ratifica a Convenção Luso-Francesa, renuncia-se ao território do Casamansa incluindo o porto de Ziguinchor. Sucedem-se pequenas desordens, rebeliões na ilha de Bissau, no Leste e nos Bijagós. Onde fervilha a tensão é mais à volta da fortaleza de Bissau, mas também há guerra na região do Geba. em 1892, a província é convertida em Distrito Militar Autónomo. Criaram-se os Comandos Militares de Bissau, Cacheu e Geba, mas os efetivos continuam a ser minúsculos e as rebeliões na ilha de Bissau permanentes. Tudo parecia ter melhorado na região de Cacheu bem como na região de Cacine, melhorara a ocupação militar da Guiné, para além de Bolama e Bissau, estendia-se a Geba, S. Belchior, Sambel-Nhantá, Cacheu, Farim, Buba, Bolola, Contabane, Cacine e Cacondo. Ao todo, estavam no território dois destacamentos com sete oficiais, dois sargentos e duzentos cabos e soldados.

Em 1896, é a vez dos Manjacos manifestarem rebeldia. Inicia-se a primeira Campanha do Oio, é durante estas operações que um chefe Mandinga, Lamine Indjai, aliado dos Portugueses, morreu a defender a bandeira que levava e que não deixou cair nas mãos dos sublevados. Mas a campanha terminou de uma maneira desastrosa, Graça Falcão, Comandante de Farim e responsável pela Campanha escapou por um triz. Até ao fim do século vão aumentando os postos militares. Há populações que se recusam a pagar imposto e insubordinam-se, daí várias campanhas, logo na zona de Churo, envolvendo forças terrestres e navais, os Papéis submetem-se. Cria-se uma companhia mista de artilharia em Bolama, efetuam-se uns trabalhos de delimitação de fronteiras, as forças portuguesas e francesas foram alvo de ataques. Em 1907 começa a guerra do Cuor, que prosseguirá no ano seguinte, com um contingente nunca visto. O régulo do Cuor, Infali Soncó, foge depois de ter dado séria resistência. Novas operações na ilha de Bissau, é aí que se faz notar Abdul Indjai, que acabará exilado em S. Tomé, depois perdoado e mais adiante vamos vê-lo como um autêntico braço direito do Capitão Teixeira Pinto.

As sublevações, insurreições e insubordinações são uma constante entre o fim da Monarquia e os primeiros anos da I República. A grande alteração começa a ser dada com as operações de Teixeira Pinto nas regiões de Mansoa e Oio, em 1913, com o apoio de forças navais, acompanha-o uma guarda avançada de Abdul Indjai e 400 irregulares. Em janeiro de 1914, depois de nova revolta no Churo começa a marcha da coluna de operações de Cacheu, comandada por Teixeira Pinto, em abril estes territórios dão-se como pacificados, Teixeira Pinto prossegue contra os Manjacos e dá-se por finda a campanha de Cacheu e Costa de Baixo. Teixeira Pinto volta-se agora para os Balantas que pedem a paz. Teixeira Pinto embarcou para Lisboa e só regressou em janeiro do ano seguinte. Desta feita, a grande questão é Bissau, os Papéis dão imensa luta.

Teixeira Pinto e o Tenente Sousa Guerra mais 1600 guerreiros com Abdul Indjai à cabeça, de novo com apoio naval, procuram obter uma vitória definitiva. Os sublevados pareciam levar tudo a melhor até que foram repelidos por Teixeira Pinto que contra-ataca e toma de assalto as posições de Intim e Bandim e mais adiante Antula, e depois Safim, a marcha terminará em Bor e Biombo. Com a captura do régulo de Biombo e a rendição do régulo de Tore terminava com êxito completo a campanha da ilha de Bissau. Foi uma pacificação que custou um elevado preço aos portugueses e seus aliados: 284 mortos e feridos. Mas ainda se estava longe de uma pacificação efetiva. Em março de 1917 era declarado o estado de sítio em todo o arquipélago dos Bijagós, o Tenente Sousa Guerra comanda uma coluna com o objetivo de estabelecer um posto militar em Canhambaque, mas nada sucedeu. De novo declarado o estado de sítio em maio com o mesmo objetivo de estabelecer um posto militar em Canhambaque, o sucesso foi reduzido. É neste período que surgem graves problemas com Abdul Indjai, então régulo do Oio e Cuor, o seu comportamento e os abusos praticados provocaram um grande descontentamento das populações, as autoridades portuguesas viram-se obrigadas a agir contra o seu antigo aliado. Novas operações em julho de 1919 e prisão de Abdul Indjai que será demitido do posto de Tenente de 2.ª linha, previa-se a sua deportação para Moçambique mas morreu em Cabo Verde.

Vão continuar a haver problemas nos Bijagós, grandes combates, em maio de 1926, durante esta fase de tentativa de ocupação, nesta região Bijagó sublevada as forças portuguesas tiveram 22 mortos e 74 feridos. A chamada pacificação da Guiné será reconhecida só em 1936, com a submissão de Canhambaque e a paz com os Bijagós.

Infali Soncó, régulo do Cuor, ainda no momento de confraternização com as tropas portuguesas, 1908, fotografia de José Henriques de Melo
Ataque dos auxiliares portugueses na chamada Guerra do Cuor, 1908
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)