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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24669: Notas de leitura (1617): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (3) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não hesito em classificar este trabalho como incontornável para o estudo do que tem sido a tentativa de democratização na Guiné-Bissau. Álvaro Nóbrega prima pelo rigor e a independência de juízos, dá-nos um quadro minucioso do funcionamento do Estado e dos avanços e recuos democráticos, é muito cuidadoso a avaliar as questões étnicas e as ligações à terra, disseca a elite política da Guiné-Bissau, o papel político dos militares, a questão fulcral do semipresidencialismo que acaba sempre em presidencialismo, a personalização na vida partidária, a permanente atmosfera de intimidação onde não faltam os espancamentos e até as ameaças veladas. Espera-se que o investigador, que nos dá uma visão em ecrã gigante do que se passou na Guiné entre 1998 e 2008 continue os seus trabalhos, reconhecidamente de grande qualidade.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (3)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau (2003)", e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Faz todo o sentido tratar de forma linear o presidencialismo e a personalização do poder. O chefe de Estado africano, de um modo geral, é tentado pela autoridade absoluta, não distingue a independência das instituições, assenta o seu poder em redes de relações pessoais, é um tutor paternal, gere um sistema de recompensas e de punições. Mesmo quando é eleito em eleições vincadamente democráticas é visto como um patriarca, não se vê obrigado em manter os poderes separados, e daí o sem número de dificuldades na coexistência entre presidentes e primeiros-ministros mesmos nos sistemas semipresidenciais. Como já se fez referência, no início do novo Estado da Guiné-Bissau pretendeu-se desvalorizar o papel das autoridades tradicionais e mostrou-se como o tempo se encarregou de tornar os representantes do PAIGC perfeitamente inócuos ao nível da vida das tabancas. E a legitimidade desses régulos foi retomada, até porque há um vazio no Estado na generalidade dos povoados. Não nos esqueçamos que esta obra foi editada em 2015, é só um aviso prévio para se entender o valor da narrativa.

Álvaro Nóbrega recorda os oito presidentes que até então exerceram funções na Guiné-Bissau: Luís Cabral, deposto em 1980, Bacai Sanhá, em 1999, Henrique Pereira Rosa e Raimundo Pereira foram presidentes interinos. Até 2009, apenas dois tinham sido democraticamente eleitos: João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá. Estes dois últimos, se bem que separados pelas gerações e pelo percurso da vida, tinham afinidades no que respeita ao seu carisma pessoal e ao modo personalizado como exercera o poder. Nunca se conformaram ao papel moderador e arbitral constitucionalmente definido, muito fizeram para submeter todas as esferas do poder, ingeriram-se mesmo na vida partidária. Não se resignaram a viver em sistema semipresidencialista, contrapuseram a sua versão do presidencialismo. E aqui vem a necessidade de refletir sobre a legitimidade, tão difícil de resolver num país tão seccionado, étnica e culturalmente. Nino Vieira procurava jogar com o seu passado militar e o mito de grande guerreiro; Kumba não tinha pergaminhos guerreiros, pretendeu valer-se dos seus dotes intelectuais, falava várias línguas, evitava os seus pensamentos alegadamente filosóficos, com um certo espetáculo converteu-se ao Islamismo. Foi sempre patente a difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, rapidamente os primeiros invadiam o campo dos segundos. O autor refere entrevistas havidas com políticos guineenses sobre as vantagens deste sistema semipresidencial, face ao mostruário existente há sérias dúvidas do que é mais eficaz, o presidencialismo ou o semipresidencialismo.

Inicialmente o PAIGC apresentava-se como um partido de unidade, com a vida multipartidária surgiram problemas aparentemente adormecidos como as linhagens e os sistemas de clã. E o autor recorda que há dois partidos antigos, o PAIGC e a FLING, a RGB nasceu no exílio como o movimento de resistência ao PAIGC, na contagem que o autor fez em 2008 o número dos partidos ultrapassava os 30, o chefe é o elemento primário, é ele que agrega à sua volta os seus seguidores pessoais. Daí a conceção rigidamente hierárquica do poder, o que se pode traduzir em que um Presidente da República ponha e disponha da nomeação do Primeiro-Ministro ao arrepio das instituições e dos resultados eleitorais ou temendo o primeiro a visibilidade do segundo. Exemplos não faltam como o autor transcreve: No PRS, devido a um clima de suspeição, o seu congresso de 2002 decorreu com as portas cerradas por correntes e cadeados, para que ninguém saísse e ninguém entrasse. À vista de todos há partidos que se lançam no confronto interno, caso do RGB.

Recorda igualmente a exoneração de Carlos Gomes por Nino, as rivalidades no PRS entre os Balantas, partido em que se trabalhou para depor o presidente Kumba Yalá. E Álvaro Nóbrega dá mais exemplos. Há vários temas complexos em cima da mesa, desde a ausência de diferenciação dos programas partidários, as diferenças ideológicas mínimas, a inexistência de discussões sobre as políticas públicas, enfim, quer-se deter o poder como uma volúpia, um sistema de prémios e punições, pelo que se passa rapidamente de euforia ao pleno descontentamento. E há que ter em conta que se analisa um dos países mais pobres do mundo, os cargos do Estado são vistos como a solução para os problemas financeiros de cada um. E quando se é forçado a abandonar o poder há mesmo recusas em perder regalias, que podem ser casas ou carros, Kumba Ialá foi acusado de ter vendido o Bissau Hotel, na Líbia, pouco antes de ser deposto, por dois milhões de dólares.

E Álvaro Nóbrega dirige agora o olhar para uma matéria que lhe é muito cara, a luta pelo poder, como ele observa:
“A luta decorre em múltiplas instâncias. Joga-se na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil e ainda numa outra que não é deste mundo cuja influência não se menospreza porque é respeitada a sua ação. A cosmologia africana contempla um mundo povoado por entidades sobrenaturais e pelos espíritos dos antepassados, em que os vivos constituem uma minoria perante a imensidão de mortos que os observam (…) Na política, como nas mais diversas áreas da vivência africana, a magia tem um papel central. A classe política culturalmente ambivalente tende a levar muito a sério as questões do poder dos espíritos. A magia joga um papel importante na política e na luta pelo poder”.

E são elencados alguns exemplos. O tema da justiça e dos direitos humanos é de tratamento obrigatório, há que ter em conta os relatórios da Liga Guineense de Direitos Humanos para perceber que a Guiné é um país de detenções arbitrárias, espancamento de jornalistas, tentativas de assassinato, a intimidação está sempre presente. A sociedade civil é observada, é pequena, o que é para lastimar dado que ela é considerada um dos principais pré-requisitos da democracia e o autor faz um diagnóstico:
“A maioria das associações não tem sustentabilidade para sobreviver fora do quadro dos financiamentos internacionais. Consequentemente, o que determina a sua ação não é o fim social que estabeleceram, mas a disponibilidade de fundos, o que faz com que seja um tipo de associativismo que não existe sem um fluxo continuado de financiamento internacional”.

Álvaro Nóbrega irá ainda fazer referência à liberdade de expressão e de imprensa e à africanização do voto.

Conclui o seu importante estudo relembrando o baixo grau de comprometimento político das elites com a democracia, um Estado com falta de soberania, os exacerbamentos étnicos, a personalização do poder, a colagem dos militares ao poder, e algo mais que acaba de se ver neste texto. A sua investigação termina quando se encetava a eleição do José Maria Vaz, o único Presidente da República que começou e concluiu o seu mandato em conformidade com o ato eleitoral. Nóbrega dirá no final que parecia estar reunido um conjunto de condições favoráveis para a estabilização e desenvolvimento, os doadores tinham voltado. Mas não cabe neste trabalho as novas disfuncionalidades enquanto Estado e democracia.

Oxalá Álvaro Nóbrega continue a trabalhar sobre a difícil democratização da Guiné-Bissau, tal o apuro e o rigor que ele põe nas suas investigações.


Kumba Yalá
O general António Indjai, líder dos militares no golpe de estado de 2012
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Nota do editor

Último poste da série de > 15 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)

quinta-feira, 2 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24112: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte IV: a visita da delegação militar da OUA, em 1965, às bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari, na região Norte do PAIGC




Três fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2104),

"Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43'').

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de n
otas avulsas de leitura do livro  "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (*):

Visita da missão militar da OUA em 1965 (pp. 287 –297)


Que fique claro: desde sempre falámos aqui, neste blogue, do PAIGC, da sua história, dos seus dirigentes e combatentes, da sua organizaçãoo, do seu armamento, das suas bases ("barracas") e linhas de infiltração, das suas operações, das sus baixas, dos países que o apoaivam (incluindo a Suécia), da sua propaganda, dos  livros e dos filmes que falam deles, etc... 

Sempre falámos sem quaisquer complexos. O nosso tom é  necessariamente  crítico: afinal somos um blogue de antigos combatentes e não combatemos contra fantasmas... ou extraterrestres... Esses fantasmas ou extraterrestres tinham um rosto e nome: Amílcar Cabral, Luis  Cabral, 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, etc. , figuras que já nem sequer estão vivas.... 

Nunca os exaltámos mas também nunca escondemos  que não os podíamos ignorar.  A guerra (que foi um sangrento jogo de xadrez)  já acabou há meio século e é natural que haja memórias que se cruzam, quer gostemos ou não...  Mário Dias, por exemplo, fez a tropa, o 1ºCSM,com o Domingos Ramos... Já escreveu aqui, em tempos, um poste memorável sobre os seus encontros e desencontros... E, de um modo geral, todos temos alguma curiosidade em saber como era o inimigo de ontem, por onde andava, o que se escrevia sobre ele, etc. 

Feita esta prevenção pedagógica, a título meramente introdutório,  voltamos a dizer que um dos problemas com que se depara o leitor, desapaixonado. atento e crítico, da "Crónica da Libertação", de Luís Cabral (Lisboa, O Jornal, 1984) (*), é a oum ralidade da narrativa: o autor segue um fio condutor temporal, desde o início da criação do PAI (e depois PAIGC), passando pelo desenvolvolvimento da luta e acabando no assassinato do Amílcar Cabral em janeiro de 1972. Mas nem sempre (ou raramente) há datas precisas.

Sabe-se,por outras fontes, que a primeira visita da missão militar da OUA - Organização da Unidade Africana, criada em 1963, em Adis Adeba, ocorreu em 1965, com início em 23 de julho: em 20 de agosto a comissão militar da OUA dá por findos os seus trabalhos, tendo consegudo visitar instalações do PAIGC mas não as da FLING. Temos de reconhecer, em todo o caso, essa não era a melhor altura do ano , pro se estar em plena época das chuvas, para visitar um território como a Guiné.  

É possível que a delegação se tenha desdobrado, com uns observadores a visitar o Norte e outros o Sul. Por outro lado, sabe-se que Amílcar Cabral escreveu   em julho de 1965,   um "projecto do programa de trabalho da Comissão Militar da OUA incluindo a visita ao Secretariado Geral e às instalações civis do PAIGC em Conakry, bem como às bases militares em Boké e Koundara", visita essa que seria feita, obviamente,  de carrro...

Em 1965 o PAIGC ainda se procurava legitimar, aos olhos de África e do Mundo, que era o único representante dos povos de Guiné e Cabo Verde. Nomeadamente no Senegal, havia (e era tolerada) a presença de representantes de outros movimentos nacionalistas, nomeadamente da FLING. Amílcar Cabral tinha já preocupações hegemónicas (para não dizer totalitárias), não admitindo que houvesse rivais, para mais "oportunistas" (sic) na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Por outro lado, a intenção do PAIGC (ou do seu estratega, Amílcar Cabral) era também a de convencer os membros da OUA, de que precisava de mais e melhor armamento para poder combater, com eficácia, a tropa portuguesa (incluindo a marinha e a aviação).  

Daí a visita da missão militar da OUA, há muito pedida, com uma delegação  que, no Norte, e segundo o Luís Cabarl (LC), era composta por representantes (todos oficiais subalternos) de 4 países: Guiné Conacri (tenente Djarra), Senegal (capitão Tavares), Marrocos (um tenente) e Mauritânia (um outro tenente) (pág. 288).  Naturalmente, uma missão militar, com postos de baixa patente, como está,  vale o que vale...

Curiosamente, a visita realizou-se, segundo o autor, numa altura de crise política entre estes países, entre Marrocos e a Mauritânia, por um lado, e entre o Senegal e Guiné-Conacri, por outro.  Mas o Amílcar Cabral pôs todo o empenho em que a visita decorresse da melhor maneira e com toda a segurança. 

Há instruções escritas  por ele para o 'Nino' Vieira que estava no Sul. Mas, no Norte delegou no seu meio-irmão, o LC, o acompanhamento da missão. Fala-se na chegada da missão militar (de 3 elementos) da OUA  a Conacri a 15 de junho, mas a carta, manuscrita, de 5 páginas não tem indicação do ano: "É muito possível que o Luís os acompanhe. Depois de visitarem o Sul, irão ao Norte, onde temos de acabar para sempre com as mentiras dos oportunistas" (sic) (referência à FLING):

A delegação da OUA, no Norte,  terá percorrido, durante quase uma semana, cerca de 250 quilómetros, o que nos parece exagero (no caso de o trajeto ter sido feito sempre a pé). Partindo do Senegal, começaram pela base de São Domingos, no noroeste do território, sendo armados (sic) pelo ‘comandante’ Lúcio Soares. O LC e o o seu protegido Xico Mendes acompanharam toda a missão que visitou também a bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari.

Esclarece-nos o LC, que a entrada principal para a Frente Norte, passando pela fronteira com o Senegal, durante muito tempo, situava-se no sector de Sambuiá (pág. 288).

A força do PAIGC ali estacionada tinha como missão assegurar a passagem de homens e material, da fronteira ao rio Farim.

A base situava-se “a pouco mais ou menos três horas de marcha da fronteira” (sic). A vegetação era exuberante, devido à elevada humidade da região. A base era, por isso, das mais frias da Frente Norte, sobretudo no final e princípio do ano . (A referência de LG ao frio que se fazia sentir logo de manhã, leva-nos a pensar que a visita tenha ocorrido em finais de 1965.)

O comandante da base de Sambuiá era então o Bobo Queita, antigo jogador de futebol.  A base tinha abrigos, estando ao alcance da artilharia de Farim. Daqui a missão seguiu em direção da cambança da margem direita do rio Farim, onde uma canoa devia transportá-los a Jagali (lê-se: Djagali) (pág. 289).

Entre a mata de Sambuiá e o rio Farim há uma “larga e descampada planície”, uma enorme lala em que se fica a descoberto.

“Nô pintcha!”, dizia-se então. A expressão tinha vários significados, segundo o autor: 

”Era a chamada para a guerra para a marcha, para a comida, talvez até para o amor” (…) Ou seja: “chamava à realização de algo que exigia a participação de mais de uma pessoa” (pág. 289). 

A expressão não se sabe onde nasceu, durante a guerrilha, se no Norte, no Sul ou no Leste, di o LC.

“A imensa lala de Sambuiá, que se atravessava sem um suspiro de descanso, devido ao perigo que representava ser-se ali surpreendido pela aviação inimiga, ia-se tornando cada vez mais pesada à medida que se aproximava do rio” (pág. 289).

O rio Farim era navegável. Os barcos das companhias comerciais (Gouveia, Ultramarina, etc.) iam a Bigene, a Binta e mesmo até Farim para trazer a mancarra, o coconote ou a “maalira” (que eu não sei o que é, mas presumo que seja uma corruptela de “madeira” ).

O LC aproveita para descrever a paisagem:

“A paisagem que se desfrutava da cambança era de uma beleza impressionante. O rio estenda-se em curvas sinuosas ao longo da sua bacia, bordada nas duas margens pelo verde exuberante das matas de tarrafes, com os seus ramos e raízes emaranhados, donde se destacavam troncos esguios de altura surpreendente (pág. 290).

As populações da margem direita “cedo aderiram à luta de libertação” (sic) (pág. 291), e por isso aquela era uma zona de guerra. Para a guerrilha era um risco permanente atravessar o rio. Sabemos que as NT (sobretudo os fuzileiros) montavam emboscadas em pontos de cambança já conhecidos. Será aqui que morreram em 1972 a Titina Silá.

Feita a cambança, em canoa, a missão dirigiu-se para Djagali, reconstruída pela população (pág. 292). Aquando da receção da comissão da OUA , um navio da marinha flagela Djagali (pág.293).

Mas eram “raras as pessoas” (sic) que se apresentaram para saudar os visitantes. Explicação do LC:

“Havia algum tempo que as populações abandonavam as suas habitações, depois do bombardeamento da tabanca, antes do romper do dia, para só regressarem depois do sol posto, quando a aviação já não podia trazer à tabanca a morte ou a dor com as suas bombas criminosas” (pág. 292).

Os combatentes das FARP eram jovens cuja idade média não ultrapassava os 20 anos” (sic). Trajavam uniformes “muito variados”, com “calças e camisas muito diferentes umas das outras” (pág. 292).

Uma hora depois LC e os seus convidados estavam em Maqué. O comandante era o Quemo Mané (pág. 294). À noite ouviu-se uma explosão, ali perto. Um jovem auxilitar de enfermagem tinha accionado uma mina A/P, que lhe provocou a morte.

“Elementos das milícias coloniais africanas de Bissorã tinham-se infiltrado na área, certamemte no começo da noite, para colocar a mina antipessoal (…) no caminho que ligava a antiga base à fonte de Maqué” (pág. 294).

Os militares da OUA ainda visitaram as bases de Morés e Canjambari. Sabemos, pelo que conta LC, que produziram um relatório. Eu gostaria de o ler e confrontar com o relatondo do LC. Mas onde encontrar, na Net, esse relatório da OUA de 1965?

Parece que as relações do PAIGC com o Senegal de Senghor melhoraram um bom bocado, a partir daí, autorizando o governo senegalês o trânsito de homens e mercadorias pelo seu território. Mas não autorizava ainda que o PAIGC dispusesse de depósitos de armas e munições. Foi um passo: a partir daqui começaram a aparecer, cremos  que em 1967,  os primeiros “armazéns do povo”  (nome algo pomposo...para abastecimento de víveres e outros artigos não só à guerrilha como às populações da linha fronteiriça sob controlo do PAIGC (pp. 296/297).

Sabe-se que em outubro de 1965 , o Amílcar Cabral tinha marcado mais uns pontos: o seu partido fora reconhecido pela OUA como "o único movimento de libertação" da Guiné. No mesmo mês em que Portugal conseguia obter o fornecimento de 40 Fiat-G 91 R/4 por parte da Alemanha, fora dos acordos da NATO.

(Continua)


Guiné > Região do Oio >  Localização aproximada de algumas das "barracas" (ou bases...) do PAIGC  por onde terá passado, em visita, em 1965, a primeira missão militar da OUA:  Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari... Não consta que tenham os homens da OUA tenham ido com o lC do a Sará, que era mais longe e arriscado...

Infografia: Jorge Araújo (2018)
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Nota do editor:

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23235: 18º aniversário do nosso blogue (12): Entrevista com Leopoldo Senghor, ao "Jeune Afrique", n.º 701, de 15/6/1974, sobre os seus contactos com o gen Spínola e com o PAIGC, reproduzida, em português, no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, 17/6/1974 (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Leopoldo Senghor, presidente da República do Senegal, 
entre 1960 e 1980. 



1. O nosso camarada Victor Costa, ex-fur mil at inf, Victor Costa,  mandou-nos este "recorte de imprensa", que reproduzimos abaixo. Trata-se de uma entrevista dada pelo então presidente da República do Senegal (o primeiro, entre 1960-1980), poeta, teórico da negritude, panafricanista e profundamente francófono Léopold Sédar Senghor (1906-2001) ao influente jornal "Jeune Afrique", n.º 701, de 15 de junho de 1974, traduzida e reproduzida no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, de 17 de junho de 1974, ou seja, dois dias depois. 

O jornalista, que entrevista o Leopoldo Senghor, é Jean-Pierre N' Diaye. Em 13 de março de 1975, Senghor (apelido paterno, para uns corruptela da palavra portuguesa "Senhor", para outros um apelido sererê, veja-se a o artigo em inglês na Wikipedia),  filho de pai sererê, rico comerciante de amendoim, e filho de mãe de origem fula (a terceira esposa do pai),  é agraciado, em Portugal,  com o Grande Colar da Ordem Militar de Santiago da Espada. E em 1980 iria receber o Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Évora.  

Acrescente-se que o então semanário "Jeune Afrique", francófono, panafricano, tinha sido criado em Tunes, capital da Tunísia, em 1960.

Destaque

(...) É preciso nunca desesperar dos homens e jamais confundir o povo com o seu governo. Eu tive sempre um  grande afecto e  admiração pelo povo português. Sabe que o meu nome é português, que provavelmente tenho uma gota de sangue português, que os meus antepassados eram da Guiné-Bissau; e é a razão pela qual estive sempre atento a tudo o que era português. (...)

(...) Penso que é do interesse do povo português e do interesse dos povos da Guiné-Bissau,  Angola e Moçambique,  guardar laços com Portugal depois da sua independência. (...)











Entrevista do presidente da República do Senegal, Leopoldo Sédar Senghor, ao semanário "Jeune Afrique", n.º 701, de 15 de junho de 1974, traduzido e reproduzido no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, de 17 de junho de 1974 (dois dias depois). 

Vamos associar este documento à celebração do 18º aniversário do nosso blogue (nascido em 23 de abril de 2004) (**). Obrigado, Victor Costa,
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23234: (In)citações (205): O general Spínola, a guerra e a paz (Victor Costa, ex-fur mil, at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

(**) Último poste da série > 4 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23226: 18º aniversário do nosso blogue (11): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - IV (e última) Parte: 31 de agosto de 1972: "Spínola: Infelizmente ainda tenho que dar tiros, mas a guerra não se ganha aos tiros"... Mas o pior será quando a guerra acabar, conclui o Avelino Rodrigues...

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

 

 


Mapa geral da antiga província  portuguesa da Guiné (1961) > Escala: 1/ 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, Canhámina e Cambajú, setor de Contuboel, na fronteira norte com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras. Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989).


1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte III (*)



(vii) Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...


Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança,  não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel  de Fajonquito  estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.

Tcherno!... Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.

−  Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!... Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 

−  Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.


(viii) O rabo de um macaco pode ser muito comprido 
mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado


Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se, pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto,  que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:

−  Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:

−  Eu sou!..


O Comissário perguntou-lhe:

− Tu és o quê?
−  Eu sou! − respondeu.
−  Tu és da FLING, não é? −  sugeriu o Comissário.
−  Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.





No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual,  estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:

−  Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... − .  E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que, alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. 

Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: "O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado".

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

Cherno Baldé

Bissau, Junho de 2010  (**)


[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Contimua)
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Notas do editor:

(*) Vd.postes anteriores da série


7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21701: Notas de leitura (1331): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
É tempo de reconhecer o labor investigativo de Philip Havik nas coisas da Guiné. Este ensaio que o investigador publicou na Revista Internacional de Estudos Africanos fazia parte de um estudo de maior amplitude abrangendo a atividade política na Guiné tanto no período pré-colonial como no período colonial e na fase da Independência. Desconheço, por hora, se tal publicação já existe. A importância do ensaio é um modo singular como o investigador aborda e articula espaços sociais e movimentos políticos no período colonial e pós-colonial, entrelaça uma gama de diversidades que vão desde a religião às atitudes culturais de certas etnias, as mudanças económicas operadas pelas novas culturas e a confrontação entre as populações nativas e os representantes das empresas. E assim chegamos à génese dos nacionalismos, às mudanças que nessa fase o PAIGC prometia operar e tudo o mais que veio a acontecer até à sua influência política empalidecer, uma longa história que é de conhecimento obrigatório para quem quer saber porque é que a Guiné continua a viver em impasse.

Um abraço do
Mário


Mundasson i Kambansa:
Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994) (1)


Beja Santos

Mundasson, termo crioulo para mudança ou transformação; kambansa, termo crioulo para travessia ou passagem.

Philip Havik
O investigador Philip Havik dá-nos neste artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999, uma leitura singular sobre a pluralidade política e social que marcou o território da Guiné durante o século XIX, é uma tessitura composta por termos sociais e geográficos, pela procura de defesa de interesses da região na alvorada republicana, pela ocupação militar, pela luta pela independência, a recriação de um regime monopartidário a que se seguiu a liberalização económica e uma caudalosa abertura política.

O autor recorda que a Guiné com as suas fronteiras traçadas na consequência da Conferência de Berlim vivia mergulhada numa guerra renhida pelo controlo dos “chãos”, espaços geográficos e sociais geridos por linhagens, intervinham nesses episódios bélicos sociedades nativas que se opunham a tropas auxiliares africanas e portuguesas, todos os pretextos eram bons para procurar sacudir o jogo colonial, tanto podiam ser o imposto de palhota como a política comercial da administração portuguesa. Philip Havik considera que no processo de criação de movimentos de caráter político se podem identificar três fases, o período entre 1910-1915, o período de 1955-1965 e de 1986 até às primeiras eleições multipartidárias de 1994.

A ocupação militar saldou-se na perda de controlo por parte dos povos do Litoral sobre os seus próprios “chãos” e a penetração progressiva do Litoral “animista” pelo Leste islamizado. Grupos crioulófonos oriundos dos antigos entrepostos como Cacheu ou Geba foram abrindo espaço em novos centros comerciais no Interior, assim se deu a abertura dos “chãos” e o crioulo tornou-se na língua franca. Os últimos 50 anos foram marcados pela luta anticolonial e o estabelecimento de um regime independente.

Uma lufada de ar fresco foi trazida pela constituição da Liga Guineense (1911), os seus membros iriam assumir um papel de mediadores em diferentes conflitos económicos e sociais no seio do pequeno e restrito meio administrativo e mercantil de Bissau e Bolama. Os estatutos eram claros: fazer propaganda da instrução, estabelecer escolas e empenhar-se no progresso e desenvolvimento da Guiné professando o ideal republicano. À sua testa, a Liga era dirigida por comerciantes das pequenas comunidades crioulófonas, em muitos casos com laços de parentesco em Cabo Verde, tinham também ligações aos deportados políticos, havia grumetes contratados por comerciantes e casas de comércio como intérpretes, pilotos e caixeiros. Cedo começaram a reivindicar a redução de impostos, a nacionalização do comércio para restringir o acesso de comerciantes estrangeiros, a denunciar casos de corrupção no aparelho administrativo e os excessos no plano militar. A Liga foi-se progressivamente politizando, denunciando o papel dos mercenários recrutados por Teixeira Pinto e as suas prepotências nas campanhas militares. Quando foi proibida em 1915 e a sua direção encarcerada, a Liga era uma organização autónoma reunindo pela primeira vez degredados políticos, comerciantes e diferentes estratos profissionais. Falhara a tentativa de reconciliação do projeto português de “nacionalização” da Guiné com o ideário republicano e liberal. O investigador observa que os grupos sociais ditos “civilizados” constituíram um nó de alianças entre comerciantes e proprietários (ponteiros) e trabalhadores dos portos e funcionários públicos. A repressão destes movimentos de contestação criou uma diáspora dos seus associados. Observa igualmente a importância do grande fluxo de imigrantes cabo-verdianos na Guiné, portugueses perante a lei, tal fluxo teve implicações para a vida política e associativa do território.

Os movimentos independentistas irão surgir em finais nos anos 1940, registam-se diferenças entre caminhos nacionalistas guineenses e posições pan-africanas. O grupo de civilizados tinha-se ampliado, recorde-se que era pelo comércio nos chamados centros comerciais mas sobretudo nas lojas de mato que se estabeleciam os contatos entre a população “civilizada” e a indígena, num contexto completamente distinto à situação vivida no tempo da Liga Guineense. Foram razões de ordem económica que ditaram mudanças, primeiro a mancarra e depois o arroz. As populações sentiram o peso desta política encetada a seguir à crise no mercado internacional das oleaginosas. As populações nativas não ficavam associadas às empresas constituídas pelos “civilizados”, exploravam as suas próprias culturas, negociavam depois os preços com os intermediários das grandes e pequenas casas, era uma economia de troca direta e sobressaiam práticas abusivas dos cipaios, agentes omnipotentes e despóticos. E cedo se desencadearam conflitos entre comerciantes e a população, a extorsão aos indígenas iria tornar-se num problema que encontrou por vezes políticos de envergadura pela frente, caso de Sarmento Rodrigues. Os movimentos independentistas atraíram sobretudo operários, artesãos e empregados do comércio, na sua maioria vindos de Bissau e de Bolama. Em 1948 surgiu o Partido Socialista da Guiné. A formação de organizações políticas de cariz nacionalista acontece em 1955 com a fundação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, por Amílcar Cabral que no ano seguinte irá apoiar a criação do PAI – Partido Africano da Independência, posteriormente PAIGC, em 1960. Este surto independentista precisa de ser situado no contexto do nacionalismo pan-africano, fortemente inspirado por Kwame N’Krumah, as coligações de forças tiveram vida precária. A FLING – Frente para a Libertação e Independência da Guiné Portuguesa é criada em 1962 por grupos oposicionistas baseados no Senegal, integrava cinco partidos. E diz o investigador que neste ambiente extremamente divisionista reivindicava-se a herança política da Liga Guineense. Um dos maiores pontos de divergência entre movimentos – além da questão da autonomia versus independência total e a melhor forma de lá chegar – revelou-se a questão da ligação entre a luta anticolonial na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde. Esta associação estratégica dos destinos da Guiné e Cabo Verde, protagonizada pelo PAIGC, provocaria várias cisões nos vários movimentos e coligações, tudo irá desaguar na secessão do PAICV – Partido Africano da Independência de Cabo Verde a seguir ao afastamento do primeiro presidente da Guiné independente através de um golpe de Estado.

(Continua)
Kumba Yala
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21219: Notas de leitura (1296): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2017:

Queridos amigos,

Confirmo a importância deste trabalho de Álvaro Nóbrega, convido a todos à sua leitura. Trata-se de uma investigação rigorosa que viaja do passado ao presente, que cuida da história, da sociologia, da antropologia e da etnologia, toma-as como parcelas e objeto de análise e profere um grande olhar sobre um processo democrático que tem encontrado inúmeros escolhos, daí a identificação que ao autor pretendeu ao estudar a transição democrática, colocando-a no local certo, África, repertoriando os elementos do Estado, pinçando os dados sob as elites, o papel político dos militares, o presidencialismo, a fragmentação partidária, e muito mais.

Doravante, esta obra será incontornável para o estudo da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Os ziguezagues da democracia guineense:
Uma obra indispensável de Álvaro Nóbrega (3)

Beja Santos

Em “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, Álvaro Nóbrega, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), 2015, dá-nos um estudo admirável sobre as sinuosidades do processo democrático guineense, a partir da luta de libertação, das tensões que esta mesma provocou, dos equívocos entre um sonho de modernização e as múltiplas dificuldades do Estado se encontrar com a nação e com as populações nela residentes.

No texto anterior aflorou-se o papel político dos militares, questão que se agudiza com o golpe de Estado de Nino Vieira, em 1980. De modo sub-reptício foram-se organizando fações, que exploraram questões étnicas, descontentamentos, questiúnculas internacionais como a dissidência do Casamansa e a venda de armas, um dos fatores que despoletou a crise político-militar de 1998-1999.

Os ajustes de contas passaram a ser cada vez mais ferozes, com assassinatos ao mais alto nível. As forças armadas guineenses são únicas no mundo: é um exército de 1869 oficiais (42%), 1218 sargentos (27%) e 1371 soldados (31%), uma autêntica pirâmide invertida. É óbvio que se procura a promoção para ganhar um pouco mais.

“A fim de os manter satisfeitos, de assegurar a sua lealdade e em cumprimentos das obrigações de parentesco, os chefes militares que não estão condicionados ao controlo civil, são facilmente tentados a dar promoções. Soma-se a este problema a situação não resolvida dos combatentes da Liberdade da Pátria”.

O número destes últimos supõem-se situar entre os 7 e os 10 mil. Outro aspeto que contribui para as dificuldades da construção da democracia na Guiné-Bissau é o papel político das forças armadas. O autor fala nos golpes de Estado mas refere igualmente que os militares estão conscientes das implicações políticas e financeiras negativas que a sua ação pode comportar perante a comunidade internacional. Nino Vieira terá sido o presidente da República mais temido e admirado pelo seu passado. Mas não compreendeu, no seu regresso em 2005, que tudo se alterara na Guiné-Bissau, o narcotráfico, o clientelismo e o sistema de influências retirara-lhe peso, quando chegou a hora do ajuste de contas, foi sujeito à humilhação de lhe entrarem portas adentro de casa e o retalharem.

Os poderes tradicionais retomaram a sua importância e os órgãos de soberania sabem que não podem prescindir de uma boa relação com eles. E nos órgãos de soberania assiste-se a uma difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, invadindo os respetivos campos, daí a permanente discussão em aberto se o regime deve ser presidencialista ou semipresidencialista.

Álvaro Nóbrega escalpeliza a fragmentação do sistema partidário. Com exceção do PAIGC e da FLING e da Resistência da Guiné-Bissau (RGB) nascido no exílio, os outros partidos guineenses são muito jovens, o seu número ultrapassava em 2008 o número de 30 partidos legalizados. Citando Francisco Fadul, grande parte dos partidos são encarados como propriedade privada:

“Todos os partidos da Guiné começam por ser partidos de um dono. Todos eles têm patrão que é aquele que coloca lá algum dinheiro para fazer funcionar a máquina e que se sente o dono. Se alguém não gosta da sua atuação, só tem é que abandonar o partido”.

Em consequência a luta é tanto mais dura quanto maior é a possibilidade do partido de vir a conquistar cargos governativos. São confrontos que podem levar ao descrédito do próprio partido, caso da batalha que opôs Hélder Vaz a Salvador Tchongo, foi uma picada mortal nos créditos eleitorais da RGB, que se mostrou aos eleitores desunida e fragmentada. Kumba Ialá aproveitou a brecha e liquidou o partido.

O autor dá inúmeros exemplos de conflitos em todos os quadrantes, as mensagens partidárias acabam por ser estandardizadas como o investigador sueco Lars Rudebeck já observara nos discursos partidários concorrentes às eleições de 1994:

“Os partidos políticos da Guiné-Bissau não podem ser distinguidos uns dos outros meramente pelo estudo dos seus programas e plataformas. As suas palavras de ordem e slogans são quase idênticas”.

A visão patrimonial do poder é cuidadosamente observada pelo autor. Há uma frase que pode resumir a situação:

“Na Guiné, quer pela vivência tradicional quer pela moderna, os indivíduos, habituaram-se a ver os carros de Estado como a solução para os seus problemas financeiros. Os régulos, por o serem, recebem as compensações de vida ao seu estatuto. Nas etnias que não têm régulos, os anciões têm direito pelo seu estatuto a exigir a prestação de trabalho e receber dádivas das classes de idades mais jovens”.

Quando abandona o poder, alguns titulares de cargos públicos e altos funcionários do Estado procuram a todo o transe manter as regalias que tiveram.

Em 2003, Álvaro Nóbrega publicara um importante livro "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau", é dossiê que conhece bem: a luta decorre em muitas instâncias, na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil, pode envolver entidades sobrenaturais, convocar adivinhos, lançar feitiços…

E a Justiça? A Guiné dispõe de um sistema judicial sem meios humanos e materiais para cumprir a sua missão. A luta pelo poder também passa por aqui, quando o presidente não gosta das decisões dos tribunais exonera seja quem for. Basta ler os relatórios da Liga Guineense dos Direitos Humanos um número indiscritível de violações e desrespeitos.

Álvaro Nóbrega passa ao crivo a sociedade civil, as organizações não-governamentais, a liberdade de expressão, radiografa a comunicação social guineense que é materialmente pobre e como se processa a africanização do voto, realçando questões como o voto coletivo ou solidário, a compra dos votos, a intermediação etno-regional, a votação etno-religiosa e o fator relioso propriamente dito.

Nas conclusões, o investigador sumaria todas as problemáticas abordadas na sua análise:


  • baixo grau de comprometimento das elites políticas com a democracia; 
  • um Estado com falta de soberania; 
  • a etnicidade encarada como um dos maiores calcanhares de Aquiles da democratização guineense; 
  • a falta de autenticidade do poder e a sua personalização; 
  • a intervenção abusiva dos militares na política; 
  • a visão patrimonial do poder que não distingue os bens e capitais públicos dos privados e amplia consideravelmente o fenómeno da corrupção;
  • a luta pelo poder em todos os patamares institucionais e cívicos; 
  • a excessiva fragmentação partidária; 
  • os problemas das elites;
  • um sistema judicial enfermo e inerte; 
  • uma opinião pública que não é desinteressada da política nacional mas que espelha toda a heterogeneidade e a complexidade da sociedade guineense.


Tudo conjugado, o regime guineense é um misto de hegemonia e democracia e o autor atribui ao seu estudo o papel de contribuir para um melhor conhecimento do que emperra a democracia guineense e apela à necessidade de se continuar a estudar e a compreender as expressões políticas modernas que coexistem com as manifestações e estruturas das antigas instituições, é imprescindível compreender essa articulação e o seu impacto no Estado moderno. Para que a Guiné-Bissau progrida.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21202: Notas de leitura (1295): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19435: Notas de leitura (1144): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
É com pesar que nos despedimos das cartas confidenciais do gerente de Bissau que tinham como assunto "Acontecimentos Anormais". O que ele vai revelando um pouco antes e durante a fase de afirmação da subversão na Guiné é material de consulta obrigatória para futuros trabalhos historiográficos. Senão, vejamos: a forma minuciosa ou meticulosa como vai descrevendo os tumultos na região Sul, a partir do segundo semestre de 1962 e a desarticulação económica na mesma região ao longo de 1963; graças a fontes informativas privilegiadas, e na ausência de informação oficial, revela o alastramento da subversão, deixando bem claro que em fevereiro de 1964 a agitação ocupava na quase totalidade a zona Sul, uma boa mancha acima de Mansoa e com uma sólida implantação na região do Oio e a passagem do rio Corubal com muita agitação na margem direita do Geba, acima de Bambadinca, mas também na região do Xime, já havia barcos flagelados no Corubal, em breve o Corubal ficará intransitável até à região do Saltinho.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (70)

Beja Santos

Em 29 de novembro de 1963, a carta confidencial do gerente de Bissau para Lisboa traz uma novidade em primeira mão, uma novidade que afetará doravante as informações que ele nos vinha prestando graças às suas fontes, e que, por razões que jamais saberemos, deixarão de existir.
Escreve o seguinte:
“O Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné convocou os representantes da Imprensa e Rádio para lhes participar a criação do Gabinete de Informações que passará a dar periodicamente comunicações oficiais sobre os acontecimentos militares, nesta Província.
Disse que as nossas Forças Armadas têm actuado o melhor possível na repressão ao terrorismo, embora sem os êxitos espectaculares que todos desejariam pois se trata de uma guerra muito difícil e de características muito especiais no condicionamento geográfico deste território. Afirmou que os comunicados a distribuir serão sempre lacónicos e sóbrios, visto que todos devem compreender as limitações a que estão sujeitos os problemas e actividades ligadas com operações de guerra e por conseguinte com a segurança militar. Deu ainda conta de uma digressão, que acaba de fazer por todo o Norte da Província e as impressões lisonjeiras colhidas quanto ao portuguesismo e lealdade das populações autóctones.
Esta medida há muito reclamada e cuja falta se fazia sentir foi, como não podia deixar de ser, bem recebida pelo público que poderá agora ser informado periodicamente do que de verdade se vai passando no campo militar e vem pôr ponto final aos inúmeros boatos e maledicências que aqui corriam acerca da actuação das nossas Forças Armadas na Guiné”.

E daí o gerente reproduzir o texto integral do Boletim Informativo das Forças Armadas da Guiné, correspondente ao período de 1 a 24 de novembro, onde são referidas ações de limpeza dos locais onde se fazia sentir a atividade terrorista, dava-se relevo à região do Oio, a duas flagelações a embarcações no rio Corubal, continuando a decorrer o tráfego marítimo normalmente em toda a Província. Havia manifestações de lealdade às autoridades portuguesas, houvera agradecimento em Tite e Bissorã, de modo expressivo. Dava-se relação dos mortos e de um acidente com um avião da Força Aérea, em voo de experiência, no qual perdera a vida um Oficial.

Em último lugar, o gerente fazia uma referência detalhada ao sistema de policiamento às instalações do BNU em Bissau e explicava porquê:
“Além dos valores afectos ao Tesouro, tem ainda depósitos obrigatórios, espólios, e, como banco central, depósitos à ordem, as disponibilidades financeiras dos particulares, independentemente de vultuosa carteira de letras, e algo mais. Competia-lhe ter à guarda todos os valores da Província da Guiné, daí a necessidade de acautelar ao extremo a defesa dos valores confiados. Requerera-se à PSP um dispositivo de vigilância forçado e comentava-se: “Tendo em atenção os antecedentes de alguns elementos da corporação implicados em elementos subversivos, se com dois agentes de segurança indígenas o policiamento não oferecia garantias dada a pouca confiança neles depositada, tornou-se agora, apenas com um, mais precário ainda. Aliás, toda a gente estranha tal anomalia, sabendo-se que, em caso de emergência, será o Banco um dos primeiros alvos a atingir, pois, como em 16 de Março do ano passado informámos, do diverso material subversivo apreendido a elementos do PAIGC, estava incluído o nosso ex-contínuo Inácio Soares de Carvalho, constava, entre outras, a planta do edifício do Banco”.

Em 6 de dezembro, o gerente iniciava a sua correspondência para Lisboa transcrevendo o Boletim Informativo das Forças Armadas correspondente à última semana de novembro. Continuava-se em contraguerrilha no Oio, as Forças Navais mantinham-se no desempenho das missões de fiscalização das águas territoriais e interiores, atuava-se na Península de Cubisseco, onde fora capturado vário material de origem russa e checoslovaca.
E dava informação da vida económica da Guiné:
“À margem dos acontecimentos militares, participamos que a abertura da próxima campanha de mancarra foi superiormente marcada para o dia 15 do corrente. Nas actuais condições anormais, é imprevisível qualquer estimativa acerca da produção daquele produto, mas admite-se que uma pequena baixa. Devido à presente situação, prevê-se que a nova campanha não decorra normalmente, contando-se com as arremetidas dos terroristas que tudo tentarão para perturbar o seu bom êxito. Estão previstas medidas de protecção aos mercados, ‘cercos’ e armazéns e cobertura militar ao transporte da mancarra para os portos de embarque”.

A derradeira correspondência desse ano data de 28 de dezembro, inicia-se com transcrição de informação oficial das Forças Armadas, dando-se relevo a uma festa de confraternização que se realizara em Aldeia Formosa, com a presença dos homens grandes de Forreá e Contabane, que servira de pretexto às manifestações mais calorosas de portuguesismo.

O que se segue é uma mistura de informação económica e de dados confidenciais, nesta altura o gerente de Bissau ainda possui um confidente ao alto nível e escreve:
“À margem dos acontecimentos militares, acentuamos que a presente campanha de mancarra há pouco iniciada está a decorrer com normalidade, não se tendo registado até agora qualquer acto de terrorismo tendente a perturbar o andamento regular dos trabalhos em curso a ela ligados.
As medidas militares previstas, iniciaram-se ontem com a instalação em Binta, porto do interior da Guiné servido pelo rio Cacheu, de um pelotão destinado a proteger os armazéns num local existentes e o embarque do produto para a Metrópole.
Como nota saliente da última semana, temos a registar a fuga em 23 de Dezembro de 4 naturais da Província, funcionários das repartições da Alfândega, Correios e Fazenda, presumindo-se com destino ao território vizinho do Senegal a fim de ali se juntarem aos elementos naquele país instalados e pertencentes aos partidos ‘libertadores’.
Como corolário deste acontecimento, a PIDE prendeu uma trintena de indivíduos que se preparavam também para iniciar a fuga com a mesma finalidade. Interrogados, declararam uns que apenas pretendiam mudar de situação, outros que se propunham frequentar cursos com bolsas de estudo atribuídas para o efeito”.

A carta enviada a 3 de janeiro traz uma informação que nos ajuda a compreender como se alastrara a luta subversiva. Até agora, as informações martelavam continuamente acontecimentos ocorridos no Sul e na região entre Mansoa e Bissorã, com destaque para o Oio. Ora na primeira carta de 1964, e reportando-se a acontecimentos ocorridos na última semana de dezembro, havia já referências a ataques a Amedalai e Cutia, ações de nomadização no Oio e na região do Xime tinha sido surpreendido um numeroso grupo de terroristas bem como em S. Belchior, não longe de Enxalé. Decididamente, a Frente Leste dava sinais de vida. Tinham sido igualmente localizados acampamentos terroristas em Fulacunda e destruído um paiol junto à lagoa de Bionra.

Em 17 de janeiro, a transcrição do comunicado oficial já fala das três Frentes, não as enunciando explicitamente: o PAIGC fizera explodir três fornilhos no Oio e assaltara viaturas civis, igualmente emboscara; no Sul fizera rebentar um fornilho; em Chicri, no regulado do Cuor, tinham sido localizadas casas de mato e destruídas. Sem nunca falar na operação Tridente, o gerente refere que estava em curso uma operação de grande envergadura destinada a libertar parte do território da Guiné há tempos sob o domínio terrorista. “Segundo consta, um dos objectivos a atingir é a ilha de Como, ao Sul da Província que, como em tempos informámos V. Exas., se encontra solidamente guarnecida. Para apreciarem de perto a anunciada ofensiva, encontram-se no teatro da luta o senhor Ministro da Defesa e altas patentes das nossas Forças Armadas. Por indícios chegados ao nosso conhecimento, a citada operação terá a duração aproximada de três semanas”.

Data de 22 de fevereiro a última carta do gerente de Bissau cujo teor aqui interessa repetir, por ainda não estar a sua informação completamente condicionada às informações oficiais, e o que nos diz tem nalguns pontos foros de ineditismo:
“Como facto saliente à margem dos acontecimentos militares em curso no território desta Província, há a registar a presença nesta cidade de uma comissão da FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné), com sede em Dakar, constituída por Cesário Carvalho Alvarenga, antigo Chefe de Posto de Pecixe e que há anos fugiu para o Senegal, Ernestina Silva e Gano Umasú.
A FLING, segundo depoimento do seu secretário-geral, Emanuel Lopes da Silva, feito em fins de Julho do ano passado em Conacri numa reunião com uma ‘missão de boa vontade’ constituída por representantes oficiais de países africanos: a Argélia, as Repúblicas da Guiné e de Leopoldville e o Senegal, encarregada de verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que, instalados em Dakar e Conacri, têm como propósitos ‘a emancipação de Cabo-Verde e da Guiné’, replicou a Amílcar Cabral, também secretário-geral do PAIGC, que o seu partido possuía também na República de Sekou Touré um ‘estado-maior e um campo de treino’, alegando que as ‘formações militarizadas’ da FLING haviam penetrado por mais de uma vez em território da Guiné, nomeadamente na região entre Varela e S. Domingos.
Não obstante ter-se chegado à conclusão que no território senegalês o partido mais importante era a FLING, a ‘missão de boa vontade’ resolveu recomendar, depois de votação, que fosse reconhecido como único movimento verdadeiramente representativo da luta contra o colonialismo português na Guiné ‘chamada’ portuguesa, o PAIGC.
Apesar disso, foi o partido banido que enviou à Guiné a comissão que veio conferenciar com o Senhor Governador da Província, certamente com autorização do Governo Central, e que tranquilamente, sob as vistas estupefactas do agente da PIDE, desembarcou no aeroporto da cidade vindo de Dakar.
Do resultado e objectivos das conversações nada, como é lógico, sabemos”.

(Continua)

Este marco está situado nos arredores de Suzana, mais ou menos a meio da estrada que liga Suzana ao porto de Buadje. Foi mandado construir pelo Administrador de S. Domingos para comemorar a chegada à Guiné. O marco foi colocado no local onde, segundo a tradição Felupe, Deus (Emit-ai) colocou o primeiro casal Felupe. A inscrição do marco diz o seguinte:
“Foi aqui que o primeiro Felupe ergueu a sua casa de tardição V Centenário 1446-1946”
Imagem e texto amavelmente cedidos por Lúcia Bayan, a fazer doutoramento sobre a etnia Felupe.

A Igreja de Catió, imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim.

Imagem que consta do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão
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Nota do editor

Poste anterior de 18 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19414: Notas de leitura (1142): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (69) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19425: Notas de leitura (1143): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (1) (Mário Beja Santos)