segunda-feira, 27 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21202: Notas de leitura (1295): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Dá-se continuidade à análise de um livro que consideramos de leitura obrigatória para todo aquele que se sente motivado pelo estudo da história da Guiné. Trabalho de rigor, e uma análise muito cuidada, que inclui leituras, entrevistas e o estudo dos números e dos inquéritos. Álvaro Nóbrega não se circunscreve aos 10 anos de democratização, procede ao levantamento do antes a independência, estuda as diferentes elites que se formaram na Guiné-Bissau, identifica as ambiguidades, os obstáculos e os antagonismos entre um Estado que não cobre o que se chama o território nacional e um território nacional onde é muito forte o peso da sociedade civil rural, das tradições. Com esta análise, lembra o autor, torna-se mais claro o papel político dos militares, a fragmentação dos partidos e a inoperância das instituições.
Um livro precioso, tanto na Guiné-Bissau como em Portugal.

Um abraço do
Mário


Os ziguezagues da democracia guineense:
Uma obra indispensável de Álvaro Nóbrega (2)

Beja Santos

Em “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, Álvaro Nóbrega, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015, dá-nos um estudo admirável sobre as sinuosidades do processo democrático guineense, a partir da luta de libertação, das tensões que esta mesma provocou, dos equívocos entre um sonho de modernização e as múltiplas dificuldades do Estado se encontrar com a nação e com as populações nela residentes.

O Estado existe mas é negligente, descura a sua própria história e o autor cita um artigo publicado em 2003 em Kansaré, de algo de grave que se viu em Lugajole: “As ruínas da Casa da Independência continuam a cair pedra a pedra nas brumas das preocupações dos governantes (…) A placa comemorativa da proclamação da independência já desapareceu. Onde foi parar? Ninguém sabe. É provável que o metal deste símbolo da liberdade já tenha sido fundido para fabricar algum objeto fútil. Triste reciclagem dos valores da independência!”. Na euforia da chegada a Bissau, em Outubro de 1974, os líderes entenderam mandar arrancar os símbolos da presença colonial, as estátuas foram enviadas para a fortaleza de Cacheu. A estátua do presidente norte-americano Ulisses Grant, que tivera um papel primordial na questão de Bolama, foi pilhada e fundida. Perderam-se memórias preciosas, a começar pela destruição do património que pertencera ao Museu da Guiné e que estava nas instalações do INEP que foram vandalizadas pelas tropas senegalesas que fizeram fogueiras com mapas antigos. E o narcotráfico fez relevar outra questão que comporta alta perigosidade, como observa o autor: “A sede real do poder tem sido pretensa de um núcleo de poder, sem enquadramento constitucional, que envolve militares e civis ligados por interesses patrimoniais e por outros níveis de solidariedade. É este núcleo informal que detém, em última instância, a capacidade de determinar o exercício da força e da violência do Estado”. Isto ocorre na falta de autenticidade do poder, de uma verdadeira criminalização do Estado, na incapacidade de se praticar com independência e rigor a justiça e onde o funcionalismo, cronicamente mal pago, é a própria bandeira da corrupção.

E temos a efemeridade das governações, como o autor comenta: “Quando os governos não são inexperientes, não são coesos, resultando de coligações precárias intra e interpartidárias que se fazem e desfazem ao sabor das intrigas políticas, das pressões militares e das vontades presidenciais. Essa tem sido uma constante dos governos guineenses cujo tempo máximo de vida, depois da abertura política de 1991, tem rondado os dois anos de mandato”. E a governação precária anda também a reboque da instabilidade política e militar: “Em 2008, as eleições trouxeram de novo Carlos Gomes Júnior ao poder, que iniciou um ciclo de crescimento económico, mas a luta pelo poder e instabilidade política e militar continuaram a marcar na vida guineense, como ficou bem expresso nos assassinatos de 2009, na deposição do CEMGFA Zamora Induta, em 1 de Abril de 2010, e no golpe de Estado de 12 de Abril de 2010, que o obrigou ao exílio”.

É pois importante apurar o papel dos atores. Logo a elite política. Na década de 1980 uma camada social ou grupo de pessoas, a propósito da liberalização que então estava a ocorrer, passaram a intervir fortemente na vida política. Nesta elite moderna entram famílias de cultura crioula com peso histórico, invejada e detestada pelos grupos intervenientes de diferentes camadas étnicas, que não lhes reconhecem legitimidade. Daí os apodos, sempre depreciativos: à quem considere Carlos Gomes Júnior, cabo-verdiano, o ex-presidente Henrique Pereira Rosa, português e Francisco Fadul, libanês. As discriminações sucedem-se, não há pior insulto que chamar alguém Burmedjo (vermelho), uma tez clara que faz com que uma pessoa seja considerada de “cor”.

Há outro percurso das elites, que é o das habilitações, há os pergaminhos da luta, e depois da independência chegaram muitos jovens educados no exterior. O autor observa: “Estes jovens forneceram os quadros necessários aos muitos partidos que se criaram para competir pela sede do poder, vão dar origem a uma elite política onde se irá integrar uma elite tradicional”.

Procedeu-se a um estudo para identificar a composição desta elite política, enorme, se atendermos à presidência e aos seus conselheiros e assessores; ao governo com os seus ministros, secretários de Estado, chefes de gabinete, diretores-gerais, diretores das empresas públicas, governadores regionais, administradores de setor; pelos deputados e pela legião que são as fileiras dos partidos políticos. O estudo em apreço sobre a elite política teve em conta os representados na Assembleia Nacional Popular. Apura-se a ver subalternização da mulher, são 10% da composição do parlamento; os grupos etários dominantes estão entre os 30 e 59 anos; analisando a distribuição dos deputados por profissão constata-se que o peso dominante vai para os comerciantes, professores, engenheiros e trabalhadores da função pública e o nível de escolaridade que mais pesa (41%) é dado pelos licenciados; não surpreende os problemas complexos da etnicidade por várias razões: a dupla e tripla pertenças étnicas são uma realidade comum e frequente. A identificação étnica pode variar no tempo e no espaço, pode mudar para processos de convergência étnica e, por exemplo, os processos de mandiguização e de fulanização levaram as etnias sujeitas a tais processos de aculturação a adotar a mesma antroponímia; quanto à cultura religiosa, os números não são devidamente esclarecedores, temos cerca de 42% deputados islamizados e 60% que se dividem entre o animismo e o cristianismo.

Já fora deste inquérito, o autor disseca o papel político dos militares. Nas democracias estabilizadas, as forças armadas permanecem submetidas ao poder civil. Recorde-se na Guiné-Bissau nunca houve uma separação efetiva entre a política e as armas. Em Cassacá estruturou-se o corpo de guerrilha do PAIGC que ficou dependente da direção política. Com o golpe de Estado de 1980, a regra subverteu-se e com o multipartidarismo estabeleceu-se a promiscuidade e daí as acusações recíprocas entre partidos de acusações das interferências políticas, dos assassinatos de militares da conivência com os golpes. O autor sublinha existir promiscuidade entre políticos e soldados nas bases militares. Tagme Na Wai, o terceiro CEMGFA desde 1999 estava consciente desta situação perigosa e de que as lutas partidárias nos quartéis podiam ser mortíferas. E daí ter lançado um aviso: “Queremos dizer aos partidos políticos da Guiné-Bissau, cujos elementos são nossos familiares – irmãos, sobrinhos, tios –, que nos deixem fazer o nosso trabalho militar nos quartéis, que cada vá organizar o seu partido na sua sede. Para nós, os militares, as nossas sedes são os quartéis e os nossos militares são os nossos militantes”.

(Continua)
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Nota do editor

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