1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas,
Deixo-vos mais um
pequeno texto inserido no meu último livro intitulado, nono, “Um Ranger naGuerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” e já à venda ao público nas livrarias (Edições Colibri, 2019).
Memórias de GabuDois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu
A fuga
Foi por aquele pequeno espaço feito em tijolos que os guerrilheiros do PAIGC se piraram [Vd. foto acima],
Relato, com um
saudosismo que é próprio da minha pessoa, o conteúdo de uma fuga protagonizada por
dois guerrilheiros do PAIGC, feitos prisioneiros, que numa bela noite se piraram de
uma modesta e casual prisão existente no quartel.
Assevero, que o meu
primeiro aposento em chão fula foi precisamente de paredes-meias com a dita
cadeia. Naquele tempo alguém terá comentado a razão do espaço. Todavia, a
coisa, dita com verdade, pareceu soar a “bocas da velhada” – em final do seu
ciclo de rendição - para amedrontar o pessoal piriquito acabado
de chegar àquelas paragens guineenses.
Recordo que a temática
acerca da prisão dos dois inimigos de guerra – usualmente conhecidos por
“turras” pelas nossas tropas - suou a silêncio. Falou-se, sim, sorrateiramente
no assunto, todavia as impressões sobre o caso caíram num pressuposto saco
roto.
Lembro, que foram
alguns os camaradas no quartel que se aperceberam da endiabrada e hábil
aventura dos lestos homens. Tanto mais que o acontecimento passou quase
despercebido à generalidade da maralha. Falou-se do tema à socapa, mas na
verdade o assunto comentou-se.
Naquele tempo, e com
a guerrilha em plena atividade no terreno, tudo o que transpirasse a eventual
curiosidade, ou saísse fora da rotina, era normalmente abafada. Assim, tudo ou
quase tudo, digo eu, era restrito a conversações entre graduados. A malta, o
tal soldado desconhecido, combatente exímio e corajoso, cumpria deveres e
recreava-se com momentos de ócio que os instantes livres lhes proporcionavam.
Mas nem tudo era
sinónimo de desinteresse. A novidade carecia sempre de dois dedos de conversa.
Dois turras presos no quartel sintetizava atenção
acrescentada. Mormente para ver in loco o rosto de dois
guerrilheiros com os quais o pessoal da Metrópole combatia no terreno.
Sei que a sua
estadia foi efémera. Desconheço pormenores da sua captura e o local onde o
aprisionamento ocorrera. Portanto, debitarei aquilo que, na ocasião, me foi
dado saber. Evoco, como dado adquirido, que a chegada ao quartel foi marcada
pelo secretismo. Seguiu-se, naturalmente, a sua instalação num espaço
considerado de segurança. Uma espécie de “jaula” assegurava, fortuitamente, uma
vigia apertada. Um pequeno quarto com uma porta que acusava já algum desgaste,
sendo o espaço exíguo, parecia apresentar-se com as condições ideais para os
homens pernoitarem sob o segredo dos deuses. Depois, sucedia-se o
imprescindível interrogatório, como era hábito acontecer.
Elementos da PIDE
encarregar-se-iam de lhes sacarem informações, nem que para tal a sua ação
passasse por utilizar os métodos mais rudes. O importante, para eles, agentes
do Estado Novo, passava por colocar os homens a confessar tudo aquilo que
sabiam.
Mas, nem tudo o que
parece é. Ou seja, existiam pequenos pormenores que tacitamente fugiam à
intenção dos graduados, homens que já pareciam denotar algum traquejo na
guerrilha. Aquele pequeníssimo recanto virava para uma área totalmente livre.
Havia, é certo, os arames que limitavam o espaço do quartel a que acresce a
presença das sentinelas cuja missão era garantir a segurança àqueles que
dormiam, logo pressupunha-se, sim, que a seguridade dos guerrilheiros inimigos
apresentava fiança.
Porém, tudo se esfumou
num horizonte de incertezas, ou contrariamente de profícuas certezas,
clarificando melhor este filme a preto e branco entretanto visualizado. Na
noite da chegada às novas instalações, e sob o silêncio da madrugada,
consumou-se a fuga. Os homens, quiçá mestres em escaramuças de guerra e sabendo
o que os esperava, piraram-se sem que ao menos deixassem um pequeno rasto da
sua auspiciosa fuga.
Acrescente-se que a
sua porta de saída foi simplesmente uma pequena janela vedada em tijolos de
cimento. Os homens escavaram o espaço sem o mínimo de barulho, concentraram no
interior tudo o que era entulho e calmamente soltaram o afiado grito de Ipiranga,
como quem diz, o da liberdade.
Seguiu-se a passagem
do arame, facto este ultrapassado, e lá marcharam pela calada do breu rumo aos
seus camaradas. A guerra, para eles, apresentava-se também como um pesaroso
calvário, sabendo-se que a razão da sua luta no mato era levar o seu povo à
independência.
Dessa enlouquecida
aventura nunca mais nada se soube!... Peripécias de uma peleja onde o
sistemático envolvimento das forças em confronto transmitiam arte no saber
contrariar as liças que o IN a todo o instante impunha.
Em Gabu, os dois
homens do PAIGC trocaram as voltas ao inimigo, prepararam e concretizaram a
fuga que parecia, em princípio, condenada ao fracasso. Mas assim não o foi. “Os
turras piraram-se, pá”, comentava-se depois no aquartelamento, mas em
sigilo.
Passados todos estes
anos dessa famigerada fuga que deixou de boquiaberta o pessoal que soube da
estratégia montada pelos guerrilheiros, revejo a história e ainda admiro a
audácia dos afoitos prisioneiros.
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: ©
Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. também
o último poste desta série em:
6 comentários:
Zé Saúde
Quer dizer, assim como os dois fugiram da prisão, também poderiam ter entrado no Quartel sem serem vistos pelos sentinelas/seguranças do Quartel.
Que grande porrada teriam levado todos os que estava de serviço nessa noite.
Ab., saúde e cuidado que o bicho já está chegando ao Alentejo.
Valdemar Queiroz
Também em Bambadinca, no meu tempo (1969/71), eram maus, os carcereiros...LG
Traidores e saqueadores também os havia, por todo o lado, estou certo.
Um abraçoJS
João Sacôtio, querido amigo...
Quando digo que os nossos carcereiros eram "maus", era o no sentido de serem... "incompetentes". Simplesmente, não havia carcereiros, na tropa não havia essa especialidade, e nos nossos quartéis quando havia presos, população ou "turras" (que não eram militares aos olhos das nossas chefias militares....),era uma chatice... Onde é que vamos pôr os homens, os velhos, as mulheres e as crianças ?...Em Bambadicna, havia uma espécie de galinheiro... Em todo o lado improvisava-se...
Em Nova Lamego, imagino que possa ter havido cumplicidades, de dentro e de fora... Afinal, toda a gente entrava e saía dos nossos quartéis... Havia pessoal civil que trabalhava para a tropa... Não sabemos se, no caso presente, os presos eram simples "suspeitos" ou "guerrilheiros" apanhados de armas na mão... (Aqui o caso era mais sério...).
Independentemente das simpatias político-ideologicas (, havia "simpatizantes e militantes dp PAIGC no Gabu), os "presos" eram mandingas ou fulas, e terão beneficiado das solidariedades étnicas, de parentesco ou de vizinhança... Deviam ser do Gabu...
E, depois, dois homens, jovens, confinados num espaço fechado, privados da sua liberdade, têm toda a noite para pensar em como fugir... Até porque o que os esperava na manhã seguinte não devia ser nada de agradável: o interrogatório pela PIDE/DGS, apesar d eta polícia já estar "mais humanizada" no consulado de Spínola...
E dois jovens, com a simples força de braço e ombro, arrancam facilmente da parede os dois frágeis tijolos que os separam da liberdade...
Tiveram sorte, o quartel era grande, não havia sentinelas à noite por todas as esquinas do arame farpado... DEvem ter sido recebido como "heróis", no regresso ao mato, se é que eram mesmo "guerrilheiros"...
Um abraço para o autor da história e os seus comentadores matinais, sem esquecer o meu querido coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, editor prvatiovo do Zé Saúde...
Corrigindo o meu post, quiz dizer sabutadores e não saqueadores.
Luis, obrigado por teres comentado e clarificado o meu post.
Entendo e aceito o que dizes.
Um abraço,
JS
Conheci muito bem a cidade de Nova Lamego (Gabu).
Quando leio estas 'Memórias do Gabu', do José Saúde, que pelas pormenorizadas descrições mais parecem sobre as filigranas dos brincos ou corações de Viana, não consigo localizar o local e o tempo em que são escritas.
Digo isto, por não perceber bem como é que dois prisioneiros fugiram da maneira como é contada.
Tanto o nosso Quartel de Baixo como o Quartel do Batalhão eram no centro da localidade, em instalações 'fechadas' com edifícios e por todo o perímetro havia arame farpado, valas/abrigos e sentinelas, com redobrada segurança durante a noite. Havia uma porta de armas com sentinela que só deixava entrar pessoal militar. Há várias fotografias no blogue que mostram bem a localização,
Provavelmente o Zé Saúde relata-nos o que se terá passado no Quartel novo, que eu não conheci.
Mas, o Quartel novo era fora da localidade e, sendo assim, maior seria o cuidado de vigilância e defesa. Duas fiadas de arame farpado, valas e abrigos mais seguros e vigilância apertada durante a noite, seriam as características principais de um aquartelamento numa zona de 'mato'.
No meu tempo (esta de 'no meu tempo' tem piada) todas as noites uma FOX e um unimog com uma Secção fazia ronda pela e à volta da cidade e era montada uma emboscada/segurança a nível de Pelotão junto ao rio do lado Piche/Canjadude. Isto passava-se em 1969/70, que mesmo assim houve um ataque do IN com entrada e tiroteio dentro da cidade.
Outra confusão é o sigilo sobre a fuga dos prisioneiros. Então não se falaria doutra coisa com o derrube da parede da prisão e tudo o mais?
Valdemar Queiroz
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