segunda-feira, 27 de julho de 2020

Guiné 61/74 – P21201: Memórias de Gabú (José Saúde) (94): Dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

Deixo-vos mais um pequeno texto inserido no meu último livro intitulado, nono, “Um Ranger naGuerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” e já à venda ao público nas livrarias (Edições Colibri, 2019).


Memórias de Gabu



Dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu
 A fuga

Foi por aquele pequeno espaço  feito em tijolos que os guerrilheiros do PAIGC se piraram [Vd. foto acima],

Relato, com um saudosismo que é próprio da minha pessoa, o conteúdo de uma fuga protagonizada por dois guerrilheiros do PAIGC, feitos prisioneiros, que numa bela noite se piraram de uma modesta e casual prisão existente no quartel.

Assevero, que o meu primeiro aposento em chão fula foi precisamente de paredes-meias com a dita cadeia. Naquele tempo alguém terá comentado a razão do espaço. Todavia, a coisa, dita com verdade, pareceu soar a “bocas da velhada” – em final do seu ciclo de rendição - para amedrontar o pessoal piriquito acabado de chegar àquelas paragens guineenses. 

Recordo que a temática acerca da prisão dos dois inimigos de guerra – usualmente conhecidos por “turras” pelas nossas tropas - suou a silêncio. Falou-se, sim, sorrateiramente no assunto, todavia as impressões sobre o caso caíram num pressuposto saco roto.

Lembro, que foram alguns os camaradas no quartel que se aperceberam da endiabrada e hábil aventura dos lestos homens. Tanto mais que o acontecimento passou quase despercebido à generalidade da maralha. Falou-se do tema à socapa, mas na verdade o assunto comentou-se.

Naquele tempo, e com a guerrilha em plena atividade no terreno, tudo o que transpirasse a eventual curiosidade, ou saísse fora da rotina, era normalmente abafada. Assim, tudo ou quase tudo, digo eu, era restrito a conversações entre graduados. A malta, o tal soldado desconhecido, combatente exímio e corajoso, cumpria deveres e recreava-se com momentos de ócio que os instantes livres lhes proporcionavam.

Mas nem tudo era sinónimo de desinteresse. A novidade carecia sempre de dois dedos de conversa. Dois turras presos no quartel sintetizava atenção acrescentada. Mormente para ver in loco o rosto de dois guerrilheiros com os quais o pessoal da Metrópole combatia no terreno.

Sei que a sua estadia foi efémera. Desconheço pormenores da sua captura e o local onde o aprisionamento ocorrera. Portanto, debitarei aquilo que, na ocasião, me foi dado saber. Evoco, como dado adquirido, que a chegada ao quartel foi marcada pelo secretismo. Seguiu-se, naturalmente, a sua instalação num espaço considerado de segurança. Uma espécie de “jaula” assegurava, fortuitamente, uma vigia apertada. Um pequeno quarto com uma porta que acusava já algum desgaste, sendo o espaço exíguo, parecia apresentar-se com as condições ideais para os homens pernoitarem sob o segredo dos deuses. Depois, sucedia-se o imprescindível interrogatório, como era hábito acontecer.

Elementos da PIDE encarregar-se-iam de lhes sacarem informações, nem que para tal a sua ação passasse por utilizar os métodos mais rudes. O importante, para eles, agentes do Estado Novo, passava por colocar os homens a confessar tudo aquilo que sabiam. 

Mas, nem tudo o que parece é. Ou seja, existiam pequenos pormenores que tacitamente fugiam à intenção dos graduados, homens que já pareciam denotar algum traquejo na guerrilha. Aquele pequeníssimo recanto virava para uma área totalmente livre. Havia, é certo, os arames que limitavam o espaço do quartel a que acresce a presença das sentinelas cuja missão era garantir a segurança àqueles que dormiam, logo pressupunha-se, sim, que a seguridade dos guerrilheiros inimigos apresentava fiança.

Porém, tudo se esfumou num horizonte de incertezas, ou contrariamente de profícuas certezas, clarificando melhor este filme a preto e branco entretanto visualizado. Na noite da chegada às novas instalações, e sob o silêncio da madrugada, consumou-se a fuga. Os homens, quiçá mestres em escaramuças de guerra e sabendo o que os esperava, piraram-se sem que ao menos deixassem um pequeno rasto da sua auspiciosa fuga.

Acrescente-se que a sua porta de saída foi simplesmente uma pequena janela vedada em tijolos de cimento. Os homens escavaram o espaço sem o mínimo de barulho, concentraram no interior tudo o que era entulho e calmamente soltaram o afiado grito de Ipiranga, como quem diz, o da liberdade.

Seguiu-se a passagem do arame, facto este ultrapassado, e lá marcharam pela calada do breu rumo aos seus camaradas. A guerra, para eles, apresentava-se também como um pesaroso calvário, sabendo-se que a razão da sua luta no mato era levar o seu povo à independência.

Dessa enlouquecida aventura nunca mais nada se soube!... Peripécias de uma peleja onde o sistemático envolvimento das forças em confronto transmitiam arte no saber contrariar as liças que o IN a todo o instante impunha.

Em Gabu, os dois homens do PAIGC trocaram as voltas ao inimigo, prepararam e concretizaram a fuga que parecia, em princípio, condenada ao fracasso. Mas assim não o foi. “Os turras piraram-se, pá”, comentava-se depois no aquartelamento, mas em sigilo. 

Passados todos estes anos dessa famigerada fuga que deixou de boquiaberta o pessoal que soube da estratégia montada pelos guerrilheiros, revejo a história e ainda admiro a audácia dos afoitos prisioneiros.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. também o último poste desta série em: 

3 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21136: Memórias de Gabú (José Saúde) (93): Piriquitos exploram o centro de Nova Lamego (José Saúde)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Zé Saúde
Quer dizer, assim como os dois fugiram da prisão, também poderiam ter entrado no Quartel sem serem vistos pelos sentinelas/seguranças do Quartel.
Que grande porrada teriam levado todos os que estava de serviço nessa noite.

Ab., saúde e cuidado que o bicho já está chegando ao Alentejo.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Também em Bambadinca, no meu tempo (1969/71), eram maus, os carcereiros...LG

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Traidores e saqueadores também os havia, por todo o lado, estou certo.
Um abraçoJS

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João Sacôtio, querido amigo...

Quando digo que os nossos carcereiros eram "maus", era o no sentido de serem... "incompetentes". Simplesmente, não havia carcereiros, na tropa não havia essa especialidade, e nos nossos quartéis quando havia presos, população ou "turras" (que não eram militares aos olhos das nossas chefias militares....),era uma chatice... Onde é que vamos pôr os homens, os velhos, as mulheres e as crianças ?...Em Bambadicna, havia uma espécie de galinheiro... Em todo o lado improvisava-se...

Em Nova Lamego, imagino que possa ter havido cumplicidades, de dentro e de fora... Afinal, toda a gente entrava e saía dos nossos quartéis... Havia pessoal civil que trabalhava para a tropa... Não sabemos se, no caso presente, os presos eram simples "suspeitos" ou "guerrilheiros" apanhados de armas na mão... (Aqui o caso era mais sério...).

Independentemente das simpatias político-ideologicas (, havia "simpatizantes e militantes dp PAIGC no Gabu), os "presos" eram mandingas ou fulas, e terão beneficiado das solidariedades étnicas, de parentesco ou de vizinhança... Deviam ser do Gabu...

E, depois, dois homens, jovens, confinados num espaço fechado, privados da sua liberdade, têm toda a noite para pensar em como fugir... Até porque o que os esperava na manhã seguinte não devia ser nada de agradável: o interrogatório pela PIDE/DGS, apesar d eta polícia já estar "mais humanizada" no consulado de Spínola...

E dois jovens, com a simples força de braço e ombro, arrancam facilmente da parede os dois frágeis tijolos que os separam da liberdade...

Tiveram sorte, o quartel era grande, não havia sentinelas à noite por todas as esquinas do arame farpado... DEvem ter sido recebido como "heróis", no regresso ao mato, se é que eram mesmo "guerrilheiros"...

Um abraço para o autor da história e os seus comentadores matinais, sem esquecer o meu querido coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, editor prvatiovo do Zé Saúde...

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Corrigindo o meu post, quiz dizer sabutadores e não saqueadores.
Luis, obrigado por teres comentado e clarificado o meu post.
Entendo e aceito o que dizes.
Um abraço,
JS

Valdemar Silva disse...

Conheci muito bem a cidade de Nova Lamego (Gabu).
Quando leio estas 'Memórias do Gabu', do José Saúde, que pelas pormenorizadas descrições mais parecem sobre as filigranas dos brincos ou corações de Viana, não consigo localizar o local e o tempo em que são escritas.
Digo isto, por não perceber bem como é que dois prisioneiros fugiram da maneira como é contada.
Tanto o nosso Quartel de Baixo como o Quartel do Batalhão eram no centro da localidade, em instalações 'fechadas' com edifícios e por todo o perímetro havia arame farpado, valas/abrigos e sentinelas, com redobrada segurança durante a noite. Havia uma porta de armas com sentinela que só deixava entrar pessoal militar. Há várias fotografias no blogue que mostram bem a localização,
Provavelmente o Zé Saúde relata-nos o que se terá passado no Quartel novo, que eu não conheci.
Mas, o Quartel novo era fora da localidade e, sendo assim, maior seria o cuidado de vigilância e defesa. Duas fiadas de arame farpado, valas e abrigos mais seguros e vigilância apertada durante a noite, seriam as características principais de um aquartelamento numa zona de 'mato'.
No meu tempo (esta de 'no meu tempo' tem piada) todas as noites uma FOX e um unimog com uma Secção fazia ronda pela e à volta da cidade e era montada uma emboscada/segurança a nível de Pelotão junto ao rio do lado Piche/Canjadude. Isto passava-se em 1969/70, que mesmo assim houve um ataque do IN com entrada e tiroteio dentro da cidade.
Outra confusão é o sigilo sobre a fuga dos prisioneiros. Então não se falaria doutra coisa com o derrube da parede da prisão e tudo o mais?

Valdemar Queiroz