Timor > Liquiçá > Manati > Boebau > 2019 > Visita do Ministro Provincial dos Capuchinhos à Escola de São Francisco de Assis (ESFA) (inaugurada em 19 de março de 2018). Em segundo plano, do lado esquerdo, vê-se o nosso amigo Rui Chamusco a tocar viola (ele é o homem dos sete instrumentos, toca tudo, do violino à gaita de foles, do acordeão ao órgão).
Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017) |
1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (de 5 de maio a 7 de julho de 2016) (*).
O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.
A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018, a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo).
A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, foi exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal. Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral. Acompanhamos também o dia a dia desta família, que vive no bairro Ailoc Laran.
Dessas crónicas de 2016, sob a forma de diário, decidimos publicar a maior parte dos apontamentos, dado o interesse documental que nos parece ter para os nossos leitores que, como nós, ainda sabem pouco da história, da geografia, da cultuare e dos usos e costumes dos nossos amigos e irmãos timorenses.
(Continuação)
Dia 23 de maio de 2016, segunda feira – Carta aos amigos
Desde Timor: Se outros calam, falemos nós...
Amigos, venho de chegar das montanhas de Liquiçá onde estive uns dias em contactos e a conhecer a realidade para a implantação da escola em Timor - Projeto de solidariedade.
Como em todo o lado, o interior é esquecido enquanto não houver negócios interesseiros que explorem os recursos e as pessoas. Muita pobreza. mas muita vontade de progredir.
Em Boebau / Manati há 110 crianças que vão à escola, mas há 300 que não vão devido às distâncias e às dificuldades do caminho. Sabem o que representa andar duas a três horas a pé para frequentarem uma escola?
Dia 24 de maio de 2016, terça feira
Depois de confirmar com o Pe. Fernando, resolvi aproveitar a boleia para ir com eles a Laleia e Cai-rui onde vai ser inaugurada (benzida) uma nova igreja, construção promovida pelos Capuchinhos de Laleia, particularmente obra do Frei Hermano Filipe. Uma obra de arte fruto de um grupo de artistas portugueses (arquiteto, professor de artes, trabalhadores da empresa de Paredes).
Depois de mais ou menos duas horas e meia de caminho. chegamos a Laleia, terra natal de Xanana Gusmão, onde se faz sentir uma forte presença dos Capuchinhos graças aos seus serviços religiosos e sociais. Ao visitar a comunidade senti-me como se fosse em casa. Tudo me era familiar. Não admira pois vivi tantos anos este estilo de vida!...
Para surpresa de D. Basílio apareci na sala onde estava reunido com o seu colega australiano D. Michael e o frei Filipe a preparar a cerimónia da inauguração. Levantou-se, dei-lhe um abraço e disse-lhe: "Eh pá, está mesmo velho!" Ao que ele retorquiu: "Olha e tu, estás todo branco!"...
Ganhei eu porque quem estava todo vestido de branco era ele, devido à batina desta cor.
Em Cai-rui foi um dia de festa grande. Com muitas cerimónias oficiais (chefes de suco, liurais, representantes, delegados, autoridades, discursos, etc…etc….). Uma representação clara de uma sociedade de classes clero, nobreza e povo. Aqui, ainda é assim. E ninguém tente pensar doutra maneira. Valores tradicionais ou outras coisas? [ Antes da administração portuguesa, Timor-Leste era composto por vários reinos, divididos por vários sucos e povoações. Estes reinos eram governados por régulos, designados por liurais. Fonte_ Wikipedia. LG]
Dia 26 de maio de 2016, quinta feira - Carta aos amigos
Hoje, dia do Corpo de Deus também em Timor, dou comigo a pensar neste profundo mistério da fé: um Deus presente em realidades humanas. O pão e o vinho transformados em corpo e sangue de Cristo.
Irá começar com uma turma de 30 crianças, a cargo de um professor timorense que já lecionou também o português, e ao qual teremos de pagar um ordenando de 250 dólares por mês. Depois, conforme as possibilidades, tentaremos alargar a nossa ação uma vez que há mais de 300 crianças em Boebau /Manati que não frequentam a escola devido às dificuldades de deslocação. A pé são mais ou menos 5 horas por dia, o que torna dificílima a frequência escolar.
Outro programa complementar será o apadrinhamento de crianças, de modo a sustentar o desenvolvimento das crianças apadrinhadas. É um processo fácil de concretizar pois não há leis que nos condicionem, e que poderá ser uma alavanca importantíssima para o desenvolvimento.
Da minha parte já dei o passo e estou a acompanhar Adobe, uma menina de 9 anos, que, para felicidade dela e dos pais, frequenta uma escola onde pode aprender o português.
Caros amigos, se puderem e quiseram ajudar não hesitem. Pouco custa e faz a diferença. Estamos a formalizar o programa de ajuda: O contributo monetário será bem vindo mas confesso que o apadrinhamento de uma criança me entusiasma. O dossiê com a ficha de dados de crianças necessitadas do nosso apoio está a ser elaborado e penso podê-lo apresentar na primeira quinzena de julho. Apelo desde já à vossa generosidade.
Diz a canção brasileira: “Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”. Diz o povo: ” Quem dá aos pobres empresta a Deus”. Então comecemos a preparar o nosso futuro e a ganhar pontos para a eternidade. (...)
Dia 27 de maio de 2016, sexta feira - As contingências dos pobres
Há dois dias que não há abastecimento de água. O bairro Pité, local onde moramos durante a nossa estadia em Dili, é um aglomerado de casas e floresta enorme que, apesar da proximidade da capital (arredores), a maioria das casas não tem água corrente nem saneamento básico.
Esta é talvez a maior dificuldade de adaptação de um comum cidadão europeu. Mas tem que ser, e o que tem que ser tem muita força. Este bairro que foi tão castigado pelos indonésios, com casas incendiadas, pessoas mortas ou presas, construções arrasadas (ainda se vêm algumas) depressa se tornou uma referência para o bem e para o mal.
Sem vias de acesso condignas, com muita circulação de pessoas ( a pé, de mota, em microlete, de táxi ) está votado ao esquecimento dos poderes estatais.
Ainda sobre o bairro Pité, há dias um amigo do Gaspar que trabalha no governo de Dili, e que combinavam a maneira de se encontrarem, perguntava ao telemóvel: "É seguro passar por aí?"...
Ainda dizem que não há “guetos”! Visitem estes mundos e depois tirem as vossas conclusões…
Dia 27 de maio de 2016, sexta feira - Histórias interessantes
O sargento Maurade era uma figura típica da região e, pelos vistos de Timor Leste. Dizem que foi o primeiro graduado de Timor pelo governo português. Fazia jus do seu posto, passeando o seu estatuto aqui pelas redondezas, sempre vestido impecavelmente, de botas e polainas bem engraxadas, impondo respeito e veneração. Muita coisa se conta desta personalidade ímpar. Relato apenas dois episódios:
(i) Conta-se que o sargento, como gente de alguns recursos e dando sinal de progresso, foi comprar quatro rádios, cada um já sintonizado em sua estação (rádio Timor, rádio Austrália, rádio Indonésia, rádio Portugal) ocupando os quatro cantos da sala. Sempre que queria ouvir notícias ou música de determinado país, dirigia-se para o respetivo canto e era só ligar o rádio.
(ii) Num determinado ano conseguiu ir passar algum tempo de férias a Portugal. Quando voltou, e face àacuriosidade dos amigos em saber notícias sobre a sua estadia em Portugal, o nosso homem contou: "Ei, camarada! No Portugal eu vi carro cum carro, cum carro, cum carro…i muito carro!"...
(iii) Não sei o seu nome, mas houve um senhor que deixou de fumar pela seguinte razão: “ fuma, fuma cigarro preto, castanho e a gente não mija preto? Onde ficou a cor? Ficou dentro, a fazer mal”.
Dia 27 de maio de 2016, sexta feira– Festa de noivado (barlak)
Os costumes e as tradições de um povo são uma revelação da sua identidade. Ontem foi dia de festa no bairro Ailoc Laran, porque houve pedido de casamento. Festa rija e farta de tudo, em que os paladares, as músicas e as danças primaram em demasia. A potência elevada de decibéis destoava do conjunto harmonioso da celebração ritual.
De resto, foi um desfilar de surpresas: a chegada do noivo, o contrato entre famílias, os dotes ( não percebi se as duas cabras que a família do noivo trouxe já fazia parte dos dotes ), muitos convidados que chegam. O tempo de negociações foi longo.
Por fim, que seria o início, aparecem os noivos que sob aplausos ocupam a tribuna. O noivo coloca na noiva um colar (fio) de oiro, e a noiva investe o noivo com um tais (o tradicional cachecol timorense).
A festa continua com o repasto onde todos se saciam. Tudo come e tudo bebe menos os noivos que observam pacientemente o desenrolar do festim. Dizem que é assim, enquanto houver comensais que se servem. O que é certo é que eu, que estava de frente, não me dei conta que alguma substância tenha entrado nas sua bocas durante toda a festança.
Depois começou o bailarico , que ainda dura hoje, às 8h00 da manhã. Mais um postal ilustrado deste Timor que a cada dia nos surpreende, nos envolve, nos cativa…
Dia 28 de maio de 2016, sábado – visita à praia de Areia Branca
Atrás do mentiroso alfaiate, lá fui eu mais o Eustáquio de mota, que é o melhor transporte em Timor particularmente em Dili, à procura das fardas da Adobe. Mais uma vez a encomenda ficou a meio: uma estava pronta, a outra foi esquecida talvez por conveniência uma vez que já está paga. Mandaram-nos lá voltar de tarde para a levantar. Mas, pelo sim pelo não, vale mais só lá passar uns dias depois.
Aproveitando a viagem o Eustáquio quis me levar a conhecer um outro mundo, a praia de Areia Branca onde os grandes (políticos, empresários, figuras de relevo) têm as suas mansões. Uma zona muito bem cuidada, com bons parques, boas estradas, hotéis, restaurantes, tudo o que é bom. Vi e confirmo as boas condições de vida deste “quartier”.
Se for este o paradigma de um futuro Timor, tudo bem. Que as pessoas que aí moram o merecem, tudo bem. Mas para quem já viu tanta pobreza e tanta miséria noutros recantos da cidade, noutras terras de Timor, o contraste e o choque é tão grande que interiormente me revoltam. Por que uns com tanto e outros com tão pouco?
Cá por mim, prefiro a praia da Areia Branca na Lourinhã, onde os parâmetros de sociedade são mais nivelados, o céu mais azulado e as águas mais frias. Alô, alô casa mia, a tantos milhares de quilómetros de distância…
Dia 28 de maio de 2016, sábado - “Senhor fazei de mim um instrumento da vossa paz”
De repente, sem que ninguém esperasse, o céu vira inferno, capaz de impressionar quem de mais estranho estava no local. Em ambiente de harmonia estava quase toda a família junta, quando os ânimos se alteram e começa a desordem, com tentativas de agressão, que se foi espalhando por todo o lado. Servi-me do meu estatuto de malaio, tentando acalmar os ânimos, segurando o exaltado Anô que, alterado pelas cervejas consumidas, ameaçava o seu tio Eustáquio, chegando mesmo a vias de facto.
Vi cair grossas lágrimas da face do amigo Eustáquio. Por isso, agi de imediato interpondo-me entre ambos e levando o Anô para lugar mais calmo. Apesar de tudo consegui acalmá-lo, ficando o resto do tempo sentado a seu lado, prevenindo assim a situação.
Eu continuava de intermediário dos ânimos exaltados. Senti que estava a ser um instrumento de paz. Passadas algumas horas tudo estava tranquilo, penso mesmo que pacificado. A mim foram-me pedidas desculpas pelo que aconteceu, mas é ao ofendido que as desculpas devem ser dirigidas. É assim este povo: uma capacidade enorme de perdoar.
Como Francisco de Assis apetece-me dizer (rezar): "Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz. Onde houver ódio que eu leve o amor; onde houver ofensa que eu leve o perdão; onde houver discórdia que eu faça a união. Porque é perdoando que somos perdoados”. (...)
Dia 30 de maio de 2016, segunda feira – pequena festa de despedida do Benedito
O Benedito é um rapagão de vinte e tais anos que, embora não sendo filho da Benedita – é simplesmente afilhado – um dia apareceu em casa vindo da sua terra natal, e a partir daí passou a ser parte integrante da família.
Aqui em Timor é assim. O sentido de pertença e de laços familiares é tão forte que de um momento para o outro um agregado familiar pode passar de dez para quinze pessoas sem problema algum. Perdão, minto porque alimentar quinze bocas e não dez não é a mesma coisa visto que os rendimentos são os mesmos. Mesmo assim ninguém é rejeitado ou posto à margem.
A Benedita que é enfermeira, tem a seu encargo os filhos, que são 7 e este filho afilhado. Com um ordenado que não ultrapassa os 300 dólares mensais, vejam como pode governar esta casa. Daí que Benedito tenha decidido ir trabalhar para a Coreia do Sul.
Dia 31 de maio de 2016, terça feira – O Gaspar teve que ir ao médico
Pois é, nem sempre as nossas opções são as melhores. Este teimoso resistiu até não poder mais. Por fim, pressionado por todos e particularmente por mim, aceitou ir ao médico porque já suspeitava ter a febre malária. Análises feitas, concluiu-se que não era a malária mas sim uma virose qualquer para a qual o médico receitou uma boa quantidade de medicamentos, inclusive antibióticos.
Estão a ver o Gaspar, sempre relutante em tomar qualquer tipo de medicamento químico, a ter de engolir durante o dia tantos comprimidos? Não sei a quem o hei de comparar se a uma criança ou a um velho rabugento que só abre a boca para falar. Irra que o gajo é chato!
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Nota do editor:
Último poste da série > 21 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25546: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II - A caminho das montanhas