
Queridos amigos,
É impressionante vermos que o Google e outros motores de busca guardam um número já bastante apreciável de trabalho sobre lançados e pombeiros. Num feliz acaso das minhas compras na Feira da Ladra encontrei estas atas de colóquio onde o professor universitário brasileiro Carlos Alberto Zerón apresentou um trabalho onde disseca analogias e dissemelhanças entre pombeiros e tangomaus, influentes intermediários no tráfico de escravos em África, parece-me um trabalho muitíssimo bem elaborado, embora tenha dificuldade em entender a omissão de referências aos estudos de António Carreira, Jean Boulègue, Silva Horta e Eduardo Costa Dias sobre estes luso-africanos de origem cabo-verdiana, mas também judeus e foragidos.
Um abraço do
Mário
Lançados ou tangomaus e pombeiros, no tráfico de escravos, o que os distingue
Mário Beja Santos
A investigação sobre os lançados ou tangomaus e pombeiros, imagens de importância primordial nas relações luso-africanas soma uma enorme quantidade de textos que qualquer um de nós pode encontrar em qualquer motor de busca, inclusivamente documentos universitários publicados em vários continentes. Mas pela primeira vez encontrei um trabalho que permite apreciar o que em lugares e espaços diferenciados de África distingue um lançado de um pombeiro. Trata-se do trabalho de um professor universitário brasileiro, Carlos Alberto Zerón, apresentado no II Colóquio Internacional sobre mediadores culturais, séculos XV a XVIII, que se realizou em Lagos, em outubro de 1997. Estranho o facto de Zerón pôr muita ênfase num trabalho publicado por Maria da Graça Garcia Nolasco da Silva, intitulado Subsídios para o estudo dos lançados da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, n.º 25, 1970, e nunca fazer a referência aos trabalhos de António Carreira, merecedores de crédito.
Por decisão da Coroa, que não queria ser prejudicada nos seus réditos, os cabo-verdianos tinham limitações no seu comércio, estavam proibidos de se internarem pelos rios, mas a verdade é que muitos desobedeceram, foram figuras privilegiadas no comércio ilícito em toda a zona dos Rios da Guiné. Eram, sobretudo, judeus foragidos, refugiados políticos, cooperando com traficantes originários de outros países, sobretudo ingleses, franceses e holandeses. O tangomau atua nos Rios da Guiné. O pombeiro é um mercador ambulante que atua sobretudo na região angolana, eram mulatos ou negros, antigos escravos libertos que funcionavam como emissários dos comerciantes europeus, que atuavam nestes paradeiros africanos ou no continente americano. O que se sabe de ambos os tipos de agentes comerciais é através de relatos indiretos, caso das relações de missionários ou das relações de viagens. Zerón, neste seu trabalho, pretende identificar as características essenciais destes dois grupos socioeconómicos, que também aparecem referenciados nos tratados jurídicos escritos pelos teólogos no decorrer do século XVI.
No caso dos tangomaus, a primeira regulamentação do trato da Guiné, de 1470, refere-os, segue-se um alvará de 1508 onde é abordado a punição deles considerando-os como infratores ao regime de monopólio real. No caso dos pombeiros, temos os relatos de viajantes, de administradores da Coroa e da correspondência dos missionários, existe esta informação desde os primórdios da ocupação portuguesa na região do Congo e Angola. Como escreve Zerón:
“através destes escritos vemos a conquista militar de Angola, efetiva a partir de 1574/1575, ganha evidência uma dupla estratégia de captação de escravos: aos prisioneiros feitos durante a guerra de conquista somavam-se os escravos negociados diretamente junto dos inúmeros mercados localizados no interior do país. Neste último caso, eram os próprios comerciantes portugueses, ou seus escravos, ditos pombeiros que realizavam a operação. Ambas as práticas foram inicialmente toleradas, sem que a administração real fosse além de um controlo alfandegários nos portos de desembarque. Mas um aumento significativo na demanda pela mão de obra escrava nesta mesma época (a década de 1570 corresponde ao início da expansão da cultura canavieira no Brasil, por exemplo) correspondeu a uma série de abusos que desorganizavam o mercado africano e colocavam em risco a estabilidade do fluxo do comércio negreiro.”
E daí terem iniciado as interdições das atividades dos pombeiros.
Revelou-se impossível a aplicação na região do Congo e de Angola de um modelo centralizador e monopolista. Quem eram os pombeiros? Eram escravos de negociantes e feitores, viviam próximos dos portugueses implantados juntos à costa africana, guarda-se documentação importante sobre esta atividade dos pombeiros, caso da descrição que nos deixou o físico holandês Olfert Dapper na sua Descrição dos Países Africanos, uma edição de Amesterdão de 1668:
“Alguns senhores ensinam a ler, a escrever e a calcular e outras coisas que possam ser úteis ao comércio a esses escravos comumente chamados pombeiros a partir deste local de comércio Pombo. Esses pombeiros têm ainda a seu serviço, sob seu comando, outros escravos, às vezes até ao número de 100 ou 150, os quais transportam as mercadorias sob suas cabeças pelo interior do país.”
O que têm estes agentes em comum? Antes que os conquistadores e os comerciantes portugueses ousem instalar-se ou desenvolver as suas atividades mercantis no interior do continente africano, são os tangomaus e os pombeiros que perfazem a intermediação comercial entre os europeus e os africanos. A despeito das fórmulas diferenciadas empregadas pela Coroa para tentar controlar o tráfico negreiro no Golfo da Guiné e nas regiões do Congo, Angola e Benguela, dá-se conta que a primeira operação de troca é efetuada quase exclusivamente por agentes intermediários marginais às sociedades europeia e africana. Temos registos da presença de pombeiros e tangomaus ativos juntos dos mercados africanos até ao século XVIII e mesmo até ao início do século XIX. Zerón lembra que há relatos detalhados sobre os tangomaus dos dois clássicos da literatura de viagens da autoria de André Álvares de Almada e André Donelha, bem como na Relação do jesuíta Fernão Guerreiro.
Repudiados tanto pela Coroa como pelos missionários, os tangomaus eram verdadeiros intermediários, mesmo que fossem encarados como apátridas, fossem eles judeus, homiziados ou degredados, valiam-se dos seus expedientes e da sua autonomia para mediar entre os negociantes estrangeiros e as tribos aborígenes. Uns com influência e até ligados às famílias dos régulos, outros levando uma existência miserável. Adotavam hábitos alimentares aborígenes e ritos gentílicos, praticavam frequentemente a poligamia, pagariam tributos aos chefes com quem negociavam. Ao contrário dos pombeiros, os tangomaus eram frequentemente donos dos seus bens, comerciavam principalmente escravos, mas também outras mercadorias (panos, algodão, cera, marfim, ouro, coiros) A sua vida religiosa era sincrética, um misto de cristianismo e vários animismos, havendo mesmo uma descrição de 1606 do jesuíta Baltasar Barreira que informa que há uma aldeia de 100 portugueses que seguem a lei de Moisés.
O pombeiro é um ser desqualificado e marginalizado pela sociedade portuguesa, dotados da capacidade de dotar várias línguas, como já se referiu eram escravos de confiança, operavam de maneira semelhante aos tangomaus, mesmo com uma autonomia significativamente menor já que não possuíam a propriedade das mercadorias negociadas nem participavam dos lucros obtidos. Quando em missão, os pombeiros partiam por um longo tempo com outros escravos que lhe eram subordinados, levavam as mercadorias dos seus senhores para trocá-las por escravos e também por marfim. Outra analogia que encontramos entre tangomaus e pombeiros era o interesse pela sua intermediação, apoiada pelas duas partes interessadas, os pequenos fornecedores e os comerciantes europeus buscavam quebrar o controlo monopolista imposto pelos grandes potentados locais.
Zerón, no termo da sua exposição questiona se esta intermediação dos pombeiros e dos tangomaus no comércio de escravos era ou não uma mediação cultural. Dá-nos uma síntese da moldura do pensamento na tradição jurídica antiga e medieval e depois na idade moderna quanto à legitimação do tráfico de escravos, mas estes pensadores da era dos Descobrimentos e depois consideravam que a intermediação destes agentes comerciais marginais estava desvinculada dos valores da sociedade cristã ocidental, não lhe atribuíam qualquer consideração para além de serem mediadores em negócios, eram discriminados pela sua aculturação e pela sua condição marginal social. E Zerón termina dizendo que pombeiros e tangomaus foram mais “atravessadores” que “mediadores culturais”.
Negociantes de escravos em Gorée, Senegal, século XVIII
Mercado de escravos no Recife, desenho de Zacharias Wagner
“Os Rios da Guiné” em History of the Upper Guinea Coast, 1545-1800, por Walter Rodney, New York University Press, 1970Brasão de Fernão Gomes
_____________Nota do editor
Último post da série de 18 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26700: Notas de leitura (1790): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: As turbulentas duas primeiras décadas na Guiné, ainda é difícil falar dela como colónia (6) – 1 (Mário Beja Santos)