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segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26355: Notas de leitura (1761): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,

É certo que qualquer balanço sobre questões magnas, como é o caso da colonização portuguesa, goza de um período de vida curta, é inúmera a série daqueles que se pronunciam favorável ou desfavoravelmente; e há o caráter histórico da presença portuguesa, estar em Mazagão ou Ceuta foi um processo bem diverso do povoamento da Madeira e dos Açores, e mais diverso foi este povoamento em Cabo Verde. O povoamento conciliou a religião da Igreja Católica e as forças do mercantilismo; a presença portuguesa no Brasil apelou à libertação do índio e aqueles negros que vieram para os engenhos de açúcar conheceram processos de aculturação totalmente distintos daqueles que ocorreram no continente africano. Confesso que lendo hoje este trabalho de Banha de Andrade presumo que o professor e erudito que de algum modo acreditava no sonho ultramarino tem uma boa solidez cultural, aborda questões cruciais e omite outras. Mas tudo isto aparece publicado em novembro de 1975, há colaboração que se sente que está muito bem estruturada, outra ocorreu ao sabor do tempo do convite para escrever. Mas, tanto quanto sei, esta era a primeira sala de conversação de intelectuais de tão diverso ideário que se pronunciavam sobre o que fora a colonização multissecular, obviamente que nenhum deles foi convidado a pronunciar-se quanto às tribulações em que decorreu o processo descolonizador, em toda a sua linha, até àquela data.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (1)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Tomou iniciativa de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço. 

Banha de Andrade aparece em primeiro lugar, dele já aqui se falou, pois, num número da Revista Ultramar dedicado à visita do presidente Américo Tomás à Guiné em 1968, ele escreveu uma síntese histórica da colónia, documento que lamentavelmente é pouco citado na bibliografia.

O estudioso elenca um conjunto de períodos para a colonização, faço um reparo do que distingue a colonização africana da brasileira e releva as duas questões maiores, a evangelização e o comércio, em articulação com a estrutura socio-administrativa, muitas vezes decalcada da administração europeia (Governador, Capitão-Geral, Provedor da Fazenda, Ouvidor, Meirinho, Oficiais do Exército, Escrivães, Dioceses, Cabidos, Paróquias, Conventos, Misericórdias, Confrarias) mesmo quando a presença de restringia a núcleos costeiros. 

Foram sucessivas as tentativas para encontrar uma melhor forma de administração: o sistema de Donatorias, acrescentado ao posto e poder do Capitão-mor, nas ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Brasil, Angola, Moçambique (aqui com a designação e estrutura de Prazos, entre os séculos XVII e XIX) e companhias majestáticas, caso das Pombalinas, a da Zambézia, a estas estruturas sucederam-se os governos gerais. Os municípios eram dominados pelos brancos e mestiços, as confrarias agregaram todas as cores, instituiu-se em África a nobreza, com brasões, hábitos de ordens militares e comendas.

E anota um relacionamento peculiar:

“As populações mantinham-se como queriam e os portugueses serviam-se delas, dentro das relações sociais estabelecidas – livres ou escravos, como senhores ou subalternos, civilizando uns (ensino religioso, ofícios, costumes à base da moral) e deixando outros na barbárie. Nesta primeira fase predomina o estatuto das relações humanas, não se pondo o problema da posse da terra pelo indígena.”

Faz seguidamente uma apreciação da presença do negro em Portugal e descreve com detalhe a luta pela dignificação dos ameríndios, relevando o papel do padre António Vieira. Sintetiza este ponto dizendo que predominou uma tensão entre a procura da melhoria da condição humana do indígena e as ambições do mercantilismo, e constata que houve coabitação com o negro, o índio ou o oriental, tudo sem grandes forças bélicas, devido a convite e com oferta de terras por parte dos reis nativos.

A situação altera-se com a ascensão do liberalismo em que se admitia a igualdade de princípio entre todos os homens, processo que ganha um impulso com a abolição da escravatura. O Brasil torna-se independente, a presença portuguesa na Ásia é menor, nasce o Terceiro Império. 

A monarquia constitucional aboliu em todo o território angolano o serviço forçado dos carregadores, no cumprimento da carta constitucional, isto em 1856 e com a Conferência de Berlim a posse de colónias era determinada pela sua ocupação efetiva. Entra em discussão o direito de propriedade, volta a pôr-se na mesa o debate sobre o melhor sistema da administração ultramarina. 

A I República ensaiou prosseguir a política de descentralização, definiu-se o regulamento do trabalho dos indígenas nas colónias portuguesas (o indígena tinha obrigação de prover à sustentação da família cabendo ao estado o direito de o forçar a isso, e se não dispusesse de trabalho para dar aos nativos estes podiam ser obrigados a laborar para particulares, mas sempre nas mesmas condições de qualquer trabalhador livre.

Banha de Andrade é sério conhecedor de todas esta vasta legislação ultramarina, o seu ensaio neste livro abre pistas a quem queira estudar a evolução da legislação ultramarina da monarquia constitucional para a I República e depois para a ditadura, entrara-se agora numa fase da centralização, põe-se acento tónico na ação civilizadora, lembra as esperanças de Marcello Caetano em formar Estados autónomos integrados na pátria, mas o autor não deixa de dizer claramente que a colonização não integrou no quadro da assimilação, e assim se abriu naturalmente o horizonte da independência.

Indo um pouco atrás, ao Acto Colonial e à Carta Orgânica do Império Colonial Português, cita Marcello Caetano em 7 de setembro de 1945: “num só ponto devemos ser rigorosos quanto à separação racial: no respeitante aos cruzamentos familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbações graves na vida social de europeus e indígenas e origem do grave problema do mestiçamento”

O mesmo Marcello Caetano que se pronunciava assim ao Estatuto do Indigenato: 

“Os indígenas são súbitos portugueses, mas sem fazerem parte da nação, quer esta seja considerada como comunidade cultural, quer como associação política dos cidadãos.” 

Mas subitamente, havia que ter toda esta doutrina, o anticolonialismo marchava a passos largos, houve que rever toda a legislação, na lei ficaram abolidas todas as formas de trabalho cumprido, reconhecia-se a igualdade de salário, independentemente do sexo e da religião, e todos passavam a ser cidadãos portugueses.

Em jeito de conclusão, dirá que se torne difícil avaliar toda a dimensão da obra civilizadora dos portugueses. O que se torna óbvio é que essa ação deu consciência da unidade a regiões outrora dispersas. Não pode ser descurada a pacificação de conflitos interétnicos e termina assim:

“Os muitos desmandos da colonização portuguesa constituem, sem eufemismos nem piedade humanitária, o tributo que os povos pagaram, em todos os tempos e em todas a latitudes, quando se deu expansão de povos – para colonizar outros povos ou os largar, ou com o intuito coroado de êxito de integração num só e mesmo país, que o tempo aglutinou para sempre. A respeito da insistência das leis respeitantes ao trabalho e liberdade dos nativos, não deixaremos de frisar que a colonização não se restringiu à boa intenção das disposições legais. Estas, porém, não podem ser ignoradas no ato do julgamento da hora presente, nem sequer menosprezadas, porque ainda hoje, com toda a gama de superioridade de meios de fazer respeitar a autoridade constituída, subsiste por toda a parte o tremendo duelo entre o ideal e a realização. Os propósitos de uma linha correta de colonização, se não traduzem toda a efetividade dela, e, portanto, não cheguem para se gizar o balanço, não deixa de marcar o rumo que tomaria, se se tratasse de homens melhores que os conhecemos.”

Vamos seguidamente dar a palavra a um renomado estudioso francês, Frédéric Mauro, outro professor universitário com significativa obra sobre a colonização portuguesa.


António Alberto Banha de Andrade (1915-1982), professor universitário
Presidente da República pede desculpas pelos erros da colonização
Imagem alegórica à colonização portuguesa
Progressão em Angola pelo exército português durante a Guerra do Ultramar. Imagem retirada do jornal Diário de Notícias, com a devida vénia
As antigas instalações da Sena Sugar Estates. Imagem retirada do jornal Diário de Notícias, com a devida vénia
Igreja indígena na Guiné, anos 1920

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de3 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26342: Notas de leitura (1760): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (8) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26165: Notas de leitura (1745): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Aqui se versa a história do comércio de escravos, a era colonial e o quadro das independências no continente africano. A par de dados inequivocamente rigorosos, é nítido o desconforto de Basil Davidson a analisar o pacto estabelecido ao longo de séculos pelas chefaturas africanas e os comerciantes de escravos. É fidedigno o relato deste crescendo comercial polarizado para as Américas, tocou o Brasil, o Caríbe e a América Central e uma boa parte do que é hoje os Estados Unidos da América, prende-se com o açúcar, o tabaco, o algodão, a prata e o ouro e os diamantes, o trabalho do engenho, das plantações, das minas, até mesmo como na África do Sul o negro era escravizado ou induzido ao trabalho forçado. Houve escravos que resistiram, foi o caso do Haiti, revoltaram-se e foram massacrados pelos exércitos franceses.. Estes escravos africanos foram pioneiros do Novo Mundo,na Virgínia, Carolinas, na Geórgia, reformularam a estrutura do Brasil. A era colonial que despontou no século XIX entrará no ocaso no fim da Segunda Guerra, dos anos 1960 em diante o quadro político irá transfigurar-se. Desgraçadamente, ainda se pode utilizar o título de uma obra de René Dumont, "A África negra começou mal", este mesmo agrónomo escreverá mais tarde sobre a África estrangulada e o drama dos africanos nordestinos, em particular na região do Sahel.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Chegou o momento de nos centramos no comércio de escravos, em devido tempo já se observou que Davidson é francamente omisso quanto à natureza do comércio de escravos que se fazia dentro do continente, do Norte de África na bacia do Mediterrâneo e através do Norte de África para a Península Arábica e arredores. Dirá, de raspão, que o comércio de escravos remontava à época romana e que fazia parte importante da vida quotidiana da Europa, fala em escravos europeus, e dirá em dado passo:
“Estados cristãos, especialmente as cidades-Estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e Ásia Ocidental. E quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também.”
Suaviza a vida destes escravos, dizendo que eram muito bem tratados porque eram caros e acrescenta:
“Enquanto o comércio de escravos se confinou à Europa e África pouco mais foi do que um comércio de cervos domésticos e artífices, dado que as condições de vida dos escravos eram muito semelhantes às da maioria da gente pobre desses tempos.”

Há algo de muito cor-de-rosa nesta narrativa, para contrastar com a brutalidade do tráfico negreiro que se processará por europeus de África para as Américas, tráfico que envolveu portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e dinamarqueses, sobretudo. Tornara-se vital encontra mão de obra para a indústria açucareira, seguir-se-á o cultivo de algodão e a pesquisa de ouro e pedras preciosas. Os chefes africanos entraram no comércio de escravos, fizeram acordos amigáveis, aceitaram auxílio militar ocasional de piratas, ficaram satisfeitos por comprar produtos europeus, venderam ouro, marfim, pimenta e as provisões alimentares às tripulações dos navios europeus. Estes reis, ávidos de riquezas, lançaram-se em guerras para ter mais prisioneiros que seriam feitos escravos. Davidson encontra uma explicação para este comportamento dos chefes africanos: sentiam a atração por possuir esses produtos longínquos e queriam comprar armas, medida que irá merecer a reprovação de muitos, há mesmo testemunhos de quem protestava dizendo que aquela venda de armas era como entregar aos africanos uma faca para cortar os nossos próprios pescoços. Davidson elenca o funcionamento do comércio e depois o seu termo, e as consequências futuras destes africanos que passaram a integrar o destino dos povos americanos. Releva igualmente a importância dos escravos na fase pioneira do Novo Mundo trabalhando como mineiros, agricultores e criadores de gado.

E assim chegámos ao último capítulo da obra, caminha-se para a África moderna, entre a era colonial e a África de Estados independentes. Enumeram-se as razões que conduziram povos europeus ao colonialismo africano e não se esconde que os africanos pagaram um preço extra pelo envolvimento dos seus reis e mercadores no comércio de escravos. Este processo colonialista fez-se acompanhar, obviamente, de uma lógica de extração de riqueza, depois da Conferência de Berlim as potências coloniais foram implicadas na ocupação efetiva do território e Davidson faz uma súmula de quatro períodos principais:
“Como funcionou o sistema colonial? Qual o seu significado para a África? As respostas a estas perguntam podem achar-se se observarmos o que aconteceu entre cerca de 1880 e 1960. Podemos distinguir quatro períodos principais.
Primeiro, o período de invasão e conquista anterior e posterior à Conferência de Berlim de 1884-1885. Durou até cerca de 1900
Segundo, o período de montagem do sistema colonial e de destruição dos últimos remanescentes da resistência armada africana. Este prolongou-se até 1920, ou mais tarde em algumas colónias.
Terceiro, o período central do domínio colonial. Na maioria dos casos, este estendeu-se de cerca de 1920 até cerca de 1950, embora também com exceções.
Quarto, o período em que uma nova e sempre bem-sucedida forma de resistência política africana contra o domínio estrangeiro ocupou o centro do palco. Isto começou a acontecer cerca de 1950. A nova forma de resistência política chamou-se nacionalismo. Era um nacionalismo orientado, não para a conquista de outros, mas para a recuperação da independência africana adentro das fronteiras coloniais, que os africanos agora aceitavam como sendo as fronteiras das novas nações independentes que queriam construir.”

Conhecemos bem as guerras que ocorreram dentro deste quarto de período. O autor procura fazer uma reflexão sobre os insucessos africanos, é o caso do baixo nível tecnológico, a desunião no interior dos Estados africanos, a propagação de tribalismo, as debilidades da educação colonial (que refletiam atitudes das classes dominantes da Europa). Conta-se sumariamente a história das vias de resistência africana, a importância que teve a Segunda Guerra Mundial na desarticulação dos ideais imperiais, a alvorada da liberdade política e os casos de luta armada.

Os graves problemas não desapareceram com as independências, é o caso das fronteiras. “A ideia europeia de Estado, legado aos africanos, é que ele deve consistir numa única nação, com uma fronteira a limitá-lo. Para além da fronteira ficam outras nações diferentes. Contudo, esta asseada ideia de que devia ser um Estado não foi a ideia que os europeus efetivamente aplicaram em África. Eles retalharam a África em cinquenta colónias, ao sabor dos puxões e empurrões dos interesses e rivalidades europeus, e de maneira nenhuma de acordo com os interesses dos povos cujos países invadiram.
Muitas vezes os europeus limitaram-se a traçar linhas em mapas, mesmo quando tinham apenas uma vaga noção acerca dos povos e dos países através dos quais as linhas passavam. O resultado foi que poucas das fronteiras coloniais faziam qualquer sentido para a gente que vivia lá dentro.”

O Congo é um exemplo flagrante.

Subsistem os perigos da herança colonial e de um nacionalismo estreito. O fim da Guerra Fria parecia anunciar a retoma da via democrática, em muitos casos estes países imobilizaram-se e aguardam vias para o desenvolvimento, isto a despeito da ajuda da cooperação internacional se fazer com inegáveis benefícios, como é flagrante a gradual descida da mortalidade infantil e de doenças devastadoras.

Basil Davidson (1914-2010)
Mercado de escravos na região do atual Senegal
Aguarela sobre papel "Engenho manual que faz caldo de cana", Jean-Baptiste Debret, 1822
Divisão de África, finais do século XIX
Grupo ligado à Casa de Estudantes do Império, Amílcar Cabral é o segundo de pé à direita
Nelson Mandela
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Notas do editor

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Último post da série de 15 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Era para mim um imperativo regressar a um ensaio de altíssima qualidade sobre uma questão que se tornará crucial para entender os termos em que os representantes portugueses assinaram em Paris a convenção luso-francesa, em 12 de maio de 1886. Maria Luísa Esteves dá conta do rol de adversidades que pesaram na ténue presença portuguesa na Guiné ao longo de séculos, confinada a fortaleza-feitorias, o assalto persistente de franceses, ingleses e holandeses para tomarem posições e quando se chegou à Restauração estávamos reduzidos a uma Senegâmbia portuguesa que em termos de litoral se aproximava às fronteiras de hoje, porque no interior aventuravámo-nos no interior até Geba, e pouco mais. E é muito agradável recordar o trabalho incansável de Honório Pereira Barreto, um dos pais da Guiné-Bissau, lamentavelmente ignorado nos dias de hoje. O último texto será dedicado aos termos da convenção luso-francesa e às sucessivas etapas da delimitação das fronteiras, processo só concluído na década de 1930.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Continuando o histórico sobre a presença portuguesa na região, a autora recorda que ao porto de Bissau afluíam os produtos e os escravos vindos das regiões do rio Geba e de outros pontos. Vai surgir a primeira fortaleza. O governador Veríssimo Carvalho da Costa obteve do régulo de Bissau licença para a construção da fortaleza, iniciou-se em 1687. Para fazer face às despesas da construção, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, no início de 1690, e estabeleceu-se a capitania-mor em Bissau em 1692. Mas o tempo não soprava de feição a favor da Guiné. O governo, ofuscado pelo brilho das riquezas do Brasil, deixava o porto de Bissau à mercê da ambição dos franceses. D. José I imprimiu um novo rumo à política ultramarina, seguiu para a Guiné a nau Nossa Senhora da Estrela e mais três navios, levavam homens e apetrechos para construir uma nova fortaleza. E a exploração da costa da Guiné foi dada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com obrigação de acabar as obras da fortaleza.

Em 1783, uma nova empresa vai tomar a responsabilidade do comércio, denomina-se Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde, durou pouco, foi dissolvida em 1786. É neste contexto que a autora recorre a uma caracterização feita por Teixeira da Mota como síntese do sistema económico: “Durante séculos, pontificou a ‘economia de resgate’, com feitorias e fortalezas para a proteger. O sistema de trocas constava em contas, vidros, objetos metálicos, panos e álcool trocados por escravos, marfim e oiro. Havia produtos da Europa ou das ilhas de Cabo Verde e faziam-se trocas com o comércio regional: nozes de cola, ferro e até arroz da Serra Leoa por escravos do Cacheu e do Gâmbia.” Ao findar o século XVIII, Portugal possuía espalhados pela costa da Guiné centros de tráfico negreiro com as suas feitorias-fortaleza.

Mas numa atmosfera de tanta adversidade, evitou-se a formação de mais núcleos e assim os pontos mais importantes eram Cacheu, Bissau, Geba, Ziguinchor e Farim. Este era o panorama da Guiné. E se lhe juntarmos a existência de feitorias inglesas e francesas e o contrabando feito pelos barcos americanos, temos a visão completa desta colónia ao findar o século XVIII, é um quadro de decadência que se irá agravar com a repercussão no Ultramar das lutas fratricidas (que culminarão com o fim do absolutismo miguelista).

Franceses e ingleses procuram expulsar os portugueses da região, recorde-se a ocupação de Bolama pelos ingleses. Nem a França nem a Inglaterra respeitavam os direitos de Portugal à Guiné e apenas consideravam sob a sua autoridade os pontos onde exista força militar. Este quadro sociopolítico-económico fica desenhado com o fim da escravatura.

A autora projeta agora a sua reflexão para a “luta” pela posse do Casamansa. Até 1828, volta a recordar-se, os centros de povoamento sobre domínio português eram pouquíssimos: Bissau, Geba, ilha de Bolama, Cacheu, Fá, Farim, Ziguinchor, Bolor e Bolola (Buba). Os franceses penetraram no rio Casamansa em 1828, procede-se à compra de território ao régulo de Borin, na margem esquerda do Casamansa. Nesse mesmo ano, um negociante francês instala-se na Ilha dos Mosquitos ou de Carabane, na embocadura do Casamansa. A diplomacia portuguesa reage em Paris, protesto inútil, as usurpações irão continuar.

Honório Pereira Barreto distingue-se pela perspicaz e contumaz política de compras do território para Portugal. Em 1836, por via diplomática, chega a informação que os franceses estavam a organizar companhias para irem estabelecer feitorias na Guiné, acima de Ziguinchor, e que tencionavam enviar tropa para fazerem frente a qualquer ação dos portugueses. No ano seguinte, os franceses instalam-se na ponta de Jemberém, e, mais tarde, na aldeia mandinga de Selho. Honório Pereira Barreto protesta junto das autoridades francesas, envia cartas ao governador em Cabo Verde. Aspeto curioso, em 1838, D. Maria II ordena a Honório Pereira Barreto a construção de dois forte, um no mesmo braço do rio onde os franceses em 1828 tinham fundado um estabelecimento, e outro acima de Selho. Era uma medida de grande alcance, mas não vieram os meios financeiros necessários.

No meio de trocas diplomáticas sulfúreas, com as autoridades francesas a fazer ouvidos de mercador, a diplomacia francesa monta uma fantasia: que desde o século XVI está presente no Senegal, que há mais de dois séculos que exerce direitos de posse, comércio e soberania desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Chega-se ao desplante de dizer e escrever que os normandos tinham chegado à Guiné antes dos portugueses. E segue-se um período em que não há correspondência entre Lisboa e Paris. Depois, veio a reação de Lisboa com a enumeração exaustiva das razões históricas da presença portuguesa na chamada Senegâmbia, Paris não responde a estas notas. É neste contexto completamente desfavorável que o Visconde de Santarém enviou, em 1841, uma cópia da sua Memoria sobre a prioridade dos Descubrimentos dos Portugueses na costa d’Africa occidental, acrescentando-lhe alguns capítulos no ano seguinte. O embaixador em Paris, Visconde da Carreira, reforça a argumentação invocada pelo Visconde de Santarém com documentos existentes no Museu Britânico, todos eles elucidativos que monarcas franceses, ingleses e espanhóis aceitavam inequivocamente a soberania portuguesa na região. Os políticos franceses resistem, tergiversem, demoram a responder, Carreira continua na sua luta sem se dar por vencido e continua a enviar notas a expor ao governo francês as razões de Portugal. Não obtém resposta. O ponto curioso da artimanha usada pelos políticos franceses, quando recebiam o embaixador português, era a de assegurar-lhe que o governo de Paris não pretendia a soberania nem a exclusividade do comércio de costa. Por mais argumentos válidos que Lisboa apresentasse, por mais fortes que fossem as suas razões, nada abalava nem desviava o caminho que fora traçado pela ambição da França, que, como a Inglaterra, procurava alargar a sua influência sobre regiões que não lhe pertenciam, nunca atendendo a direitos históricos. Era o começo de uma nova política comercial (imperial) em que predominava o princípio da ocupação efetiva que virá a ser consagrado na conferência de Berlim.

Voltemos a Honório Pereira Barreto. Enquanto se está a dar este combate diplomático, o governador, quase na sombra e sem alarde, procura por meio de convenções com chefes indígenas Banhuns e Felupes, trazer novos territórios para a Coroa, à volta de Ziguinchor. Entre 1844 e 1845, firma em seu nome pessoal e à sua custa doze contratos de compra de terrenos. Em 11 de abril de 1844 foram celebrados contratos entre ele e os naturais de Jagubel e Afinhame.

Mas a este tempo já se vive numa atmosfera de tensões na região do Casamansa, assim vai acontecer em Selho e Jagubel, procuram-se todos os expedientes para impedir o comércio nesta área do Casamansa. A autora descreve ao detalhe a ação deste notável governador, os tratados celebrados com os chefes gentílicos que asseguravam que aos portugueses cabia o exclusivo direito de fazerem estabelecimentos e alfândegas e que a navegação e o comércio estrangeiro ficavam sujeitos à fiscalização portuguesa. De igual modo, é meticulosa a apresentar a ação portuguesa na Guiné, dado conta dos diferentes incidentes graves no Casamansa (o caso da ponta de Adiana, o caso Laglaise, o incidente de M’Bering). E assim, nos vamos encaminhando para os termos da convenção de 12 de maio de 1886, e por último teremos as sucessivas fases para determinar as fronteiras da Guiné.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > lGuiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25779: Notas de leitura (1712): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1869) (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
O Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa de Guiné, parece que ganhou vivacidade quanto aos assuntos da ainda Senegâmbia, já não se limita a nomeações, transferências ou autorização de férias por motivos de saúde ou às receitas alfandegárias, vimos em números anteriores que os governadores passam a enviar para a cidade da Praia informações mensais, fala-se de tudo um pouco desde a agricultura à saúde. Ora, nestes Boletins do início de 1869, aparece um relatório assinado pelo governador Fortunato Meira para o Governador Geral, dando conta de ocorrências havidas na região de Geba, não era a presença portuguesa que estava em causa, eram questiúnculas de diferente dimensão, revoltas contra régulos, que tinham obrigado à intervenção da força militar de Geba, o chefe dos Futa-Fulas veio atacar territórios Mandingas, queimou uma povoação, ainda se faziam escravos nestes ataques, como no passado, esse mesmo chefe dos Futa-Fulas pretendia atacar Gofia, povoação próxima de Geba, as tropas do presídio tiveram que intervir, o Governador mandou levantar quatro baluartes para defender o presídio, na eventualidade de tentativas de agressão. O Governador regressou a Bissau e o chefe dos Futa-Fulas queimou Gofia, degolando todos os homens que apanharam com armas na mão. No meio deste turbilhão, o Governador da Guiné informa o Governador Geral que a navegação no rio Geba estava desembaraçada, o chefe dos Futa-Fulas pusera termo a outras sublevações. Em leitura política podemos dizer que se estava a afirmar a boa relação entre as autoridades portuguesas e as etnias Fulas.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1869) (13)

Mário Beja Santos

Este ano de 1869 está a trazer algumas surpresas, ficamos a saber que a escravatura foi totalmente abolida e que há um prazo determinado para o escravizador libertar o escravo. E aparece um interessante relatório, seguramente que irá interessar os investigadores que pretendam aprofundar este período.

No Boletim Official n.º 4, de 25 de janeiro, por disposição do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, é criado em cada uma das províncias ultramarinas lugar de chefe de serviço de saúde, irá exercer as mesmas atribuições que até então pertenciam ao físico-mor. Lido atentamente o documento, não fica tudo exatamente na troca de nomes, abre-se a oportunidade a aparecer mais gente qualificada. No Boletim n.º 6, de 6 de fevereiro, é aprovado o orçamento de despesa a fazer com a reconstrução do Baluarte do Pidjiquiti na importância de 456.720 réis. No Boletim n.º 7, com data de 13 de fevereiro, confirma-se a nomeação feita pelo Governador da Guiné de Martinho Lopes de Oliveira para fiscal no ponto de Geba, fazendo serviço no ponto de S. Belchior (confirma-se assim que esta região do Geba passara a merecer quadro de ocupação e vigilância, o que não ocorrera até então).

Neste mesmo Boletim, o Governador da Guiné, Manuel Fortunato Meira, envia ao Governador Geral a ata de uma sessão da Comissão Municipal da Guiné, com data de 16 de janeiro, onde além do agradecimento ao Governador Geral “pelas acertadas medidas e providências que adotou para debelar a epidemia da febre amarela, louva igualmente o Governador Geral pelas acertadas ordens que deu para que a bandeira nacional fosse novamente colocada na colónia do Rio Grande de Bolola”, o que foi recebido por todos os povos desta Possessão, ainda os mais estranhos, com demonstrações de agrado e regozijo.

O Boletim n.º 8, de 20 de fevereiro, traz uma novidade, o relatório do Governador da Guiné para o Governador Geral, tem data de Bissau de 18 de janeiro. Depois dos cumprimentos da praxe, Fortunato Meira informa que embarcara para Geba, onde chegara no dia 15 de dezembro pela manhã, reuniu com os notáveis e mais povo deste ponto, queria apurar as ocorrências que haviam tido lugar envolvendo os gentios vizinhos, os de Badora e os Futa-Fulas. Apurou-se ter havido uma revolta dos gentios de Ganadu contra o seu régulo, o que levou as nossas tropas em Geba a atacar uma povoação, de Futa-Fulas, este, por sua vez, tinham vindo atacar diversos territórios de Mandingas, tudo isto se passou na margem direita; na outra margem, em Badora, houvera conflito entre régulo principal e um fidalgo daquele território, o chefe dos Futa-Fulas passou aquela gente para a outra margem e queimou a povoação de Bricama, o régulo teve que fugir para o território de Gole; este chefe dos Futa-Fulas, de nome Sori, convidou os Grumetes de Geba para o acompanharem, aliciava-os a trazerem escravos, etc.

Este documento de Fortunato Meira vem abonar a tese de que, independentemente dos conflitos à volta da presença portuguesa, as guerras gentílicas na segunda metade do século XIX tinham ganho uma enorme intensidade. A preocupação do Governador era que houvesse liberdade de circulação no rio Geba, que fora posta em causa por este conjunto de confrontos e até ataques ao presídio de Geba. No mesmo Boletim Official publica-se as instruções que Fortunato Meira deixava ao chefe do presídio de Geba, ficava autorizado a trazer a paz com os gentios vizinhos quando estes a vierem pedir; deveria o chefe do presídio conservar o mesmo presídio sempre na defensiva, e controlar todos os meios possíveis conciliatórios, que jamais se agridam gentios entre si, defendendo-se se for atacado, mas nunca atacando, e para esse fim iria permanecer em Geba um destacamento de 15 praças; havia que procurar manter sempre o presídio em boas relações de amizade, etc. etc. Isto para significar que passara a ser política dominante os termos de uma ocupação que dissuadisse conflitos interétnicos e que não pusesse em causa a soberania portuguesa.

No Boletim n.º 11, com data de 13 de março, publica-se um documento curioso emanado do hospital militar de Bissau, com nota das doenças que foram tratadas no serviço clínico nos meses de setembro e outubro de 1868. Referindo-se aos doentes militares, no mês de setembro, houvera um doente com bronquite crónica, tinha melhorado; outro com epididimite (inflamação do epidídimo nos testículos), estava curado; houvera três doentes com febres intermitentes quotidianas simples (?), estavam curados; um outro doente curado tinha tido febre terçã; um outro doente com febre perniciosa (forma congestiva) também estava curado; um doente com ferida na região diafragmática (produzida por um instrumento perfurante, faca), também estava curado; um doente com ferida à região anterior na coxa direita (produzida por instrumento perfuro-cortante, baioneta), também curado; um doente com ferida no dedo grande do pé (arrancadura da unha) continuava em tratamento; melhorara um doente que padecia de reumatismo articular crónico; um doente que padecia de sífilis e de cancros infetantes, tinha estado em tratamento e era dado como curado; com referência à tuberculose pulmonar, havia um doente em tratamento, outro falecera e um outro continuava em tratamento; quanto a úlceras da Guiné (?) havia um caso, o doente melhorou.

Para não cansar o leitor, há que referir que existe um quadro dos doentes civis, homens com pleuropneumonia, sífilis, tuberculose pulmonar, curados ou em tratamento; as mulheres padeciam de caquexia palustre (enfraquecimento extremo causado pelo paludismo) e de sífilis.

À relação de setembro segue-se a do mês de outubro, é bastante parecida com a anterior. O Boletim n.º 12 de 20 de março, emanado do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, decreta que ficava abolido o estado de escravidão; e no dia 29 de abril de 1878 cessaria para todos os indivíduos a condição de libertos; não pertencerão a qualquer pessoa de quem tenham sido escravos.

(continua)

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Notas do editor:

Post anterior de 19 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25761: Notas de leitura (1710): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1868 e 1869) (12) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25770: Notas de leitura (1711): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25558: Notas de leitura (1694): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2024:

Queridos amigos,
O conteúdo informativo deste Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde alterou-se profundamente. Da consulta que tenho vindo a efetuar ao Boletim desde 1850, a chamada Costa da Guiné só merece citações pelas taxas alfandegárias e nomeações, é quase um zero político. Mas na viragem de 1853 para 1854 são nítidas as mudanças. Honório Pereira Barreto escreve constantemente relatórios ao Governado Geral, saem-lhe as verdades como punhos: quem nomeia a partir de Lisboa envia o rebotalho das prisões e os quadros administrativos mais incompetentes; está constantemente a fazer sugestões e o Governador Geral aceita-as, sem exceção, louva-o publicamente. A verdade é que caminhamos para um mundo novo onde há escravos libertos, já se fala abertamente no respeito que merecem os autóctones, na administração da Justiça o Juiz dos Grumetes é uma pessoa respeitada. O termo da escravatura leva à reorganização do território, intensificam-se os negócios no Geba e no Corubal, surge um novo ordenamento administrativo e militar, assuntos que iremos versar no próximo texto.

Um abraço do
Mário


Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1853 a 1854) (4)


Mário Beja Santos

Dando continuidade aos últimos acontecimentos de 1853, o Boletim Official dá a infausta notícia do falecimento de D. Maria da Glória, publica-se na íntegra a ata do conselho de Estado, D. Fernando II é regente até à maioridade de D. Pedro, o futuro D. Pedro V. Mas há ainda acontecimentos desse ano que merecem algum destaque. É o caso de uma portaria publicada no dia 30 de dezembro, onde se diz o seguinte:
“Tendo representado o Diretor do Hospital Militar da Praça de S. José de Bissau sobre os graves inconvenientes que resultam de estar os miseráveis doentes expostos ao terrível incómodo que causam naquele clima os mosquitos, por não terem as camas o resguardo necessário para evitar a entrada de tais insectos: o Governador Geral, tendo observado por si próprio aquela verdade, e ouvido os queixumes do doente; e não podendo deixar de ser sensível ao aumento dos sofrimentos, que eles com vivas cores descreveram: determina que para o Hospital Militar da Praça de S. José de Bissau sejam compradas até doze camas de ferro com a armação necessária, a fim de terem de ter as cortinas que se usam naquela Praça, para evitar a entrada de mosquitos dentro daquelas camas.”

Em abril desse ano também ficamos a saber que o Capitão de Artilharia Victor Jorge, Comandante do Forte de S. Belchior, percebendo apenas a gratificação de cinco mil reis mensais, além do soldo da sua patente, não está, por isso, habilitado para todas as despesas a que é obrigado, já que pelo isolamento em que se acha naquele ponto tem de pagar muito caros os géneros comestíveis para seu alimento, já pelo dispêndio que faz com um continuado expediente, já finalmente pelos brindes que frequentemente se vê obrigado a fazer aos régulos vizinhos do Forte, segundo é isso e costume, para manter as boas relações com os respetivos povos, como exige a proteção que convém dar ao comércio de Bissau com os mesmos gentios: o Governador Geral desejando livrar dos apuros em que se acha o sobredito Comandante do Forte de S. Belchior, e considerando por outro lado a urgente conveniência do serviço público: ordena, que do primeiro do próximo mês de abril em diante, seja abonada ao mesmo Capitão Victor Jorge, e enquanto se conservar naquele comando, a gratificação de dez mil reis mensais. E ficamos igualmente a saber que se encontravam em grande vexame os oficiais do Batalhão de Artilharia de Linha destacados na Praça de S. José de Bissau, não tinham habitação militar para os acolher, eram obrigados a alugar casa na povoação que não lhes custava menos de oito patacas francesas por mês, fora igualmente deliberado aumentar-lhes o abono.

Perguntará o leitor qual é a verdadeira substância e que entendimento se pode extrair de toda esta informação constante no Boletim Official. Primeiro, como me parece já verificado, o noticiário sobre a Guiné é francamente residual até 1854, a partir daí dar-se-á uma reorganização administrativa e militar que é o primeiro esboço da ocupação efetiva. Segundo, vão começar a aparecer os relatórios e as tomadas de posição do Comendador e Governador Honório Pereira Barreto, a Guiné começa a ganhar forma territorial, Barreto expede com causa e fundamento para o Governador Geral a situação real, a desorganização, um efetivo militar que se revela pernicioso e incapaz de se fazer respeitar. Terceiro, o Boletim Official vai ressaltar os problemas económicos, citará comerciantes, até agora a importância da Guiné (ou Costa da Guiné) estava focada nas alfândegas, nos impostos, nas nomeações. A partir de agora a Guiné é mais qualquer coisa, como a leitura do Boletim Official patenteia.

Em março de 1854, o Brigadeiro Governador Geral Fortunato José Barreiros louva Honório Pereira Barreto nos seguintes termos:
“Tendo o Comendador Honório Pereira Barreto, desde que tomou posse do Governo interino da Guiné Portuguesa entre Dezembro de 1853 e Fevereiro de 1854 desempenhado as funções daquele cargo com o maior desvelo, assiduidade, e distinção, fazendo justiça com imparcialidade, dando seguimento a vários negócios que achou sem andamento, adotando muitas providências de reconhecida utilidade, e enviando um relatório do estado daquela colónia propondo uma série de medidas que manifestam a sua capacidade política e administrativa: o Governador Geral, comprazendo-se de ver em todos estes actos realizados as esperanças que tinha, quando o nomeou para o sobredito lugar, manda louvar o mesmo Comendador, pelos importantes serviços que acaba de prestar à Guiné Portuguesa.”

Na sequência deste louvor temos outra referência no mesmo Boletim Official a Barreto. Este informara o Governador Geral da absoluta impossibilidade de se fazer a cobertura dos tectos das casas de Bissau com telha de pau ou de barro, só que muitos dos habitantes são pobríssimos, não podem pagar a telha, o que os força a abandonar as suas casas ou vendê-las ao desbarato, só a primeira e segunda ruas da povoação são constituídas por edifícios mais sólidos, pelo que o Governador Geral determina que somente se ponha a execução do uso de tais telhas nas referidas duas primeiras ruas. Mas não fiquemos por aqui quanto a referências a Barreto, este informara o Governador Geral de ter suspendido Manuel Tavares d’Almeida, Diretor Interino da Alfândega de Bissau, por faltar à repartição com grave prejuízo do comércio, sem que tivesse dado parte do doente; por não ter dado resposta satisfatória às diversas intimações que lhe foram feitas, pretextando moléstia, apesar de ser visto a passear fora de casa, o Governador Geral confirmava o castigo aplicado por Barreto.

Em 15 de maio publica-se uma portaria que nos alarga a compreensão das mudanças que se estão a operar na Senegâmbia Portuguesa, novamente uma comunicação de Barreto para o Governador Geral relativa à conveniência de acabar com o abusivo procedimento de alguns indivíduos da povoação de S. José de Bissau, os quais retém como escravos homens e mulheres livres, habitantes dos terrenos circunvizinhos à Praça, a queixa chegara a Barreto através do Juíz dos Grumetes de Bandim e o régulo de Atim; tal retenção estava expressamente proibida pelas leis pátrias; o Governador Geral conformava-se com a opinião de Barreto e ordenava que este devia tornar público e exigir cumprimento que era absolutamente proibido fazer apreensão de qualquer indivíduo dos povos da Guiné a não ser dos legítimos escravos, havidos por compra ou por doação comprovada, Barreto devia intimar todas as pessoas que atualmente conservassem retidos indivíduos livres para que imediatamente fosse postos em liberdade.

E exara um parágrafo que é merecedor de muita atenção:
“Se algum dos habitantes das Possessões portuguesas em Guiné tiver motivo de queixa contra qualquer dos habitantes livres dos ditos povos circunvizinhos, por furtos, roubo, ou outro crime por ele praticado, fará a sua representação ao Governador da Guiné Portuguesa, para que este, depois de proceder às competentes averiguações, julgando a queixa bem fundada, exija do régulo respectivo a competente reparação. Quando os régulos efectuarem a entrega de algum culpado, com os artigos roubados, será o criminoso punido legalmente, mediante um processo sumário, e quando tenham de satisfazer por meio de trabalho a importância do roubo, será este previamente avaliado, e o criminoso compelido a indemnizar o dono dos objectos roubados. O Governador da Guiné dará conhecimentos destas disposições aos régulos".

Em Abril, o Chefe do Estado-Maior, Francisco Maria Barreiro Arrobas confirma no Governo interino o Comendador Honório Pereira Barreto, e deixa escapar o muito apreço que tem por ele, o Governador Geral: “Manda Sua Excelência declarar ao referido Senhor Comendador a firme convicção em que está de que neste novo período do seu governo da Guiné continuará a dar provas da probidade, do zelo e da inteligência com que sempre tem desempenhado as referidas funções.”

Como o leitor pode comprovar, algo mudou na importância da Guiné no contexto das relações com Cabo Verde, avizinha-se o fim da escravatura e as explorações agrícolas parecem ser a mais promissora alternativa.

Um dos aliciantes que encontro na leitura do Boletim Official do Governo de Cabo Verde é a variedade informativa, encontramos folhetins, poemas dedicados a Sua Excelência o Governador, comunicações de Estado como o falecimento de D. Maria II em 19 de novembro de1853, durante um parto, seguiu-se o beija-mão à rainha falecida, depois o beija-mão a Sua Majestade El-Rei Fernando II e novo beija-mão ao futuro D. Pedro V. Neste caso temos publicidade a farinhas restauradoras da saúde e das forças, e fala-se na Revalenta Arabica expedita ao Ministério do Palácio Imperial da Rússia.
Vista antiga de Cacheu
Estátua de Honório Pereira Barreto na Bissau colonial
Vila da Praia

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 17 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25536: Notas de leitura (1692): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25543: Notas de leitura (1693): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)