1. Mensagem do nosso camarada Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista da 1.ª CCP/BCP 21 (Angola, 1970/72), com data de 5 de Novembro de 2025:
MEMÓRIAS (À MARGEM) DA GUERRA
Notas de leitura do livro de Zweig, Stefan (2024). AMOK. Lisboa: Relógio d´Água. Esta obra foi publicada pela primeira vez, na Alemanha, em 1922.
Preâmbulo ao uso do termo amok
Na vida, quando olhamos, ao acaso, para os títulos dos livros bem arrumadinhos, algures numa estante, alguns deles, num ápice, espoletam em nós memórias e transportam-nos para locais e vivências, há muito tempo, arrumadas no sótão do esquecimento.
Aconteceu-me isso, recentemente, quando descobri este livro com o título AMOK.
Recordou-me o momento, em que, pela primeira vez, ouvi prenunciar a frase: deu-lhe o amok. Foi em Ninda, leste de Angola – Terras do Cú de Judas. Em fevereiro de 1970, quando fui render o Tenente paraquedista Grão no comando do 3.º Pelotão da 1.ª CCP do BCP 21. A companhia estava em plena fase operacional e, segundo me fui apercebendo, cada um dos 4 pelotões tinham encontrado forte resistência na zona.
Entretanto, nas conversas que ia travando com os meus novos camaradas de armas, ouvia-os pronunciar, regularmente, uma expressão que nunca tinha ouvido e desconhecia: “deu-me o amok, assaltámos a base e demos cabo daquilo tudo” ou, ainda, “cuidado com o gajo porque ele hoje, está com o amok” ou, ainda, “ninguém pode falar contigo, vai-te curar, estás com o amok”.
Com o tempo fui interiorizando o significado desse termo. Fui percebendo que se referia a alguém que se tinha “passado dos carretos”, “não via nada à sua frente” ou que “estava apanhado do clima”!... Foi neste contexto que fui assimilando o sentido do termo, de tal modo que, ao longo da vida, com alguma frequência e, em circunstâncias de menor ânimo, dizia para comigo: “hoje, não estás bem!... Hoje, estás com o amok”!...
1. Sobre o livro AMOK
Porém, ao folhear o livro de Stefan Zweig, vim a descobrir a origem e o significado do conceito de amok.
“ é um termo retirado da cultura Indonésia e significa “lançar-se furiosamente na batalha”. As pessoas afetadas por este estado psíquico têm ataques de fúria cega e procuram aniquilar os que consideram seus inimigos e quem quer que se interponha no seu caminho, sem consideração pelo perigo que correm”. (Zweig, 1992, capa)
Sobre o termo, transcrevo, ainda, o diálogo travado entre duas personagens do livro Amok:
“… O senhor sabe o que é o amok?
- Amok?... A palavra diz-me qualquer coisa… Não é uma espécie de inebriamento entre os malaios?
- É mais do que um inebriamento… é a perfeita loucura, uma espécie de raiva que atinge o ser humano… um ataque de monomania assassina, irracional, sem qualquer termo de comparação com outra forma de intoxicação alcoólica… eu próprio, durante a minha estadia nos trópicos, estudei alguns casos de amok –
“(…) tem, de certa forma, a ver com o clima, com aquela atmosfera abafada e sufocante que se abate, qual trovoada, sobre os nossos nervos até explodir, por fim…” (…) … mas quem está sob o domínio do amok, fica cego e não vê para onde se precipita … (…) não houve nada nem ninguém, não vê nada à sua volta.” (Ibidem, 39 a 41)
Stefan Zweig na obra AMOK coloca o “narrador a contar a sua viagem de Calcutá para a Europa a bordo do Oceania. Num passeio noturno na coberta do navio, encontra um médico preocupado e assustado e que evita qualquer contato social. Este vai contar-lhe o que o levou a uma relação obsessiva por uma mulher que o colocou em estado de amok” (Ibidem: contra capa).
2. Sobre a biografia do autor
Como se refere na capa do livro, Stefan Zweig nasceu em Viena em 1881. Era filho de um industrial e estudou História, Literatura e filosofia. Aos 17 anos escreve já em revistas modernistas. Praticou os mais diversos géneros literários, do romance ao teatro. Em todos os géneros procurou detetar as forças do irracional no coração da natureza humana.
Com a subida de Hitler ao poder em 1933, vê as suas obras serem destruídas em Munique. É forçado a partir para a Grã-Bretanha, de onde viaja para o Brasil em 1936 e depois para Nova Iorque, tendo visitado Portugal em 1938.
A 10 de setembro de 1939 escreve a Romain Rolland (1886-1944): “Não vejo qualquer saída para este terrível lamaçal”. Regressa ao Brasil em 1940 e em 1942 suicida-se com a mulher em Petrópolis.
As suas memórias, O Mundo de Ontem, de 1942, terminam com uma frase: “em última análise, cada sombra é também filha da luz, e só aqueles que experimentaram a luz e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a queda viveram verdadeiramente.”
Jaime Silva, Lourinhã, 1.11.2025
_____________
Nota do editor
Último post da série de 3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27382: Notas de leitura (1858): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (1) (Mário Beja Santos)
As suas memórias, O Mundo de Ontem, de 1942, terminam com uma frase: “em última análise, cada sombra é também filha da luz, e só aqueles que experimentaram a luz e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a queda viveram verdadeiramente.”
Jaime Silva, Lourinhã, 1.11.2025
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Nota do editor
Último post da série de 3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27382: Notas de leitura (1858): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (1) (Mário Beja Santos)


4 comentários:
Obrigado, Jaime, Fico com curiosidade em ler o livro. Do Stefan Zweig não conheço nada, para além do nome, de alguns títulos e da biografia.
O meu pai era fã. Falava-me do romance "Vinte e quatro horas na vida de uma mulher,", que foi um dos seus livros de cabeceira em Cabo Verde, em 1941/43.
Jaime, por certo que já ouviste a expressão: "Agarrem-me, se não eu mato-o!"...
Estão grafadas nos nossos dicionários as palavras "amoque" e "amouco".
amoque
(a·mo·que)
nome masculino
1. Acesso de loucura furiosa e homicida.
2. Reacção súbita de mau humor ou irritabilidade.
etimologia Origem: francês "amok", do inglês "amuck", do português "amouco", do malaio "amoq", arremetida furiosa, indivíduo possuído de fúria.
«
"amoque", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/amoque.
amouco
(a·mou·co)
nome masculino
1. [Índia] Indivíduo que, possuído de fúria desvairada ou desespero, jura vingar-se de ofensa cometida contra ele ou contra alguém a quem está vinculado, sacrificando a própria vida para defesa da honra ultrajada.
2. [Por extensão] Indivíduo que servilmente defende e lisonjeia os seus superiores ou chefes, o seu partido ou a sua doutrina.
adjectivo
3. Que está tomado de furor homicida e decidido a morrer.
4. Que é bajulador.
etimologia Origem: malaio "amoq", arremetida furiosa, indivíduo possuído de fúria.
"amouco", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/amouco.
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