1. Postagem de José Claudino da Silva, 29 de agosto de 2023, no Facebook da Tabanca Grande Luís Graça [é autor da série "Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) ", de que se publicaram mais de 70 postes (*); é membro da Tabanca Grande desde 18/10/2017); tem mais de meia centena de referências no blogue; foto à direita, o nosso camarada, nascido em Penafiel, em 1950; reside em Amarante; tem livros publicados e página no Facebook ]:
Cheguei á Guiné no dia 26 de junho de 1972, no dia seguinte em Cumeré paguei 70 escudos por uma refeição.
Naquele tempo a mesma custava 8 escudos na metrópole. Está a prova neste aerograma [que se reproduz e transcreve acima]. (**)
Primeiro aerograma enviado pelo José Claudino da Silva, à sua namorada [Maria Amélia Moreira Mendes] depois de chegar à Guiné.
Trata-se de um excerto. O aerograma não está completo, acaba aqui, deveria ter mais folhas; "Fiquei cheio de fome, e paguei 70$00, as cervejas são a" [...].
Vamos pedir ao nosso camarada para disponibilizar a segunda parte. Para além de informação sobre preços que se praticavam em 1972, em Bissau, o aerograma tem outro interesse documental, por nos dar conta das primeiras impressões de um "periquito" chegado à Guiné, "uma terra onde todas as pessoas nos parecem suspeitas, e hostis, e logo por azar nem bebidas há na cantina"...
Transcrição [fixação e revisão de texto: LG]
Cumeré, 27/6/72 1ª [folha]
Meli, saudosa e querida:
Espero desde já dar-te um pouco de alegria com as poucas notícias que vou passar a contar-te, ou tristeza, isso depende de ti.
Devo dizer-te que o resto da viagem decorreu bem, e sinto-me para já óptimo.
No que diz respeito às impressões que me causou a Guiné, devo confessar-te que me sinto maluco, um calor que nem em calção se suporta, uma terra onde todas as pessoas nos parecem suspeitas, e hostis, e logo por azar nem bebidas há na cantina. A água parece que foi aquecida ao lume, e há pouca. A única satisfação que me resta é que aqui não há guerra, e a vida que levo é boa, só tenho a dizer que isto não interessa a ninguém pelo resto.
Cumeré situa-se a 6 km de Bissau, mas para se chegar lá tem que se percorrer 45, por não haver estradas a direito, e ter um rio muito largo.
Eu vim para Cumeré separado da minha companhia, juntamente com mais 6 condutores, e só daqui a três semanas é que me junto a ela, por isso, embora me escrevas, não receberei correspondência de qualquer espécie, a não ser daqui a essas três semanas. Terei que ter paciência e suportar esse tempo, depois provavelmente recebo tudo junto, não tenho alternativa e resigno-me.
2ª [folha]
Espero que mesmo assim não me deixes de escrever, porque eu farei o mesmo.
No local onde me encontro é um quartel de instrução de adaptação ao terreno para condutores, e de I.A.O., e estão aqui mais de 600 homens, entre eles mais de 20 colegas de Penafiel, e conhecidos da recruta, etc., etc. Foi bom assim, [pois não me] sinto só.
A única coisa que me lixa é a falta de bebidas, e o calor sufocante que aui está é insuportável. Além disso, os mosquitos não nos deixam dormar, é uma loucura uma pessoa vir para aqui, mas não temos outro remédio, e temos que aguentar, ou melhor ou pior.
Aqui nos subúrbios do quartel há um bar, dirigido por um branco, onde servem refeições. Eu fui lá almoçar, pois aqui a comida não presta. Fiquei cheio de fome, e paguei 70$00, as cervejas são a [...]
Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
2. Excerto do poste P18002 (***):
(...) Estou agora a lembrar-me que fui sempre um pouco medricas e mesmo que, ao chegar a Bissau, tivesse sido separado dos meus camaradas da 3ª companhia porquanto eles foram para Bolama e eu fui para Cumeré. O que é certo, por aquilo que escrevi, logo no primeiro dia que pisei solo africano, não tive um receio por aí além. Dizia eu!
“Em Cumeré estamos a tirar o I. A. O. (Creio que a sigla significa: Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) Aqui não há guerra mas as pessoas parecem-me todas hostis. Neste quartel estão cerca de 600 homens. O calor é sufocante e não há bebidas frescas, nem grande comida e se eu achava caro uma refeição no Porto custar7$50, já me avisaram que fora do quartel custa 70$00. Vê bem que ladrões. Acho que são brancos que vivem a explorar os 'Periquitos' como nós”. (**)
3. Comentário do editor LG:
Usando o conversor da Pordata, verificamos que 7$50 e 70$00 em 1972 valeriam hoje (2023), 2,00 € e 18,00 €, respetivamente.
Ao escudo ("peso") da Guiné (emitido pelo BNU - Banco Nacional Ultramarino), temos que abater 10% (de acordo com a taxa de câmbio que se praticvaa então em Bissau)...Se uma refeição no Porto custava, a preços de hoje, 2,00 €, em 1972, em Bissau, custaria 16, 2 € (=18 € x 0,90).
Em 1969, uma refeição (bife com ovo a cavalo + cerveja) em Bafatá, no restaurante "Transmontana", custava-me 20 "pesos", o equivalente, hoje, a 6,30 € (=7 € x 0,90).
Como se vê, de 1969 para 1972, a inflação (ou a especulação, típica da economia de guerra) deu cabo do patacão dos desgraçados dos combatentes que íam parar com os quatro costados à Guiné!
Uma explicaçáo sobre o converssor da Pordata: