1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2019:
Queridos amigos,
A Casa da Cerca é um centro de arte, é um espaço permanente de exposições, tem um primoroso jardim botânico e um desfrute de panorâmicas sem concorrência. Pela imagem, aqui se tenta mostrar o que a vista alcança, um gigantesco ecrã apontado para uma Lisboa esbranquiçada e pujante de património construído. Mas se o visitante quiser contrastar tem um Almada Velho para visitar, reconstruções não faltam, há um velho forte que agora serve de restaurante. E pode descer placidamente pelo lado de Cacilhas e entrar naquele mundo que se chamou a Lisnave, sempre a beijar o Tejo e Lisboa na linha de água, por todo o estuário, não há passeio nem contemplação de Lisboa como estes.
Um abraço do
Mário
Casa da Cerca: a mais bela vista de Lisboa, na outra margem do Tejo (2)
Beja Santos
Todo o espaço da Casa da Cerca serve para expor, incluindo o Salão Nobre, a Capela, os jardins. O viandante veio atraído por um evento especial relacionado com os 25 anos desta casa do desenho, o regresso de Amadeo Souza-Cardoso. Mas era inevitável bisbilhotar por outros sítios, foi à exposição dedicada a 140 anos de ilustração. Quem aqui vier pode deparar-se com mostras do acervo, e que acervo! Artistas de primeiríssimo plano como Alberto Carneiro, Graça Pereira Coutinho, João Vieira, Joaquim Rodrigo, Júlio Pomar, Júlio Resende, Paula Rego, Pedro Chorão, Sá Nogueira ou Sofia Areal podem ser vistos, fazem parte da cerca de três centenas de obras de arte, é este o significativo conjunto de desenhos, mas onde também se integram obras de pintura, escultura, fotografia e gravura. A Casa da Cerca é também o seu jardim botânico e queríamos agora fruir com o leitor a Lisboa que daqui se avista e passear pelo Chão das Artes.
O Jardim Botânico – o Chão das Artes – apareceu em junho de 2001 conjuntamente com uma exposição de estalo, a Natureza Mestra das Artes, de que resultou um catálogo importante e belo, uma das publicações ícone desta casa do desenho. Aqui se mostram plantas como material vivo, e o serviço educativo tem aqui o melhor barro para moldar, mostrando às gentes de todas as idades os componentes vegetais que são a matéria-prima com que se fabricam os materiais utilizados na prática artística.
Já houve um dragoeiro com cerca de duzentos anos, aqui faleceu. Em 2011, foi plantado um novo dragoeiro, evocando-se o anterior. O Chão das Artes possui uma coleção de mais de uma centena de espécies que vão sendo mantidas e valorizadas. Este espantoso jardim botânico tem estufa, tem o jardim dos pigmentos, o pomar das gomas, o jardim dos pintores, o jardim das fibras e a mata. É uma estrutura que permite albergar algumas plantas na estufa que não podem estar no exterior, mostrar plantas de onde se extraem pigmentos ou corantes que se utilizam para fazer tintas, ali estão as plantas que dão goma com caraterísticas semelhantes à goma-arábica, há as plantas cujas sementes são produtoras de óleos utilizados na pintura a óleo, e temos também a área destinada às plantas produtoras de fibras. A mata aqui significa a zona onde se encontram árvores e arbustos de grande porte de onde se extraem madeiras para fazer suportes das pinturas ou escultura e resinas para fazer vernizes.
Que dizer mais? Olhe, meta-se ao caminho, o viandante gosta de tomar o cacilheiro, percorrer o velho Ginjal, ao fundo toma um elevador e sobe para o Almada Velho. Aqui começa a aventura, vista fora de Lisboa para Lisboa como esta não há outra, e há a casa do desenho, uma sempre surpresa de arte contemporânea. Ninguém sai daqui defraudado, afianço eu.
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Nota do editor
Último poste da série de 7 de setembro de 2019> Guiné 61/74 - P20128: Os nossos seres, saberes e lazeres (353): Casa da Cerca: a mais bela vista de Lisboa, na outra margem do Tejo (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 14 de setembro de 2019
Guiné 61/74 - P20146: Memória dos lugares (394): Farim, uma cidade cristalizada no tempo (Joana Benzinho, fundadora e presidente da ONGD "Afectos com Letras")
1. Com a devida autorização da autora, e devida vénia ao editor:
Joana Benzinho > 16 de abril de 2018 > Bird Magazine > Farim: já ouviram falar?
[Joana Benzinho:
Nota do editor
Último poste da série 15 DE AGOSTO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20061: Memória dos lugares (392): Ainda os memoriais de Buruntuma e Camajabá (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)
Joana Benzinho > 16 de abril de 2018 > Bird Magazine > Farim: já ouviram falar?
[Joana Benzinho:
(i) Natural de Pombal, é licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra, Diplomada em Direito Europeu pelo Institut d'Études Européens - Université Libre de Bruxelles e Diploma da Academia Diplomática Europa e pelo Institut Européen des Relations Internationales;
(ii) é assessora Parlamentar no Parlamento Europeu desde 1999;
(iii) é fundadora e presidente da ONGD Afectos com Letras, criada em 2009;
(iv) professora de informática de emigrantes portugueses na Bélgica em regime de voluntariado desde 2004;
(v) escritora (coautora de "A Papaia Mágica", 2011), tem página no Facebook, é uma grande amiga da Guiné-Bissau e das suas gentes]
De Bissau até Farim são cerca de 115 Km, divididos entre uma estrada razoável até Mansoa e uma estrada óptima daqui até Farim. Na verdade os últimos 45 km são percorridos numa estrada bem asfaltada, com marcações ao longo de todo o percurso, com bermas e até passadeiras, o que torna a viagem muito agradável e com tempo para apreciar a bonita paisagem envolvente.
Depois de passar uma povoação com o estranho nome de K3 (resquícios da presença militar do tempo colonial), a estrada termina abruptamente na margem do Rio Cacheu.
Não há ponte. Há uma jangada que transporta um carro e passageiros quando não avaria. E há pirogas que levam passageiros equipados com colete salva-vidas, pois há por ali naufrágios de má memória que impõem cuidados redobrados. Ah, e já agora por curiosidade, também alguns crocodilos. Mas para evitar encontros de risco, o colete tem pouca ou nenhuma utilidade. Apenas se deve ter cautela e contar com o factor sorte.
No dia em que ali estive a última vez a nossa 'pick-up' também passou para a outra margem, entrando e saindo da jangada por uma íngreme rampa de cimento, acompanhados de alguns passageiros carregados com legumes, frutas e peixe.
À primeira vista, Farim é uma cidade abandonada. Um burro, puxado por uma criança que nos acena, passa para ir buscar carga chegada no barco e nós detemo-nos a ver a antiga igreja colonial e a estátua ali em frente, evocativa dos 500 anos da morte do Infante D Henrique.
A antiga piscina olímpica, também ali junto do porto, não passa de uma memória do que deve ter sido um lugar de lazer e cheio de beleza. Hoje tem um pouco de água barrenta no fundo, resto das chuvas da véspera onde brincam animadamente umas crianças.
Depois de passar a antiga pista de aviação, onde nasceram casas como cogumelos em terreno baldio, encontramos o largo dos mártires do terrorismo, a lembrar o bombardeamento não reivindicado de 1965 que vitimou dezenas de mulheres e crianças que dançavam animadas durante a celebração do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da
etnia Mandinga ali predominante.
Neste largo há um poço onde as mulheres se vão abastecer da água necessária aos afazeres do dia a dia e um cantinho à sombra onde os homens se dedicam a jogar damas. Enquanto jogam, o rádio a pilhas debita em altos berros as notícias (quase sempre desanimadoras) sobre a situação económica e política do país, seguidas pelos comunicados diversos feitos pelas autoridades, por quem procura bens desaparecidos ou por quem garante resolver todos os problemas amorosos, financeiros ou de saúde que possam perturbar o bem estar dos ouvintes.
É esta cidade de Farim, cristalizada num tempo, sem data, que deixo para trás quando regresso ao porto, por uma outra estrada ladeada de casas abandonadas e paro no único sítio disponível para nos dar de comer naquele dia. Entre umas cervejas bem fresquinhas, lá comemos uma travessa dos melhores camarões que provei até hoje (que nos saíram mais baratos que uma cerveja em Portugal) e uma galinha cafriela de chorar por mais.
Texto e fotos: © Joana Benzinho (2018). Todos os direitos reservados [Edição / fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Depois de passar uma povoação com o estranho nome de K3 (resquícios da presença militar do tempo colonial), a estrada termina abruptamente na margem do Rio Cacheu.
Não há ponte. Há uma jangada que transporta um carro e passageiros quando não avaria. E há pirogas que levam passageiros equipados com colete salva-vidas, pois há por ali naufrágios de má memória que impõem cuidados redobrados. Ah, e já agora por curiosidade, também alguns crocodilos. Mas para evitar encontros de risco, o colete tem pouca ou nenhuma utilidade. Apenas se deve ter cautela e contar com o factor sorte.
No dia em que ali estive a última vez a nossa 'pick-up' também passou para a outra margem, entrando e saindo da jangada por uma íngreme rampa de cimento, acompanhados de alguns passageiros carregados com legumes, frutas e peixe.
À primeira vista, Farim é uma cidade abandonada. Um burro, puxado por uma criança que nos acena, passa para ir buscar carga chegada no barco e nós detemo-nos a ver a antiga igreja colonial e a estátua ali em frente, evocativa dos 500 anos da morte do Infante D Henrique.
A antiga piscina olímpica, também ali junto do porto, não passa de uma memória do que deve ter sido um lugar de lazer e cheio de beleza. Hoje tem um pouco de água barrenta no fundo, resto das chuvas da véspera onde brincam animadamente umas crianças.
Depois de passar a antiga pista de aviação, onde nasceram casas como cogumelos em terreno baldio, encontramos o largo dos mártires do terrorismo, a lembrar o bombardeamento não reivindicado de 1965 que vitimou dezenas de mulheres e crianças que dançavam animadas durante a celebração do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da
etnia Mandinga ali predominante.
Farim é um conjunto de ruas ainda extenso, com casario de arquitectura colonial a bordar as principais artérias que levam até ao largo onde se realiza o mercado. Ali há de tudo, mas chama a atenção sobretudo o sal, vendido pelas mulheres que o produzem nas margens do rio Cacheu. A brancura do sal em grandes alguidares contrasta com a beleza das mulheres africanas, ali sentadas na expectativa da chegada de um cliente a quem vender o sal com medidas de latinhas outrora portadoras de alimentos de conserva, o que nos oferece um quadro digno de uma paragem para registar fotograficamente de uma das actividades mais características de Farim.
Neste largo há um poço onde as mulheres se vão abastecer da água necessária aos afazeres do dia a dia e um cantinho à sombra onde os homens se dedicam a jogar damas. Enquanto jogam, o rádio a pilhas debita em altos berros as notícias (quase sempre desanimadoras) sobre a situação económica e política do país, seguidas pelos comunicados diversos feitos pelas autoridades, por quem procura bens desaparecidos ou por quem garante resolver todos os problemas amorosos, financeiros ou de saúde que possam perturbar o bem estar dos ouvintes.
É esta cidade de Farim, cristalizada num tempo, sem data, que deixo para trás quando regresso ao porto, por uma outra estrada ladeada de casas abandonadas e paro no único sítio disponível para nos dar de comer naquele dia. Entre umas cervejas bem fresquinhas, lá comemos uma travessa dos melhores camarões que provei até hoje (que nos saíram mais baratos que uma cerveja em Portugal) e uma galinha cafriela de chorar por mais.
Texto e fotos: © Joana Benzinho (2018). Todos os direitos reservados [Edição / fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Nota do editor
Último poste da série 15 DE AGOSTO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20061: Memória dos lugares (392): Ainda os memoriais de Buruntuma e Camajabá (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)
sexta-feira, 13 de setembro de 2019
Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:
Queridos amigos,
Fica-se com a convicção de que o bardo foi profundamente tocado pela sorte dos seus camaradas que experimentaram toda a casta de dificuldades naqueles 71 dias do Como. Reserva-nos ainda mais estrofes, deixará a contabilidade em dia antes de regressar ao continente. Aqui se destaca um linguajar propagandístico do PAIGC, uma torrente demencial de mentiras, propagou centenas de mortos, forças portuguesas a fugir, em debandada, nem uma só palavra sobre as enrascadas de Nino, as suas muitas baixas, foi um delírio propagandístico que ainda, mesmo episodicamente, vejo escrito. E aqui se volta a prestar homenagem a Armor Pires Mota, o BCAV 490 andara por Mansabá e vai sediar-se em Farim, há muito ainda para contar, ao homenageado, aqui se destacam alguns parágrafos da sua obra-prima "Estranha Noiva de Guerra".
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (23)
Beja Santos
“Para Curcô reforçar
Hermenegildo e Ribeira.
Granadas de morteiro rebentaram
ao pé de Jacinto Pereira.
Um grande ataque se dava
um dia já à noitinha.
O pelotão do amigo Farinha
muito fogo atirava,
e granadas de morteiro jogava
algumas de incendiar.
O 467, a falar,
homens em socorro pedia
para seguirem no outro dia
para Curcô reforçar.
O pelotão que calhou
foi o de Manuel Sobral,
a 1 de Março, às 5 e tal,
para o mato ele avançou.
O sr. Alf. Saraiva os acompanhou
com os seus homens em fileira
houve um ataque de uma maneira,
que o fogo não aguentaram
e juntos a todos recuaram
Hermenegildo e Ribeira.
Nestes arredores patrulhou
o pelotão do sr. Alf. Segura
que mostrando a sua bravura
um letreiro no mato deixou:
os bandidos desafiou
e eles pouco demoraram.
Logo nessa noite atacaram
e a coisa esteve bem torta,
a um metro de José Horta
granadas de morteiro rebentaram.
Quando o ataque principiou,
foi logo com as granadas.
Em seguida houve rajadas
que o pessoal desorientou.
O Fernando Paulino pensou
em salvar-se, de qualquer maneira,
e jogou-se ao rio mais o Teixeira
onde perigo não havia.
E no abrigo Joaquim Maria
ao pé de Jacinto Pereira.”
********************
Neste aceso de avanços e contactos brutais na batalha do Como, ocorre bater à porta do contraditório, ver o tratamento que Basil Davidson, com os préstimos de Amílcar Cabral, deu aos acontecimentos do Como. O jornalista britânico nunca escondeu que estava ali em missão propagandística, a dar vencimento às proezas independentistas a desbaratar colonialistas. Afirma perentoriamente que em 1 de junho de 1963 a ilha do Como estava libertada depois de ter sido bombardeada e atacada pelas forças coloniais.
Vejamos o que ele escreve:
“As tropas portuguesas foram desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá. Este foi ferido, mas as tropas inimigas foram forçadas a retirar-se e refugiar-se em Bolama”.
Davidson recolheu do próprio Cabral um relato circunstanciado dos factos desta batalha do Como e diz que se limita aqui a fazer um simples esboço de uma batalha que para o PAIGC teve importância histórica:
“Como foi a primeira porção de território nacional a ser libertada pelas nossas forças, a reconquista de Como tornou-se para os portugueses, nesses primeiros dias de 1964, uma questão de necessidade básica, e mesmo vital, para a sua estratégia militar e política. Isto porque, se os portugueses queriam controlar eficazmente as zonas que libertámos no Sul, Como constituía uma plataforma estratégica indispensável; e ainda por causa das consequências políticas que para eles poderiam advir da reconquista da ilha, já que o povo de Como é bem conhecido em todo o país pela sua entrega feroz à nossa luta e pelo apoio leal que sempre deu ao nosso Partido.
Usando todos os meios militares à sua disposição, com um efectivo total de 3000 homens bem equipados, incluindo 2000 soldados e oficiais escolhidos transferidos de Angola, os portugueses lançaram a sua ofensiva sobre o Como em Janeiro de 1964 com a firme decisão de arrancar a ilha das nossas mãos. Oficiais do Estado-Maior foram transferidos de Lisboa para Bissau para daí seguirem mais de perto as operações.
Depois de uma batalha que durou 75 dias, as nossas forças empurraram o inimigo para a linha de costa, infligindo-lhe pesadas baixas – foi a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Calculamos as baixas do inimigo em cerca de 650 homens. Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nessa batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos.
A batalha do Como foi um teste para os portugueses, mas foi-o ainda mais para nós. Na verdade, ajudou-nos a formar um juízo mais rigoroso acerca das nossas próprias forças. Aprendemos ali a verdadeira capacidade dos nossos combatentes e do nosso povo quando confrontado com as situações mais difíceis; apercebemo-nos do moral e por conseguinte da fraqueza do nosso inimigo; verificámos o alto grau de consciência política e a feroz determinação da população civil das zonas libertadas – agora definitivamente libertadas – não voltarem a cair sobre a dominação portuguesa”.
Ao que se sabe, jamais em tempo algum a mentira foi tão descarada, acrescendo que, conforme observa Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, rapidamente a ocupação do Como passou para nível secundário, o PAIGC conquistou posições na região Sul estrategicamente mais influentes, Como tornava-se um símbolo, uma bandeira. E para as forças portuguesas aprendia-se que um objetivo de guerrilha carece de uma resposta de contraguerrilha, deu-se como desproporcionado o efetivo e o tempo que demorou a ocupação da ilha. Em breve, Salazar iria tomar uma medida radical, substituiu Vasco Rodrigues e Louro de Sousa, militares em permanente contencioso, por Arnaldo Schulz, foi logo em maio de 1964.
Aqui se inicia uma transição, o bardo ainda tem umas estrofes para contar o que se passou no Como, mas é bom não esquecer que vai haver mudança de itinerário, o batalhão irá sediar-se em Farim, ver-se-á envolvido em muita atividade operacional. É justo aqui trazermos à colação quem fez páginas de diário na ilha de Como e muitos anos mais tarde, em meados da década de 1990, dará à estampa uma obra-prima do romance com o título “Estranha Noiva de Guerra”, falamos obviamente de Armor Pires Mota.
Oiçamos o que ele nos diz sobre essa atividade que prossegue a que viveram no Como:
“Muito antes de Cai, ainda a companhia completa, o resmalhar do capim começou a acordar os bichos, as aves. Sobretudo, os macacos. Isso inquietava. Feria o cérebro. Quando, aqui e ali, as palmeiras novas entrechocavam os seus ramos, havia um estremecimento súbito, um medo geral. Os menos afoitos aguçavam o ouvido. Seria mentira até se não se dissesse que se pressentia um silencioso ranger de dentes e de pragas escorrendo do território inconquistável. Muitos dos nossos começavam a acariciar as patilhas da G3. Ou o coração áspero das granadas. Arrepiados de dúvidas e talvez tocados de maus presságios, seguíamos, atentos e pressurosos, na árdua tarefa que nos coubera. (…) Às 22 horas estoirou uma granada do lado sul, prova de que o IN se acercava da posição que era vulnerável. O silêncio era a única voz a gritar alto naquela escuridão aventesma. Só quem, um dia, andou de canhota no mato. Todos apalpavam as armas, as granadas, quase sempre o coração, às vezes a alma.
Esfregavam os olhos até doer. Dormir era um risco. Ninguém queria entrar na eternidade de olhos fechados, por um tiro no coração, esborrachado por uma granada. (…) As balas, assobiando, constituíam uma perigosa muralha de aço, difícil de transpor. A luta não deixava ninguém de fora. Depois, do outro lado, os gritos começavam a dizer que o sangue havia rebentado como um vulcão em chamas. Era uma onda quente inundando o capim, metendo medo ao anúncio da madrugada. O IN tentava, a todo o transe, evitar a aproximação da tropa do santuário de Malimorés. Ainda ouvi o alferes Costa a gritar: vamos a eles! A seguir devo ter perdido os sentidos, porque não me lembrava de mais nada”.
Vale a pena insistir que este romance é de uma enorme expressão metafórica, trata-se de uma via-sacra, o herói é José Joaquim Bravo Elias, ali bem perto de si morre um extremoso camarada (“Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”), vai começar uma viagem delirante, Bravo Elias arrasta o corpo do camarada Perdiz, experimentará todas as provações, assaltarão a sua memória as mais insólitas e aparentemente despropositadas recordações, haverá uma noiva de guerra, encontros insólitos, haverá uma flagelação cataclísmica sobre Mansabá, quem vinha da via-sacra presenceia um mundo de destroços.
Um belo romance, mas Armor Pires Mota vai-nos contar ainda mais coisas depois da batalha do Como.
(continua)
Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor
Poste anterior de 6 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20127: Notas de leitura (1215): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (22) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20137: Notas de leitura (1216): “Por uma reinvenção da governabilidade e do equilíbrio do poder na Guiné-Bissau”, por Luís Barbosa Vicente; Edições Corubal, 2014 (Mário Beja Santos)
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quinta-feira, 12 de setembro de 2019
Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)
Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado, general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues, com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.
1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.
A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira, radicado em Bolama, desde os anos 30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.
A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)
As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):
(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.
Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.
(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.
Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.
(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou, atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido.
Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos. Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.
Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:
(...) Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.
Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.
(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...), até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal. o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)
Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.
(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou, atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido.
Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos. Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.
Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:
(...) Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.
Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.
(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...), até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal. o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)
Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...
(**) Vd. poste de 10 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965
(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...
(**) Vd. poste de 10 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Guiné 61/74 - P20143: Historiografia da presença portuguesa em África (176): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2018:
Queridos amigos,
Teixeira da Mota era um investigador estrénuo, imparável, teve uma escola magnífica, a do Centro de Estudos da Guiné, ali deixou obra imbatível. Frequentava alfarrabistas e leilões de livros, investigava a fundo no Arquivo Histórico Ultramarino, foi bem-sucedido nessas andanças, encontrou peças preciosas.
Neste artigo do Bolamense dedicou-se a referir um opúsculo pouco conhecido onde se relatava o martírio de dois franciscanos na Guiné, em 1742 e 1743. Pelo que o leitor vai ter oportunidade de conhecer, é um documento comovente, ao nível da fé que estes missionários possuíam, na maior intensidade, e daí a aceitação que conferiam às estruturas de que padeceram até à morte. Aqui se relata o martírio de 22 de fevereiro de 1742, nos Bijagós.
Um abraço do
Mário
O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2)
Beja Santos
O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Há dois aspetos surpreendentes, no cômputo destas edições: a tentativa inglória de reerguer a importância de Bolama, dela falando a torto e a direito, dedicando-lhe farto noticiário, sem descurar um aspeto etnográfico geral, mostrando imagens das diferentes etnias e realizações por toda a colónia; e procurando dados culturais que ajudassem a entender a presença portuguesa, na administração, na ocupação e até na missionação. Da leitura de todos os números, pareceu de manifesto interesse republicar um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”.
Vejamos o essencial do trabalho de um dos mais prestigiados historiadores portugueses nas coisas da Guiné:
“Por feliz acaso veio-me parar às mãos um curioso folheto setecentista onde são narrados os acontecimentos que originaram a morte de dois padres da Província da Soledade às mãos de gentios.
Numa altura em que ainda não havia – ou rareavam – jornais, era através de folhetos deste género que se divulgavam muitos sucessos. Existe uma grande quantidade deles, principalmente do século XVIII. Estão neste caso dois de 1753 relatando a viagem da fragata ‘Nossa Senhora da Estrela’ a Bissau e acontecimentos ligados à reedificação da Fortaleza de São José e ainda outro descrevendo o trágico naufrágio na foz do Casamansa da corveta ‘São Sebastião e Almas’, do qual resultou a morte ou aprisionamento pelos Felupes de vários missionários, incluindo o Bispo Frei João de Faro.
O opúsculo de que nos ocupamos e os factos dele referidos não são indicados pelos que modernamente têm versado a história da Guiné. Talvez venha alguma coisa na 2.º Parte da Crónica da Província da Soledade, cuja descoberta anunciou em 1945 o Padre Dias Diniz e continua inédita. Segue-se esta reportagem de há mais de 200 anos, dos dois lastimosos casos sucedidos na Guiné em 22 de fevereiro de 1742 e em 26 de abril de 1743 com dois religiosos missionários da Santa Província da Soledade.
Primeiro caso. Embarcado o Padre Frei João de Fonte-Arcada, Presidente do Hospício da Ilha de Bissau, em canoa dele, para o fim do bem das almas, saiu desta ilha com vento tão próspero e favorável que parecia evidente sinal da sua feliz viagem. Em 22, vendo-se os moços da canoa defronte Canhop, viram que pelo rio saíam duas canoas de gentios Bijagós, em direitura a buscá-los pelo ódio que têm aos cristãos. Requerendo com piedade os cristãos aos gentios que se retirassem, eles lhes disseram e responderam que queriam água, sendo que procuravam em lugar dela sangue; os moços da canoa expressaram que se não chegassem para ela. E vendo-se que os bárbaros faziam pouco caso da nossa advertência, começaram logo a implorar o Divino auxílio. O que se verificou, porque disparando os gentios uma arma fez o seu tiro despojo da tirania e simulacro ruína da morte a um moço que na canoa tinha a incumbência de governar o leme. Vendo-se o religioso nesta aflição, porque uma das canoas contrárias estava à popa a clamar e a requerer da parte de Deus desistissem do intento por ser contra a Divina Majestade, que eles ignoravam; eles não fizeram caso, porque logo se viu um escravo chamado Mabiá ferido com uma bala, a qual não fez efeito por não achar capacidade suficiente o emprego. E também o dito Padre passado pelo peito até às costas por uma azagaia, a qual um deles lhe tinha empregado. À veemência da dor e à profusão e abundância de sangue caiu o Padre, fixados os olhos no Céu e a contemplação em Deus pedindo-lhe que perdoasse àqueles inimigos por não saberem o que faziam. Este sucesso fúnebre avivou nos corações dos escravos tão repetidas tristezas e mágoas que para as fazerem públicas eram os olhos testemunhos do pesar e as lágrimas do sentimento. Tiraram-lhe do corpo a azagaia, e para que a sua vista não multiplicasse maiores penas, o lançaram ao mar, onde em cristalino túmulo urna transparente espera a ressurreição universal. E entrando todos os gentios na canoa às azagaiadas mataram outro escravo chamado António Vieira. E atando os mais de pés e mãos só deixaram a dois para remarem, e ao Mabiá para governar o leme. E foram caminhando todos com aqueles inocentes para a Ponta Ilha em que assistem os Bijagós, e fazendo os gentios as suas costumadas cerimónias com tão desentoadas vozes, desmarcados alaridos e medonhas acções ao som de vários tambores e muitos tiros que fariam afugentar ao mais curioso de ver, com a que eles em tal caso chamam festa. Logo com discurso bárbaro prenderam novamente ao moço Agostinho pelo pescoço a uma corrente de ferro, e atado com cordão nos pés e mãos o arrastaram pelo espaço de muito tempo pelas ruas, dando-lhe múltiplas pancadas e infinitos tormentos, que para acabar a vida bastava qualquer.
Deixaram a maior execução da sua ira para outro dia. Amanheceu este, se alegre para os gentios, infausto para o corpo do Agostinho que vendo as muitas dores que padecia lho penalizavam, na certeza porém de que lhe aproveitarem a sua alma, querendo ao que parece pedir à morte tréguas, para pedir perdão de suas culpas, se soltou da ligadura com que estava preso, e do modo que pôde começou a caminhar para as margens do mar, pedindo a Deus misericórdia por intercepção de Maria Santíssima e Santos a quem se encomendava. Porém, como a debilidade que padecia o não ajudava para o intento, teve tempo a ligeireza dos bárbaros para o apanharem e começando estes a darem princípio a tão diabólica tragédia dando-lhe os mesmos ou maiores tormentos, sofrendo todos com a maior paciência e edificação dos mais cristãos, o puseram em tão miserável estado que se lhe viam patentes as entranhas, depois de um gentio lhe der separado o corpo com um alfange um dos braços. Querer explicar as dores que padeceria este aflito é impossível, basta para fazer penetrante esta lembrança a consideração dos castigos. E aos mais cristãos, que ainda deixaram com vida, cuidaram logo de os resgatar, pelo síndico, os religiosos do dito hospício de Bissau.”
(continua)
Almirante Teixeira da Mota
Interior da Câmara Municipal de Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (174): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...
República da Guiné > Conacri > c. 1963-1973 > Reunião de responsáveis do PAIGC, membros do Comité Executivo da Luta. Da esquerda para a direita: (i) Lourenço Gomes, (ii) Honório Chantre, e (iii) Victor Saúde Maria.
Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Pasta: 05247.000.074 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)
Citação:
(1965), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35300 (2019-9-10)
Fonte: Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04615.074.082
Assunto: Seguem os comunicados; Prisões e massacres em Farim e Begene.
Remetente: Lourenço Gomes
Destinatário: Amílcar Cabral
Data: Quarta, 1 de Dezembro de 1965
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada 1963-1965 (de Amílcar Cabral e Aristides Pereira).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondência
(Reproduzido com a devida vénia...)
Remetente: Lourenço Gomes
Destinatário: Amílcar Cabral
Data: Quarta, 1 de Dezembro de 1965
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada 1963-1965 (de Amílcar Cabral e Aristides Pereira).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondência
(Reproduzido com a devida vénia...)
1. Um mês depois do "atentado terrorista" em Farim, que causou pelo menos 27 mortos e 70 feridos graves entre a população civil e um ferido grave entre as NT (*), Amílcar Cabral toma conhecimento das consequências que se abatem sobre os suspeitos, aos olhos das autoridades portugueses, através de comunicado assinado por Lourenço Gomes, membro do Comité Executivo da Luta.
Não há qualquer referência ao "atentado terrorista" de Farim, do dia 1 de novembro de 1965. Muito menos o PAIGC reivindica a sua autoria, moral ou material. Terá tido pudor ou vergonha o dirigente do PAIGC que proclamava, "urbi et oribi", que não lutava contra o povo português mas contra o colonialismo do Estado Novo, leia-se Salazar e depois Caetano.
Afinal, as vítimas não foram as odiosas tropas colonialistas (que estavam a dormir na caserna), mas sim as crianças e as mulheres de Farim, Nema e Morocunda, mandingas, que se divertiam nessa noite, à volta da fogueira... Mas também não condenou o atentado , "o pai da Pátria", cuja estatura moral e intelectual era, ou foi , ou ainda é, reconhecida internacionalmente como um dos "gigantes! de África, a par do Nelson Mandela... Que nós saibamos, Amílcar Cabral (ou o PAIGC) nunca denunciou, ou rejeitou ou condenou este "atentado terrorista"...
Em todo o caso, no lastro da memória do povo de Farim ou entre os mandingas convinha ficar, pelo menos para alguns espíritos ingénuos, a suspeita de que este atentado fora coisa dos "colonialistas portugueses"... e assim se falsifica a história...
Faço, desde já, a minha confissão de interesses: sempre considerei tenebrosa a atuação da PIDE, na metrópole e nas colónias; considero que alguns militares portugueses, nossos camaradas, foram também tenebrosos, mas defendo aqui a honra da maior parte dos jovens da minha geração, que fizeram a guerra (e a paz) na Guiné, e que nunca poderiam aceitar e pactuar com métodos de "terrorismo puro e duro" e de "tribalismo"como aconteceu em Farim, em Morocunda, no dia 1 de novembro de 1965, numa festa mandinga, nem com as prisões em massa, os interrogatórios e os linchamentos (ou execuções sumárias) que se seguiram....
Tenho pena que o exército português, que eu servi, nada tenha acrescentado de novo, até hoje, mais de 50 anos depois, sobre a "verdade dos factos"... Nenhuma das versões que até hoje li me convencem, a começar pela "tosca" versão do comando do BART 733 (, não confundir o "comando" do batalhão com os camaradas do batalhão)...
No comunicado do PAIGC fala-se em "prisões e massacres" em Bigene e em Farim, mas não no "engenho explosivo" que esteve na origem da tragédia de 1 de novembro de 1965, O comunicado é datado de 1 de dezembro de 1965, Samine, Senegal (, onde havia uma delegação do PAIGC mas onde os guerrilheiros de Amílcat Cabral não podiam, teoricamente, andar armados.).
Lourenço Gomes, conhecido como "ti Lourenço", faz-se eco de "informações recebidas de refugiados vindos nos últimos dias de Bigene", entre os quais se contam o chefe dos CTT daquela localidade, Domingos Évora, tio de um militante do PAIGC, Jorge Évora, que "fugiu para também não ser preso, nos fins de novembro" (sic)...
Recorde-se que na lista dos 64 detidos em Farim, logo a seguir ao atentado de 1 de novembro, há dois indivíduos de apelido Évora: Pedro António Évora, pescador; e Benjamim Pedro Évora, empregado dos CTT de Farim (*).
O comunicado do PAIGC faz referência a 38 prisões efetuadas em Bigene, entre as quais a do próprio chefe de posto, o cabo-verdiano Henrique de Pina Pereira (, que teria sido morto).
Referindo-se a Farim, Lourenço Gomes, então radicado no Senegal, em Samine, dá conta do seguinte:
(i) "mataram o Paulo Cabral e o filho mais velho" (, o Paulo Cabral teria sido detido, logo em 28 de outubro de 1965, com a sua canoa e um carregamento de coconote; era acusado de ter transportado as duas granadas (!), que vieram expressamente de Conacri (!), e que terão servido para montar o engenho explosivo que o soldado milícia, mandinga, Issufe Mané, um pobre diabo, alegadamente subornado pelo Júlio Lopes Pereira com um fortuna - 14 contos em pesos da Guiné, cerca de cinco mil euros hoje (!), que ele não teve tempo de receber nem de gozar (!) - terá lançado para a fogueira do batuque, para logo no dia seguinte "pôr a boca no trombone" e denunciar toda a gente (ou quase toda a gente) de Farim e, depois, arrepender-se dese a"ato tresloucado", para o resto da vida, e chorar baba e ranho pelas vítimas inocentes, os seus filhos e irmãos mandingas de Farim (*);
(ii) há também referência à prisão do chefe da alfândega de Farim, "um patrício cabo-verdiano de nome Nelson" [, trata-se de Nelson Lima Miranda, antigo estudante da Casa do Império, em Lisboa, que não vem na lista que já publicamos anteriormente] (*);
(iii) é referido também ter sido preso "o encarregado da Ultramarina, Augusto Pereira", outro nome que não vem na lista do BART 733 (*) [, ou pode tratar.se de confusão de nomes: Júlio Lopes Pereira, ou só Júlio Pereira, que era o gerente da Casa Ultramarina];
(iv). além de "irmãos do Marcelo, um irmão do Duarte e muitos outros de que se desconhece o destino dado" [, presumindo que o Marcelo e o Duarte fossem militantes do PAIGC, conhecidos tanto do Lourenço Gomes como do Amílcar Cabral, e muito provavelmente também cabo-verdianos: Marcelo, quê ?, Marcelo Ramos de Almeida ? Duarte, quê ? Abílio Duarte ?]
(v) apontamento subtil mas interessante: "Entre os presos figuram também muitos que com eles colaboravam". [, Lourenço não diz: "que connosco colaboravam"...]. Será que os "patriotas" de Farim agiram sozinho, por sua conta e risco ? Ou o PAIGC quis sacudir a água do capote, face aos resultados (desastrosos) do "atentado terrorista" que devia passar, aos olhos da população local, como um "bombardeamento colonialista" ?
O comunicado também omite o nome dos principais comerciantes de Farim, presos na altura, bem como o do Júlio [Lopes] Pereira, o gerente da casa Ultramarina, acusado pela tropa e pela PIDE de ser o "autor moral" do atentado, tendo recebido instruções de Nélson Lima Miranda em ligação com os dirigentes do PAIGC em Conacri ( a "crer" na versão das autoridades militares portuguesas e da PIDE de Farim). Foi morto na prisão por esses dias. Era uma figura conceituada na Guiné, genro de Benjamim Correia.
2. Enfim, estes documentos, "do outro lado do combate", como diz o nosso coeditor Jorge Araújo, valem o que valem... Mas compete-nos, a nós, antigos combatentes de um dos lados da barricada, saber "lê-los e relê-los"...
A nós, para quem a guerra nunca acabou, nem acaba... mesmo que os outros nos considerem "doidos varridos, que nunca mais se libertam da memória da merda da guerra" (sic)... Há quinze anos que eu, pessoalmente, oiço isto, de amigos e familiares e até de camaradas de armas...
Em boa verdade, a quem é que interessa a "verdade" e o "rigor factual" sobre o que aconteceu em Farim, no bairro de Morocunda, na noite de 1 de novembro de 1965 ?..
Na minha desencantada opinião, interessa a muito pouca gente dos vivos, a avaliar de resto pelos escassos comentários que têm sido feitos a estas "controvérsias" do passado (**)...
Matenhas, boa noite!..
LG
________________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves
Não há qualquer referência ao "atentado terrorista" de Farim, do dia 1 de novembro de 1965. Muito menos o PAIGC reivindica a sua autoria, moral ou material. Terá tido pudor ou vergonha o dirigente do PAIGC que proclamava, "urbi et oribi", que não lutava contra o povo português mas contra o colonialismo do Estado Novo, leia-se Salazar e depois Caetano.
Afinal, as vítimas não foram as odiosas tropas colonialistas (que estavam a dormir na caserna), mas sim as crianças e as mulheres de Farim, Nema e Morocunda, mandingas, que se divertiam nessa noite, à volta da fogueira... Mas também não condenou o atentado , "o pai da Pátria", cuja estatura moral e intelectual era, ou foi , ou ainda é, reconhecida internacionalmente como um dos "gigantes! de África, a par do Nelson Mandela... Que nós saibamos, Amílcar Cabral (ou o PAIGC) nunca denunciou, ou rejeitou ou condenou este "atentado terrorista"...
Em todo o caso, no lastro da memória do povo de Farim ou entre os mandingas convinha ficar, pelo menos para alguns espíritos ingénuos, a suspeita de que este atentado fora coisa dos "colonialistas portugueses"... e assim se falsifica a história...
Faço, desde já, a minha confissão de interesses: sempre considerei tenebrosa a atuação da PIDE, na metrópole e nas colónias; considero que alguns militares portugueses, nossos camaradas, foram também tenebrosos, mas defendo aqui a honra da maior parte dos jovens da minha geração, que fizeram a guerra (e a paz) na Guiné, e que nunca poderiam aceitar e pactuar com métodos de "terrorismo puro e duro" e de "tribalismo"como aconteceu em Farim, em Morocunda, no dia 1 de novembro de 1965, numa festa mandinga, nem com as prisões em massa, os interrogatórios e os linchamentos (ou execuções sumárias) que se seguiram....
Tenho pena que o exército português, que eu servi, nada tenha acrescentado de novo, até hoje, mais de 50 anos depois, sobre a "verdade dos factos"... Nenhuma das versões que até hoje li me convencem, a começar pela "tosca" versão do comando do BART 733 (, não confundir o "comando" do batalhão com os camaradas do batalhão)...
No comunicado do PAIGC fala-se em "prisões e massacres" em Bigene e em Farim, mas não no "engenho explosivo" que esteve na origem da tragédia de 1 de novembro de 1965, O comunicado é datado de 1 de dezembro de 1965, Samine, Senegal (, onde havia uma delegação do PAIGC mas onde os guerrilheiros de Amílcat Cabral não podiam, teoricamente, andar armados.).
Lourenço Gomes, conhecido como "ti Lourenço", faz-se eco de "informações recebidas de refugiados vindos nos últimos dias de Bigene", entre os quais se contam o chefe dos CTT daquela localidade, Domingos Évora, tio de um militante do PAIGC, Jorge Évora, que "fugiu para também não ser preso, nos fins de novembro" (sic)...
Recorde-se que na lista dos 64 detidos em Farim, logo a seguir ao atentado de 1 de novembro, há dois indivíduos de apelido Évora: Pedro António Évora, pescador; e Benjamim Pedro Évora, empregado dos CTT de Farim (*).
O comunicado do PAIGC faz referência a 38 prisões efetuadas em Bigene, entre as quais a do próprio chefe de posto, o cabo-verdiano Henrique de Pina Pereira (, que teria sido morto).
Referindo-se a Farim, Lourenço Gomes, então radicado no Senegal, em Samine, dá conta do seguinte:
(i) "mataram o Paulo Cabral e o filho mais velho" (, o Paulo Cabral teria sido detido, logo em 28 de outubro de 1965, com a sua canoa e um carregamento de coconote; era acusado de ter transportado as duas granadas (!), que vieram expressamente de Conacri (!), e que terão servido para montar o engenho explosivo que o soldado milícia, mandinga, Issufe Mané, um pobre diabo, alegadamente subornado pelo Júlio Lopes Pereira com um fortuna - 14 contos em pesos da Guiné, cerca de cinco mil euros hoje (!), que ele não teve tempo de receber nem de gozar (!) - terá lançado para a fogueira do batuque, para logo no dia seguinte "pôr a boca no trombone" e denunciar toda a gente (ou quase toda a gente) de Farim e, depois, arrepender-se dese a"ato tresloucado", para o resto da vida, e chorar baba e ranho pelas vítimas inocentes, os seus filhos e irmãos mandingas de Farim (*);
(ii) há também referência à prisão do chefe da alfândega de Farim, "um patrício cabo-verdiano de nome Nelson" [, trata-se de Nelson Lima Miranda, antigo estudante da Casa do Império, em Lisboa, que não vem na lista que já publicamos anteriormente] (*);
(iii) é referido também ter sido preso "o encarregado da Ultramarina, Augusto Pereira", outro nome que não vem na lista do BART 733 (*) [, ou pode tratar.se de confusão de nomes: Júlio Lopes Pereira, ou só Júlio Pereira, que era o gerente da Casa Ultramarina];
(iv). além de "irmãos do Marcelo, um irmão do Duarte e muitos outros de que se desconhece o destino dado" [, presumindo que o Marcelo e o Duarte fossem militantes do PAIGC, conhecidos tanto do Lourenço Gomes como do Amílcar Cabral, e muito provavelmente também cabo-verdianos: Marcelo, quê ?, Marcelo Ramos de Almeida ? Duarte, quê ? Abílio Duarte ?]
(v) apontamento subtil mas interessante: "Entre os presos figuram também muitos que com eles colaboravam". [, Lourenço não diz: "que connosco colaboravam"...]. Será que os "patriotas" de Farim agiram sozinho, por sua conta e risco ? Ou o PAIGC quis sacudir a água do capote, face aos resultados (desastrosos) do "atentado terrorista" que devia passar, aos olhos da população local, como um "bombardeamento colonialista" ?
O comunicado também omite o nome dos principais comerciantes de Farim, presos na altura, bem como o do Júlio [Lopes] Pereira, o gerente da casa Ultramarina, acusado pela tropa e pela PIDE de ser o "autor moral" do atentado, tendo recebido instruções de Nélson Lima Miranda em ligação com os dirigentes do PAIGC em Conacri ( a "crer" na versão das autoridades militares portuguesas e da PIDE de Farim). Foi morto na prisão por esses dias. Era uma figura conceituada na Guiné, genro de Benjamim Correia.
2. Enfim, estes documentos, "do outro lado do combate", como diz o nosso coeditor Jorge Araújo, valem o que valem... Mas compete-nos, a nós, antigos combatentes de um dos lados da barricada, saber "lê-los e relê-los"...
A nós, para quem a guerra nunca acabou, nem acaba... mesmo que os outros nos considerem "doidos varridos, que nunca mais se libertam da memória da merda da guerra" (sic)... Há quinze anos que eu, pessoalmente, oiço isto, de amigos e familiares e até de camaradas de armas...
Em boa verdade, a quem é que interessa a "verdade" e o "rigor factual" sobre o que aconteceu em Farim, no bairro de Morocunda, na noite de 1 de novembro de 1965 ?..
Na minha desencantada opinião, interessa a muito pouca gente dos vivos, a avaliar de resto pelos escassos comentários que têm sido feitos a estas "controvérsias" do passado (**)...
Matenhas, boa noite!..
LG
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves
(**) Último poste da série > 10 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20140: Controvérsias (135): as duas noites de terror, em Farim, as de 1 e 2 de novembro de 1965, para as vítímas (mais de uma centena) do atentado terrorista, e para os indivíduos (mais de sessenta, o grosso da elite económica local) detidos e interrogados pela tropa pela PIDE, por "suspeita de cumplicidade"...
Guiné 61/74 - P20141: Parabéns a você (1682): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Guiné, 1970/72) e José Parente Dacosta, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 1477 (Guiné, 1965/67)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20138: Parabéns a você (1681): Rui Baptista, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3489 (Guiné, 1971/74) e Tony Grilo, ex-Soldado Apont obus 8,8 do BAC 1 (Guiné, 1966/68)
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Guiné 61/74 - P20140: Controvérsias (135): as duas noites de terror, em Farim, as de 1 e 2 de novembro de 1965, para as vítímas (mais de uma centena) do atentado terrorista, e para os indivíduos (mais de sessenta, o grosso da elite económica local) detidos e interrogados pela tropa pela PIDE, por "suspeita de cumplicidade"...
Cabeçalho do jornal "O Democrata", Guiné-Bissau, edição de 13 de novembro de 2014
Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Farim, Nema e Morocunda, bairros de Farim, e Bricama.
Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)
1. Reproduzimos, agora em texto, excertos da História da Unidade - BART 733 (Farim, 1964/66), págs. 116/118, relativos ao massacre da noite do dia 1 de novembro de 1965, em Morocunda, à evacuação imediata dos feridos graves, por um Dakota (que aterrou em Farim em plena noite, à luz de archotes e de faróis de viaturas automóveis, facto então inédito no CTIG), bem como à subsequente detenção e interrogatório pela PIDE e pelos militares de mais de 60 indivíduos da população local, suspeitos de envolvimento no atentado, representando o grosso da "elite económica" de Farim, na época: nada menos do que 8 comerciantes, 4 industriais, 4 escriturários da administração local, 3 enfermeiros, 2 gerentes, 2 empregados comerciais e 2 empregados dos CTT, entre outros (*)
(...) Período de 1 a 30 de novembro [de 1965}:
Secções da CART 731 [mais] secções da CCS do BART 733] transportaram feridos e mortos devido ao rebentamento de um engenho explosivo lançado por elementos subversivos durante um batuque, que se realizava no bairro da Morocunda [, no original, Morucunda,] pelas 21h30
O rebentamento do engenho causou a morte de 27 indivíduos, 70 feridos graves e vários feridos ligeiros, todos civis.
As NT sofreram um ferido grave que assistia ao evento, o qual foi evacuado com os civis mais graves num Dakota no dia [ seguinte,] 2 [ de novembro,] pelas 1h30 para Bissau e 3 feridos ligeiros, sendo dois da CART 731 e um da CCS.
Em virtude deste atentado, foram logo detidos pelas NT 12 indivíduos considerados suspeitos.
(…) O atentado no bairro de Morocunda [, no original, Murucunda,] em Farim, de características inéditas na Província, foi puro acto de terrorismo visando a população civil a fim de suster o regresso da população refugiada no Senegal e fazendo debandar a já existente, ferindo a economia da Província e tornando difícil a vida às NT nas quais se espelharia um estado de confusão que, convenientemente explorado, espalharia o ódio e a desconfiança entre a população que permanecesse em Farim e as NT.
A pequena percentagem de baixas sofridas pelas NT reside no facto de, [na véspera,] no dia 31 de outubro [ de 1965,] se ter realizado a “Operação Canhão” e a maioria do pessoal já estar recolhido na hora do atentado.
Das primeiras averiguações efectuadas pode concluir-se o seguinte: foram lançadas duas granadas de mão, acopladas com duas cargas explosivas, constituindo um único bloco ao qual tinha[m] sido adicionado[s] pregos e lâminas.
O engenho foi fabricado com o fim de ser lançado num batuque ou ajuntamento festivo por um nativo que prestava serviço na Companhia de Milícias [nº 5] [, o soldado Issufe Mané], e que se prontificou a fazer tal trabalho a troco de 14.000$00 [,o equivalente hoje a 5.485,20 €, ou tratando-se de escudos da Guiné, 4936,68 €, dado a diferença cambial real de 10% entre o escudo da metrópole e o "peso" local].
O planeamento para o lançamento do engenho teve lugar na primeira quinzena de setembro [de 1965], quando esteve em Farim, vindo de Conacri, um emissário do Partido, transmitindo então ao Júlio Lopes Pereira, gerente da sucursal da Casa Ultramarina em Farim, instruções para o seu lançamento.
Duas granadas vieram de Conacri, na segunda quinzena de outubro [de 1965], com destino a Bricama, e trouxe-as Paulo Cabral, preso a 28 de outubro na sua canoa com um carregamento de coconote. O mesmo Paulo Cabral deveria trazer, mais tarde, outras duas, para continuar a série de atentados.
O autor da manufatura e composição do engenho foi [o] Júlio Lopes Pereira, chefe na zona, que, juntamente com Jorge João Campos Duarte, dirigia e concentrava as atividades do PAIGC, re que se encontrava diretamente dependente do diretório do PAIGC em Conacri, donde recebia instruções e para onde enviava os seus relatórios.
Foram apreendidos pela PIDE 18500$00, destinados ao PAIGC, donde sairiam os 14000$00 para o autor do lançamento que não [os] chegou a receber porque após o incidente [sic] foram as prisões dos indivíduos suspeitos.
Há muito que o Comando do Batalhão vinha insistindo superiormente para a substituição, a casa Ultramarina, do autor moral do crime, Júlio Lopes Pereira, em virtude de factos ocorridos e relatados que o tornavam fortemente suspeito. Os factos presentes vieram confirmar que a opinão , várias vezes expressa pelo Comando, a respeito do indivíduo referido, não era produto de facciosismo ou animosidade injustificada para com este.
No dia 2(…), um 1 Gr Comb da CART 731 patrulhou a vila de Farim. Na manhã deste dia encontravam-se já detidos 60 indivíduos [, no aquartelamento de Nema] , na sua maioria já de há muito referenciados como colaboradores do IN. Na prisão dos referidos indivíduos colaborou com as NT o agente da PIDE [, de apelido Prosídio (?), e que não era "bafa meigo", segundo o nosso camarada António Bastos, do Pelotão de Caçadores 953, que o conheceu, e que estava em Farim nessa noite, em trânsito para Canjambari], numa atuação rápida e eficiente digna de registo.
De salientar o facto de a maioria dos presos serem civilizados (sic: leia-se, gente de origem europeia e cabo-verdiana), servindo-se das suas atividades normais para propagar a subversão do meio da população nativa (sic). (...)
2. Nas páginas 117/118, vem a lista dos indivíduos detidos, por nome e profissão… Não era "normal" as histórias de unidade, no CTIG, trazerem listas nominais de civis, "suspeitos de atividades subversivas" (**)...
Do total dos 64 detidos, listados, apuramos o seguinte, por profissão e género:
(i) A grande maioria eram homens (91%), mas havia 6 mulheres, 4 domésticas, 1 costureira, e uma Maria da Conceição dos Reis Cabral (, pelo apelido, seria eventualmente esposa de Paulo Cabral, já preso dias antes, em 28 e outubro de 1965);
(ii) a maioria dos detidos eram lavradores (14), comerciantes (8), industriais (4), escriturários da administração de Farim (4) enfermeiros (3), gerentes (2), empregados comerciais (2), empregados dos CTT (2), gente "civilizada" (sic), uma boa parte talvez de origem metropolitana ou cabo-verdiano, como o José Maria Jonet, com exceção dos "lavradores", que tinham nomes "nativos"… [os gerentes eram de duas das casas comerciais mais importantes do território: a Casa Ultramarina, o Júlio Lopes Pereira, e a Casa Gouveia, o Henrique Morais Silva Lopes Ribeiro];
(iii) mas também havia nativos, maioritariamente de etnia mandinga, a avaliar pelos nomes: além dos lavradores (14), foram detidos gilas (4), furadores (2), sapateiros (2) e carpinteiros (2);
(iv) e ainda outros, de diversas profissões: além do soldado milícia (, de seu nome Issufe Mané, acusado de ser o autor material do atentado), um tingidor de panos, um auxiliar de mecânico, um ajudante de motorista, um pintor, um bailarino, um pescador, e ainda um cidadão estrangeiro, senegalês, ou residente em território do Senegal, de nome Iussufe Sané.
Tudo indica que, para estes civis, o dia seguinte, 2 de novembro de 1965 também terá sido de pesadelo. A vida económica de Farim deve trer ficado seriamente afetada por uns tempos. E, muito provavelmente, as vidas destes homens e mulheres não terão sido mais as mesmas. Conseguimos apurar alguns elementos informativos sobre alguns destes detidos... Alguns seriam nacionalistas, simpatizantes ou até militantes, de 2ª ou 3ª linha, do PAIGC. Mas a maioria terá sido a "apanhada a jeito e a eito"... Qual terá sido o seu destino ? Há rumores de que alguns terão sido torturados até à morte ou simplesmente executados pela tropa ou pela PIDE:
(i) José Maria Jonet, comerciante:
Nascido em São João Baptista, Ilha Brava, Cabo Verde, em 26 de dezembro de 1906: falecido em outubro de 1966, em Bissau, com 59 anos de idade [, repare-se: menos de um ano depois da sua prisão, em Farim]: era casado com Georgina do Livramento Quejas, deste 1937.
Fonte: página de Barros Brito, "Genealogia dos cabo-verdianos com ligações de parentesco a Jorge e Garda Brito, a seus familiares e às famílias dos seus descendentes"
(ii) Dionísio Dias Monteiro, comerciante:
(...) "Amílcar Cabral nos dizia que devíamos trabalhar como uma pirâmide. Isto é, o núcleo principal e de contactos permanentes seria pequeno, mas cada um devia ter a sua "Célula". Eu, por exemplo, tendo como Célula a Zona Velha da Cidade de Bissau (pois morava nessa zona), nunca tive contacto com Rafael Barbosa. Só mais tarde vim a saber dele, como sendo um dos principais activistas políticos desde anos 40 e um dos mentores da criação do Partido.
Para além das Células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva" (...)
Fonte: Depoimento de Elisée Turpin, cofundador do PAIG.
(iii) Pedro Tertuliano Ramos Salomão, comerciante: encontrámos um nome igual, a única informação disponível é de que terá morrido na Amadora, por volta de 2009; em 2014, constava, em aviso da CM da Amadora, o seu nome, indo-se proceder à exumação dos seus mortais, uma vez ultrapassado o prazo legal da inumação. Fonte: CM da Amadora
(iv) Júlio Lopes Pereira, gerente da Casa Ultramarina, sucursal de Farim, considerado o "autor moral" do atentado, e que terá morrido em novembro de 1965, às mãos da PIDE de Farim:
(...) "Desaparece uma jornalista em Angola, desde Junho de 2012, chamada Milocas Pereira e até hoje, ninguém sabe do seu paradeiro. Tudo indica que o seu desaparecimento esteja estritamente ligada a questões políticas e ligações entre o governo de Angola e governo então deposto na Guiné-Bissau. Desde o seu desaparecimento existiu, um silêncio total por parte das duas entidades, e nunca nenhum deles se pronunciou sobre o desaparecimento desta figura, docente numa Universidade em Luanda, analista de assuntos políticos e filha de um activo militante da luta contra o regime colonial português, morto em Farim nas celas da DGS/PIDE em Novembro de 1965. Os dados sobre a morte de Júlio Lopes Pereira, seu combate e desaparecimento, constam dos arquivos da Torre do Tombo em Portugal" (...).
Fonte: blogue de Paté Cabral Djob, "Conosaba do Porto" > 22 de maio de 2014 > Celina Tavares: "Onde está adra. Milocas Pereira?"]
3. Este será um dos mais tristes e negros episódios da história da guerra do ultramar, da guerra colonial, ou da "guerra de libertação" , como se queira (conforme o "lado da barricada"). Não nos honra como seres humanos, não honra ninguém que tenha estado envolvido nos acontecimentos. Passados mais de 50 anos, ainda é um acontecimento que ninguém quer lembrar. Raramente é referido pelas "cronologias" da guerra, e pelos historiógrafos, de um lado e do outro. Do lado do PAIGC, há um estranho silêncio sobre esse episódio. Do lado do exército português, também há pudor em evocá-lo. O horror ficou, indelevelmente marcado na memória das vítimas, na altura crianças, que lhe sobreviveram. "Mártires do terrorismo": há um monumento e um largo, hoje em Farim, que nos deixam apagar a memória...
Cite-se, por exemplo, o testemunho do sobrevivente e vítima do "ataque terrorista" (sic), Carlos Malam Sani [ou Sané ?], recolhido ainda há três anos atrás pelo jornal de Bissau, 'O Democrata':
(..:) "Um dos momentos marcantes da referida sessão foi quando o velho Carlos Malam Sani, um dos sobreviventes e vítima “do ataque terrorista” de Morkunda de 1 de Novembro de 1965, na altura com doze anos de idade, com uma voz trémula e emocionado, começou a narrar para os estudantes [da Universidade Lusófona de Bissau], na primeira pessoa, como tudo acontecera há 51 anos durante uma manifestação cultural da etnia mandinga “festa de Djambadon”, que decorria no coração de Farim, provocando mais de trinta mortos e vários feridos
graves. (...).
Fonte: O Democrata, Guiné-Bissau > Sene Camará > 2/5/2016 > Universidade Lusófona da Guiné resgata história de Farim.
Algo misterioso (mas abrindo pistas para outras leituras do que se terá passado nessa trágica noite de 1 de novembro de 1965, em Farim), é o comentário, em crioulo, o único de resto até agora, deixado por um tal Romaru, em 16/11/2014 às 00:05, na caixa de comentários à supracitada reportagem de Filomeno Sambú, em 'O Democrata', de 13/11/2014:
(...) lamento, e foi bom para relembrar d mumentos d trestes, ataque saiu d farim bedju a 3 a 4 klrs de morucunda para kem conhese farim sabe aonde fika farim bedju, ataki foi grande inganu, i ponto final cabu aqui ponto final. storia verdadeira; homem sorou quando splicou me mais sorou mesmo foi unico e grande ero que ele cometeu e nunca vai squeser, diz o homem com plavra dele que ele sorou mais e criancas e irmaos civils que tva n este tarde d disgaca" (...)
Este "Romaru" [, pseudónimo de alguém que, cinquenta anos depois (!) ainda não quis dar a cara...] insinua que o autor material do crime (, o soldado milícia da Companhia de Milícia nº 5, um tal Issufe Mané, a crer na versão das autoridades militares, o comando do BART 733), terá agido por engano, ou ter-se-á precipitado, que o alvo não era a população civil mas os militares portugueses, de acordo com as instruções do(s) mandante(s) do crime: "o homem chorou quando me explicou, mas chorou mesmo, foi o único e grande erro que ele cometeu, e que nunca vai esquecer, disse o homem com palavras dele, o que ele chorou mais foram as crianças e os irmãos civis que estavam lá nessa tarde [noite] de desgraça"...
Estranha-se, em todo o caso, que este antigo milícia (, que terá "confessado tudo" à PIDE e aos militares) tenha "sobrevivido aos acontecimentos", admitindo-se que o clima em Farim, de dor, revolta e luto, nessa altura, fosse mais propício ao linchamento do que à justiça...
Enfim, não podemos também ignorar o comentário (, ao poste P 20130), do nosso camarada Manuel Luís Lomba, contemporâneo dos acontecimentos (ex-fur mil, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66).
(...) "Na altura encontrava-me em Nova Lamego em 'consulta externa' e na messe dizia-se que os dois fornilhos foram mandados lançar por dois comerciantes brancos, que a tropa os liquidou e até se dizia o nome dum sargento do QP que rachou um deles com o machado da sua loja. "
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014
(**) Vd. também postes de:
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