quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (175): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Um dia, em conversa com o nosso estimável camarada António Estácio, estava ele a escrever sobre Bolama, referiu-me a importância de se conhecer os conteúdos do Bolamense.
Chegou a hora, li na íntegra todos os números na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. A História de Bolama entre 1956 e 1963 ganha mais luminosidade, caminhava para um escombro quando, fruto da guerra subversiva, escolheu-se Bolama para centro de instrução militar. E havia o turismo, a praia do Ofir, que o jornal tece os maiores encómios. Era publicação nacionalista sem rodeios, os discursos de Salazar eram publicados na íntegra. E havia a cultura, de que neste e no próximo texto se dará notícia.
Vale mesmo muito a pena ler o Bolamense.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Era oficioso, nacionalista, teimava pela causa de Bolama, por tudo e por nada. Quando o Instituto Honório Barreto passou a liceu, reclamou-se um liceu para Bolama. Pedia-se colaboração a pessoas entendidas e conhecedoras, Teixeira da Mota foi um deles. Folheando a coleção existente, dá para perceber que havia pouca publicidade, Bolama já estava na mó de baixo, com a ascensão do nacionalismo e a chegada da tropa a Bolama, a cidade ia reagindo, falava-se em turismo, nas belezas do arquipélago, a praia de Ofir parecia rivalizar com Varela, o leitor apercebe-se que havia dificuldades em arranjar bons conteúdos, a redação socorria-se de fotografias entre outras do fotógrafo Geraldo, qualquer conferência era motivo de duas a três detalhadas páginas, o Intendente Santos Lima foi promovido a inspetor, logo uma basta notícia, o jornalista Armando de Aguiar, natural de Bolama visita a sua terra natal e fez uma opípara conferência, casa cheia. Veio a guerra subversiva, e o jornal hasteou a bandeira da sua causa: “Os nossos territórios ultramarinos são a impiedosa cobiça dos desvairados blocos mundiais que se gladiam em feroz luta e por isso reconheçamos no passado as virtudes do presente e unamo-nos sem reservas, nem críticas maldosas, para o bem comum que é o da Guiné, cônscios do dever a cumprir numa tranquilidade de espírito cheia de altos impulsos e de novos sentimentos e não de outros que só deprimem, destroem e desorientam!”.

Para se avaliar o que o leitor pode encontrar com grande interesse cultural na curta vida deste periódico vamos fazer referência a subsídios para a história da ilha de Bolama, da autoria de António Pereira Cardoso, um administrador colonial que era possuidor de raridades, um artigo de Ruy Barreto sobre o fanado Bijagó e um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”, ao tempo, o Comandante Teixeira da Mota era deputado da Nação pela Guiné.

Comecemos pelo trabalho de António Pereira Cardoso, que publica algumas epístolas. A primeira data de Bolama, de 26 de agosto de 1858, assina José Carlos Rebello Cabral, comandante de Marinha Mercante e dirigida a Honório Pereira Barreto. Informa-o que chegara um vapor de guerra inglês, desembarca um 1.º Tenente, arvorara bandeiras britânicas que foram içadas com três tiros de peça a bordo, o tenente percorreu as pequenas povoações e voltou a embarcar, regressou mais tarde e levou para bordo o agricultor João Marques de Barros, preso. E a carta termina assim: “Não sei isto em que acabará, e por isso me apresso a participar a V. Ex.ª pedindo-lhe por parte do Sr. Barros o seu socorro e auxílio para ele, antes que as coisas subam a mais, quer dizer ao ponto de o levarem preso a bordo, para a Gâmbia ou Serra Leoa, por alguma injusta quimera. Nada mais se oferece dizer a V.ª Ex.ª nesta triste situação, em que tanto carecemos dos seus conselhos e incansável auxílio”. Pelo meio, ficamos a saber que o tenente falava na libertação de cativos, era uma das moedas de arremesso dos ingleses, sabiam perfeitamente que ainda praticávamos a escravatura.

A segunda carta é também assinada por José Carlos Rebello Cabral e endereçada a João Marques de Barros. Pergunta-lhe se quer que mande a sua família para Bissau, refere que não está interessado em ficar em Bolama “por causa das intrigas do Manuel Barbosa a meu respeito e que eu já há muito sabia tudo”. E assim termina: “Estimo a sua saúde e felicidade, tal como para mim, e que agora tenha a força necessária para suportar estes pequenos incidentes da vida, e adeus até à vista”.

A terceira carta datada de 30 de agosto de 1858 é dirigida novamente a Honório Pereira Barreto: “Esta só serve para agradecer quanto em mim cabe o obsequioso serviço que V. Ex.ª fizera ao Sr. Barros, em consequência da que eu lhe tinha escrito em data de 26 do corrente; o que V. Ex.ª pode ficar certo é que eu nunca me cansarei em apregoar, se bem que a minha voz é ainda débil, nesta terra esquecida dos verdadeiros patriotas, a nossa infelicidade”.

Comenta António Pereira Cardoso que a violência levada a efeito em 26 de agosto de 1958 era injustificada, porquanto em 29 de abril daquele ano, D. Pedro V declarara livres os escravos portugueses, com obrigação de prestarem serviço aos seus senhores até abril de 1878.

O artigo de Ruy Barreto é sobre o fanado Bijagós dos Kanhocãs. E escreve:
“O Kanhocã é o indivíduo de idade compreendida entre os 15 e os 22 anos, aproximadamente. As cerimónias começam com batuques que duram vários dias e realizam-se em cada uma das tabancas onde há Kanhocãs. Estes apresentam-se durante o tempo das cerimónias com os melhores trajes: ‘lopés’ de couro cuidadosamente curtido e enfeitado, contas, grande variedade de efeitos metálicos, espelhos, campainhas, e na cabeça a conhecida cabeça de vaca. Após os dias de festa, que duram cerca de uma semana, chega o dia, previamente fixado, em que se vão sujeitar ao cerimonial, têm que dar entrada no mato em lugar retirado, onde são feitas barracas para abrigo dos rapazes.
É vulgaríssimo – e parece que até de tradição – verem-se os parentes do sexo feminino, aos quais é vedada a aproximação do mato, acompanharem, em alta grita e lavados em lágrimas, o ruidoso grupo dos homens que formam o cortejo dos Kanhocãs.

A classe dos Kamabis é a dos palhaços. Só se podem vestir de sarapilheira e, quanto mais suja for, melhor. E é de ver as tropelias que fazem e as brincadeiras que inventam. A cerimónia é iniciada por volta do princípio da tarde, com os mancebos de joelhos ou assentados, trajando unicamente um pequeno lopé. Cada Kamabi aparece armado de um bom molho de chicotes feitos de ramos flexíveis e bate em cada um com as chibatas, até que estas se quebrem.
Às vítimas só é permitido defender a cara, para o que só podem elevar o antebraço. Devem mostrar-se insensíveis à dor e vê-se alguém a ser sovado valentemente enquanto, sorridente, conversa com os circunstantes, indiferente ao sangue que corre pelo seu corpo. Grande glória é para aquele, e respectiva família, que suporta com mais valentia e, inversamente, é indizível a vergonha que provoca o que demonstre sofrimento.

Durante alguns dias permanecem os mancebos no mato, assistidos e tratados pelos mais velhos. Cerca de oito dias após a entrada no mato, regressam em visita às casas que tinham percorrido. Assim termina a primeira das duas cerimónias intervaladas de alguns anos a que têm de sujeitar-se os Kanhocãs antes de passarem a Kabarós, adultos".

(continua)


Duas fotografias de Francisco Nogueira, retiradas do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Comandante Vasco Martins Rodrigues, Governador da Guiné entre 1962 e 1964. Foi efetivamente o último Governador da Guiné, sucede-lhe Arnaldo Schulz, Governador e Comandante-Chefe, acumulação que continuará com António de Spínola e Bettencourt Rodrigues. Imagem retirada do “Bolamense”.

Imagem retirada do “Bolamense”.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20104: Historiografia da presença portuguesa em África (173): “Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600” com direção de Francisco Contente Domingues, Círculo de Leitores, 2016 (Mário Beja Santos)

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