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terça-feira, 9 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11363: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (7): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XIII / XIV): Julho / agosto de 1969: a angústia do cristão ante a dúvida "De que lado estará Deus ?"



Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O Zé Teixeira, no regresso de mais uma operação.


Guiné-Bissau  > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Que diferença!"...


Guiné-Bissau  > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Estrada da pista de aviação"...


Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Estrada da pista de aviação... ao domingo"... [ Segundo o nosso inestimável e sempre atento e oportuno amigo Cherno Baldé, esta não é uma rua de Buba, como erradamente foi legendada pelo Zé Teixeira, mas sim "a rua de Bissau, alto Bandim, no local onde foi construído o Palácio Colinas de Boé e funciona a ANP - Assembleia Nacional Popular (do lado direito), podendo ver-se ao fundo o depósito central de água"]


Guiné-Bissau  > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Estrada de Buba - Fulacunda"...


Fotos (e legendas): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]


1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf,  CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70), Partes XIII e XIV (*) [Originalmente publicado na I Série, em 2006]


Buba, 31 de Julho de 1969

Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os picadores que iam à frente a tentar detetar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projetado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:
- Desta não escapo.

Logo a seguir cai à minha frente um africano que ia em cima da viatura e que deve ficar cego. Verifico então que a viatura de onde tinha saltado há momentos e do lado em que eu vinha, tinha pisado uma anticarro. Apanhei apenas com lama e pedras, e um grande susto. O condutor, sentado em sacos de areia, foi ao ar, mas apenas sofreu um grande susto, também. Os africanos que vinham em cima foram projetados e um perfurou o olho esquerdo, ficando este ao dependuro. Desnorteado, não sabia o que fazer. A bolsa estava na viatura sinistrada. Havia o ferido para tratar, mas também havia o perigo de minas antipessoais.

Andava de um lado para outro, sem saber o que fazer, sujeito a cair numa mina perdida. Lentamente fui acalmando, entretanto chegaram os outros enfermeiros, fui buscar a minha bolsa à viatura destruída e tratei dos feridos

Tal como os outros companheiros, pensei em aproveitar-me das bebidas da viatura destruída e mesmo das outras, já que ao dar-se baixa da viatura descarrega-se tudo e o que ficou em condições de ser aproveitado desaparece. Deu-se um autêntico assalto às viaturas e foi um fartar de roubar, ou melhor, aproveitar a ocasião.

Pouco depois aparece-me o Franklim com uma perna ferida por ter ficado debaixo de um atrelado, com bidões cheios de combustível, pois o condutor da viatura, na confusão gerada deixou-a destravada e esta.  ao deslizar, fez passar por cima da perna do Franklim o atrelado que arrastava.

Os feridos voltaram para Buba depois de assistidos, para serem evacuados para Bissau. Restabelecida a calma,  retomamos a marcha, para de seguida rebentar uma antipessoal que estava colocada no local, mesmo no centro da picada onde eu tratei os feridos, possivelmente pisada várias vezes, mas que só rebentou quando foi pisada pelo rodado de um atrelado de viatura, para sorte de algum de nós, talvez por estar um pouco funda. Continuei na coluna até Beafada, onde encontramos o pelotão de picadores que tinha partido de Aldeia Formosa, tendo regressado a Buba com mais esta história para contar.

O meu sistema nervoso que andava abalado,  foi-se de vez. Fui ao Dr. [Azevedo] Franco que me receitou um calmante, pois preciso de reagir. Tenho 15 meses de guerra e ainda falta muito tempo para o regresso. A guerra ainda não acabou para mim.


Buba, 4 de Agosto de 1969

Ao comemorar o 6º aniversário da implantação do terrorismo na Guiné (#), o Sr. Amílcar Cabral queria fazer umgrande festival em toda a Guiné. Ameaçou fazer uma grande surpresa, nomeadamente em Buba. Afinal limitou-se a vir cá às 17.45 h e fazer uma pequena serenata de canhão s/r, morteiro 120 e costureirinhas. Apenas uma granada rebentou dentro do quartel, causando danos ligeiros. De noite ouviram-se rebentamentos por todo o lado. Empada parece que também foi atacada. Nhala sofreu três ataques: à uma da manhã, às dez e novamente à noite. Mampatá também sofreu a visita do IN.

Buba, 7 de Agosto de 1969

As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e,  ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projetando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado.

Eu não fui esperar a coluna porque estou com baixa médica. Sinto-me muito fraco e abatido psicologicamente.

Ainda não sei quando regresso a Empada, talvez, lá para o fim do mês. Dá que pensar porque é que a viatura atingida foi a 14ª, portanto já no meio da coluna que seguia o trilho das outras treze anteriores, carregadas e bem pesadas.


Buba, 9 de Agosto de 1969

Estou doente, sem forças, as pernas parece que não podem com o corpo. O apetite é pouco. Fui ao médico que, além de me receitar medicamentos reconstituintes, deu-me dispensa por uns dias.

Estou sozinho em Buba com metade da Companhia. Insisti desde sempre que não aguentava a carga e que devia ser chamado outro enfermeiro de Empada. Fui-me abaixo das canetas e estão a sair Enfermeiros da Companhia 2382 com os meus companheiros, o que nunca devia acontecer e está-se a gerar um mal estar, entre colegas e amigos, desnecessário. Segunda feira termina a minha dispensa, mas eu ainda não me sinto bem. Vejamos que me vai dizer o médico.


Buba, 13 de Agosto de 1969


Está por cá o Padre Manuel Capitão, coordenador dos capelães na Guiné, grande amigo, e que encontrei há tempos em Bissau, quando regressei da Metrópole de férias. Desde alguns dias que anda de visita ao Setor. Hoje foi acompanhar a coluna para Aldeia Formosa até Nhala e regressou no héli que foi fazer uma evacuação de um ferido na sequência de um contacto com o IN.

A minha saúde continua abalada, felizmente com tendência para melhorar. Ontem, devido a uma grande caminhada de patrulhamento com o fim de preparar o terreno para a Coluna de hoje, não aguentei e os meus colegas tiveram de me transportar, até ao quartel. Depois de descansar fiquei melhor. Hoje sinto-me bem e tenho a esperança que em breve ficarei no lugar.

Quando estive com o padre capitão em Bissau, tentei aprofundar esta e outras questões sobre a assistência religiosa em tempo de guerra e a posição da Igreja Portuguesa colaboracionista com o poder político que manda matar em nome dos princípios cristãos, e a actuação dos capelães, passiva e nada evangélica, para não desagradar aos comandantes, aos fazedores da guerra.

Eu já sentia dentro de mim a revolta. De que lado estaria Deus? Com os Portugueses que teimavam em dominar um povo pelas armas ou com esse povo que queria seguir o seu destino, ou não estaria com ninguém e apenas apelava aos homens para darem as mãos para construirem um país novo? Qual devia ser a missão do sacerdote ? Como falar ao soldado que tinha deixado forçadamente a sua família, o seu emprego para matar ou ser morto?

Nesse encontro pôs-me fora do gabinete, mas em Buba, ele que nunca tinha saído de Bissau, e quis vir ver como as coisas se passavam no terreno, deu-me razão. Chorou por não poder fazer nada. Sentia-se amarrado. O sistema militar condicionava-o e os capelães que os bispos lhe mandavam, na sua maioria,  eram sacerdotes com problemas e nada preparados para este tipo de missões.

Buba, 16 de Agosto de 1969

Mais 24 toneladas de material apanhado ao IN no Norte, perto de Ingoré (2). As nossas tropas destruiram cinco destacamentos do IN, entre os quais Canchungo, Mâmpatas e Sane, todos perto de Ingorei, por onde andei nos primeiros três meses de guerra. O IN fugiu e os nossos tiveram 6 feridos. Parece que o exército senegalês auxiliou a fuga a pretexto de assistência médica.

_______________

(#) Referência mais provável ao 3 de agosto de 1959 (repressão da greve dos estivadores do cais do Pidjiguiti, ou "massacre do Pindjiguiti", segundo a propaganda do PAIGC),  e não ao 1º ataque do PAIGC a um aquartelamento português (Tite, 23 de janeiro de 1963 ), efeméride que é apontada, em geral, pelos historiógrafos, como a do início da luta armada na Guiné. (LG)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4920: Os nossos médicos (5): Um grande homem, militar, clínico e matosinhense que me marcou, o Dr. Azevedo Franco (José Teixeira)

Guiné > Região de Quínara > "Buba, 1969. Vê-se a bifurcação do Rio de cujas margens exteriores fomos atacados no dia do meu baptismo de fogo. Era um dos locais preferidos pelo IN para nos atacar" (JT).

Guiné > Região de Quínara > "Buba, 1969 – vendo-se um dos braços do Rio e uma pequena reentrância pela terra dentro, onde alguns de nós montávamos 'emboscadas' aos peixes quando estava a maré a vazar com uma rede improvisada, permitido uma fuga à fome, ou ao repetitivo arroz com chispe, na falta de outra coisa melhor" (JT)

Fotos gentilmente cedidas pelo ex-Alf Mil Med Azevedo Franco. Legendas: JT.

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada (1968/70) (*)


OS MÉDICOS COM QUEM PARTILHEI A MINHA AVENTURA DE ENFERMEIRO (**)

O primeiro contacto que tive com um jovem médico na Guiné, tinha eu dois meses de comissão. Era um jovem de 26/27 anos, chegadinho de fresco.

Devo recordar que um Curso de Medicina leva seis anos a tirar, mais um ano de Internato hospitalar, no mínimo, pois que, na Especialização, vão mais três a cinco anos. Um médico de Clínica Geral só está apto a exercer medicina com cerca de 25 anos ou mais, logo este jovem médico tinha já uns anitos mais que qualquer alferes.

Apresentei-lhe um camarada doente com sintomas de paludismo. Como sabem os sintomas de paludismo variavam por vezes um pouco. No caso vertente, o desgraçado exauria-se em suores externos e internos, a par de terríveis dores musculares. Era uma autêntica bica aberta.

Como já tinha vivido algumas cenas idênticas, eu tinha aparentemente soluções para a cura, mas o médico entrou em parafuso e queria remeter o desgraçado para Bissau [, para o HM 241,] com urgência.

Disse-lhe então que se tencionava pedir uma evacuação urgente, o melhor seria fretar uma avioneta diariamente, para resolver todas as situações que iria viver futuramente.

Após conversarmos um pouco, o médico optou por lhe receitar a medicação apropriada que tínhamos no Posto, e três/quatro dias depois o jovem estava curado.

De todos os médicos com quem trabalhei, recordo dois pelas marcas positivas que me deixaram: O Dr. Alcides e o Dr. Azevedo Franco.

O primeiro, já com uma certa idade, pela sua simplicidade e pela forma carinhosa e cativante como acolhia o doente. Um homem pouco falador, que deixava adivinhar quanto se sentia deslocado naquela guerra, mas sempre disponível.

O Dr. João Carlos de Azevedo Franco, meu querido amigo, matosinhense de gema, marcou-me muito e com ele aprendi muita coisa, quer na Guiné, quer pela vida fora.

Especializou-se em Ortopedia e ainda trabalha no Hospital da Prelado no Porto. Aprendi com ele a ver no soldado, primeiro o homem em si, com toda a sua dignidade, e depois a doença que ele tem, da qual precisa de ser curado.

O Homem, longe da família, do seu meio natural, num ambiente climático desfavorável, debaixo de uma tensão psíquica elevadíssima, desgastado fisicamente pelo esforço diário de caminhadas debaixo de sol abrasador, com o perigo de morte sempre à espreita. A comida péssima e muitas vezes com refeições fora de horas ou rações de combate intragáveis. Água potável só por milagre se encontrava, etc.

Depois o doente que se queixava de tudo e às vezes não tinha nada, aparentemente, a não ser um cansaço físico e psíquico que lhe minava as forças e destruía o Homem a pouco e pouco.

Pródigo a conceder baixas, chegou ao ponte de reduzir a minha Companhia a trinta e sete homens (praças), operacionais. A CCaç 2382 pouco melhor estaria e a CCaç 2317, de Gandembel, pior ainda.

Um dia no Gabinete médico vimos pela janela, eu e ele, um camarada aproximar-se para a consulta. Diz o Dr. Azevedo Franco:
- Vem ali fulano - (conhecia-nos a todos ou quase todos pelo nome). - Vem com certeza pedir mais uma baixa e pelo aspecto bem precisa. Vai preenchendo o documento que eu assino...

A resposta de Bissau a tão grande hemorragia de pessoal no activo não demorou. Repentinamente surge uma avioneta com dois médicos lá dentro. Umas junta médica para avaliar os doentes com baixa.
- E agora, Doutor!?
- Não te preocupes. Assim como vieram, também se vão.

Durante dois dias foi um corridinho para o posto médico. No fim ficou tudo igual ou quase.

Logo de seguida aparece o General Spínola, de camuflado e pingalim, acompanhado do Capitão Almeida Bruno, o tal dos óculos escuros. Foram visitar o bando, estacionado em Buba.

Formatura geral. Discurso inflamado de patriotismo. Desafio a fecharmos os olhos e imaginarmo-nos na Confeitaria Trindade a manjar perú recheado ou meia desfeita com grão e bacalhau, quando estivéssemos a comer massa com amostras de ossos de chispe, o prato mais cozinhado à época, por falta de outra coisa melhor.

Depois uma ordem para o médico, que eu presenciei, por estar ali mesmo junto a eles:
- Estes homens o que precisam é de umas picas (injecções) valentes. Vou dar ordens para reforçarem o seu stock. Aponta Bruno!

Resposta sábia e ponderada do Dr. Azevedo Franco:
- O que eles precisam é de carne, peixe, fruta e descanso, Senhor Governador.
- Mas... umas picas... umas picas... - e lá se foi embora para o hélio.

Dias depois, chegou a LDM com alguns víveres e dois grandes caixotes de medicamentos à base de revigorantes.

Nem sequer foram abertos. Eu mesmo, por ordem do médico, fiz a guia de retorno para Bissau, com a informação de que não tinham sido pedidos.

O centro nevrálgico da construção da estrada passou entretanto temporariamente para Samba Sábali, um acampamento no meio da selva e logo depois para Mampatá Forreá, sendo a sua segurança assegurada por uma Companhia de Periquitos. A minha Companhia ficou repartida por Mampatá (um Grupo de Combate), Buba e Empada.

O Dr. Azevedo Franco ficou em Buba por mais algum tempo. Tive oportunidade de o reencontrar em Empada, onde nos ia fazer uma visita em serviço, e posteriormente em Bissau, no fim da minha Comissão, quando ele já estava a prestar serviço no Hospital Militar.

Recordo que tinha a seu cargo o acompanhamento médico dos combatentes do PAIGC, feridos ou doentes, feitos prisioneiros (***). Tive oportunidade de o acompanhar em algumas das visitas diárias que fazia a esses doentes e feridos. Só posso dizer uma coisa: Sempre o mesmo!

A sua forma de ser e estar na vida ficou gravada no meu coração e pela vida fora tem sido um esteio em que me apoio quando preciso.

Zé Teixeira

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2058: Estórias do Zé Teixeira (20): Fermero ká tem patacão pra pagá, toma minha mudjer.


(*) Vd. postes antreriores desta série:

8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4918: Os nossos médicos (4): Um grande amigo, o Dr. Fernando Enriques de Lemos (Mário Fitas, ex-Fur Mil, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4910: Os Nossos Médicos (3): Os especialistas eram poucos, e não gostavam de ir para... o mato (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)

2 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)

15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)


(***) Vd. poste de 4 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2080: Estórias do Zé Teixeira (22): Tuga na tem sorte


(...) Encontro imediato com o IN

Um ano depois, já em Bissau a aguardar a embarque de regresso, fui ao Hospital Militar visitar o querido amigo Dr. Azevedo Franco e acompanhei-o na visita clínica aos seus doentes de ortopedia, entre os quais os IN aí internados em enfermaria própria. Um doente especial chamou-me a atenção pela sua história. Tinha sido ferido pelas nossas forças com uma rajada na perna que lhe atingiu também a barriga, ficando de intestino a céu aberto. Aguentou três dias enterrado no tarrafo de uma bolanha, até ser feito prisioneiro e enviado para o HM 241 em estado crítico. Estava safo, apesar de manco para toda a vida. Era apresentado como referência, pela sua capacidade de resistência.

Tentei entabular conversa e obtive como resposta:
- A mim ká sibe portugué, a mim ká miste papeia cum tuga.

Ao que eu ripostei:
- Ká na tem probleminha. - E, fui dar duas de conversa com o vizinho.

No dia seguinte ao entrar na enfermaria, notei-lhe um sorriso e fui cumprimentá-lo. Fiquei por ali cerca de meia hora, a falar em crioulo, das “nossas guerras”. Por onde andámos, onde nos cruzámos sem nos ver e nos cumprimentámos, nas linguagem da guerra maldita que nos separou até aquele momento. Talvez, não o afirmo, tivéssemos falado das razões que nos assistiam e fizeram de nós inimigos sem nos conhecermos tão pouco. A sua história de guerrilheiro começava com o início da guerra. Tinha corrido já a Guiné toda, mas nos últimos três anos estacionara no Sul, onde foi ferido e feito prisioneiro, precisamente o chão por eu andei também.

Ao saber que eu tinha estado em Buba, perguntou:
- Estavas lá naquele ataque que fizemos antes do sol chegar?

Ao responder-lhe afirmativamente, continuou:
- Logo que nosso ataque terminou, a tropa ia sair pelo portão da pista e recuou. Que pena! Eu estava logo ali à frente, emboscado, na curva da estrada, (para Sinchã Cherno), junto à berma da pista, à vossa espera. Tínhamos muito material a proteger e vocês tinham a mania de vir logo a correr atrás de nós... ia ser “manga de ronco”.

Pois... e eu estava lá, nesse grupo !
- Tuga na tem manga di sorte!

Um sorriso e um abraço talvez tenham selado este feliz momento... A conversa continuou, enquanto o médico fazia a sua visita clínica.

Houve ainda outro dia em que pude voltar a falar com ele. Como gostava de ter gravado as nossas conversas, já que estes momentos jamais sairão da memória. Já com muito pó, a memória recusa-se a deitar cá para fora, tantos momentos, dias, horas, minutos marcantes, bons ou menos bons daquela vida de “guerrilheiro à força” (...).

Vd. também poste de 2 de Setembro de 2007> Guiné 63/74 - P2078: Estórias do Zé Teixeira (21): Saiu-lhe a sorte grande.