sábado, 4 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22513: Notas de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)

1. O
"making of" deste livro já terá, seguramente,  mais de seis anos. Em 10 de agosto de 2015, o Jorge Monteiro Alves mandou-me um mail, pedindo a indispensável colaboração do blogue:
 
(...) "Caro Senhor Luís Graça;

Em colaboração com a editora Verso da História, estou a finalizar um livro sobre o TC Marcelino da Mata, tendo como pano de fundo o conflito na antiga Guiné Portuguesa.

O seu blogue contém relatos muito interessantes sobre a matéria e o senhor dispõe igualmente de uma extensa lista de contactos. O trabalho que estou a elaborar, já em fase de finalização, carece de três ou quatro testemunhos de antigos combatentes que tenham privado ou combatido com o TC Marcelino.

Poderá o senhor Luís Graça fazer o favor de me fornecer alguns nomes e respectivos contactos (telefónico ou via e-mail, preferencialmente da região de Lisboa, onde resido) que me permitam atingir o que proponho? (...)"

Esta mensagem foi de novo colocada, como comentário, no poste P823, em 8/10/2015 6:03 da tarde. da I série do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


2. Para além do seu nº de telemóvel, o Jorge Monteiro Alves deu-me uma extensa lista de nomes com quem  gostaria de poder falar, entre eles, alguns alguns antigos militares dos Comandos do CTIG, tais como o Virgínio Briote, o João Parreira, o Mário Dias, o Vassalo Miranda, e outros.  Dissemos-lhe que gostaríamos de saber algo nais sobre o autor. Respondeu-nos logo a seguir, reproduzimos um excerto:
 
(...) Boa tarde, Luís Graça

Antes de mais, obrigado pela sua amável resposta.

Em relação a conhecer algo mais sobre mim, posso dizer-lhe que tenho 55 anos e, como depreende devido à minha idade, felizmente não fiz a guerra do Ultramar. Cumpri o serviço militar como alferes miliciano na EPAM (nos "padeiros" do Lumiar), mas esse, tal como muitos de vós, foi apenas de carácter obrigatório.

Profissionalmente, fui jornalista do JN durante 25 anos e fui editor de Política Internacional, tendo no desempenho dessas funções andado nove anos a cobrir as guerras da ex-Jugoslávia, da Croácia à Bósnia e ao Kosovo. Para mim, chegou-me de guerra, de angústias e medo. Posteriormente, fui jornalista do jornal Público.

Actualmente trabalho como autor e revisor para editoras como a Presença, entre outras. Sou autor dos livros "Nunca Passes Além do Drina" (basicamente sobre as guerras na ex-Jugoslávia), "Carmencita" (um pequeno romance de carácter iconoclasta do século XVIII) e "A Generala" (um romance do início do século XIX sobre as Invasões Francesas).

Relativamente ao trabalho que estou a fazer sobre o TC Marcelino, permita-me que lhe faça o seguinte enquadramento – tenho o maior respeito pelos ex-combatentes, designadamente pelo TC Marcelino. Politicamente, poderá definir-me como um livre-pensador. O facto de estar a tentar encontrar ex-combatentes que privaram com o TC Marcelino penso que demonstra o esforço em recolher depoimentos que tornem esta biografia o mais factual possível. O trabalho em si está praticamente concluído, embora faltem limar algumas arestas.

Já tentei mais do que uma vez contactar o TC Marcelino, mas este infelizmente nunca respondeu. Tentei igualmente recolher o depoimento do Cor 'Comando' Folques, mas também este não respondeu.

A Verso da História, que vai editar esta obra, já elaborou múltiplos trabalhos sobre a Guerra Colonial, tendo contado com a colaboração de múltiplos ex-combatentes para a elaboração, por exemplo, de "Os Anos da Guerra Colonial" (não participei neste trabalho).

Resta-me mais uma vez agradecer-lhe a amabilidade da sua resposta e com certeza que autorizo que coloque o tal post no seu blogue. Fico à sua inteira disposição ou de qualquer ex-combatente caso me queira conhecer para tomarmos um café na zona de Lisboa (eu moro em Santo Amaro de Oeiras) antes de prestarem qualquer declaração sobre o TC Marcelino e a guerra na ex-Guiné Portuguesa.

Mais uma vez obrigado e um abraço,

Jorge Monteiro Alves


3. Mostrei disponibilidade para ajudar o autor a completar o seu livro. No dia 15 de agosto de 2015, às 20:35, escrevi-lhe o seguinte;

Jorge:

Vi o seu mail, estou de férias, mas vou procurar responder ao seu pedido... Gostaria de saber algo mais sobre a sua pessoa, presumo que seja jornalista. Gostaria inclusive, se mo autorizar, de publicar um poste no nosso blogue de modo a poder contactar com mais ex-combatentes, que passaram pelo TO da Guiné, e que conheceram o Marcelino, como homem e como militar.

Um dos dos nomes, incontornáveis, é do ex-alf mil 'comando' Virgínio Briote, comandante do grupo Diabólicos, a que o então 1º cabo Marcelino pertenceu, por volta de 1965/66.... Vou-lhe dar conhecimento do seu pedido de colaboração, Ele é um dos nossos colaboradores mais ativos. Outros camaradas desse tempo a que envio esta mensagem são o Mário Dias e o João Parreira... Os três moram na região de Lisboa...

Mas há mais camaradas e amigos do Marcelino, por exemplo os camaradas da Tabanca da Linha que o Marcelino costuma frequentar: cito três, os animadores da Tabanca da Linha, Jorge Rosales, José Manuel Matos Dinis, Manuel Resende...

Outros nomes que referiu, nomeadamente guineenses, já não estão infelizmenetentre nós...Casos do João Bacar Jaló e do Saiegh (que eu conheci pessoalmente na Guiné, na 1ª Companhia de Comandos, em Fá Mandinga e em Bambadinca)... 

Sobre o Marcelino, não tenho qualquer informação relevante a dar-lhe, já que nunca o conheci na época em que estive no TO da Guiné (1969/71)... Só o conheço, e mal, de dois ou três convívios na Tabanca da Linha. Em todo o caso, há mais de 3 dezenas de referências ao Marcelino da Mata, no nosso blogue (que já existe há 11 anos).

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Marcelino%20da%20Mata

Desejo-lhe boa sorte na elaboração e publicação do seu trabalho. Espero que contribua, tal como o nosso blogue, para preservar e partilhar as memórias de uma época complexa mas historiograficamente rica como foi aquela em se desenrolou a guerra, na Guiné, entre 1961 e 1974.

Sabia, por alto, que havia alguém a trabalhar numa biografia do Marcelino, por informação do próprio. Espero que a obra, a publicar, nos honre a todos, e não seja uma mera hagiografia. O Marcelino merece um trabalho isento, bem documentado e intelectualmente honesto. O desafio é grande, mas os riscos também, e o maior deles é sempre a "ideologia" (qualquer que seja o seu quadrante ou matriz) que enviesa a recolha, o tratamento e a interpretação dos dados. Desejo boa sorte e ofereço-lhe as páginas do blogue para levar a bom porto o seu projeto.

Dou ainda conhecimento deste mail aos meus camaradas Mário Beja Santos, Jorge Cabral e Miguel Pessoa (outra fonte privilegiada que deve procurar contactar).

Saudações bloguísticas. Luís Graça


4. Em 25 de junho de 2020 começou a 

Marcelino da Mata 
(Ponta Nova, Guiné, 1940 
- Amadora,
 2021)
circular pelas redes sociais um texto, em pdf, com 171 pp., da autoria de Jorge Monteiro Alves, com o título "O último soldado do Império". O José Torres fez-mo-lo chegar por email com a seguinte nota: "Aqui vai a história do combatente Marcelino da Mata".

O texto começava assim:

(...) O tenente-coronel comando Marcelino da Mata fez mais de mil missões de combate na Guiné. Das matas do Morés ao Corredor da Morte, passando pelo Senegal e por Conacri Apesar de este livro pretender ser uma singela homenagem ao tenentecoronel Marcelino da Mata e, por inerência, aos Comandos e a todos os soldados Portugueses obrigados a abandonar as suas aldeias, vilas e cidades para irem perder lá longe a inocência, quantas vezes a vida, o autor não pretende, de forma alguma, fazer a apologia da guerra, mas tão-só traçar o retrato possível de uma página da História de Portugal. (...)

E terminava assim:

(...)  Hoje, tantos anos volvidos, o tenente-coronel Marcelino da Mata olha com alguma amargura para o presente. Sente-se esquecido e injustiçado. Também ele perdeu duas pátrias. Mas daquilo que sente mais saudades é dos seus companheiros, traídos pela bandeira verde-rubra à qual tanto deram e que jazem hoje esquecidos numa vala qualquer nas matas da Guiné. (...)

Eu descomhecia esta versão. Depois da morte do Marcelino (em 11 de fevereiro de 2021), falámos ao telefone uns tempos depois. O Jorge Alves falou-me do seu projecto literário, em "stand by",  e das suas dúvidas sobre a oportunidade da publicação do livro em cima do luto. 

Incentivei-o a não desistir, sugerindo-lhe que desse mais atenção ao contexto histórico em que viveu o nosso camarada luso-guineense. Foi o que ele fez, aumentando e melhorando o texto que, entretanto, saiu publicado, sob a chancela de outra editora, a Livros Horizonte, em julho passado, com outro título, mas com os mesmos 15 capítulos e mais duas dezenas de páginas.(*)

A nova versão começa assim (cap I, pág. 17):

(...) Portugal teve o seu Vietname na Guiné. li, ao longo de 11 anos, num território do tamanho do Alentejo, morreram mais de três mil soldados portugueses, vítimas de um adversário temível e de um clima impiedoso. Muitos mais ficaram estropiados e com feridas na alma para toda a vida. Lutaram em condições pavorosas e, apesar de tudo, muitos foram além do que exigia o dever. De entre estes, um distinguiu-se dos demais, Foi, como quase todos, para a tropa porque  a isso o obrigaram. Ali aprendeu o ifício da guerra. Depois ficou porque goatou do que fazia. O seu nome ? Marcelino da Mata. (...)

 E termina assim (cap XV, pág.191):

(...)  Muitos anos volvidos, já no fim da vida, o tenente-coronel Marcelino da Mata olhava com alguma amargura para o que o rodeava. Sentia-se injustiçado. Havia até quem o acusasse de não passar de um criminoso de guerra. Também ele perdera duas pátrias. Mas daquilo que sentia mais saudades era do mato e dos seus companheiros, traídos pela bandeira verde-rubra à qual tanto deram e que jaziam esquecidos numa vala qualquer nas matas da Guiné. (...)

(Continua) (**)
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Notas do editor:

(**) Último poste da série >  3 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22507: Notas e leitura (1376): "Posfácio" ao livro "Um caminho a quatro passos", de António Carvalho. Apresentação da obra na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, sábado, 11 de setembro, às 11 horas

Guiné 61/74 - P22512: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XII: Alfredo Ambrósio Ferreira (Vila Real, 1893 - França, CEP, 1918), alf inf

Alfredo Ambrósio Ferreira (1893 - 1918)


Nome:  Alfredo Ambrósio Ferreira

Posto; Alferes de Infantaria

Naturalidade: Vila Real

Data de nascimento:  7 de Setembro de 1893

Incorporação:  1916 na Escola de Guerra (nº 363 do Corpo de Alunos)

Unidade:  4ª Brigada de Infantaria, Regimento de Infantaria n.º 8

Condecorações:  Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada (a título póstumo) | Cruz de Guerra de 2ª classe (a título póstumo) | Promoção a Tenente por distinção (a título póstumo)

TO da morte em combate:  França (CEP)

Data de Embarque:  20 de Junho de 1917

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura: (?)

Circunstâncias da morte:  Na batalha de 9 de Abril, comandou o seu pelotão com valentia e acerto na 2ª linha, para onde recebera ordem para retirar, oferecendo tenaz resistência ao envolvimento inimigo eempenhando-se no combate com valentia até cair vitimado pelos fogos dos atacantes.


António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 15 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22457: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XI: Alberto Slva Matos, cap inf (Braga, 1879 - França, CEP, 1918)

Guiné 61/74 - P22511: Os nossos seres, saberes e lazeres (466): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Férias repartidas, pois claro, primeiro a Lourinhã, uma delícia com tempo ameno, e agora Sines, com toda a gente a dizer que era um agosto atípico, por mim ainda bem, calor esbraseante já o tive na Guiné, sabem bem as baforadas da ventania, as manhãs com alguma neblina, passear pelos areais sem a inclemência do sol. É sempre com satisfação que se regressa a Sines, abraçar os amigos, visitar uma livraria (A das Artes) que resiste graças a uma vontade indómita do Joaquim, percorrer o Centro das Artes, lembrar o Emmerico Nunes, percorrer aqueles areais escalvados, que fazem parte dos 340 quilómetros da estonteante Costa Vicentina. E regressar a Lisboa semi adormecida, ir ao encontro de novidades como o fechamento daquelas paredes sempre em chaga do Palácio Nacional da Ajuda viradas para a Calçada. Foram dois num: gostei da solução e admirei a exposição dedicada ao reinado de D. Maria II, museologia de talento, para, como diz a publicidade, mais tarde recordar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (14)

Mário Beja Santos

O concelho de Sines tem muitas paragens obrigatórias. A vila em si incita-nos a ir ao Centro de Artes, ao Centro Cultural Emmerico Nunes, há igrejas e capelas, de visitar a Igreja de Nossa Senhora da Salas é conhecer um belo monumento nacional, temos o panorâmico castelo com um museu municipal e a Casa Vasco da Gama, e depois as praias, um desfrute dentro da chamada Rota Vicentina, a costa do Sudoeste, bem aprazível para desportos náuticos e um duche de luz por fragas e penedias que avançam ao acaso para o mar, fazendo em recantos prainhas recatadas que há muito deixaram de ser solitárias. E há a Lagoa da Sancha, Porto Covo, a ilha e o Forte do Pessegueiro. Só que a criança que nos acompanha tem 10 anos e é de muito boa memória e diz à boca cheia “já vi isso tudo, quero nadar, fazer castelos na areia e passear muito”, e assim terá que ser. Enquanto a dita criança se diverte à grande, aqui se confirma como a Natureza é pródiga, ao fundo passam constantemente os chamados porta-contentores, têm aqui porto de abrigo estratégico, prepara-se um pôr-do-sol esplendoroso e à cautela mostra-se uma grande angular de praias frondosas, tesouro permanente desta Costa Vicentina.
O contraste entre a praia e o campo é de grande peso, estamos num lugar chamado Paiol, talvez a sete quilómetros de Sines, é facto que estamos em agosto, gozamos de dias amenos, mas este céu de fogo que anuncia o fim do dia é pura vitamina para nos lavar a alma.
Uma última visita ao Centro de Artes, antes, porém, ainda se visitou o porto de pesca, deu-se com o nariz na porta da Igreja Matriz, vasculharam-se alguns estabelecimentos comerciais de gosto Art Deco, caso de A Primorosa, teimava-se em registar uma escultura metálica que é de um santo de culto do visitante, Rui Chafes, há umas boas décadas se sente um claro fascínio por esta aparente ilusão de artefactos medievais que tem uma fácil leitura de códigos da contemporaneidade. E mesmo à saída fixou-se um recanto como espaço e conteúdo, isto é, como de uma organização do espaço os irmãos Aires Mateus, alguém que sabe da poda de museologia e museografia dispôs as peças e sentimos um hino à modernidade, a satisfação de dar hossanas às Belas-Artes, neste diálogo entre a Arquitetura e as Artes Plásticas.
Não há uma satisfatória despedida de Sines sem vir a este local onde consta que foi nado e criado Vasco da Gama, ao que parece houve querelas terríveis quando Gama veio das Índias e aqui quis ser vulto e construtor, meteu-se em discussões com a Ordem de Santiago e El-Rei não teve pelos ajustes, pô-lo fora da vila, jamais lhe passou pela cabeça que a querela deixava indiferente a posteridade e que o lugar do Gama era mesmo o Panteão. Porque o destino nos troca as voltas, só para nos lembrar que não há permanência no certo e seguro.
Chegara o tempo, no sempre acalmado mês de agosto em Lisboa, em ir bisbilhotar o fechamento do Palácio Nacional da Ajuda, do que já ouvira escárnio e risota. Pelo contrário, sinto primores de imaginação na solução encontrada, verso e reverso, habituei-me a décadas de ver para aqui umas paredes escalavradas de palácio, a indiciar um sintoma bem nacional de entradas de leão e saídas de sendeiro, a solução parece-me digna, e por isso andei a espiolhar de cima a baixo, despedi-me desta visita indo até ao Jardim das Damas (mais um belo espaço a carecer de intervenção) só para confirmar que o arrojo da contemporaneidade dialoga bem com aquele classicismo de fachada solene e aquelas costas viradas para a Calçada da Ajuda que pareciam leprosas. Mas o que seria de nós sem o escárnio e o maldizer? Posta a cogitação, vai-se visitar o esplendor da Corte, a exposição dedicada ao reinado da Senhora Dona Maria da Glória, iremos ver uma outra bela organização do espaço neste fasto palatino. Fica para a semana.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22493: Os nossos seres, saberes e lazeres (465): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22510: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VI: A lenda de Djanqui Uali, o último Mansa Bá (imperador) do Cabú


Ilustrações do mestre Augusto Trigo (pp. 44, 45, 46 e 47)


1. Transcrição das págs. 43 a 48  do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato > 
Lendas e contos da Guiné-Bissau


O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA, 
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


A lenda de Djanqui Uali 

(pp. 43-48)


O Mansa Djanqui Uali Sané quando chegou o seu tempo de ser Mansa Bá (Imperador) de Cabú, predisse que o Império de Cabú iria terminar.

Eu vou ser o último Mansa – disse ele.

Quando a guerra com o Futa Djalon (19) começou, Djanqui Uali enviou ao Futa Djalon uma embaixada, na qual se incluía um representante de cada um dos 32 Reinos sob o seu domínio, ou com os quais tinha alianças, mas a sua chegada ao Futa Djalon não foi bem aceite, e questionaram a embaixada:

– Como se atrevem a colocar um pé nas nossas terras, não sendo muçulmanos? Vão morrer por isso!

Perante o massacre dos embaixadores Djanqui Uali compreendeu que a guerra era inevitável, e reunido com os Mansas dos diversos Reinos emnCansalá, questionou-os:

– Como vamos responder a terem morto os 32 representantes que enviámos? 
– mas eles nada responderam, pois nenhum queria avançar para a guerra.

Segundo os marabus, quem derramasse o primeiro sangue em Cansalá perderia a guerra. Assim os fulas engendraram um plano, para que o primeiro sangue em Cansalá fosse derramado pelos mandingas.

Os fulas apanharam um macaco de cor avermelhada (orangotango), o qual deixaram vários dias sem beber, depois deram-lhe água numa tigela, mas a água tinha um mésinho misturado que o transformava num homem, embora as pessoas apenas vissem um macaco. Assim, após ele beber a água, bateram-lhe nas costas e disseram-lhe:

- Vai para Cansalá e sobe ao poilão sagrado.

Quando o macaco subiu ao poilão sagrado de Cansalá, causou grande confusão e temor, sendo confundido com um espírito maligno, pois nunca ninguém tinha visto um macaco daquela cor. Pensaram então que a sua presença no poilão sagrado, era uma ameaça para os espíritos que
protegiam Cansalá.

As pessoas perguntavam-se:

– O que trouxe este macaco aqui?

– O que trouxe este macaco ao nosso poilão?

Djanqui Uali disse-lhes:

– Não se preocupem. Este macaco vem do Futa Djalon, é o símbolo da sua traição, não vamos fazer-lhe mal.

Contrariando a vontade de Djanqui Uali, um tiro foi disparado contra o macaco, e o seu sangue foi derramado em Cansalá, traçando-se assim o fim do Império de Cabú.

No Futa Djalon, a água da tigela onde o macaco tinha bebido, tornouse vermelha, e os homens do Futa Djalon souberam que tinha sido derramad sangue em Cansalá.

Após algumas incursões, os fulas do Futa Djalon
Pág. 45
avançaram para Cansalá, com um poderoso exército de 40.000 homens, enquanto que Djanqui Uali tinha apenas 600 guerreiros.

Djanqui Uali era também um poderoso feiticeiro e as serpentes eram o animal da sua magia. Foram elas que o avisaram, que um poderoso exército fula estava a caminho de Cansalá.

Djanqui Uali enviou um dos seus filhos, para saber quais eram as forças do inimigo, para se poder preparar para a batalha, ao mesmo tempo que enviava pedidos de ajuda aos diversos reinos, dos quais nunca teve resposta.

O filho de Djanqui Uali cavalgou durante todo o dia, sem nunca conseguir ver o fim das forças inimigas, e quando Djanqui Uali lhe perguntou qual era o seu número, ele pegou com as duas mãos num monte de areia e respondeu:

– Os homens do Futa Djalon são tantos quanto os grão de areia deste monte, se alguém conseguir contá-los saberemos o seu número.

Djanqui Uali ainda enviou o seu sobrinho com a mesma missão, mas a resposta foi a mesma.
 
Face à desproporção de forças em confronto, Djanqui Uali optou por se defender em Cansalá. Na verdade as incursões anteriores dos fulas tinham bloqueado o acesso a Cansalá, e além disso, os seus irmãos mandingas, membros do clã Mané com quem estava em conflito, tinham-se aliado aos fulas.

Djanqui Uali preparou-se para a batalha e para morrer. Assim deu ordens para que pequenos grupos de várias profissões abandonassem Cansalá, pois queria preservar a sua história, o seu saber e a sua cultura.

Djanqui Uali sabia que não conseguiria vencer o exército fula, mas iria fazer pagar caro a sua derrota. A sua sorte seria também a dos atacantes, seria a destruição total, o fim da sementeira, o que na língua mandinga se designa por turubam.

Pág. 46
Os fulas cercaram a fortificada povoação de Cansalá e dispararam três tiros à chegada, e os sitiados responderam ao “cumprimento” com quarenta tiros.

Durante vários dias, os mandingas combateram com bravura e mataram muitos dos atacantes, mas o número destes era demasiado grande para poder ser contido, e os fulas começaram a transpor as rudimentares muralhas, construídas de madeira e lama.

Djanqui Uali perante a derrota iminente, chamou os seus filhos, e disse-lhes:

– Vou mandar abrir os portões, e quando os fulas entrarem todos, incendeiem a pólvora dos paióis.

Os portões foram abertos, e quando os fulas entraram, os paióis explodiram e todos os defensores morreram, mas os 40.000 soldados do exército fula ficaram reduzidos a 40.

Os 40 elementos do exército fula que 
Pág. 47
sobreviveram, foram perseguidos,  a maior parte mortos em emboscadas durante a sua fuga para leste. E assim, apenas sete guerreiros fulas conseguiram regressar ao Futa Djalon.

Apesar da derrota, os mandingas referem-se ao turubam Cansalá com orgulho, dada a valentia dos defensores de Cansalá.

Perto de onde era Cansalá, os portugueses ergueram a cidade de Nova Lamego, hoje em dia chamada Gabu, sendo a terceira maior cidade da Guiné-Bissau.

O local onde foi travada a batalha é agora um local sagrado, árido e infértil, onde vivem os espíritos.

O Império de Cabú caiu com a invasão fula, mas a sua história e a sua grandeza não foram esquecidas, e a sua cultura contínua viva e a ser transmitidas ao mundo, nomeadamente através de uma das suas invenções, o corá (20).

Esta é a lenda dos valentes guerreiros mandingas, que morreram em Cansalá (**). É uma das muitas lendas existentes, mas é uma versão mandinga da mesma, e como manda a tradição é cantada ao som do corá.

[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]
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Notas do autor;

(18) Mansa Bá: era o título dado pelos mandingas aos Mansas que possuíam nos seus domínios poder sobre outros Mansas (Reis), a palavra bá em mandinga significa grande, dai o significado de Grande
Rei ou Imperador, por vezes, por lisonja os súbditos chamavam ao Rei, de Grande Rei, apesar de não o serem. Também existem referências a Imperadores chamando-lhes apenas de Mansa, o que é usual.
Os portugueses chamavam a todos eles de “Régulos”, o que significa pequenos reis.

(19) Futa Djalon: este reino fula situava-se na Guiné-Conacri (República da Guiné).

(20) Corá: é um instrumento musical de cordas parecido com uma harpa, tem 21 cordas, sendo 11 para a mão esquerda e 10 para a mão direita. A caixa de ressonância é constituída por uma cabaça, forrada com couro, e as cordas são de fio de nylon, mas antigamente eram de feitas de tendões de boi ou de couro de gazela. Embora o número de cordas seja normalmente de 21, pode variar entre 19 e 24.

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com
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Vd. postes anteriores da série:

26 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22405: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IV: Lendas mancanhas

20 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22390: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte III: Lendas bijagós

10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22359: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II A: Comentário adicional sobre os balantas: "Nhiri matmatuc Fortunato. Nhiri cá ubabe. Nhiri god mara santa cá cum boim. Udi assime?"...Traduzindo: "O meu nome é Fortunato. Eu sou branco, não sei falar bem balanta. Percebes o que estou a falar?"... Uma conversa com Kumba Yalá, em Bissorã, a dois dias da sua morte, aos 61 anos

9 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22354: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II: Ficha técnica, prefácio de Leopoldo Amado, lendas balantas (pp. 1-14)

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22349: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte I: Vamos dar início a uma nova série, um mimo para os nossos leitores

(**) Vd. também poste de 15 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22509: Parabéns a você (1988): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490 (Mansoa, Bafatá e Jumbembem, 1963/65); José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Mata dos Madeiros, Bassarel e Tite, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Setembro de 2921 > Guiné 61/74 - P22505: Parabéns a você (1987): Amigo Grã-Tabanqueiro Luís Gonçalves Vaz, ex-Fur Mil PE (EPC, 1983/84)

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22508: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Num estado um tanto lastimável, em desnorte, Paulo Guilherme parte para Bissau, nem lhe passa pela cabeça o que é uma cura de sono num hospital militar, metido num quarto com um capitão que pediu uma evacuação Y porque se esquecera de enviar nesse dia correio para a mãezinha e outra parentela, e um furriel que tivera a sorte bendita de pisar um sistema de minas antipessoal, andou pelos ares, não perdeu uma nesga de carne mas ficou frenético, não havia soporífero que o domasse; assistir-se-á a visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino que deixarão umas revistas puídas e alguns aerogramas; sob o olhar severo de um 1º cabo que se vangloriava de ter algumas coristas por conta num inesquecível Parque Mayer; e aquele trágico espetáculo que era a corrida de doentes de toda a espécie até à varanda para ver chegar qualquer helicóptero, para medir o estado de quem chegava e fazer a comparação dos aleijões, às vezes suspirando de alívio porque a contabilidade soprava a seu favor... Pois foi assim, para além de se ter sentado numa cadeira de dentista, ter tirado montanhas de porcaria dos ouvidos e ter tido o regozijo de o novo oftalmologista lhe ter assegurado que não havia danos nos olhos, os efeitos da mina anticarro tinham passado sem deixar marca.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo, mon adoré, mon Ulysse, estou quase a partir para Lisboa, o número de reuniões tende já a diminuir, disse-me o meu coordenador que de sexta-feira a oito dias é o último dia de trabalho, estarei três dias no Luxemburgo e até lá andarei por diferentes edifícios das instituições, reuniões da Comissão e do Parlamento. Telefonou-me a proprietária da galeria Tempera, Chantal de Elsouth, referindo que aguarda a tua decisão quanto à compra de uma das duas obras de Frédéric Brigaud, um bronze onde se vê a figura de um coelho e um desenho a grafite intitulado Cabeça de Herói. Vê se me comunicas rapidamente o que pretendes comprar, irá comigo até Lisboa.

Foi com muito agrado que recebi a tua encomenda com o livro Postais Antigos da Guiné, com uma linda dedicatória do autor, João Loureiro, tu dás a explicação de que é a maneira mais óbvia de ele conhecer a cidade de Bissau por onde circulaste durante aquele mês de abril de 1970. Juntaste um conjunto de folhas com matéria explicativa de tudo o que consideras mais relevante sobre este período em que tiveste a circunstância de te recompor psicologicamente, mesmo contrafeito pelo internamento na Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Pouco antes de partires para tratamento, andaste pelos Nhabijões com um príncipe de nome Xisto Bourbon-Parma, que dizes ter sido muito gentil e muito perguntador, vinha como repórter, tinha como fito avaliar os reordenamentos planeados pelo governador. Juntas várias imagens dos Nhabijões com dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo os antigos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga. Já tinhas referido haver sucessivos patrulhamentos a montar segurança ao empreendimento, dizes nos teus apontamentos que só meses mais tarde é que a guerrilha começou a implantar minas anticarro, mas não tinhas dúvidas que as populações de Madina-Belel e Baio-Buruntoni mantinham relações familiares amigáveis, quem vivia no mato queria abastecer-se de víveres e informações. Referes igualmente nestes apontamentos que não foi uma nem duas vezes que encontraste nos terrenos a beijar o Geba embarcações camufladas e indícios seguros da presença humana.

Em notas separadas, envias o registo dos teus dias a partir de 14 de abril: reunião com os furriéis para apreciar os pagamentos às praças, as trocas de fardamento, a chegada de novos equipamentos que vinham substituir o que já estava por um fio. Receberas a garantia do major de operações de que o teu pelotão ficaria seja na ponte do rio Undunduma, ou a apoiar colunas ao Xitole ou a fazer patrulhamentos dentro do setor, não haveria participação em operações de grande porte. E gostei muito daquelas duas folhas em que tu mencionas o que te vai na mente enquanto viajas de Bambadinca para o aeroporto de Bafatá, aquela intensa e viva rememoração do que se tem passado na tua vida desde que foste classificado como ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, parece que foi ontem, te adaptaste a viver lá num mato profundo do leste da Guiné, que um dia te ardeu um quartel, terá sido talvez o maior desafio da tua vida repor ordem, reconstruir, melhorar as condições de vida tanto dos civis como dos militares; que tinhas dois destacamentos para gerir com recursos mínimos, problemas graves de abastecimento para todos, constantes idas ao médico, assegurar professores para as crianças, os dias passavam vertiginosamente, continuava a ser um mistério como havia tempo para ler, escrever e ouvir música e que jamais esquecerias aqueles dolorosos momentos de lágrimas amargas pelos mortos e feridos; que um dia acordaste estremunhado e saíste do abrigo e tinhas o pelotão formado à porta para reivindicar mudança de poiso, queixavam-se daquele esforço quase desumano, aquelas caminhadas de 25 ou mesmo 50 quilómetros por dia, patrulhas e emboscadas e as operações também não faltavam, queriam sair do Cuor, como saíram, foi um abalo na tua vida, nunca te conformaste até ao fim da comissão com aquela pletora de intervenções multiusos, e sobretudo aquele punhado de operações que pareciam não ter pés nem cabeça, e assim chegavas àquele estado de desalento, à deriva como um pária, estranhamente sentias aquela fortaleza da camaradagem e fidelidade dos teus soldados, até mesmo da atmosfera agradável da vida entre oficiais e sargentos, em Bambadinca, só que o Cuor deixara saudades sem fim, quantas vezes desceste a rampa da Bambadinca só para ir ver o sol a caminhar para o acaso sobre o coberto florestal de Mato de Cão. Prometo-te, meu adorado amor, que tudo farei para pôr ordem em tudo quanto garatujaste durante esta viagem até embarcares para Bissau.

Fizeste bem em me teres enviado os aerogramas que mandaste à família logo que chegaste à cidade. Havia amigos que tinham partido, caso do Teixeira da Mota e do Botelho de Melo, mas sabias, e por eles nutrias uma forte dedicação e gratidão, que estavam no batalhão de engenharia o Rui Gamito e o Emílio Rosa, não foi por acaso que mal chegado a Bissalanca pediste uma boleia até Brá para os ires visitar, aquele tão estranho quartel feito de barracas Mague, umas estruturas metálicas com teto de lusalite, convidaram-te para almoçar, guardaste a recordação desses belos momentos. Depois deram-te transporte até à messe de oficiais, em Santa Luzia, onde deixaste os teus haveres e partiste à redescoberta da cidade. Tu descreves minuciosamente o primeiro passeio, felizmente para mim os postais organizados pelo João Loureiro ajudaram-me a compreender o que ias olhando e registando.

Apeaste-te na Praça do Império, e pela primeira vez entraste no edifício da Associação Comercial e Industrial de Bissau, acicatado pelas soluções arquitetónicas, dois arquitetos lançaram mão a soluções espaciais que criaram espaço desafogado, tendo por detrás uma área desportiva, com campo de ténis. Foste vagarosamente descendo a Avenida da República pelo lado direito, sempre a ver ao fundo o Pidjiquiti, passaste pelo Hotel Portugal depois de tomar uma bica no Café Império, passaste o mercado e entraste nos CTT, marcaste telefonemas para o dia seguinte, mudaste para o lado oposto e foste à catedral rezar, passaste sem parar pela Pensão Central e encaminhaste-te para um café de nome Bento, a que deste o estranho nome de 5ª REP, pediste uma água e observaste o bulício da esplanada, oficiais, sargentos e praças, sobretudo os que estavam em trânsito, bramavam aos gritos sobre tiros e desgraças, só faltavam os estampidos das minas e emboscadas. E depois de pagar foste visitar a pequena livraria que guardava surpresas, sobretudo de livros que a Censura tinha apreendido em Lisboa, folheaste cuidadosamente três ou quatro, amanhã por aqui passarás para comprar dois.

Mas o Cais do Pidjiquiti é irresistível, passas ao lado do Bissau Velho e ficas especado a ver as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, a linha do Ilhéu do Rei e a sua vegetação frondosa. E num desses aerogramas que envias para Lisboa dizes ter sentido um cansaço esmagador, convinha regressar, doía a memória, havia mesmo aquela inescapável sensação de culpa, o teu lugar era estar ao pé dos teus soldados e não a tratar maleitas, só sentiste alívio quando pensaste que a tua guia de marcha incluía oftalmologista, otorrino, estomatologista e, com que arrepio não soletraste, a neuropsiquiatria, o imperativo de recompor os sonos, naquele vendaval de insónias tão desgastantes.

Foi assim, meu adorado Paulo, que tu chegaste a Bissau, percorreste artérias já conhecidas, como dirás no outro aerograma, com aquela estranha sensação de que não há uma emboscada à espreita e de que não sentes o peso da espingarda. E ficamos por aqui, pois antes de partir para Lisboa ainda te vou dar conta de tudo o que viveste até chegares à tragicomédia da Neuropsiquiatria, espero que não fiques zangado se te disser que me fartei de rir com as facécias que escreves, mesmo sentindo arrepios quando tu contas a chegada dos helicópteros que trazem sinistrados e os estranhíssimos comentários daqueles militares que estavam contigo à varanda, alguns com membros amputados, fazendo as mais bizarras comparações entre o seu estado e quem chegava com a vida por um fio. Aguardo o teu telefonema, Jules e Noémie mandam-te saudades, Jules está impaciente pela sua semana de férias em Lisboa. Mas mais impaciente estou eu todas as doçuras da tua companhia. Bisous mils, comme d’habitude, Annette.


Restaurante Pelicano na Avenida Marginal, desaparecido
Associação Comercial Industrial da Guiné, sede do PAIGC
Edifício dos CTT na Avenida da República
Avenida da República, com o edifício da Casa Gouveia à esquerda, Bissau
Fortaleza da Amura
Edifício da alfândega, Bissau
Aqui funcionou o Museu da Guiné Portuguesa e o Centro de Estudos, bem como aqui se preparava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22507: Notas e leitura (1376): "Posfácio" ao livro "Um caminho a quatro passos", de António Carvalho. Apresentação da obra na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, sábado, 11 de setembro, às 11 horas


Capa do livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos" (2021)... O autor, natural de Medas, Gondomar, foi autarca durante 28 anos, é membro da nossa Tabanca Grande, e ex-fur mil enf da CART 6250/72, "Unidos de Mampatá", Mampatá, 1972/74.

Estrutura do livro: 1º passo: I. Medas, da minha infância até à Mealhada (pp. 13/156); 2º passo: II. O piano da Mealhada (pp. 157/173); 3º passo; III. Contra os canhões, marchar, marchar... (pp. 175/204); 4º passo: IV. A revolução e o reencontro (pp. 205/214)



1. O livro vai ser apresentado no próximo sábado, dia 11 de setembro, às 11h, na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar. (*)

Na mesa estarão presentes, além do autor, António Carvalho, o nosso editor Luís Graça,  o José Manuel Lopes (amigo e camarada do autor, também ele um dos "Unidos de Mampatá", conhecido na nossa Tabanca Grande como o "poeta Josema" e o "Zé Manel da Régua", vitivinicultor...), e ainda um das filhas do autor, a Ana Carvalho, doutoranda em ciências da educação pela Universidade do Povo.

A convite expresso do autor, o livro será apresentado pelo nosso editor Luís Graça (, de passagem pelo Norte, a matar saudades da Tabanca de Candoz, na  próxima semana). 

 Daremos mais notícias deste evento em próximo poste da série "Agenda Cultural". Quem se quiser inscrever para o almoço (20 morteiradas), que se seguirá a este evento, terá que fazer uma reserva, contactando o Gil Moutinho, régulo da Tabanca dos Melros e gestor do Restaurante Choupal dos Melros ( email: choupal@quintadoschoupos.com : telefone: 22 489 0622). 

2. Como "aperitivo", aqui fica um sugestão de leitura, feita pelo editor Luís Graça: as últimas três páginas do livro dizem muito sobre o autor,  que, com este notável posfácio, se interpela (e nos interpela) sobre as suas / nossas origens, os seus/ nossos antepassados : afinal, quem sou eu ? afinal, quem somos nós ?... 

Quem escreve este posfácio, só pode ter escrito um grande livro...


POSFÁCIO (pp. 215/217)


Se, em 1736, o Padre do Paço não se tivesse instalado, nesta minha freguesia de Medas, no lugar de Vila Cova, eu seria um outro qualquer, mas não esta mesma pessoa. Sucede que este clérigo, quando chegou do Brasil, trouxe com ele três jovens irmãos, de pele muito escura.

Monsenhor Frei Luís Pinto, o Padre do Paço, nasceu nas Taipas, município de Penafiel, em 1699, tendo ingressado, na adolescência, num convento onde recebeu, após a conclusão do curso, a ordem sacerdotal, momento em que terá feito acrescer ao seu nome o sobrenome religioso de S. Jerónimo. Mais tarde frequentou a Universidade de Coimbra onde se bacharelou em Cânones.

Atraído pelas missões apostólicas, embarcou para o Brasil onde se distinguiu, se não como missionário no terreno, pelo menos, enquanto burocrata, nalgum mais conveniente paço episcopal, o que lhe permitiu subir ao patamar de monsenhor e adquirir alguma fortuna.

Quando regressou a Portugal, provavelmente na década de quarenta do Séc. XVIII, não trazia só bens materiais, com ele vinham o António, a Ana e a Maria Trindade, escravizados no Brasil, livres agora por estarem em Portugal continental, onde beneficiaram da lei Pombalina de 1763 . 

O frade não se quis radicar na sua freguesia de nascimento , em Penafiel, antes optou por comprar a Quinta do Paço, em Medas, cujos caseiros eram da sua própria família. Pois então aqui se instalou, depois de empreender obras de alguma envergadura, no seu novo domicílio, de acordo com o seu estatuto. 

Na casa, hoje já muito alterada, havia uma capela incorporada, aposentos para os seus familiares e até para aqueles três jovens de pele escura, agora na condição de criados de servir. Dois destes criados constituíram família com casamentos promovidos pelo seu amo, dos quais resultaram cinco filhos que se espalharam pela freguesia. Parece que só o António permaneceu solteiro até morrer. Um neto da Ana, chamado José Ferreira, é, segundo afirmação de Albino dos Santos, na sua obra “Monografia da Freguesia das Medas”, um antepassado dos Ferreiras de Pombal. Ora, o meu avô paterno, José Ferreira de Carvalho, nasceu nessa casa dos Ferreiras de Pombal.

Quem sou eu, afinal ? Quem somos nós todos ?

Na verdade, qualquer um de nós pode ter um primo no local mais improvável do mundo. Especialmente, neste pedaço ibérico de formato retangular, posto avançado no extremo poente da Europa, ponto de passagem e de fixação das grandes culturas mediterrânicas, integrado em grandes impérios, invadido por povos oriundos dos confins da Europa, só por insipiência ou até estultícia alguém se pode considerar fruto de um só tipo humano.

No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito.

Quando estive na Guiné, na Guerra do Ultramar, em 1972/74, nunca admiti a possibilidade de ter, entre as gentes da tabanca, onde passei vinte e cinco meses, algum primo, porque, nessa altura, o autor da Monografia de Medas não tinha sequer iniciado a sua tão valiosa obra que me propiciou tão surpreendente revelação. 

Mesmo sem esse precioso conhecimento sempre mantive uma relação próxima com aquela população, apesar das abissais diferenças religiosas e culturais. Não sei se, no meu subconsciente, algo me assegurava que aquelas pessoas também eram da minha família. E elas pareciam saber, melhor do que eu, que também lhes pertencia, pela forma doce e leal como me tratavam.

Em 2009 pude e desejei ardentemente lá voltar. Ninguém aqui em casa me tentou dissuadir de tornar ao mato de África, para reencontrar gentes do tempo da guerra em Mampatá, naquela tabanca de casas cobertas de capim, na orla da mata do Cantanhês, pelo contrário, até me incentivaram.

Eu tinha a certeza que aquela viagem me iria fazer bem, porque mesmo sabendo que iria voltar a chorar, evocando momentos de dor e morte,  tinha também a certeza que iria tornar a sorrir, nos sorrisos dos olhos deles, recordando também as horas de ubérrimas conversas, à sombra dos frondosos ramos dos mangueiros, num esforço permanente de compreender os conceitos e a alma dos fulas, descodificando as palavras do seu dialeto.

Nas minhas reflexões, atrevo-me a admitir, seguindo um raciocínio lógico, uma hipótese sobre a minha ascendência genética, num esforço pedagógico de demonstrar e afirmar a minha convicção de que nós, os humanos, somos de uma só raça, embora formatados por culturas diferentes e «pintados» em diferentes colorações. 

Sobre quem fui e o que sou, acerca do meu valor individual, familiar e social, em relação aos meus méritos e falhas não sou capaz de falar. Outros o farão por mim, numa perspetiva mais equidistante ou mais subjetiva, de forma mais mesquinha ou mais generosa. Alguns terão a pretensão e a capacidade para, a partir deste braçado de histórias e contos, me compreender e julgar, se for esse o seu desejo. Todavia, recomendo que o não façam, porque o que disse de mim não é tudo o que sei ou julgo saber, nem considero o que disse uma verdade absoluta. 

Um livro como este, onde pretendi, de certo modo, autobiografar-me e relatar memórias, nascido de um desejo de gravar cenários remotos onde se encontram diluídas as minhas origens bem como do meu passado recente, incluindo algumas observações relativas ao desenvolvimento económico e social da minha freguesia, parecendo assim uma salada de temas, pode não ser coisa que preste, mas serviu, pelo menos, para saciar um desejo irreprimível.

(Reproduzido com a devida vénia... Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação no blogue: LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de agosto de  2021 > Guiné 61/74 - P22442: Agenda cultural (779): "Um caminho de quatro passos", o livro autobiográfico do António Carvalho (ex-Fur Mil Enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), a ser apresentado na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gomndomar, no próximo dia 11 de setembro


(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22498: Notas de leitura (1375): “O Império com Pés de Barro, Colonização e Descolonização: as Ideologias em Portugal”, por José Freire Antunes; Publicações Dom Quixote, 1980 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22506: Efemérides (352): 22 anos depois do referendum sobre a autodeterminação, o ativista João Crisóstomo, líder do LAMETA, mostra-se apreensivo sobre o futuro da língua portuguesa em Timor Leste, em entrevista dada em Nova Iorque à Agência Lusa

1. Mensagem de João Crisóstomo, membro da nossa Tabanca Grande, com 160 referências no blogue, a viver em Queens, Nova Iorque, ativista social,  régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, ex-alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67):

Data - terça, 31/08/2021, 20:14

Assunto -Textos da entrevista de Elena Lentza sobre Timor-Leste



Lusa / Timor, Agosto 30, 2021

O Aniversário do Referendum em Timor Leste (30 de Agosto de 1999) deu azo a que a Lusa fizesse estes dois trabalhos. Permito-me salientar os meus comentários e apreensão que manifestei sobre o futuro da lingua portuguesa em Timor Leste. Aqui os envio para vosso conhecimento e consideração , se for o caso.

João

From: Eduardo Lobão <elobao@lusa.pt>
Subject: Textos da entrevista de Elena Lentza sobre Timor-Leste
Date: August 29, 2021 at 2:11:01 PM EDT

 Meu Caro João:

Neste email envio-lhe cópia dos textos da entrevista que a Elena lhe fez e que saíram hoje na Lusa. Os vídeo da conversa pode descarregar através do link que lhe enviei por WeTransfer.
Forte abraço para si para a Vilma.
Eduardo Lobão



29/08/2021 09:54

ENTREVISTA: Menos união entre Timor e Portugal preocupa defensor da autodeterminação timorense nos EUA


Serviços áudio e vídeo disponíveis em www.lusa.pt 

Elena Lentza, da agência Lusa

Nova Iorque, 29 ago 2021 (Lusa) – A reduzida união entre Timor-Leste e Portugal, vinte e dois anos depois da independência completa de Timor-Leste, que teve muito apoio da comunidade portuguesa nos Estados Unidos da América, preocupa João Crisóstomo, um dos defensores da causa.

Atualmente, os pilares da independência timorense, que foram a Igreja Católica e a língua portuguesa, estão a perder força, considerou, em entrevista à agência Lusa em Nova Iorque, João Crisóstomo, líder do Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor-Leste (LAMETA, na sigla em inglês).

“Estes dois pilares, estas duas colunas, da independência de Timor-Leste estão a fracassar. E tenho muito receio pelo futuro de Timor-Leste”, disse João Crisóstomo à Lusa, receoso que dentro de 30 a 50 anos possa haver um “plebiscito que vai acabar com a língua portuguesa”.

A igreja era o “refúgio” para milhares de timorenses, acrescentou João Crisóstomo, mas o idioma, em especial, significa que “não há mais essa coesão, não há mais nada a agarrar o povo timorense a Portugal”.

“Com a Austrália de um lado e a Indonésia do outro”, em Timor-Leste, “atualmente dão muito pouca importância à língua portuguesa”, considerou o cofundador da construção da Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem” nas montanhas de Liquiçá, em Timor-Leste.

Autor do livro LAMETA sobre as comunidades luso-americanas e colecionador de todas as memórias relacionadas, organizadas em pastas e dossiês, João Crisóstomo disse à Lusa que a comunidade portuguesa nos Estados Unidos da América era vibrante nas manifestações de apoio e na ajuda transmitida ao povo timorense alguns anos antes do referendo de 30 de agosto de 1999, que resultou na opção da autodeterminação relativamente à Indonésia.

O apoio da comunidade portuguesa radicada nos Estados Unidos passou por manifestações em frente à Organização das Nações Unidas (ONU), cartas ao Presidente norte-americano Bill Clinton, muito lóbi e envio de contentores com ajuda.

No início da narrativa, o impulsor do movimento começou por reconhecer o desconhecimento face à situação de Timor-Leste em 1996: a primeira vez que foi abordado por um colega com quem tinha trabalhado noutras causas, João Crisóstomo recusou firmemente ligar-se ao problema.

“A primeira coisa que eu disse foi não, porque não queria estar a envolver-me em lutas civis. Lamentava que Portugal tivesse deixado Angola, Moçambique e tudo mais no estado em que deixou e não me queria envolver nisso”, explicou o ativista.

Foi contrariado pelo colega, que disse que o caso de Timor-Leste não era nenhuma guerra civil, mas uma invasão de um país estrangeiro, a Indonésia, a um antigo território português, uma ocupação que veio a durar mais de 20 anos.

E assim, uma causa que parecia fácil e direta ao início revelou-se mais complicada do que João Crisóstomo esperava: “era simples, mas difícil”, disse à agência Lusa em Nova Iorque.

“Verifiquei que Timor-Leste era um caso esquecido, ignorado. Ninguém queria saber”, lamentou o ativista que relatou muitos obstáculos para que os políticos, diplomatas e comunidade internacional realmente prestassem atenção à situação e tomassem ações significativas contra a ocupação pela Indonésia.

João Crisóstomo estava convencido que “a solução para Timor-Leste vai ter de ser feita através das Nações Unidas e através de um referendo”, o único caminho para uma “independência completa”.
“Isto foi em fevereiro de 1996. Eu comecei imediatamente a martelar” para defender a solução, relatou à Lusa.

O antigo mordomo de Jacqueline Kennedy Onassis começou a convidar as comunidades portuguesas a manifestar pela autodeterminação de Timor-Leste em frente às Nações Unidas. “E as pessoas vinham, ao princípio eram poucos, depois começavam a ser mais”, até chegarem a ser centenas de portugueses nas avenidas de Nova Iorque.

Para o líder do movimento, as manifestações “eram uma maneira de sensibilizar os americanos, sem os antagonizar”, sem desordem ou barulho ensurdecedor, mas com educação sobre o drama de Timor-Leste.

João Crisóstomo também sabia que o apoio político dos Estados Unidos à causa seria imprescindível e foi por isso que decidiu enviar uma carta com um abaixo-assinado de 1.267 pessoas ao Presidente Bill Clinton.

“O que é que eu fiz? Eu contactei tudo que era clube português, todas as escolas portuguesas dos Estados Unidos”, disse o ativista, com o intuito de apresentar o problema de Timor-Leste e juntar assinaturas para fazer chegar ao Presidente norte-americano.

Depois de um mal-entendido, em que a Casa Branca respondeu sobre Tibete sem mencionar Timor-Leste, João Crisóstomo finalmente recebeu uma carta do próprio Bill Clinton, assinada a 21 de janeiro de 1997.

No documento, o Presidente norte-americano reconhecia a sua preocupação sobre o “assunto crítico” da “violação de direitos humanos em Timor-Leste” e dizia que os EUA iriam continuar “a pressionar a Indonésia para mostrar maior respeito pelas liberdades básicas”, sublinhando “objetivos importantes de segurança na região”.

Em conclusão, Bill Clinton escreveu: “aprecio ouvir a sua visão e a da LAMETA. Espero que partilhe a minha carta com aqueles que assinaram a petição”.

O esforço da comunidade portuguesa para chegar ao referendo em Timor-Leste durou vários anos, garantiu João Crisóstomo, convencido de que a pressão feita nos Estados Unidos pela comunidade portuguesa teve influência no despertar da comunidade internacional e para a tomada de ações.

“A verdade é que quando ninguém acreditava ou ninguém queria [um referendo], foi para isso que nós, nas comunidades portuguesas, batalhámos sempre”, sublinhou o responsável.

Logo depois da Consulta Popular, em 30 agosto de 1999, a comunidade luso-americana também se decidiu a enviar ajuda material para Timor-Leste, começando com um contentor “completamente cheio”, segundo as palavras de João Crisóstomo, de mantimentos alimentares, roupas e outros materiais desde Newark, com ajuda das associações ou clubes culturais e recreativos portugueses.

“Nós andámos de porta em porta, íamos a toda a gente. E a verdade é que, a pouco e pouco, enchemos o contentor. Depois desse, foi o segundo, foi o terceiro e foi o quarto. Foram quatro contentores que saíram daqui dos Estados Unidos enviados para Timor-Leste”, afirmou.

Foram também vários jantares de angariação de fundos para Timor-Leste e nas contas finais, as comunidades portuguesas dos EUA mandaram mais de 200 mil dólares de ajuda, que ficaram na responsabilidade do Comissário Nacional para o Apoio à Transição em Timor-Leste, padre Vítor Melícias, que distribuía os fundos de acordo com as necessidades.

João Crisóstomo não escondeu a surpresa negativa e o lamento por as comunidades portuguesas “terem sido esquecidas” nas primeiras celebrações da independência de Timor-Leste.

Ainda que tudo o que foi feito não era com a pretensão de ganhar fama ou qualquer reconhecimento, “foi de lamentar que se tivessem esquecido das comunidades portuguesas”, acrescentou João Crisóstomo.

A comunidade luso-americana formava um bastião para a defesa da independência de Timor-Leste na viragem do século.

Num encontro com o antigo primeiro-ministro timorense Rui Maria Araújo, João Crisóstomo ficou convencido de transformar o seu dossiê pessoal com memórias das atividades de defesa da autodeterminação de Timor-Leste num livro sobre o movimento LAMETA.

O livro, com o subtítulo “O desconhecido contributo das comunidades luso-americanas para a Independência de Timor-Leste” foi impresso em 600 cópias, distribuídas pelas pessoas que fizeram parte do processo, nos Estados Unidos, em Timor-Leste, Portugal, mas não foi posto à venda, com a convicção do autor de que não se devia fazer dinheiro pelas causas que defendeu.

A antiga colónia portuguesa de Timor-Leste, que obteve independência em 28 de novembro de 1975, foi invadida pela Indonésia a 07 de dezembro do mesmo ano e declarada, no ano seguinte, uma província da Indonésia.

O período de luta pela autodeterminação foi marcado pela violência. Em 30 de agosto de 1999, com ajuda e patrocínio da Organização das Nações Unidas, realizou-se o referendo de independência de Timor, com as opções de o território ter uma maior autonomia e ficar no estado unitário da Indonésia, ou de separar Timor da Indonésia.

A independência de Timor-Leste obteve a maioria absoluta no referendo, com quase 344,5 mil votantes ou cerca de 80% dos votos.

EYL // EL
Lusa/Fim
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O aniversário do Referendum
29/08/2021 09:51

ENTREVISTA: Timor-Leste viveu muitos anos sem apoio internacional até à independência – ativista nos EUA


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Elena Lentza, da agência Lusa

Nova Iorque, 29 ago 2021 (Lusa) – Timor-Leste teve de passar por muitos anos de inércia política internacional e pessimismo até à independência, considerou, em entrevista à agência Lusa, um dos maiores defensores da causa nos Estados Unidos, o português João Crisóstomo.

Com uma visão retrospetiva, o fundador do Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor-Leste (LAMETA, na sigla em inglês) sublinhou que o povo timorense teve de ultrapassar muitos pessimistas em vários estratos - social, político, diplomático, - para se poder afirmar como Estado soberano em resultado do referendo sobre a autodeterminação em 30 de agosto de 1999.

“O que é que move o mundo? É o dinheiro” - era assim quando a Indonésia estava a ocupar Timor-Leste e continua assim ainda hoje, disse João Crisóstomo, defensor da autodeterminação, que durante anos expôs a proposta de um referendo a presidentes e representantes de vários países, membros da comunidade luso-americana, jornalistas, e teve contacto privilegiado com combatentes pela liberdade.

A Organização das Nações Unidas (ONU), tal como os Estados Unidos da América, não se pronunciava oficialmente contra a Indonésia, que tinha poder económico, numerosas relações comerciais de volume significativo e grande influência para a região.

“Não havia motivos” para os EUA, cujo apoio político seria imprescindível para qualquer mudança à escala mundial, se juntarem a Portugal na defesa da independência de Timor-Leste e ir contra a Indonésia, vincou João Crisóstomo, em entrevista à agência Lusa, em Nova Iorque.

“Não só isso, mas os Estados Unidos precisavam muito da Indonésia naquela altura, era ainda no tempo da Guerra Fria” – um tempo em que o mundo estava dividido entre o Bloco de Leste, antiga União Soviética e o Ocidente, liderado pela América.

Os norte-americanos “precisavam daquele estreito em frente a Timor-Leste, por onde passavam os submarinos atómicos dos Estados Unidos e eram eles que forneciam militarmente a Indonésia. Era importante vender armas (…), tinham negócios em petróleo e não queriam perder nada disso”, analisou o português que emigrou para os EUA e foi mordomo de Jacqueline Kennedy Onassis na segunda metade da década de 1970.

Em Portugal ou até no Vaticano, as pessoas influentes contactadas por João Crisóstomo diziam que a situação era “muito difícil” e “muito delicada”, o que não o desencorajou. Do Vaticano, João Crisóstomo tentou haver-se do mesmo apoio que recebeu para a salvação das gravuras pré-históricas de Foz Côa, em Portugal, do agora cardeal Renato Martino, na altura arcebispo e observador permanente da Santa Sé na ONU.

“Quando fui falar com ele [Renato Martino] sobre Timor-Leste, ele disse-me: ‘João Crisóstomo, o caso de Foz Côa era um assunto cultural e admiro (…) que conseguimos salvar as gravuras (…), agora o caso de Timor é um assunto político”, recordou.

Ainda assim, na mesma conversa, João Crisóstomo conseguiu convencer o arcebispo de que a invasão indonésia era contra todas as leis, recebeu a bênção para continuar nas suas investidas e obteve ainda a promessa do católico para defender Timor-Leste e dar a sua opinião quando o assunto fosse discutido.

“Eu sei que por trás das cortinas, nas Nações Unidas, ele fez muito por Timor-Leste”, afirmou João Crisóstomo, sorridente e satisfeito. Na celebração da independência, o arcebispo Renato Martino foi nomeado para representar o Papa e celebrar a primeira missa em Timor.

João Crisóstomo tentou também chamar a atenção da ‘media’ internacional, nomeadamente do influente jornal The New York Times, com entrega de documentos a um editor. O português também não se intimidou a falar diretamente com responsáveis de governos de vários países, seja nos Estados Unidos, Portugal ou África do Sul.

Em tentativa de falar com o Presidente da África do Sul, Nelson Mandela, o fundador da organização LAMETA mandou cartas e fez imensos telefonemas. “A esperança não era muita, mas eu sou teimoso”, contou João Crisóstomo à Lusa.

Ao fim de muitos telefonemas seguidos e de muita insistência, a operadora lá pôs alguém ao telefone: “De repente, era o ministro do Interior da África do Sul”, Mangosuthu Buthelezi, exclamou João Crisóstomo. “Queria saber o que é que se passava”, recordou.

Vários documentos foram enviados por Crisóstomo a Buthelezi, que o ministro sul-africano se comprometeu a encaminhar ao Presidente Mandela. Semanas depois, João Crisóstomo recebeu um recado do ministro sul-africano, também por telefone, que a opinião de Nelson Mandela era que o referendo não era a melhor maneira de prosseguir, mas era um assunto “muito querido” para o chefe de Estado.~

“Passado duas semanas, vem nas notícias que o Presidente Mandela manda o ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul à Indonésia visitar o Xanana Gusmão [preso político, um dos maiores ativistas pela independência de Timor e posteriormente, primeiro Presidente eleito de Timor-Leste] na prisão e uma carta pessoal para o Presidente Suharto” da Indonésia.

Reconhecendo que não era o único a insistir que Nelson Mandela se pronunciasse, até porque o Governo português estava em contacto permanente com a África do Sul, João Crisóstomo teve a impressão de ter feito alguma diferença.

“Não sei se a minha carta ajudou ou não, mas pelo menos deve-o ter lembrado do interesse que tinha por Timor-Leste”, concluiu João Crisóstomo, que liderou o apoio prestado pela comunidade portuguesa nos Estados Unidos à causa de Timor-Leste.

A antiga colónia portuguesa de Timor-Leste, que obteve independência de Portugal em 28 de novembro de 1975, foi invadida pela Indonésia a 07 de dezembro do mesmo ano e declarada, no ano seguinte, como 27.ª província da Indonésia.~

O período de luta pela autodeterminação foi marcado pela violência.Em 30 de agosto de 1999, com ajuda e patrocínio da Organização das Nações Unidas, realizou-se o referendo para a autodeterminação, com as opções de Timor ter uma maior autonomia e ficar no estado unitário da Indonésia, ou de rejeitar o estatuto especial e se separar da Indonésia.

A independência de Timor-Leste obteve a maioria absoluta no referendo, com 344,5 mil votantes ou cerca de 80% dos votos e foi concretizada em 20 de maio de 2002.

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Lusa/Fim

 

Eduardo Lobão
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