quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22503: Historiografia da presença portuguesa em África (278): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Estou em crer que este importante trabalho de Maria Emília Madeira Santos melhor ilumina a cena do período fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa, faz avultar as grandes linhas táticas da importância das travessias a que outros contrapunham a pertinência de estudos regionais, lá se conseguiu a coabitação das duas teses. A autora chama a atenção para um engenheiro militar, a que eu fiz referência na recensão das atas das sessões, Joaquim José Machado, ninguém melhor do que ele alertou a tempo para a intrusão britânica entre Angola e Moçambique, iniciara-se a fricção que desembocou no Ultimatum. Igualmente a autora expende pertinentes considerações sobre as atividades da Comissão Africana. E quando se chega ao Ultimatum a resposta mais adequada que a Sociedade de Geografia encontrou foi a realização da importantíssima exposição cartográfica - era a resposta científica a um problema político cujo tratamento direto estava fora do seu âmbito.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (15)

Mário Beja Santos

Seria imperdoável não adicionar à bibliografia complementar alusiva ao acervo que aqui se apresentou sobre as atas das sessões do período inicial da Sociedade de Geografia de Lisboa o texto incluído no livro "Nos Caminhos de África", da autoria de Maria Emília Madeira Santos, publicação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1998, intitulado "Das Travessias Científicas à Exploração Regional em África: Uma Opção da Sociedade de Geografia de Lisboa". É um texto por demais esclarecedor da filosofia imperial do grupo fundador, a autora, uma categorizada investigadora, estende as suas considerações ao período posterior ao que aqui se analisou (ou seja, até ao falecimento de Luciano Cordeiro, o dínamo da Sociedade, em 1900), veja-se a riqueza e a pertinência das suas observações.

Começa por dizer que não há margem para dúvidas sobre o desempenho da Sociedade no impulso das grandes travessias de África, ocorridas nos anos de 1876 e 1885. Estes fundadores da Sociedade aperceberam-se da oportunidade de urgência em apresentar à Europa científica e política explorações sensacionais, que caíssem no goto da cena internacional. Mas foram igualmente estes fundadores que decidiram, quando chegou o tempo de mudar de tática, pôr termo às grandes explorações geográficas em extensão e ocupar-se da exploração regional e do estudo aprofundado e científico das áreas da “África Portuguesa”, também com o fito de lhe dar um conhecimento a nível europeu. Para a autora, o debate que teve lugar durante a preparação da “Expedição Científica Portuguesa à África Austral”, em 1876, terá sido o primeiro sinal de duas orientações perante a exploração terrestre em África, que podem detetar-se no último quartel do século XIX, devido ao impulso primeiro da Conferência de Bruxelas e aceleradas posteriormente pela Conferência de Berlim.

Os membros da então “Comissão Permanente de Geografia” dividiam-se em duas teses, uma era encabeçada por Luciano Cordeiro, dava como essencial a travessia, a outra representada por João Júlio Rodrigues, punha ênfase na exploração dos territórios considerados sobre soberania portuguesa. Recorde-se que na exposição que a Sociedade enviou ao rei D. Luís, em junho de 1876, aludia-se à “conveniência científica, económica e política de se empreender uma expedição portuguesa através do sertão africano, de costa a costa”. Pinheiro Chagas enviou a África várias expedições destinadas a definir os limites de algo que era um desejo, “o domínio português em África”. Fora a Sociedade que alertara em 1881 para a urgência de definir fronteiras de um domínio que se apresentava como extensíssimo, mas em relação ao qual se alegavam fundamentalmente “direitos históricos”. A Sociedade recebeu como heróis Capelo e Ivens, e pretendeu que essa imagem chegasse ao todo nacional. A sessão solene no Teatro Real de São Carlos, a 1 de outubro de 1885, teve o fausto dos grandes acontecimentos e iria constituir o fecho das grandes travessias da África Austral, com repercussão internacional.

Entretanto a Sociedade criara um grupo técnico-científico de gabarito, a “Comissão Africana”, em 1878, competia-lhe examinar com detalhe os assuntos referentes a África, avançou com propostas do reconhecimento geográfico e do levantamento das cartas de Angola e Moçambique, de explorações no terreno sobre o ponto de vista geológico e mineralógico. Mas o âmbito de reflexões era extenso, ia desde o levantamento hidrográfico das costas e portos, passava pelo problema da balizagem e faróis, explorações botânicas, e muito mais. No acervo respeitante às atas das sessões, estou em crer que ficou bem claro o papel desta comissão africana.

A conceção política colonial conheceu uma inflexão incontornável na Conferência de Berlim, era a ocupação efetiva que contava, e os trabalhos da Sociedade revelam que se despertava para a nova realidade, são amplas as referências aos engenheiros dos caminhos-de-ferro e das expedições de obras públicas, a partir de 1877 chegam os seus relatórios técnicos. E daí a recomendação da Sociedade “em mandar explorar por pessoas competentes as colónias, estudando-as e descrevendo-as sob o ponto de vista da sua geografia, linguística, etnografia, climatologia, demografia e patologia”. Foi mesmo previsto um prémio para a melhor memória em trabalho original que se escrevesse a respeito de geografia e colonização das terras de África trópico-equatorial.

Também vimos a importância da colaboração de Joaquim José Machado, engenheiro militar, que cursara a Escola Politécnica e a Escola do Exército, regressara de Moçambique, é o principal alertador do que se vai passar com a intrusão britânica, não deixando, no entanto, de alertar que se devia cuidar das vias de comunicação, tão negligenciadas. As intervenções do Engenheiro Machado foram publicadas em separata, mas os decisores ter-lhe-ão dado pouca ou nenhuma importância. Fizeram-se estudos sobre os caminhos-de-ferro de Lourenço Marques e Ambaca, como igualmente sobre as estações civilizadoras, que não eram mais que polos de concentração abrangendo comerciantes, missionários, técnicos ligados aos empreendimentos. Em 1882, o diretor de obras públicas do caminho-de-ferro de Ambaca apela para uma viragem estratégica da Sociedade, não basta teoria, é necessário apostar nas questões práticas, algo devia mudar no funcionamento da Comissão Africana. Esta também passa a ser confrontada com as explorações de grande reconhecimento e as de âmbito meramente regional. Os projetos de travessia sucederam-se, em março de 1887 surge o projeto de Caldas Xavier, a Comissão Africana tinha dúvidas, como expendeu: “Será agora o momento histórico apropriado, para tentar novas travessias ou será, pelo contrário, mais azada a ocasião para partir dos traços gerais para os dados particulares e de pronto imediatamente utilizáveis?”. Acontece que Inglaterra ia gradualmente desfazendo o sonho de uma África portuguesa em continuidade do Atlântico até ao Índico. Começaram as exigências de saídas para o mar através do Zambeze e Lourenço Marques. Procura-se a resposta mais adequada através de expedições de obras públicas, verdadeiras brigadas de reconhecimento geográfico. Um conjunto de exploradores trabalhava contra o tempo, procurando acompanhar a corrida a África em zonas claramente disputadas. Joaquim José Machado regressa de Moçambique em 1889 e apela a medidas enérgicas, uma delas à definição das fronteiras de Moçambique. A reação inglesa foi brutal, rasgou ao meio o Mapa Cor-de-Rosa e procurou empurrar para o litoral os limites do domínio português. A criação da British South Africa Company concretizava todas as previsões apresentadas pela Sociedade ao Governo. Havia que reconhecer que ao avançar para territórios considerados sob a soberania de Portugal durante três séculos a companhia inglesa pouco encontraria que evidenciasse a nossa ocupação e ação civilizadora permanente. E seguiu-se o Ultimatum. Recorde-se a atmosfera de pesar que foi a sessão de 20 de janeiro de 1890, onde se discutiu o Ultimatum. E sugeriu-se uma exposição das cartas geográficas relativas aos descobrimentos e explorações, acompanhada da respetiva bibliografia. Desejava-se que a exposição abrisse ainda naquele mesmo ano no mês de junho e se limitasse a África. Viria a ser inaugurada em dezembro de 1903, com uma riqueza cartográfica que ia desde o Brasil ao Japão e desde Cabo-Verde a Timor. Luciano Cordeiro, como se disse atrás, falecera em 1900, é Ernesto de Vasconcelos quem está ao leme da Sociedade, foi ele o grande obreiro da exposição realizada. E a autora termina o seu trabalho dizendo que a Exposição Cartográfica de 1903-1904 foi a opção adequada de uma sociedade científica na procura de uma resposta de nível cultural a um problema político, cujo tratamento direto estava fora do seu âmbito.

Como se vê, um interessantíssimo documento, para finalizar voltamos de novo a Maria Emília Madeira Santos e à sua obra "Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África", editada pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar/Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1970.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22483: Historiografia da presença portuguesa em África (277): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (14) (Mário Beja Santos)

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