quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22504: Pequeno dicionário da Tabanca Grande (13): "Máfrica" (termo irónico, para não dizer sarcástico, para designar a EPI, sita em Mafra), grafado por Vasco Pires e por Rui Alexandrino Ferreira


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1964 > Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > "Mafra, 26 de Janeiro de 1964 > O 1.º pelotão, da 1.ª Companhia, ao 2.º dia de tropa"... Pormenor: todos equipados de Mauser... Foto do álbum do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67).

Foto (e legenda): © Veríssimo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. "Máfrica" é um vocábulo da nossa gíria castrense e consta do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande, tendo sido "grafado" pelo nosso saudoso Vasco Pires (Vilarinho do Bairro, Anadia, 15/6/1948 - Porto Seguro, Baía, 31/10/2016) (foi alf mil art, cmdt do 23º Pel Art, Gadamael, 1970/72; entrou para a Tabanca Grande em 27/9/2012; tem cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue).

Alguns excertos do seus postes com o descritor "Máfrica:

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 (...) Eu venho lá da Bairrada pofunda, que na década de 50 era mais conhecida como terra da batata, ao invés de terra do vinho, o vinho ainda se vendia a granel.

(...) A minha infância e adolescência foi passada em escolas da região, seguida de uma passagem de cinco anos pela efervescente cena coimbrã da segunda metade da década de 60.

Em 69, saí desse "borbulhar" de novas ideias e atitudes, para a disciplina EPI na "Máfrica" de tantos de nós. Logo começou a minha boa sorte, de ter camaradas, subordinados e superiores que me ajudaram nesta caminhada de três anos pelos quartéis de Portugal e África. (...) (*)

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(...) Mas éramos todos muito inocentes, aí com facilidade o sistema nos enquadrava com um Tenente e dois Cabos Milicianos e às vezes, poucas, um Sargento.

Poucos dias depois receosos de perder o fim de semana, íamos-nos tornando instrumentos de um sistema que durante tantos anos (63 a 74), enquadrou uma geração de pouca sorte.

O processo começava aí: "Máfrica", Vendas Novas, Tavira, Caldas da Rainha... E lá íamos nós, mais ou menos convencidos e eficientes agentes, enquadrar outros mais, pelos quartéis de Portugal e de África. Mafra e Tavira, eram o início de um processo de inserção no sistema de muitos milhares, que a propaganda chegou a fazer pensar, que estavam "dilatando a Fé e o Império". (...) (**)

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(...) De qualquer, a grande escola de cadetes e fábrica de oficiais que depois seguiam para os teatros de operações do ultramar, a grande 'Máfrica' (, a expressão é do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires), que terá formado dezenas e dezenas de milhares de oficiais subalternos e comandantes operacionais, era, como em qualquer parte do mundo, uma verdadeira "instituição totalitária" ("total institution") no sentido forte, sociológico, do termo.

Se não, vejamos alguns traços comuns às instituições e organizações a que poderíamos aplicar a tipologia desenvolvida, e,m 1961, pelo sociólogo americano Erving Goffman (Asyluns: essays on the social situation of mental patients and otther inmates. New York: Anchor, 1961).(...) (***) 

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(...) Então, "Máfrica" exprimia a reação,  de jovens inocentes e provincianos que se julgavam na vanguarda da modernidade e pensavam que iam mudar o mundo, à disciplina militar, reforçada, por ser num curso acelerado [, o COM].

No meu caso, o impacto foi "amortecido", pois dormia e comia fora do quartel [, EPI]. (...) (****)

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(...) Tempos atrás, lendo uma matéria, lembrei de cartaz que vi em um dos quartéis por onde passei, talvez "Máfrica" [, EPI, Mafra]. Dizia: "O boato fere como uma lâmina " (se não falha a memória).

Quantos boatos não passaram na nossa vida militar? Muitos fabricados pela contra-informacão, outros gerados pelos nossos medos. Logo propagados nos "jornais da caserna". (*****)

2. Comentário de Fernando Ribeiro ao poste P22489 (******):


(...) "Máfrica" - Estive cerca de seis meses a frequentar o COM em Mafra e tenho que puxar muito pela memória para me lembrar de ouvir alguém chamar "Máfrica" a Mafra. De que eu tenha a certeza, só ouvi uma vez, mas admito que tenha ouvido mais uma vez, no máximo duas. Fora isso, sempre ouvi chamar Mafra a Mafra. Confesso que acho estranha esta insistência na palavra "Máfrica", mas se calhar a minha memória é que já não é o que era. (...)

3. Comentário do editor LG:

Em relação a Mafra, as "memórias" são das personagens do conto, não do autor, o contista (******).  Quarenta anos depois é natural que haja contaminação entre "ditos" e "feitos" de diferentes épocas. 

Relativamente ao termo "Máfrica" temos, no nosso blogue, 14 referências   (*******)... E Mafra tem sessenta. A EPI cerca de metade.

Máfrica deve ser termo da gíria coimbrã, era uma forma irónica (, para não dizer sarcástica, ) de identificar a EPI, situada em Mafra... O nosso saudoso Vasco Pires, que morreu no Brasil, usava-o muito... Mas também o angolano, nascido em Sá da Bandeira (hoje, Lubango),  Rui Alexandrino Ferreira, no seu livro "Rumo a Fulacunda" (2.ª edição, 2003, Palimage Editores, Colecção Imagens de Hoje, 415 pp.). Veja-se este excerto:

(,,,) Para lá [,EPI, Mafra,] me vi empurrado, pois naquela altura, corria o ano de 1964, não havia Curso de Oficiais a não ser no continente. Infantaria só mesmo lá-. E como o rapaz Rui nem tinha padrinhos, nem certamemte servia para outra coisa... e sobretudo porque as necessidades eram "carne para canhão", ou seja, combatentes, nem vale a pena acrescentar mais nada...

"Muita chuva, muito vento, muita e...um convento". Eram com estes sábios, esclarecidos e esclarecedores termos que pela voz do povo se definia aquele "paraíso"- E como a voz do povo  mais não é do que a voz de Deus, já para não referir  quaisquer outras vozes - é claro - que afirmava, que "pior que África só mesmo Máfrica", correspondia em absoluto com a realidade no que dizia respeito  à chuva, ao vento e ao convento. Esqueceram-se de acrescentar o frio e a"merda que restava só podia ser mesmo a tropa".

Tropa que apesar de tão mal tratada, fazia com que a vila perdesse a  monotomia e espantassse a modorra de cada vez que se apresentava para a recruta mais uma fornada de "jeijão verde" (alcunha com que os locais brindavam os milicianos em geral, quer se tratassem de soldados-cadetes do Curso de Oficiais, ou de soldados-instruendos do Curso de Sargentos. Por grosso e atacado eram agrupados ao molho  e todos equiparados ao mesmo vegetal)" (pág. 49).

O Vasco Pires, emigrado no Brasil desde 1972, e que só descobriu o nosso blogue em 2012, não leu por certo o livro do Rui Alexandrino Ferreira. (*******)
_________





(******) Vd. poste de 27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

(...) "Mafra, durante anos e anos foi conhecida pelo seu majestoso convento e pela “tropa” que ali se instalou no Reinado de D. Luís I em 1887. Conheceu uma importância acrescida em tempos das campanhas expedicionárias da segunda metade do século XX. Por ali passaram largos milhares de portugueses que rumaram ao Estado Português da Índia, e às províncias Ultramarinas de Angola, Moçambique e Guiné.

"Na gíria de então, por quem por lá passava, até se passou a designar por “MÁfrica” – em boa verdade esta expressão nem sempre tinha cunho abonatório, dadas as duras circunstâncias que a instrução para a guerra obrigava.

"A infantaria de Mafra teve ainda importância de relevo no regresso do país à democracia, estando a EPI, apesar de inúmeras convulsões internas, do lado dos que se opuseram às correntes totalitárias que se instalaram em muitos quartéis portugueses em 1974 e 1975." (...)

MAFRA: «AO VALOR DO INFANTE», MAIS DO QUE PEDRA E BRONZE!
Por Miguel Machado • 15 Out , 2013

https://www.operacional.pt/mafra-ao-valor-do-infante-mais-do-que-pedra-e-bronze/

(Com a devida vénia...)

Fernando Ribeiro disse...

Quando vi a fotografia, senti-me mal. Senti-me mesmo mal. Naquela maldita Escola Prática de Infantaria, aquartelada naquele maldito convento, eu chorei lágrimas de sangue quando três camaradas da minha companhia de instrução morreram estupidamente na flor da juventude, afogados numa maldita lagoa da maldita tapada. Eu podia ter sido o quarto morto. Além disso, noutro incidente, mais um camarada da minha companhia ficou cego de um olho, não menos estupidamente, enquanto outro conseguiu recuperar completamente, mas deve ter ficado com cicatrizes de estilhaços na cara para o resto da vida. Em três escassos e malditos meses de maldita instrução militar, num maldito Curso de Oficiais Milicianos, a minha companhia sofreu três mortos e dois feridos, um dos quais cego de uma vista. Chama-lhe Máfrica, Másia, Meuropa, o que quiseres, que para mim será sempre a maldita Escola Prática de Infantaria, mil vezes maldita.

Rui G dos Santos disse...

RUI G DOS SANTOS frequentei o COM em MAFRA Curso de Agosto de 1062, e o termo MÁFRICA era pelos cadetes á época (1962, 2 de Agosto a finais de Dezembro) era mencionado amiúde ....

Anónimo disse...

Andei lá 3 meses, jamais ouvi falar neste termo 'MAFRICA'. Nem antes, nem durante, nem depois.
Acho que li aqui no Blogue h+á uns dois anos, pela primeira vez a palavra Mafrica.

Rui Santos lamento essas mortes estupidas, como agora morrem nos Comandos da Amadora e por aí fora.
Tomei contacto com a primeira morte de um amigo meu do Porto, que foi fazer depois da nossa
recruta em Mafra, ele foi para Vendas Novas - Artilharia, e num exercício com Obuses, o projétil rebentou à saída do cano e assim morreu, não sei as circunstâncias.
Tinha o destino marcado, quando fazíamos mais uma investida para o Porto, no carro dele, para um fim de semana, tivemos um acidente grave em Águeda, que deu origem a ter partido os dedos grandes de ambos os pés. Ele ficou marcado e depois deu-se a tragédia.
E assim acabei a recruta com os pés engessados, mas ao fim de um mês arranquei tudo e nunca tive uma cura, ficou a mazela até hoje.

Não é por isso que vou aqui chorar, pois como todos sabem, morria-se nas estradas, nos acidentes de trabalho, em brincadeiras, afogamentos estúpidos, e não era a tropa.

Alguns que chegaram do Ultramar acabaram por morrer em acidentes estúpidos, eu costumo dizer que é o azar, talvez porque não me calhou a mim.
Os rapazes do meu Batalhão que morreram na travessia do Cheche, após um ano de metralha em cima, morrem num acidente ainda não esclarecido - 47 homens.

Paz às suas almas e que repousem lá no céu o seu lugar.

Virgilio Teixeira





Fernando Ribeiro disse...

Quando um alferes do quadro permanente faz disparos de G-3 com bala real, fazendo tangentes à cabeça de cadetes que estão a rastejar, e estes são atingidos na cara por pedras estilhaçadas pelas balas, não se trata de um acidente que possa acontecer a qualquer um. Estivemos nas mãos de irresponsáveis que andaram a brincar com a vida dos cadetes.

alma disse...

Nunca tinha ouvido a expressão Máfrica. Gostei da vila e das bajudas..Eu mais três amigos alugámos uma casa. Nunca lá dormi, só utilizava a casa de banho porque nunca me habituei àa do quartel...O meu Comandante de Pelotão era comando e tinha regressado da Guiné. Um Gajo educado e porreirão... Muito pior foi Vendas Novas. Penoso, duro e violento.Nas marchas finais foram três para o Hospital.Só a alimentação era boa, muito superior à de Mafra.