segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22498: Notas de leitura (1375): “O Império com Pés de Barro, Colonização e Descolonização: as Ideologias em Portugal”, por José Freire Antunes; Publicações Dom Quixote, 1980 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O então jovem jornalista e repórter José Freire Antunes lançou-se na ensaística, dizendo que ia descontentar muita gente, com as suas apreciações. É um ensaio conciso repartido por alguns marcos históricos dos Descobrimentos, incidindo sobre aquilo que António Sérgio chamava a política do transporte, uma economia em que entregávamos no comércio externo produtos apetecíveis e escravos e recebíamos novas mercadorias para reencetar o mesmo tipo de comércio, em ondas cíclicas. Fala predominantemente da ocupação africana e das ideologias coloniais entre a Monarquia Liberal, o Republicanismo e o Estado Novo, deteta as afinidades e os contrastes. Em caso algum, o jovem jornalista contextualiza a ascensão dos movimentos anticoloniais no mundo bipolar da II Guerra Mundial. É um documento datado, por vezes pretensioso e descabelado. Mais um texto que fica no nosso inventário sobre colonização e guerra em África.

Um abraço do
Mário



O Império com Pés de Barro

Beja Santos

José Freire Antunes é um jovem jornalista, redator do Diário de Notícias, colaborador de revistas e autor de um livro à época em que deu à estampa “O Império com Pés de Barro, Colonização e Descolonização: as ideologias em Portugal”, Publicações Dom Quixote, 1980. Diz o autor no seu currículo que antes do 25 de Abril militou no Movimento Popular Anticolonial. O jornalista, investigador, historiador e político José Freire Antunes faleceu em 2015, com 61 anos.

Explica as razões para esta dissertação ensaística: “Sistematizar algumas linhas de força da questão colonial portuguesa. Evoca a relação de Portugal com as possessões da África e da Ásia, da epopeia henriquina ao fim do Império. Reporta-se às conceções e às práticas coloniais da I República. Debruça-se sobre o colonialismo do regime de Salazar e de Caetano e dos seus mais comedidos adversários. Comenta o percurso ideológico, em relação às colónias, das várias famílias da Oposição. Escandalizará nalgumas deduções. Mas não cedeu. Não cedeu, em primeiro lugar, à mística ultramontana laboriosamente destilada pela ditadura. Não cedeu, em segundo lugar, às fábulas piedosas que trazem num temor reverencial uma parte dos intelectuais portugueses. Não condena, procura explicar, e dispensa tutores ou filiações”.

E entra de facto de punho em riste na questão colonial: “Portugal entrou em África como união e saiu como um sendeiro. Foi o primeiro a chegar e só obrigado por último partiu. Pequeno reino de fronteiras ganhas no século XIII, transformou-se, em nome da cruz e na ponta da espada, no senhor dos mares quinhentistas. Desvendou a face obscura da terra, e abriu à Europa a via láctea da revolução industrial. Mas, esfumada a glória imperial de um século, restou para sempre pobre e submisso no seu recanto peninsular”. É um olhar duro e puro sobre viagens, comércio, páginas de glória, de morticínios, foi a hora portuguesa, como jamais houve outra: “Em meados do século XVI as velas do débil Estado sem desafio se enfunavam numa imensidão de portos e de rotas comerciais, da África Oriental à Indonésia, do Golfo Pérsico à Birmânia. Qual império fugaz sobre areia, assentava o domínio português num arco vasto de feitorias, bordado em torno do Indico, de Sofala a Macau, sem frotas de guerra que lhe pedissem meças. Lisboa tornava-se o cais do mundo e a mais próspera cidade”.

Um império com pés de barro, pois. A extensão era insuportável para os meios e as arremetidas dos concorrentes, cada vez mais poderosos. Ficaram umas parcelas avulsas, o Brasil parecia a terra prometida e o capitalismo monárquico português uma constante. Era uma economia de troca, permanentemente depauperante, trocava-se café africano por algodão americano ou inglês. E no século XIX os intelectuais questionavam: Vale a pena estar assim em África? “Muitos concluíam que não. Exibia Oliveira Martins dois caminhos em alternativa: ou Portugal fazia de Angola uma boa fazenda à holandesa ou com bom senso deveria entregá-lo a quem o pudesse fazer. Jazia o Portugal de Oitocentos longe da comunhão da Europa culta, perdera mesmo a memória do zénite quinhentista. Sumidos os tempos da grandeza na arca da História, a exploração do Ultramar tornou-se inerte. As terras desvendadas com bravura e sangue jaziam como cascos velhíssimos ao sol tropical”. E José Freire Antunes cita Fernando Pessoa:

“Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal.”


Segue-se a ocupação africana, outros impérios andam gulosos por terra, conflituam entre si, a Alemanha e a Inglaterra chegam a negociar, no prelúdio da I Guerra Mundial, a partilha de Angola, fala-se do ouro do Brasil, do Ultimato, e de como este fez estremecer uma classe política e até fazer nascer uma nova administração colonial. O autor estabelece as afinidades entre o pensamento da Monarquia Constitucional Liberal e a ideologia republicana, todos irmanados num império com chão sagrado, com a figura exemplar de Norton de Matos que formou um escol administrativo civil, em substituição do militar, fomentou a colocação de europeus, incrementou transportes e comunicações e quis transformar os indígenas em proprietários e cultivadores por conta própria. Montava-se a mitologia da presença portuguesa em África, e o autor descreve o que aproximava Salazar a Cunha Leal. Noutro termo de comparação, José Freire Antunes observa a evolução do conceito republicano até Mário Soares e noutra dimensão, a evolução dos comunistas até chegarem ao aplauso à luta anticolonial, em ambos os casos o autor releva contradições nos percursos seguidos.

Caminhamos para o fim do império, Marcello Caetano parece tirado de uma peça de Shakespeare, embrulhado em indecisões, incapaz de comportamentos frontais, sem nenhuma chave para solucionar um conflito em que os sucessivos movimentos de libertação possuíam melhor tecnologia e com cada vez mais apoios. Acresce que a tomada de posição internacional incluía já sérios apoios cristãos, sabia-se que tinha havido um massacre em Wiryamu, foi escondido, depois, inevitavelmente mostrado como um dano colateral. A evolução da guerra fez tilintar as espadas por duas vias: as figuras carismáticas e a crescente inquietação dos quadros intermédios das Forças Armadas que sentiam no pelo a escalada da guerra. Freire Antunes, fruto do tempo, estamos em plena guerra civil angolana, detém-se longamente sobre a situação angolana, a investida cubana e soviética, a atuação do Partido Comunista Português e de outras forças e os retornados. E assim termina este ensaio de juventude:
“A URSS ganhou em África o que perdeu na Europa. Os EUA sabem hoje, melhor que ninguém, quanto a aposta pragmática do MPLA teria sido mais rendosa para o Ocidente. Depois da lição do Vietname, a lição de Angola. Carter, Palme, Giscard, querem navegar hoje no desequilíbrio soviético, e na sua aparente incapacidade de explorar intensivamente as riquezas sem fim do solo angolano. Porque uma coisa é exportar um lança-granadas, outra é extrair petróleo. Na parte que nos toca, só muito lentamente, com o pragmatismo de Soares, o esforço de Eanes, coroado no ‘espírito de Bissau’, e o desejo do Eliseu em tornar Belém uma ponte preferencial, se recupera o desastroso passo em falso.
Mas não se diga, como certos cínicos, que Angola foi o fim sem grandeza do Império. Que grandeza pode ter um Império que não prepara em paz a sua própria morte?”.

Aproveito para recordar que neste blogue tenho procurado inventariar não só tudo quanto se escreve sobre a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau como sobre a colonização e descolonização, é totalmente ininteligível o que se passou na Guiné, dos anos 1950 para os anos 1960, sem contextualizar toda a problemática do colonialismo e da ascensão das independências, o seu porquê e como.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22481: Notas de leitura (1374): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte I (Luís Graça)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

De facto, como diz Beja Santos, era jovem este autor quando escreveu este livro, e escreveu bastante perto das independências, também li há muitos anos esse livro, ou eu não fosse retornado, naturalmente curioso por novidades, o Livro refere-se muito a Angola.

Embora não fosse encontrar muitas novidades no livro, apreciei ele dizer, como aqui refere Beja Santos, que Portugal "Foi o primeiro a chegar e só obrigado por último partiu".

É isto que deve ser sempre enfatizado pelos historiadores, que fomos obrigados, e que fomos obrigados internacionalmente, como deve ser sempre enfatizado que internamente era enorme o apoio do povo "colonizado" à nossa presença, coisas que raríssimo é frisado, o que corresponde a mentir ao não mencionar este facto num ponto muito importante.

Este pormenor o autor não menciona, ainda estava muito em cima das independências e ele resumiu muito os acontecimentos, resumiu ele e resumem todos.

Alguma razão assistia à teimosia portuguesa e ao povo que insistia em estar ao nosso lado para não abandonar África como já tinha feito erradamente a França e Inglaterra e Bélgica.

Os anos vão sempre demonstrando cada vez mais, que era muitíssimo cedo e muito impróprio aquele tempo, pois ficou um vazio em África tão mau para África e para a Europa que vimos assistindo sempre todos ao preenchimento desse vazio por chineses e extremistas islâmicos, que não é dificil adivinhar que o futuro vai ser muito pior que o presente.

Claro que sou suspeito, por ser retornado e assisti (não por ser reacionário), que defender a não independência das colónias da chamada África Negra, naquele tempo, é a coisa mais "politicamente incorreta" que se possa imaginar, principalmente hoje que até no Brasil o Pedro Alvares Cabral, os indios o culpam de lhes tirar as terras, não é o Bolsonaro não, que até nem se chama "joaquim nem manuel".

Coitada de toda a África Oriental!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

António Rosinha, sempre fiel, mas crítico, leitor das notas de leitura do nosso blogue, e em especial do nosso Beja Santos, acrescentando sempre um apontamento, uma observação, um reparo, uma memória muito pessoal de quem viu e viveu. Bem hajas!... Luís

Antº Rosinha disse...

Luis, não tens nada que agradecer o "meu ponto de vista", escandalosamente nos antípodas da maioria de quem passou pela Guiné, no caso tu e Beja santos e quase todos.

Mas no caso dos muitos historiadores nacionais e europeus, sérios e muito estudiosos, e "politicamente e cinicamente corretíssimos" (excluo os puros anti-salazaristas que cegaram e não separam as águas), e não adivinhavam nem vêm hoje, que a Europa "centro do mundo"ao provocar uma força centrífuga imprópria, espalhando padres e pastores, treinadores de futebol e capitalismo, corrupção e exploração humana e petrolífera...tudo novidades, com as independências tão abruptas, ia-se provocar um enorme vazio e apareceria uma força centrípeta, que sobraria para a própria Europa, o "centro".

Hoje os africanos são marcados na Europa, mesmo os milionários futebolistas e párocos africanos, mas pior na África...lembremos a fuga dos "náufragos" e as crianças sem escolas "cristãs" que recorrem a escolas "corânicas" à força.

Nunca os historiadores mencionam que os colonizadores europeus deviam recorrer à maioria silenciosa africana e puxá-la para a cultura e civilização europeia.

Esqueceram sempre essa "maioria silenciosa": as mulheres africanas e os seus direitos.

A mulher em África nunca foi presente na colonização, um dos muitos crimes coloniais e nenhum historiador menciona.

Tudo mau e extemporâneo as independências africanas.

Valdemar Silva disse...

Rosinha, será que os europeus colonizadores de África deveriam ter feito o mesmo que foi feito nas Américas?
Ou seja, nunca de lá terem saído, mesmo com necessidade a guerra para se tornarem independentes, como fizeram os das colónias inglesas, na América, no séc. XVIII, e, depois, os das colónias espanholas e a portuguesa.
Mas, os colonos na América resolveram o problema com o quase extermínio dos índios, ficando-lhes com as suas terras, substituindo-os por mão de obra de escravos africanos. Os índios são mandriões, não querem trabalhar, diziam.
Também diziam o mesmo com os negros em África, então teria de haver, também, um extermínio dos negros no continente africano? E teríamos o continente africano com uma grande percentagem de europeus por todo o lado, com umas franjas de povos nativos.
Teria sido uma ideia alguma vez pensada? Parece que sim, com os boers na áfrica do sul em que eles eram os próprios trabalhadores.
E quanto ao resto do continente colonizado, como se deveria ter feito?
Os negros em África tiveram, ou parece que tiveram, uma tática para não ser exterminados: deixaram-se escravizar pelos europeus (e não só) que por lá foram aparecendo.
Depois vieram o "eu também quero" de Berlim de 1884-85 com colónias para ingleses, franceses, belgas, alemãs, italianos e portugueses, as guerras de independência dos anos 60, a saída dos colonizadores cristãos e ocidentais e, ultimamente, a chegada dos apoiantes/comerciantes russos e chineses.
Por cá levávamos com "receita" parecida: com celtas, alanos, visigodos, romanos, berberes e mouros muçulmanos, espanhóis, ingleses, franceses, valsas, tangos, samba, rock and rol, tabaco e coca-cola.
E cá estamos, agora, à rasca com um vírus que apareceu na China, os últimos da "receita".

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

João Carlos Abreu dos Santos disse...

António Rosinha, congratulo-o.

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Recordo que José Freire Antunes foi um dos principais impulsionadores da designada "história oral", com entrevistas aos intervenientes nos acontecimentos. Foi ainda deputado do PSD na AR.
Publicou os seguintes livros:(1978-2003)
- A Desgraça da República na Ponta das Baionetas (1978)
- O Império com Pés de Barro (1980)
- O Segredo do 25 de Novembro (1980)
- A Cadeira de Sidónio ou a Memória do Presidencialismo (1981)
- Sá Carneiro: Um Meteoro nos Anos Setenta (1982)
-Cartas Particulares a Marcello Caetano, 2 vol.s (1985)
- Os Americanos e Portugal: Os Anos de Richard Nixon 1969-1974 (1986)
- O Factor Africano 1890-1990 (1990)
- Kennedy e Salazar: o Leão e a Raposa 1961 (1991)
- Nixon e Caetano: Promessas e Abandono 1969-1974 (1993)
- Salazar e Caetano: Cartas Secretas 1932-1968 (1993)
- Roosevelt, Churchill e Salazar: A Luta pelos Açores1941-1945 (1995)
- A Guerra de África 1961-1974; 2 vol.s /576 e 1072 pp (1995)
- Jorge Jardim, Agente Secreto 1919-1982. (1996)
- Champalimaud (1997)
- Portugal na Guerra do Petróleo – Os Açores e as Vítimas de Israel 1973. (2000)
- “Salazar e Caetano nas Encruzilhadas do Estado Novo”, in Marcello Caetano, minhas Memórias de Salazar (2000)
- Judeus em Portugal – Os Testemunhos de 50 Homens e Mulheres (Dir.) (2002)
- Opus Dei em Portugal – Os testemunhos de 50 Homens e Mulheres (Dir.) (2002)
- Os Espanhóis e Portugal (2003)./734 pp
De todos estes livros saliento o "Guerra de África (...)", com quase 2.000 pag.s, onde também é destacado o Herói Marcelino da Mata.