É de sublinhar a importância que as saudades da família e das ilhas bem como a fé cristã tinham na capacidade de sofrimento e de resiliência da generalidade dos nossos camaradas açorianos, sobretudo nos momentos de maior provação e dor, numa terra, a Guiné, que lhes é completamente estranha e hostil.
Quando a manhã nasceu,
Pr’a que ao sair da Guiné
Leve a vida e a saúde.
Na altura, deixámos expresso, a ambos, ao autor e ao António (, que é ele próprio um tradutor de poesia chinesa e poeta de grande talento, sensibilidade e cultura, com vários livros publicados), o nosso obrigado pela produção, recolha, tratamento e divulgação destes versos que merecem ser melhor nconhecidos, divulgados e preservados.
Por outro lado, gostaríamos de ter notícias do Eduardo Manuel Simas, e convidá-lo a integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande. Espero que esteja bem, de boa saúde, e que continue a viver em São Miguel. Descobrimos, com a ajuda do Carlos Cordeiro,que
ele tem página no facebook. Vive em Lomba da Maia, Ribeira Grande. (Já agira acrescente-se que o professor Carlso Cordeiro crou um página, aberta, no Facebook,
"Antigos Combatentes Açorianos".
Estas quadras também já foram publicadas no portal da CCAÇ 4740 (na secção "Se bem me lembro"), sob o título
"Assim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude". (Segundo o Armando Faria, os versos foram publicados na integra, com a devida autorização do seu autor, no livro "Leões de Cufar, A Historia da Companhia C.CAÇ.4740").
Nesta versão, fizemos revisão de texto, não nos limitando à melhoria da pontuação. Título e notas também são da nossa responsabilidade. Nalguns versos, que não têm as regulamentares sete sílabas métricas (por ex., "passados dois meses" ou "dias bem, dias mal") fazemos pequenas alterações [entre parênteses retos]... Espero que tanto o autor, Eduardo Manuel Simas, como o seu "padrinho literário", o António Graça de Abreu, não levem a mal: achamos que as quadras ficam mais fluentes e com melhor oralidade... (A versão original continua disponível no nosso blogue, no poste P2988 (*).
Feliz a CCAÇ 4740 que teve um poeta, talentoso, que deixou em verso um pouco da sua história por terras dos Açores e da Guiné. Muitas outras subunidades mobilizadas para o CTIG (, para não dizer mesmo a maioria), não tiveram ninguém que as cantasse em verso!... Honra, pois, ao nosso Eduardo Manuel Simas, cujo nome queremos juntar à lista de A a Z dos membros da nossa Tabanca Grande!.. Ele só precisa de nos dar o devido consentimento...
Sobre a CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/74) temos já cerca de
4 dezenas de referências no nosso blogue. Esta subunidade também tem
um sítio na Net.
3. O Cancioneiro da Nossa Guerra (1) >
Assim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude:
cancioneiro da açoriana CCAÇ 4740
por Eduardo Manuel Simas
É escrito com sangue e dor
Aquilo que vou falar,
E com o maior fervor
Agora vou começar.
Com licença, meus senhores,
Minha história eu vou contar,
Quando eu saí dos Açores
Para ir pr’ó Ultramar.
Quando à Terceira cheguei
E segui para o quartel,
Logo em mim recordei
A ilha de São Miguel.
Sentia uma coisa estranha,
Sem saber compreender,
Coisa esquisita e tamanha,
Difícil de entender.
O tempo se foi passando,
Dias bem [e] dias mal,
E fomos continuando,
Soldados de Portugal.
Passados [p'ra aí] dois meses,
Lá fomos jurar bandeira.
Sofremos, [pá,] mas às vezes
Parecia uma brincadeira.
Quando um dia na parada,
À noite, a silêncio tocou,
Veio a notícia [inesperada]
Que o comandante contou.
Com umas folhas na mão,
Más notícias veio dar
O nosso [bom] capitão:
- Vão [todos] para o Ultramar!.
[Passados] dez dias mais
[Lá] fui [eu] a São Miguel,
Despedir-me de meus pais,
Eu, Eduardo Manuel.
Ó meu Deus, eu vou partir
Sem saber se isto é justo,
Qual o dia em que hei-de vir,
Vou viver com tanto custo.
Quanto à nossa viagem
Melhor não podia ser,
Com espanto e [com] coragem
Vendo o que tinha que ver.
Corrido cerca de um mês,
Partimos para o mato,
Lá fomos [p'ró] Cantanhez
Onde não parava um rato.
Na LDG embarquei
E belezas eu não vi,
Aquilo em que eu pensei
Foi na terra onde nasci.
Os dias se vão passando,
Dão vontade de chorar,
As horas vou recordando,
Passo a vida a disfarçar.
Na primeira operação
Que [ao mato] fomos fazer,
Deu-me um baque [no] coração,
O que veio a acontecer.
Quando os homens voltaram,
Três grupos da operação,
Logo as minas rebentaram,
Meu Deus, [que] grande traição!
Passou palavra o primeiro,
Diz-me lá o que é que queres,
Vai chamar o enfermeiro
Pr’a vir tratar os alferes.
Ó meu Deus, o que seria,
Quem serão os desgraçados?
Foram para a enfermaria
Três alferes estilhaçados.
Lá ficaram mutilados,
Os infelizes sem sorte,
Turras serão apanhados
E todos irão à morte.
Que tristeza e amargura,
Tanta vez aconteceu,
Morrer uma criatura
Pelas mãos de um irmão seu.
Meus versos não levam cunho
Do que eu amo ou adoro,
Eles são o testemunho
Do que canto, do que choro.
Assim se passa esta vida,
Horas tristes a chorar,
Se a dor fosse esquecida
Eu poderia cantar.
Sofrer vinte e quatro meses,
Um soldado nada tem,
Agonias, tantas vezes,
Só Deus sabe, mais ninguém.
Eu sei que estes versos são
Uma coisa escrita ao [de] leve,
São pobres, sem perfeição,
Como a pena que os escreve.
Estive quase a dar um tiro,
Primeiro dia de Agosto,
Ó que noite de martírio,
Passei a noite no posto.
Meus olhos no firmamento,
Horas e horas, ou mais,
Vieram-me ao pensamento
Os meus [mui] queridos pais.
No dia 9 de Agosto
Fomos pró mato arreados,
Vamos voltar com o gosto
De não sermos apanhados.
À saída do quartel,
Eu pensei na minha cama
E, pensando em São Miguel,
Caí enterrado em lama.
Que será preciso mais,
Estamos aqui como uns parvos,
Tiram-se os filhos aos pais
E fazem deles escravos.
Quando a manhã nasceu,
Cercámos o inimigo,
Foi a Fé que me valeu
Porque Deus vinha comigo.
Lá por fora o dia inteiro,
Sem qualquer resultado,
Perdidos num cativeiro
Entre capim alteado.
Ao quartel, quando chegámos,
Sem forças e cheios de fome,
[Coitados,] quase não falámos,
Fogo dentro nos consome.
Querem homens para a guerra,
A padecer fel e dores,
Queremos sair desta terra,
Queremos ir para os Açores.
Dia 7 de Setembro,
Saímos ao anoitecer,
Eu não quero que me lembre
Tantos homens a sofrer.
Era tanta a nossa mágoa
E com tantos embaraços,
Apanhámos forte água
Que pareciam estilhaços.
A 23 de Dezembro,
Ó mãezinha, muito querida,
Eu nem quero que me lembre,
Parecia o fim da vida.
À noite, dois pelotões
Saíram todos armados
E com nove foguetões (**)
Lá fomos nós atacados.
O fogo [lá] acabou
Sem nos causar [nenhum] mal,
Nossa Senhora salvou
Os soldados de Portugal.
Isto foi acontecido,
Queiram todos acreditar,
Quanto [nós temos] sofrido
Nesta vida militar.
Que vida tão rigorosa,
Que [a todos] nos faz pasmar,
Que vida tão perigosa,
Soldados do Ultramar.
Assim [eu] fui tendo Fé,
Pedindo a Deus que me ajude
Pr’a que, ao sair da Guiné,
Leve a vida e a saúde.
Eduardo Manuel Simas
____________
Notas de L.G.
(*) Vd. poste d e26 de junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2988: Cancioneiro de Cufar (1): Um poeta açoriano da CCAÇ 4740, Eduardo Manuel Simas (António Graça de Abreu)
(**) Vd. também poste de 17 de outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3328: Memórias literárias da guerra colonial (7): O baptismo de fogo de A. Graça de Abreu, em Cufar, aos 17 meses (Luís Graça)