Mostrar mensagens com a etiqueta 5 de Outubro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 5 de Outubro. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25138: Notas de leitura (1664): "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
No âmbito das comemorações do Centenário da República, a Assembleia da República editou um dicionário de história da I República onde se inclui um artigo sobre a vida da Guiné em tal período, assinado por Célia Reis. A investigadora recorda a alvorada tumultuosa do republicanismo na colónia, os conflitos em que se envolveu o primeiro governador republicano, Carlos Pereira, os conflitos entre Teixeira Pinto e a Liga Guineense, a nova organização administrativa, a importância do comércio alemão até à Primeira Guerra Mundial, a que se seguiu a crescente influência portuguesa, logo dada por António da Silva Gouveia, que terá funções políticas nos órgãos de soberania em Lisboa; mais refere a autora que os sucessivos insucessos das sociedades agrícolas, vinham com muitos sonhos e com pouco sentido das realidades; a colónia intensifica a exportação do amendoim e das oleaginosas e destaca-se uma figura de governação durante este período, Vellez Caroço, queria fazer da Guiné o que Norton de Matos lançara bases em Angola. Dir-se-á que não há nada de inovador no texto, certo é que está muitíssimo bem arrumado e não esconde que a Guiné marcava passo, não havia meios financeiros e o pessoal político vinha para se amanhar.

Um abraço do
Mário



A Guiné e a I República

Mário Beja Santos

O "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", com coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014, acolhe no seu II volume um artigo de Célia Reis sobre a Guiné republicana. Abre o trabalho com a evolução política da colónia designadamente a partir da definição das fronteiras em 1886, refere as ininterruptas rebeliões das diferentes etnias, em particular as do litoral, contestando o imposto palhota que era encarado como o principal fator do reconhecimento da soberania portuguesa. É um período de campanhas que levou a que a administração guineense se mantivesse essencialmente militarizada.

O ideal republicano era difuso, com a chegada do 5 de Outubro de 1910, houve mudanças de posições mas também recalcitrantes, a proclamação do novo regime teve lugar no dia 10, quando se arvorou o novo estandarte. A 23 de outubro chega o primeiro governador republicano, Carlos de Almeida Pereira, Tenente da Armada, viu-se envolvido em múltiplas contendas, deixa o seu nome ligado ao derrubo das muralhas que cercavam Bissau. O Partido Republicano começou a sua organização local, surgiu a Liga Guineense, cedo começou a divisão política, logo patente na eleição de deputados de 1911, através de processos habituais de corrupção e de compra de votos. Em 1916, Bolama e Bissau voltaram a ser concelhos. Antes, porém, iniciou-se uma fase de conflitos e sublevações que levaram à intervenção do Chefe de Estado-Maior Teixeira Pinto, entre 1913 e 1915, deixou a classe política dilacerada, a Liga Guineense opunha-se aos métodos usados por Teixeira Pinto e aos castigos impostos aos Grumetes de Bissau e aos seus parentes Papéis. A Liga acabou dissolvida, continuou a contestação de Cabo-Verdianos e Grumetes a Teixeira Pinto e a Abdul Indjai. Ainda hoje permanece na penumbra as razões principais sobre tal confronto, mais recentemente René Pélissier admitia a hipótese, até então não explorada pela historiografia, de uma movimentação dos alemães em conjunto com os Grumetes e os Papéis ou mesmo na influência dos franceses, mas documentação comprovativa não há.

A Primeira Guerra Mundial teve reflexos indiretos na Guiné, a opinião pública em Bissau e Bolama manifestava-se pró-alemã, enquanto o novo governador, Manuel Maria Coelho, pareceu estreitar relações com os franceses. Seja como for, foi proibida às casas alemãs a venda de armas e mobilizaram-se as embarcações de captagem que lhes pertenciam. Alemães e sírio-libaneses foram detidos, sendo parte dos primeiros enviados para os Açores. A partir de 1917, voltaram a fazer-se campanhas militares, primeiro nas ilhas Bijagós, depois contra os Baiotes. Em 1919, deu-se a queda de Abdul Indjai, levado para Cabo Verde. Em 1917, publicou-se a Carta Orgânica da Guiné, onde se manteve a importância da autoridade dos régulos. Criou-se a Secretaria dos Negócios Indígenas, para resolução das questões da maioria da população e alteraram-se as circunscrições. Em 1922, foi aprovado o Código Administrativo da Guiné, pelo qual Bolama e Bissau passaram a ter câmaras municipais, enquanto Cacheu, Farim, Canchungo e Bafatá contavam com comissões municipais. É governador Jorge Vellez Caroço, vem inspirado para mudar a colónia, tomado pelo exemplo de Norton de Matos em Angola. Não faltarão intrigas durante o seu mandato, nem conspirações, lança-se num processo de desenvolvimento, privilegiando a instrução e a construção de infraestruturas de comunicação. Suceder-lhe-á Leite de Magalhães. Finda a I República, a Guiné continuou a ser uma colónia para onde se deslocavam como deportados muitos republicanos, alguns deles, em ligação com a insatisfação de comerciantes locais, farão eclodir a revolta de 17 de abril de 1931, chefiados pelo médico Gonçalo Monteiro Filipe.

Célia Reis dá-nos o quadro étnico, referencia o número diminuto de europeus e a carência brutal de estruturas básicas: ao tempo de Vellez Caroço havia apenas 3 médicos. Predominavam ao tempo as religiões fetichistas, seguia-se o islamismo, a doutrina católica era mínima, não havia ordens religiosas, as Franciscanas só regressariam em 1932. As publicações durante este período espelharam a fraca presença europeia. O Boletim Oficial da Guiné manteve-se como o único órgão informativo da colónia até 1920, quando apareceu o jornal Ecos da Guiné, foi seguido por A Voz da Guiné e depois pelo Pró-Guiné, todos de vida curta e dedicados aos portugueses. O novo órgão de informação só surgiu depois de 1931, O Comércio da Guiné. Não havia ensino secundário e em 1916 as escolas de ensino profissional reduziam-se ao ensino de tipógrafos e radiotelegrafistas. Vellez Caroço preocupou-se com o desenvolvimento da instrução dos guineenses, criando escolas: em 1925, contavam-se 10 estabelecimentos para o sexo masculino, 6 para o feminino e 5 mistas.

Finda a escravatura, a Guiné tornou-se uma colónia de exploração dos seus recursos, com vista à exportação. Apareceram várias companhias concessionárias, que não tiveram sucesso, caso da Agrifa, Companhia Agrícola e Fabril da Guiné e a Sociedade Agrícola do Gambiel. O problema das taxas foi uma permanente dor de cabeça, sempre a questão da proteção pautal e Célia Reis dá-nos conta da vida económica e financeira da colónia no período. A Alemanha era o principal parceiro comercial até à Primeira Guerra, esta alterou a situação, dando primazia a Portugal. É um período que leva a melhoria de comunicações, o telégrafo estabeleceu-se no interior, no final da Monarquia.

Como observa a autora, “Entre os rendimentos na Guiné encontrava-se o imposto de palhota, que substituíra o de capitação, em 1903. Nem todas as despesas previstas eram realizadas, mas as sucessivas campanhas militares contribuíram, naturalmente, para o seu acréscimo, não obstante a compensação de vida ao alargamento do imposto palhota a mais subjugados. Entre as despesas, a maior parte pertencia ao funcionalismo militar, a que se somavam os gastos com os restantes funcionários. Os projetos de Vellez Caroço, na década de 1920, provocaram o endividamento da Guiné, tornando necessário que o ministro João Belo (já na Ditadura Militar) abrisse um crédito para o compensar. O aumento de imposto, então, usado para ultrapassar aquela situação deficitária.”

Lembro ao leitor que Célia Reis é autora do artigo Guiné na obra O Império Africano, coordenado por A. H. de Oliveira Marques, Vol. XI da Nova História da Expansão Portuguesa, direção de Joel Serrão e Oliveira Marques, edições Estampa, 2001, de que aqui já se fez recensão.

Cacheu e a sua fortaleza
Monumento aos aviadores italianos falecidos num desastre aéreo em Bolama
Tropas portuguesas perfiladas na inauguração ao monumento dos aviadores italianos
Estátua do presidente americano Ulysses S. Grant, em Bolama
Bolama, capital da Guiné
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25129: Notas de leitura (1663): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17866: Estórias do Juvenal Amado (58): A minha avó Deolinda Sacadura, uma mulher do 5 de Outubro

Avó Deolina Sacadura

1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2017, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), presta homenagem à sua avó Deolinda, uma mulher que viveu nos duros tempos da transição do século XIX para o século XX, que como tantas daquele tempo, criou um rancho de filhos, como se dizia então, muitas vezes sem a presença por perto dos maridos.


HISTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

57 - UMA MULHER E O 5 OUTUBRO

Não basta olharmos para alguém para descortinarmos a sua história. Os afectos, os seus momentos maus, possivelmente julgamos ver sua felicidade ou tristeza, se elas forem genuínas e transparecerem como água pura e límpida.
Essas pessoas por vezes enchem-nos com as suas palavras e esvaziam-nos com os seus silêncios. A minha avó Deolinda era assim. Calma, segura, de saúde débil, para além das suas enfermidades guardava no seu corpo velho e curvado todo o saber de uma vida de luta. Mulher que a idade fez pequena em altura, mas só ela metia na ordem os nove filhos e filhas, que teve como única herança do meu avô. Todos se calavam quando ela falava, todos apertavam as mãos e na sua presença, todos escondiam as desavenças, os litígios nem que fosse só naquele momento.

O respeito que lhe deviam ditava as atitudes e não era gente fácil, porque não há famílias perfeitas e a dela também o não era. Criou-me até certa altura, uma vez que a minha irmã nasceu logo a seguir a mim, e lembro-me dela sempre com carinho. Recordo que me contava episódios da sua vida, falava sobre o meu avô lhe aparecer embrulhado num cobertor, depois de nada saber dele durante semanas e como ele desaparecia novamente para o sonho que lhe incendiava dias e as noites. Falava sobre a implantação da República e a sua esperança em novos tempos. Também ela foi uma heroína discreta da implantação da Republica.

Também me recordo da sua mágoa, quanto aos resultado dos vários falhanços, que desembocaram num regime triste, cinzento e sufocante. Não tinha sido para isto que tanto português tinha dado o seu sangue. Na sua casa juntava os netos, que com pouca coisa se entretinham. Autocarros construídos com as cadeiras das sala de fora, brincávamos com idas para a Nazaré ou até em voos mais largos viagens até Lisboa. Ela simplesmente gozava a nossa companhia, cozendo ou escrevendo algo quase encostado ao nariz tal, era a miopia de que padecia. Fazia-nos o lanche, fazia-nos desarmar o “autocarro” para comermos à volta da mesa o pão com manteiga polvilhado de açúcar, canela e café de cevada.

Eu fui criado por ela até aos cinco ou seis anos anos mas fui sempre estar com ela nos anos seguintes, sempre que podia e assim, beneficiei das suas histórias sobre o meu avô e companheiros na sua luta pela instauração da República. Falava-me da prima dela, Sara, a qual estava no grande retrato ao estilo 1900 na sala de jantar, emoldurado num belo caixilho em arte nova. Contava-me ela tinha morrido muito jovem de tuberculose e que tinha um problema pois não podia olhar para um relógio, que o parava logo. Não sei se era ela a brincar comigo, se tinha sido verdade, uma coisa era certa, ela era muito bonita mas eu não entrava na referida sala sozinho, por nada deste Mundo.

O retrato emoldurado da prima Sara

De manhã cedo apreciava a minha avó no seu ritual de molhar o pente em álcool e pentear os seus longos cabelos, que depois manipulava habilmente numa trança que de seguida enrolava na parte de trás da cabeça e prendia com longos ganchos de tartaruga. Sempre vestida de preto, só saía sozinha para tratar das galinhas e mesmo assim, o cão e eu fazíamos-lhe companhia pelo longo e escuro corredor que dava acesso ao pátio.

De vez enquanto passávamos pelo vizinho de baixo, que tinha combatido na 1.ª Grande Guerra. Eu tinha especial medo dele, pois quando estava mais atacado, escondia-se nos umbrais das portas acendendo fósforos e atirando com eles ao ar. Julgou eu hoje que ele na sua demência alcoolizada, fazia dos fósforos very-light e recriava na sua cabeça as situações por que passou. Morreu vítima dos gases, do vinho, do tabaco, do esquecimento e pobreza não só física como de espírito. Viu três netos serem mobilizados.


A minha avó Deolinda morreu depois de longa e penosa doença em 1973 quando eu estava na Guiné . A data nunca soube ao certo, uma vez que a minha mãe assim o entendeu e nunca me mandaram dizer. Talvez porque deixei de receber correio da minha mãe e da minha tia durante um período, eu tenha mais tarde relacionado com a altura da sua morte.

Quem a via, nada sabia da sua força, do seu conhecimento, da sua esmerada educação. Ela encheu-nos com as suas palavras e esvaziou-nos com o seu silêncio. Não me viu regressar, não conheceu a minha mulher nem filha, não assistiu a nada da minha vida, não viu em que homem me tornei, nem sabe do carinho que nós netos temos pela sua memória.

Neste 5 de Outubro, data que lhe era cara e nos ensinou a respeitar, lembrei-me dela das suas costas arqueadas, das suas pernas inchadas, dos seus óculos de lentes grossíssimas, mas acima de tudo recordei a sua sabedoria e prazer que tinha da sua companhia.

Um abraço
Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17763: Estórias do Juvenal Amado (56): Lisboa aqui tão perto... da "Ginjinha" do Rossio ao fórum Tivoli, onde fui assistir ao lançamento do novo livro do José Saúde, "AVC - Recuperação do guerreiro da liberdade"