Vila do Conde
Com a devida vénia ao autor do desenho
1. Publicado no facebook pelo nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante
da GNR na situação de Reforma, (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74), este texto com delicioso humor, só não nos conta se o petiz levou a sua avante, já que o ditado diz que quem não chora não mama. Quanto à tosse do nosso camarada Manuel Luís, nem com chá de cascas de cebola com limão, adoçado com mel, passava. O remédio era mesmo rir.
Quem não chora não mama e, para a tosse, um chazinho de cascas de cebola com limão, adoçado com um pouco de mel
E eu tossia.., tossia..., tossia...
E que tosse!...
Não se preocupem, amigos, não apanhei nenhum resfriado ou constipação.
A minha tosse era outra.
Todos nós conhecemos aqueles vocábulos de uma só palavra começados por "c" de cão e por "f" de facebook, que todos nós, do leigo ao intelectual, uns mais do que outros, como expressão libertadora, nas mais diversas circunstâncias, somos forçados a utilizá-los.
No fundo, eles traduzem o que nos vai na alma num dado momento:
- De dor, quando o martelo que utilizamos falha a cabeça do prego e nos vai fazer mossa na mão que o segura, deixando-nos ali, de cara feia, a sacudir as falanges, falanginhas e falangetas, a ensaiar uns bons acordes de cavaquinho ou bandolim;
- De impaciência, quando estamos com pressa e a fila de trânsito que está à nossa frente teima em continuar parada e, como se isso não bastasse, o que vem atrás ainda nos azucrina com umas buzinadelas;
- De admiração, quando damos conta de que à nossa frente segue um elegante e "taquetaqueante" par de sapatos, normalmente de salto alto, ou até um bom par te ténis, que transportam uma escultural obra d'arte da natureza, de contornos curvilíneos, provocante e tentadora;
- De nervos, quando com um monte de embrulhos encastelados num dos braços até ao queixo, procuramos as chaves com a outra mão e não as encontramos no bolso desse lado, confirmando-se a teoria da irritante lei de Murphy;
- De stress e angústia, quando abrimos uma carta das finanças a massacrar-nos o "seixo" de que temos de pagar o IMI ou o imposto do monte de sucata com rodas que utilizamos no nosso transporte, entre outros, ou deparamos com uns cortes no vencimento ou na reforma, à Passos Coelho, ou até, como a perseguir-nos, esta abominável figura, depois de tudo o que fez, teima em aparecer no ecrã da televisão.
Enfim, muitos outros casos poderia aqui enumerar em que utilizamos estas reparadoras palavras, que contribuem, tantas vezes, para porem o nosso ego em alta.
Há outros vocábulos, similares, com mais palavras, com a mesma função terapêutica, que, aliás, bem conheceis.
Porém, nem sempre exteriorizamos estes desabafos, guardando-os só para nós, dependendo sempre do lugar em que estamos, como manda a boa educação, como, por exemplo, quando nos fixamos naquele elegante par de sapatos a que me referi, orgulhoso por aquela escultura que transporta.
Aquela do martelo que falha o prego, é difícil, quase impossível, segurá-la. Sai espontaneamente e a alta velocidade.
Há uns anos, durante alguns dias seguidos, utilizava como transporte, em direcção ao Porto, e vice-versa, o comboio da linha da Póvoa, recentemente substituído pelo metro do Porto.
Entrava todos os dias aqui na estação de Árvore, Vila do Conde, por volta das sete e meia, acabando por verificar, dia após dia, que, àquela hora, naquela carruagem, os passageiros eram quase sempre os mesmos.
Naquela rotina diária, e durante cerca de uma hora, até chegar ao Porto, assistia àquele ambiente que me envolvia na carruagem: grupos de companheiros de trabalho, quatro a quatro a disputarem umas boas partidas de sueca para matarem o tempo; outros desfolhavam o jornal a actualizarem-se nas últimas notícias; os estudantes, de semblante ensonado, reviam a matéria, abrindo os "canhenhos"; outros, pura e simplesmente, passavam pelas brasas, e depois o grosso dos passageiros discutia os temas em voga da actualidade.
Hoje, inevitavelmente, esses temas passariam pelos vistosos golos do Cristiano Ronaldo, de levantar o estádio, no país de nuestros hermanos, e das bolas de ouro que ele monopoliza e chuta para o museu da Madeira; o calvário de Jesus lá para os lados de Alvalade; os avanços do recém-eleito Donald Trump no país do "Tio Sam", em relação às mulheres; e, por último, entre tantos outros do quotidiano, ainda bem fresquinho, o caso da TSU, a bola que o governo e a oposição jogam lá para os lados de S. Bento, a verem quem é que chuta mais alto até bater na abóbada do hemiciclo, porventura a fazer estragos nos pendentes lustres de cristal da chamada casa da democracia.
Num desses dias, ali pela estação de Mindelo ou Vilar do Pinheiro, fora da rotina habitual das pessoas que ali tomavam o transporte àquela hora, entrou uma jovem mãe com duas crianças de tenra idade. Com uma ao colo, aparentemente, de meia dúzia de meses, e outra pela mão, mais crescidinha, mas, seguramente, com menos de dois anos de idade.
Porque os lugares iam todos ocupados naquele ponto do trajecto, foi-lhe cedido então um deles.
Acomodados mãe e filhos, a progenitora, naquele sublime gesto materno, expôs o peito, no busto desabotoado, para amamentar o rebento mais novinho, enquanto o outro, traquina, ia brincando ali entre outros passageiros e a encavalitar-se na janela do comboio.
Momentos depois, por entre aquela teia das conversas que se cruzavam no espaço da carruagem que me chegavam aos ouvidos, os meus sentidos centraram-se na voz meiga do petiz mais velho, com dificuldade ainda em articular as palavras, mas que eu percebi muito bem, que decidiu reclamar, de forma insistente, a sua parte da mama a que o mais novinho continuava colado:
- Mãe, quero mama..., mãe, quero mama..., mãe, quero mama...
Perante a persistência tenaz do petiz, que não estava disposto a desistir do seu quinhão do leite materno perante a aparente indiferença da mãe, esta "passou-se dos carretos", puxou a culatra atrás e disparou:
- Queres mamar?..., vai mamar ao caralho..., foooda-se, ainda há pouco mamaste...
Perante esta atitude, podemos ter o preconceito de que aquela mãe "não batia bem da bola", que "era passada dos carretos", que "tinha uns parafusos a menos". Quem sou eu para a criticar por utilizar as ditas palavras "libertadoras" de que eu falava no início ainda encriptadas, e que ela aqui, a facilitar-me a vida em escancará-las neste texto, descodificou muito bem, alto e bom som, num português bem claro, desconhecendo-se o que estava por detrás de tudo aquilo.
Eventualmente muitas dificuldades económicas ou outras, atenta, pelo aspecto, a sua condição humilde, com aqueles dois filhos tão pequeninos, quiçá o motivo principal das suas preocupações, por não ter o que lhes dar de comer, além das escassas gotas de leite que lhe brotavam do peito. Foi isso o que deixou transparecer.
Estas palavras de tal modo fizeram eco pela carruagem que toda a gente interrompeu as suas conversas e os jogos das cartas, tocada por este pungente quadro, não fizessem parte dele aquelas duas inocentes crianças, ficando tudo, momentaneamente, em silêncio, sem tecer qualquer espécie de censura.
Chocado também pelo sucedido, ali, no meu lugar, instantes depois, verifiquei que tudo voltou ao normal.
Volvidos alguns momentos, ao "rebobinar" todo aquele filme, relembrando como aquelas palavras foram disparadas e, à velocidade da luz, como elas fizeram ricochete ali por todo o interior da carruagem, que puseram todos os presentes em sentido, e como somos, muitas vezes, tentados a rir também de coisas más, fui acometido de um ataque de riso que mal me podia conter. Que mau!...
- Vá lá, Manel, aguenta-te, não te desmanches. Não me vais agora deixar mal perante esta gente.
Reprimia-me a mim próprio, ciente de que iria ser censurado por todos, que se mantiveram sempre naquela postura séria.
Quanto mais o fazia, mais a besta me atacava, acabando por não resistir e rir alarvemente, dissimulando esta minha fraqueza através de um ataque de tosse convulsa fingida.
Mais uma e outra vez, e eu, desesperado, só já queria sair dali.
- Isso está muito mau..., faz muito bem um chazinho com casca de cebola e limão, adoçado com mel...
Fez a observação e aconselhou uma senhora que estava a meu lado, compadecida comigo, pela maldita "tosse" que me atormentava.
Palavras que ela disse!... Ainda mais esta agora..., lamentava eu cá para mim. A tosse piorou. E a sua cura já lá não ia nem com o antibiótico de dose cavalar, quanto mais com a mezinha do chá.
Felizmente o comboio chegou ao fim da linha, à estação da Trindade, a porta abriu-se e eu, depois de agradecer, como pude, à senhora pela dica do chá, irrompi gare adiante a tentar libertar-me daquele colete de forças, e por ali fora, eu tossia..., tossia..., tossia..., não fossem os transeuntes chamar-me maluquinho por rir desalmadamente sozinho.
Aqueles meninos hoje, de certeza, que já não mamam, se o fizerem já será noutro contexto.
Só para dizer que já lá vão uns bons vinte e cinco anos desde que fiz aquela inesquecível viagem, o que não abona em nada o profissionalismo de um agente de autoridade minimamente responsável que, só hoje, passado todo este tempo, produziu este auto daquela ocorrência, correndo até o risco de vir ser acusado por "negação de justiça".
Para terminar, e já agora, lamento se porventura vos contagiei com o vírus da minha tosse. Se for o caso, sigam a dica daquela senhora: chá com casca de cebola e limão, adoçado com mel, nesta altura do ano, Janeiro de 2017, faz muito beeeem...
Só a mim é que isto acontece!...
E para que não fiquem dúvidas, vou assinar:
Manuel Sousa
OBS:- Título do poste da responsabilidade do editor
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de janeiro de 2017 >
Guiné 61/74 - P16904: Facebook...ando (43): Brindando ao futuro (Paulo e Conceição Salgado)