Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2015:
Queridos amigos,
Trata-se de um grande escritor que não tendo feito a guerra
colonial explora, com imenso talento, o jargão da caserna, arquiteta
non-senses apimentados com humor e desvario.
Três alferes para três contos.
O primeiro levava uma vida farniente até que foi incumbido, porque era
engenheiro, de discutir com um coronel de cavalaria, lá nos confins do mato,
o traçado de uma cavalariça. História impagável.
O segundo alferes vai para
Timor e fica esfacelado com uma granada de instrução, num voo para Baucau
conhece um major das arábias que lhe narra uma história de vingança com
muitos aromas timorenses.
A terceira história, largamente conhecida,
intitula-se "Era uma vez um alferes", um simples equívoco numa atmosfera
surreal e um capitão de antologia fazem com que esta peça literária não
tenha rival.
Quem não conhece Mário de Carvalho perde muito do que há de
melhor na literatura contemporânea.
Um abraço do
Mário
Os Alferes, de Mário de Carvalho
Beja Santos
É do senso-comum que de um grande escritor tudo se pode esperar: um tema eivado de classicismo; uma novela irónica; um revivalismo sobre uma obra-prima; um drama sangrento ou lírico, enfim, todas as hipóteses são admissíveis. Em 1989, Mário de Carvalho já dispunha, como é costume dizer-se, de um amplo palmarés. Não esteve na guerra colonial mas compôs um livro de contos em que as narrativas se situam nos antigos territórios coloniais portugueses, não estão bem identificados, mas para o caso tanto faz. Em "Os Alferes", publicado pela Editorial Caminho em 1989, e por Editores Reunidos em 1994, temos três histórias cujos protagonistas são sempre alferes.
Em “A última cavalgada”, temos um alferes de Engenharia que leva uma vida farniente no batalhão, até ao dia em que o major o mandou a Quilabango, tudo por causa de uma cavalariça, ele que nada sabia de cavalos. Chegado ao objetivo, deparou-se com um coronel e uma missão excêntricos. Tudo começa com as advertências desse coronel cavaleiro: “Se acontece alguma coisa aos meus cavalos por causo do vosso desleixo, armo para aí um sarrabulho que até manda ventarolas. Isto é impensável… Cavalos argentinos, animais nobres, sensíveis, um despesão, arrumados em casebres, em pocilgas…”. E prosseguiu o aranzel. Lá foram até um barracão ver os equídeos, e uma sombra se intromete, uma referência ao nosso tenente, o que para a história tem grande importância. Quando o alferes engenheiro lhe mostra os projetos, o coronel protesta: “Sacanas! Refinadíssimos sacanas!”. O alferes está aturdido, o coronel prossegue furibundo: “As frestas têm de estar na horizontal, ao nível do teto, e não a meio da parede. Vem a puta da chuva, salpica os estábulos, salpica as forragens, salpica as garupas. Isto dá pneumonia! Querem matar-me os animais. É sabotagem, pá”. Regressam ao batalhão, o alferes é apresentado ao capelão e ao médico. Está o alferes a sair do banho e vê à distância uma figura de mulher, trata-se de a mulher do coronel. A descrição da refeição na messe de oficiais é uma obra-prima, os comentários, os dichotes, a zaragata verbal entre o coronel e o tenente é delirante. Como delirante é a história de umas morteiradas sobre o quartel. É então que o alferes sabe da história de que coronel quer matar o tenente, é tudo uma questão de triângulo amoroso, está envolvida, claro está, a mulher do coronel. Coronel e tenente irão dar uma passeata a cavalo. O coronel aparece morto, o episódio tem a marca do rocambolesco, correr na unidade a versão de que tinha sido um acidente: “O coronel tinha-se afastado do esquadrão, a galope desenfreado, e depois ouvira-se uma rajada. Teria feito qualquer movimento em falso, a patilha de segurança da arma estaria gasta, os disparos traçaram-no a meio-corpo. O tenente apareceu logo a pedir ajuda, mas já não havia nada a fazer…”. O médico confidenciou ao alferes engenheiro à despedida: “Afinal foi o tenente que matou o coronel. Eu estive a ver o corpo. O major dispensa a autópsia. Quero lá saber…”.
Finda esta história com a cavalaria, entramos noutra, passada em Timor e intitulada “Há bens que vêm por mal”. O nosso alferes, mal chega, sobreveio um estúpido acidente com uma granada de instrução, ficou paralisado da cintura para baixo. Procuraram animá-lo: que a recuperação, pelo menos parcial, se vislumbrava, que não estava condenado à imobilidade eterna. Durante um mês abrasou em febres malignas no Hospital de Dili. É encaminhado para Baucau, escala em Darwin, rumo à Europa. Aqui começa uma história que podia ter sido contada por Somerset Maugham. O piloto é tratado por alguém como o meu major. O doente está intrigado: "Major? O homem trajava a civil: casaco de alpaca, esbranquiçado, sobre uma sumptuosa camisa de entrançados floridos mais complicados de descrever que as volutas do escudo de Aquiles. A cara mostrava-se rugosa, de pele áspera, crestada do clima. Ao fundo do pescoço, pela largueza do colarinho, podia eu distinguir o brusco remate da zona do sol, trocada pela zona de sombra, raia bem demarcada entre a epiderme encarquilhada e escurecida dos trópicos e a pele clara e Lisa da Europa”. Puxando pela cabeça, o alferes lá foi reconhecendo. E depois o major conta-lhe a história, como chegou, como se afeiçoou à ilha, como resolveu ficar, metido na exportação de sândalo branco, veio a invasão japonesa, entra em cena uma fuga em que a certa altura houve entendimento que era preciso desembaraçarem-se de uma criança, o pai apostou vingança, envolveu-se num serial killer, a história termina abruptamente, chegaram a Baucau, chegaram em boa hora, o piloto e o mecânico, após a aterragem descobriram por é que o motor estava a responder mal, tinham-se safado de boa.
A terceira história, “Era uma vez um alferes” tem sido derramada em várias antologias, são múltiplas as citações, conta a história de uma alferes que pensa ter pisado uma mina, ali fica hirto, os soldados e furriéis vão dando palpites, o alferes só pede que venham os especialistas das minas e armadilhas, mas quem sai do helicóptero é o capitão, assim descrito: “Era um homem ainda jovem, magro, seco, muito direito, precocemente promovido pelas necessidades da guerra. Cultivava uma impassibilidade afetada, longamente estudada. Nunca bebia mais do que a conta nem dizia um palavrão. Vestia sempre a farda ver-azeitona, com a boina castanha, e nunca ninguém o tinha visto de camuflado”. Tudo quanto se vai passar a seguir é do melhor que há em literatura de guerra, as intervenções do capitão e o sofrimento do alferes, que revive o sadismo do capitão quando era tenente, e instrutor de tática no segundo ciclo, em Mafra. O alferes, transido, só grita pelo pessoal das minas e armadilhas, assistimos a uma conversa macabra entre o capitão e o alferes que não pode mexer-se um milímetro, falam das movimentações estudantis, e ouvimos o alferes, a protestar no íntimo: “Mas por que é que este capitão não o deixava sozinho morrer para ali? Se se atirasse para diante devia ser apanhado pelas costas. Morte instantânea. Talvez não sofresse nada, talvez nem ouvisse o rebentamento. Mas, e se a explosão lhe quebrasse a coluna, se ficasse paralisado para a vida inteira? Vai-lhe um enorme peso sobre os ombros, do peso se lhe dobram ligeiramente as pernas. Cansou-se-lhe o braço com que se apoia a G3, fortemente fincada na areia. Estremece. Vê, entre névoas, a cara do capitão, ondulante, prelada de gradas bagas de suor”. Situação insustentável, chora, brada pela mãe, o capitão proíbe-o de chorar, incita os soldados a cantar em coro. “Nisto, o alferes teve um estremeção, oscilou, tombou desamparado”. Vimos a saber que teve um ataque cardíaco, não havia mina nenhuma, só uma pequena mola metálica, das usadas nos batuques. O médico embriagou-se, vociferava contra o capitão, chamava-lhe sádico. “O médico acabou por se cansar e lá foi deitar-se, chorando, amparado por outros oficiais. Nessa altura, já se sabia que o capitão não tinha enviado qualquer mensagem a requisitar os especialistas das minas e armadilhas”.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de Janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16995: Notas de leitura (924): Os primeiros documentos de Amílcar Cabral na Guiné, 1952 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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