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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24809: As nossas geografias emocionais (14): Na fonte de Bafatá, nos anos 60, os almoços dançantes eram promovidos pela esposa do CMDT do Esq Rec Cav (Fernando Gouveia)


Fonte de Bafatá, 2010. Foto: © Fernando Gouveia

1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec Inf do Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70, com data de 29 de Outubro de 2022:

Olá Carlos,
Espero que esteja tudo bem convosco.
Sobre a fonte de Bafata, num comentário, já esclareci algumas coisas. Para completar o assunto mando-te uma foto de 2010 que seria bom ser publicada.
Desde já te agradeço.

Um grande abraço.
Fernando

2. Comentário de Fernando Gouveia no P24805:

Camaradas,
Passo a esclarecer:

1 - Os ditos "almoços dançantes" eram promovidos pela esposa do Capitão do Esq. de Cav, Capitão Campos[1] do Esq. que esteve antes do que é mencionado, penso que de 1967 a 1969.
2 - Quanto à fonte, que em 1968/69 estava num grau de conservação normal, quando fui lá em 2010 o terreno, por força das chuvas, tinha subido mais de um metro subterrando o tanque.
Também em 2010 já tinha desaparecido a placa com a data da construção.
3 - Tenho uma foto da fonte que tirei em 2010 e que vou fazer chegar ao Carlos Vinhal para publicação.

Abraços.
Fernando Gouveia

____________

Notas do editor:

[1] - O camarada Fernando Gouveia estará a refereir-se ao Cap Cav Carlos Fernando Valente de Ascenção Campos, CMDT do ERec 2350 que esteve em Bafatá e Piche entre Janeiro de 1968 e Novembro de 1969

Último poste da série de 30 de Outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24806: As nossas geografias emocionais (13): A fonte da Colina de Madina, 1945 (Manuel Coelho / Cherno Baldé / António Murta)

terça-feira, 24 de maio de 2022

Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970


Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-237 (com a devida vénia...)


A LUTA NA GUINÉ (1)

Coronel HÉLIO FELGAS


(') Conferência incluída no Ciclo «A Luta  no  Ultramar», pronunciada pelo Autor na Academia Militar em 10 de Abril de 1970 [,  dez dias antes do "massacre do chão manjaco", e de cujo teor o Amílcar Cabral já tinha conhecimento, em 11/5/1970, quando presidiu ao Conselho de Guerra onde a "liquidação" dos 3 majores e seus acompanhantes foi abordada com algum detalhe  (*)]

Por motivos vários a nossa Guiné continua a ser mal conhecida na Metrópole. O objectivo do presente trabalho é por isso focar determinados aspectos da situação naquela Província.

1-0 Terreno

Assim como não se faz a guerrilha com qualquer população, também não se faz a guerrilha em qualquer terreno. A população necessita ser previamente trabalhada, endoutrinada, convencida, aliciada. O terreno precisa apresentar características especiais. Pode mesmo dizer-se que uma população bem trabalhada pode não ser capaz de levar a cabo uma guerrilha duradoura e frutífera se o terreno não a ajudar. 

Em nossa opinião esta afirmação é válida mesmo no momento actual em que parece nítida a tendência para duplicar ou substituir a guerrilha rural pela guerrilha urbana.

Afinal, esta tendência não é mais do que a confirmação de que a guerrilha tem absoluta necessidade de terreno apropriado. E este terreno tanto pode ser a selva e o mato, como as cidades superpovoadas. O que a guerrilha precisa, quanto a terreno, é de bons esconderijos, boas possibilidades de deslocamento, bons terrenos de culturas alimentares, boas condições para defesa própria e para reacção aos ataques das forças da ordem.

É evidente que estas características não se encontram nem nos desertos, nem nas selvas impenetráveis, nem nas áreas desabitadas ou improdutivas. Mas tanto se podem encontrar em regiões rurais como nas grandes cidades.

Na Guiné as condições ideais para a guerra de guerrilha encontram-se no mato da quase totalidade da Província. 

Terra plana e baixa, que na maré cheia o mar invade em um oitavo da sua superfície, a Guiné portuguesa é um território «sui generis» mas com certas semelhanças com o Vietname. As áreas alagadiças e pantanosas onde os nativos cultivam o arroz − as traiçoeiras «bolanhas» já hoje tão conhecidas dos nossos soldados − alternam com as matas fechadas onde o inimigo tem os seus refúgios e cujos escassos trilhos ele armadilha ou disfarça ardilosamente.

É nas «bolanhas» que os mil rios da Guiné se espraiam em fantasiosos meandros, tornando fatigante e extremamente longo o mais pequeno percurso. Para se avançar um escasso quilómetro é preciso por vezes andar dez ou mais. Ou então há que prosseguir com água e lodo não raro até ao pescoço.

O rendilhado destas margens lodosas e cobertas de tarrafo é substituído na zona interior por um mato espesso que se despenha sobre as estradas e quase sufoca os trilhos, facilitando a emboscada.

Junte-se a este esboço panorâmico um calor tórrido e uma humidade quase limite, e ter-se-á uma ideia das condições da luta na Guiné 
− favoráveis para um inimigo habituado ao clima e conhecedor do terreno, e desfavoráveis para o soldado acabado de chegar da Metrópole.

2-0 Inimigo

A partir de 1955, as autoridades inglesas e francesas dos territórios africanos,  sob sua administração, começaram a permitir a formação de partidos políticos pelos nativos daqueles
territórios. Assim sucedeu na Guiné Francesa de então e no Senegal, territórios que confinam com a nossa Guiné, respectivamente a sul e leste e a norte.

Compreende-se fàcilmente que os nossos nativos residentes naqueles territórios se sentissem também inclinados a formar partidos políticos. Mas enquanto na República da Guiné só um vingou (o PAIGC), no Senegal constituíram-se vários que rivalizaram uns com os outros durante anos até que se fundiram num só (a FLING).

O PAIGC ou «Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde» é constituído por guineenses e cabo-verdianos, embora estes sejam em minoria numérica. No entanto, o seu chefe é o engenheiro agrónomo cabo-verdiano Amílcar Cabral que se fez rodear de diversos conterrâneos.

Há conhecimento de rivalidades no seio do partido entre cabo-verdianos e  guineenses 
  o que não admira pois tais rivalidades são seculares, Em regra os guineenses queixam-se de ser colocados em posições subalternas.

No entanto, o indiscutível tacto político de Amílcar Cabral tem evitado dissidências importantes 
−  o que, como se sabe, não tem acontecido nos partidos angolanos e moçambicanos cujos dirigentes andam sempre envolvidos em disputas mútuas. Inclusivamente o PAIGC ainda hoje não formou oficialmente qualquer governo provisório, porque Amílcar Cabral deseja evitar invejas e descontentamentos que poderiam enfraquecer o partido.

Quanto à FLING, é constituída apenas por guineenses. Uma das pedras da sua propaganda para desacreditar o PAIGC, é mesmo fazer acreditar que os guineenses do PAIGC são dominados pelos cabo-verdianos.

Ambos os partidos declaram desejar a independência da Guiné Portuguesa e a transferência do poder para os nativos, sem que isso signifique a abolição da língua portuguesa ou a expulsão dos brancos. Mas enquanto a FLING pretende alcançar este objectivo por negociações, o PAIGC pôs de lado os meios pacíficos e escolheu a luta armada.

Uma outra diferença é que a FLING apenas deseja a independência da nossa Guiné. Mas o PAIGC pretende também a de Cabo Verde, constituindo a independência da Guiné apenas uma primeira fase da sua luta que deve conduzir à constituição de um Estado (talvez federal) englobando as duas Províncias.

O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sociocomunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Seku Turé, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.

Pelo contrário, a FLING é de tendência moderada ocidental e por isso teve o apoio, ainda que muito limitado, do governo senegalês de Leopoldo Senghor.

Desde o princípio que o governo de Conakry deu total apoio ao PAIGC
 o que não deve admirar pois trata-se de ideologias políticas idênticas.  Aliás foi a mesma identidade que levou o governo de Dakar a admitir a FLING. 

Simplesmente a FLING não conseguiu projecção alguma, dentro ou fora da nossa Guiné. E o PAIGC, há que admiti-lo, conseguiu. Não só a partir de 1964 passou a ser o único movimento armado actuando naquela Província, como o seu prestígio se foi cimentando no âmbito internacional e a tal ponto que o seu chefe já tem em conferências internacionais representado não só o seu partido como todo o movimento emancipalista africano.

Claro que a projecção alcançada pelo PAIGC não podia deixar indiferente o presidente senegalês Senghor, por um lado, pensou que, se acaso um dia o PAIGC viesse a tomar conta da vizinha Guiné Portuguesa, as relações com o Senegal seriam péssimas caso este país não tivesse ajudado o PAIGC na sua luta pela independência. 

Por outro lado, o presidente senegalês, apesar de todo o seu evidente ocidentalismo, sentiu que a sua própria posição pessoal estaria ameaçada, caso não mostrasse interesse pela luta de emancipação levada a cabo pelo PAIGC e apoiada por quase toda a Africa negra e árabe.

Estes condicionalismos políticos levaram Senghor, talvez até contra sua vontade, a prestar auxílio ao PAIGC, partido em quem o presidente senegalês não tinha muita confiança, primeiro por ser apoiado pelo governo de Conakry (cujas relações com Dakar nunca foram boas), e depois porque Senghor receava possíveis ligações entre o PAIGC e os elementos da oposição política senegalesa.

Foi então estabelecido o acordo de 1966 que «legalizou» a permanência e o deslocamento dos grupos armados do PAIGC em todo o Sul do Senegal,  fronteiriço com a nossa Guiné. Embora sem dar inteira liberdade ao PAIGC, este acordo facilitou enormemente o reabastecimento dos grupos actuando em toda a fronteira Norte da nossa Guiné e permitiu- lhes um refúgio seguro sempre que se sentiam mais apertados pelas nossas tropas.

Compreende-se que o aumento do apoio senegalês ao PAIGC correspondeu a uma ainda maior diminuição do interesse pela FLING cuja actividade cessou quase por completo.

Desta forma o PAIGC encontrou-se em condições ideais para prosseguir na sua actividade pois passou a contar com o apoio de ambos os Estados vizinhos da nossa Guiné. Além disso foi reconhecido pela Organização da Unidade Africana como o único movimento representativo daquela Província, sendo-lhe atribuída boa parte dos fundos do respectivo Comité de Libertação. 

Continuou a receber auxílio financeiro  em armamento e munições, não só da Rússia e seus satélites, como da China Popular. Aceitou médicos e quadros militares de Cuba e enviou centenas de guineenses para estágios e cursos em diversos países comunistas e socialistas. 

Recebeu auxílio financeiro de certos Estados nórdicos com destaque para a Suécia. Finalmente, estabeleceu intercâmbio com a própria Frente de Libertação do Vietname, sabendo-se que vários vietcongs já têm estado na nossa Guiné exercitando os grupos armados do PAIGC.

Em face de todos estes auxílios e apoios, a única coisa que nos parece que deve admirar é a relativa ineficácia da actividade militar do PAIGC. De facto na Guiné encontram-se trocadas determinadas características da guerra de guerrilhas. Quer em número quer em armamento, o inimigo apresenta-se muito mais forte e desenvolvido do que é vulgar atribuir-se a simples guerrilheiros.

Em especial o armamento, dos mais recentes modelos russos, checos e chineses, chega mesmo a levar vantagem sobre alguns tipos nossos, com destaque para os canhões sem recuo, morteiros e bazucas. Qualquer pequeno grupo inimigo dispõe destas armas em abundância e não faz a menor economia em munições.

Felizmente, porém, a eficiência pessoal dos combatentes é que é muito pequena. Falta-lhes treino, decisão, quadros. Armas esplêndidas como eles têm, são mal apontadas tornando o seu rendimento nulo ou quase. Não é raro o inimigo atacar um aquartelamento com canhões e morteiros disparando centenas de projécteis dos quais só dois ou três acertam no alvo. E já se têm apreendido aparelhos de pontaria isolados, simplesmente porque o inimigo desconhece a sua utilização e prefere apontar os canhões e os morteiros à vista.

Convém, no entanto, esclarecer dois pontos. O primeiro  que não podemos confiar em uma eterna inaptidão do inimigo para o combate. E o segundo é que, apesar do que dissemos, o PAIGC sabe perfeitamente o que está fazendo. Embora dentro das linhas gerais características da guerra revolucionária, o PAIGC actua de acordo com as condições peculiares da África e dos africanos.

Aliás, consideramos erro grave julgar que todas as guerras revolucionárias são idênticas quer na sua essência quer na sua concretização prática. Os dirigentes do PAIGC, embora ligados ao castrismo, ao sovietismo e ao maoismo, têm demonstrado uma originalidade própria que nos parece do maior interesse conhecer, para melhor lhe podermos fazer frente.

Dentro desta originalidade, o inimigo não deixa de dedicar a maior atenção à acção psicológica que é levada a cabo com notável sobreposição de meios. 

Esta acção exerce-se entre a população nativa por meio de agentes especializados. Exerce-se por meio de uma estação emissora que, em algumas áreas da Guiné, se ouve melhor do que a nossa Emissora de Bissau. Exerce-se por via diplomática nos diversos países africanos e não-africanos, chegando fàcilmente à ONU onde, como se sabe, tem a maís favorável audição.


3 - A População

A variedade étnica da população guineense é bem conhecida. Num espaço restrito encontram-se doze ou quinze tribos tão diferentes umas das outras como os espanhois o podem ser dos franceses, dos italianos ou mesmo dos ingleses.

Estas tribos são idênticas apenas na sua aparência física e no seu atraso socioeconómico. Mas são diferentes nos seus usos e costumes, na sua língua, na sua religião, nos seus trajes e, até, na forma como reagiram à subversão e ao terrorismo.

De facto, enquanto Balantas, Sossos, Nalús e Biafadas se deixaram aliciar com certa facilidade, Felupes, Baíotes, Banhuns, Papéis e Fulas repeliram energicamente toda e qualquer ideia subversiva. E enquanto os Bijagós se mantêm alheios à luta, os Mandingas, os Mancanhas e os Manjacos dividiram-se, colaborando uns com o inimigo e outros connosco.

Aliás esta diferenciação não é taxativa. Há, por exemplo, inúmeros Balantas que nos continuam fiéis e com eles formámos até excelentes grupos de contra-guerrilha.

Cada uma das tribos citadas atrás ("raças» como lhes chamamos na Guiné) tem o seu «chão», isto é, a região onde habitam em maioria. O «chão» felupe, por exemplo, é a noroeste, na área fronteiriça com o Senegal, ao lado dos Baiotes e dos Banhuns. Os Papéis têm o seu «chão» na ilha de Bissau. Os Balantas 
− a raça mais numerosa da Guiné − estendem-se numa faixa central, desde a fronteira com o Senegal, ao norte, à fronteira com a República da Guiné, ao sul. 

A grande mancha continental do leste é essencialmente povoada por Fulas, embora aqui e além surjam núcleos de Mandingas que, no entanto, vivem em maior número na faixa ao norte do Rio Geba separando Balantas de Fulas.

A localização das «raças» corresponde aproximadamente à área de actividade do inimigo. Por isso a região ao sul do Rio Geba, «chão» de Balantas, Biafadas, Nalus e Sossos, está afectada pela guerrilha. O mesmo se pode dizer da faixa central, povoada por Balantas e Mandingas.

Mas as ilhas atlânticas, a orla marítima ao norte do Geba e todo o leste estão por completo sob o nosso controle, o mesmo podendo afirmar-se da totalidade das povoações e seus arredores.

A fidelidade dos Fulas, já tradicional, é bem conhecida. Injustos seríamos, porém, com outras «raças» se, neste, aspecto, não as colocássemos ao mesmo nível dos Fulas. Há dezenas de aldeias (tabancas) que se defendem sozinhas ontra os ataques dos grupos inimigos. E há milhares de nativos encorporados voluntariamente nas forças armadas e batendo-se com o mesmo ardor e a mesma valentia dos soldados metropolitanos.

É esta participação voluntária da maioria dos nativos guineenses na luta contra o PAIGC, que confirma a inexistência de qualquer sentimento nacionalista verdadeiramente partidário da independência do território.

Não é difícil compreender que, se não tivéssemos do nosso lado a maior parte da população guineense, a nossa situação na Guiné seria hoje insustentável. 

A única dificuldade com que deparamos na Guiné, no que se refere a recrutamento de militares e militarizados, é exactamente não podermos aceitar todos os que se oferecem. Os voluntários excedem de longe os contingentes necessários. Se são precisos 500 homens,  aparecem 4 ou 5 vezes mais e os excluídos deploram vivamente a sua exclusão.

Homens já idosos metem empenhos para ir para a tropa ou para a ela voltarem. Se o inimigo ataca uma tabanca desarmada, a população foge e apresenta-s sistematicamente na unidade militar mais próxima pedindo armas para se defender.

Poder-se-a perguntar: mas então como conseguiu o inimigo aliciar e levar ou ter consigo alguns milhares de nativos?

O PAIGC conseguiu isso inicialmente, empregando o terror, a promessa sedutora ou o rapto. Além disso, nós não tínhamos o dispositivo militar que hoje temos e os nativos, sentindo-se desprotegidos, não tinham outra solução que não fosse seguirem os grupos armados inimigos.

Mas hoje a situação está praticamente estabilizada. Os nativos preferem até acolher-se à nossa protecção. E aqueles que foram com o inimigo para as matas ou para os países vizinhos, não voltam porque o PAIGC não os deixa, chegando a matar os que tentam regressar.

4 - As Nossas Tropas

Contam-se por muitos milhares os nativos guineenses que participam na luta contra o terrorismo, constituindo Companhias e Pelotões de Caçadores, Pelotões de Milícias e grupos de combate especiais, além de guarnecerem as tabancas em autodefesa e de servirem de guias.

As Companhias e os Pelotões nativos de Caçadores têm enquadramento metropolitano e são utilizados como quaisquer outras subunidades do mesmo tipo.

Os Pelotões de Milícias são constituídos por nativos a quem se dá uma instrução reduzida e que depois vão guarnecer determinadas posições e tabancas.

Os grupos de combate especiais actuam ou como os elementos dos Comandos ou como o próprio inimigo.

Os homens válidos das tabancas,  mais ameaçadas pelas infiltrações ou ataques inimigos, são por nós armados mas não têm uniforme nem recebem vencimento algum. São volutários que defendem o que é seu e que não são em geral empregues fora das suas tabancas.

Com esta variedade de elementos obtém-se uma apertada malha ofensiva-defensiva cuja eficiência parece aumentar cada vez mais. Talvez para isso contribua o facto de os melhores elementos irem sempre percorrendo uma escala hierárquica que cada vez lhes concede maiores privilégios e  garantias. Um nativo de uma tabanca que se distinga pode passar a milícia, daqui a soldado e por fim ingressar nos Comandos onde até mesmo os oficiais são guineenses sem necessidade de habilitações literárias especiais.

Compreende-se fàcilmente que desta forma os elementos africanos dos Comandos sejam nativos realmente bons no combate.

Claro que a envergadura do PAIGC não permite, pelo menos por agora, entregar a defesa da nossa Guiné apenas aos nativos guineenses. Daí que a Guiné disponha hoje de um certo número de unidades metropolitanas em reforço à sua guarnição normal.

A eficiência de combate destas unidades tem confirmado as tradicionais virtudes do nosso soldado, em especial no que respeita a coragem, poder de adaptação e espírito de sacrifício.

É evidente que nem todas as unidades apresentam a mesma rentabilidade. Posso porém afirmar que esta rentabilidade é melhor naquelas onde o espírito ofensivo está mais desenvolvido.

Uma norma que adoptei e com a qual não me dei mal,  foi exactamente ir ao encontro do inimigo em vez de o esperar enterrado nos abrigos. Ficamos com certeza fisicamente mais cansados mas mais vale viver cansado que morrer repousado.

E é curioso que o espírito atávico do nosso soldado leva-o em tempo de guerra a preferir a actividade ofensiva a um repouso enganador e perigoso. Vi muitas vezes a satisfação no rosto dos soldados que conduzi ao encontro do inimigo, que obriguei a montar fatigantes emboscadas nocturnas quase consecutivas, que levei a regiões consideradas na posse do inimigo desde o princípio da guerra.

A verdade é que, neste ou em qualquer outro tipo de guerra, só a ofensiva recompensa. E mal de quem pense o contrário. Inclusive as baixas são sempre menos numerosas nas unidades que procuram o inimigo do que naquelas que se limitam a aguardá-lo.

Evidentemente que este espírito ofensivo não pode ser conduzido com imprudência. Há que calcular o risco que se corre. Há que ter imaginação no desenvolvimento das operações. Não se trata de ir pura e simplesmente para a frente pois não só o inimigo é numeroso e está bem armado, como o próprio meio é hostil.

De facto, em muitas operações, são mais as baixas causadas pela insolação, pela sede, pelas abelhas e pelos rios, que as causadas pelo fogo inimigo. Há que preparar bem as acções, dando aos nossos soldados o maior número possível de condições e sem esquecer que eles são por vezes desleixados e imprevidentes.

Inúmeros pormenores têm que ser pensados antes de se lançar uma acção, seja pequena ou grande. A fase da Lua, a altura das marés, a verificação do armamento e do equipamento, o cálculo das rações de combate, tudo isto é apenas uma parte do que um comandante, seja qual for a hierarquia, tem de tomar directamente a seu cargo.

Não poucas vezes deparei com soldados que, por inconsciência ou por comodismo, não levavam o cantil cheio, se esqueciam das redes contra as abelhas, ou tentavam aligeirar-se transportando poucas munições ou pouca comida.

Em outras ocasiões notei a tendência para abrandar a atenção e a vigilância só porque já se estava próximo do quartel, no regresso de uma acção; ou para seguir pelas picadas e trilhos (que em regra estão armadilhados) em vez de progredir a corta-mato (que é mais cansativo mas mais seguro); ou para não sintonizar os postos-rádio antes da partida; enfim, para uma série de pequenos cuidados de que dependem muitas vezes o êxito ou o insucesso.

De uma forma geral, porém, o nosso soldado torna-se motivo da nossa maior admiração e da nossa maior estima. Quem tem a honra de o comandar em combate, é insensívelmente levado a reconhecer que Napoleão tinha razão ao classificar o soldado português como o melhor do mundo.

Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuiram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.

Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores 5 séculos.

E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso.

No campo sanitário, por exemplo, a cobertura hoje existente deve ser das mais completas de toda a África. Diariamente, os médicos e enfermeiros militares observam e tratam milhares de nativos civis. Os casos mais graves são transportados de avião ou helicóptero para Bissau, sistema que talvez em nenhum dos novos Estados africanos seja ainda usado.

A eficiência da assistência sanitária na nossa Guiné tornou-se rapidamente conhecida nos países limítrofes, sendo normal a afluência aos nossos Postos Sanitários fronteiriços de muitos nativos senegaleses e até da República da Guiné.

Sob o aspecto educacional, também a tropa tem desenvolvido muito favorável actividade não só devido às muitas escolas que tem montado e mantido no interior da Província, como também porque oficiais e até seus familiares preenchem hoje lugares de professor no Liceu e nas Escolas Técnicas de Bissau.

As unidades de Engenharia estão dando também o seu contributo à Província, construindo pontes, estradas e edifícios.

E os serviços próprios do Comando-Chefe, secundando o esforço do Comando Militar e em colaboração com o Governo da Guiné, estão reordenando as populações, criando-lhes novas e mais adequadas condições de vida.

5 - O desenrolar da luta

O terrorismo na Guiné começou em meados de 1961, no noroeste, junto à fronteira do Senegal. Foi porém uma actuação esporádica, a cargo do Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Renovada em 1963, esta actuação acabou no princípio do ano seguinte devido não só à eficiente actuação das forças armadas, corno também à falta de receptividade da população nativa composta por F'elupes, Batotes e Banhuns.

Em Janeiro de 1963, o PAIGC iniciou a sua actuação armada no sul da Província, conseguindo infiltrar os seus grupos até ao Rio Geba. Em Julho desse ano passou o rio e levou a insurreição à região florestal do Oio. No princípio de 1964 chegou a Farim e atingiu a fronteira norte.

No final de 1964 grupos inimigos lançaram o pânico entre as populações do nordeste e começaram a actuar no Boé. No princípio de 1965 tentaram passar do Oio para o ector dos Manjacos, a oeste, mas foram mal sucedidos.

É curioso que as características da actuação militar inimiga na Guiné foram distintas das observadas em Angola. Nesta última província o inimigo levou a cabo actos terroristas de extrema crueldade mas os seus grupos quase não dispunham de armas aperfeiçoadas. Só anos depois do início é que apareceram as metralhadoras e os morteiros; ainda hoje as bazucas e em especial os canhões sem recuo são raros.

Na Guiné não houve a crueldade de Angola. Ninguém cortou pessoas aos pedaços. Quando muito, algumas orelhas decepadas a um ou outro nativo que se recusou a deixar-se aliciar.
 

Em compensação os grupos inimigos nunca utilizaram catanas ou canhangulos ("longas» como se chamam na Guiné) mas, logo desde o início, pistolas-metralhadoras, granadas e espingardas de guerra. Sucessivamente e em ritmo acelerado foram aparecendo metralhadoras, morteiros, bazucas, espingardas automáticas, canhões sem recuo, etc., tudo em número excepcionalmente elevado.

E tão elevado que em algumas apreensões de armamento feitas na Guiné como consequência de operações militares, chega-se a apanhar mais material do que em Angola se apanha num ano.

Convém esclarecer que o alastramento da actividade inimiga atrás citado não correspondeu ao movimento ofensivo característico da guerra clássica. Traduziu-se sim por simples infiltrações de grupos armados que depois de realizadas umas tantas acções, recuavam novamente para as bases de partida em território estrangeiro para se reabastecerem e descansarem. 

Deixavam porém o vírus da subversão encontrando facilitada a sua actuação dada a falta de efectivos com que lutávamos. As populações nativas eram levadas a acreditar no PAlGC e, quando resistiam, eram compelidas a acompanhá-lo já que nós ainda não lhes podíamos prestar a devida protecção.

A partir de 1966, porém, a nossa malha militar apertou-se e a situação tendeu a estabilizar-se apesar do constante reforço do inimigo em homens e em armamento, e apesar do PAIGC ter passado a utilizar também o Senegal como base para os seus ataques.

Esta utilização facilitou, aliás, o alastramento da actividade inimiga para oeste, isto é, na direcção do importante sector dos Manjacos, e em toda a faixa fronteiriça do norte, desde Suzana até Cuntima. 

É, no entanto, curioso que a faixa fronteiriça da metade leste da Guiné tem vivido em completa calma - o que se deve ao facto das populações senegalesas fronteiriças serem também da raça Fula, não consentindo na presença dos grupos armados do PAIGC. Já as da faixa central são compostas por Balantas e Mandingas, favoráveis ou pelo menos permeáveis à propaganda inimiga.

em 1968 os grupos do PAIGC vindos do Sul e Sudeste procuraram infiltrar-se até à estrada Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego-Piche mas foram repelidos. Mantiveram, porém, a pressão sobre a cintura de tabancas organizadas em auto-defesa, flagelando-as periodicamente mas nunca se atrevendo a ultrapassá-las com receio de lhes ser cortada a retirada.

6 - A situação actual

Por motivos vários entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo a tendência para se considerar muito pior do que na realidade está.

De facto, na maior parte da Guiné as populações fazem a sua vida normal não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do «chão» dos Manjacos e na quase totalidade da massa continental do Leste.

No resto do território o inimigo faz as suas incursões de surpresa mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas. 

Dentro da política que resolvemos seguir, as bases exteriores do PAIGC são verdadeiros santuários pois nós não as atacamos visto estarem em país estrangeiro. Mas os refúgios inimigos no interior da Província andam sempre a mudar pois as nossas tropas procuram-nos constantemente , quando os detectam, atacam-nos e destroiem-nos sistemàticamente.

Desta forma, é totalmente falso que o PAIGC ocupe realmente e em permanência qualquer parcela da Guiné. Nós vamos a qualquer ponto da província e só em pequenas áreas precisamos, para lá ir, de mais de uma Companhia.

Sem dúvida que o inimigo dispõe de numerosos grupos todos excelentemente armados. Sem dúvida também que a sua actividade é grande, especialmente em flagelações nocturnas a aquartelamentos e povoações, em colocação de minas anti-pessoal e anti-carro e em emboscadas contra as nossas forças, utilizando nestas acções um considerável potencial de fogo.

A verdade, porém, é que, como dissemos, a eficiência militar do inimigo é felizmente muito pequena - isto apesar de já ir possuindo um treino de sete ou oito anos. Regra geral o inimigo debanda após as suas acções, não conseguindo explorar qualquer sucesso inicial obtido pela surpresa. Casos há em que as nossas guarnições, depois de suportarem flagelações de duas e mais horas, ficam sem munições à espera de um assalto inimigo que, afinal, quase nunca se dá.

Por outro lado, os nossos soldados, pretos e brancos, adaptam-se fàcilmente à situação.

Não vamos aqui afirmar que a vida na Guiné de hoje, nas áreas contaminadas, seja boa. Tenho 4 anos dessa vida. Mas se uma unidade adoptar sistemàticamente um espírito ofensivo, as suas possibilidades de viver relativamente sossegada são grandes pois o inimigo passa a receá-la.

Se quisessem os resumir a actual situação militar na Guiné diríamos que o Inimigo:

a) Executa incursões de surpresa em quase todo o Sul, na faixa fronteiriça entre Suzana e Cuntima, e em parte da região entre os rios Cacheu e Geba;

b) Esforça-se por se infiltrar no enorme sector dos Fulas, exercendo pressão em especial a partir do Sul  Sudeste, mas sem que até agora tenha obtido qualquer êxito pois as populações, armadas em auto-defesa e reforçadas pelas nossas tropas, opõem-se abertamente aos seus desígnios;

c) Fazendo base em território estrangeiro, flagela as nossas povoações e aquartelamentos fronteiriços,embora quase sem nos causar baixas, dada a falta de eficácia dos seus fogos.

Quanto às nossas tropas:

a) Ocupam todas as povoações da Guiné e seus arredores;

b) Repelem com relativa facilidade todas as acções inimigas;

c) Impedem o alastramento da subversão e da actividade militar inimiga para fora das zonas inicialmente contaminadas;

d) Executam acções e operações ofensivas em toda a província.

7 - Perspectivas

Em face do que dissemos atrás, quais são então as perspectivas que antevemos para a luta na nossa Guiné?

Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente a guerra.

Por outro lado, nós também temos de compreender que, enquanto o Senegal e a República da Guiné constituirem santuários para o inimigo, nunca mais poderemos acabar com a guerrilha. Ainda que empurrássemos o PAIGC até às fronteiras, não poderíamos depois impedir que ele se infiltrassem novamente dada a característica especial dos grupos de guerrilheiros.

Portanto, no que nos respeita, o problema não é só militar, é também político: desde que consigamos levar os governos de Dakar e de Conakry a alterar a sua política de protecção ao PAIGC, este não terá quaisquer possibilidades militares de se manter.

 O difícil está porém em conseguir alterar a política do Senegal e da República da Guiné, países que estão solidamente integrados na engrenagem internacional de apoio aos movimentos subversivos.

Quanto ao PAIGC, ele sabe que conta com largo apoio internacional quer no campo político quer no auxílio financeiro, social e militar.

Sucede porém que, apesar de todo este auxílio, o PAIGC não pode, sem grave risco próprio, prolongar muito mais tempo a luta. As condições em que actuam os seus grupos armados são duríssimas, mesmo para nativos africanos habituados a poucas ou nenhumas comodidades. Falta-lhes comida, roupa, alojamento e remédios. Só o armamento e as munições são abundantes, embora sempre mal conservados.

Além disso quer os guerrilheiros quer a população que está sob seu controle, começam a dar sinais de saturação e de desilusão. Começam a não acreditar em Amílcar Cabral que todos os anos lhes promete ganhar a guerra, sem nunca o conseguir.

Com o cansaço físico e moral, surge mais nítida a secular rivalidade entre os guineenses e os cabo-verdianos que militam no PAIGC. Mais difícil se torna portanto a direcção do partido que tende a perder coesão.

Ora Amílcar Cabral sabe tudo isto. E sabe que ou acelera a luta ou a perde.

Admitimos por isso que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.

Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomátíco ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto a armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos,

No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo - tanto mais que sabemos ele estar sendo apoiado pela OUA e por grande
parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.

De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que a um esforço maior do inimigo respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.

[Digitalização / revisão, fixação de texto e atualização ortográfica, e negritos, para efeitos de publicação neste blogue:  LG. ]



Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné, um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... 

Foi comandante do Comando de Agrupamento n.º 1980 (Bafatá, 1967/68), como o posto de ten cor inf e do Comando de Agrupamento n.º 2957 (Bafatá, 1968/70), já com o posto de cor inf. A qui é de destacar o planeamento e  a execuação da Op Mabecos Bravios (evacução do aquartelamento de Madina do Boé, de trágicas consequências, sector do Gabu, 2-7 fev 1969) e a Op Lança Afiada (Sector l1, 8-19 de março de 1969). 

Mas antes tinha passado pelo comando do BCAÇ 239 (Bula, São Domingos e Farim, 1961/63), e ainda pelo BCAÇ 507 (Bula, 1963/65),  o que lhe permitiu conhecer bem o início da luta armada desenvolvida pelo PAIGC, sobretudo a partir de 23/1/1963. Passou ainda pelo comando do BART 1914 (Tite, 1967/69). Ao todo, esteve quatro anos no CTIG.

Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas). Um oficial intelectualmente brilhante, professor a Academia Militar,  mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos.

Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, em 1970, foi passado compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. (Estava m Angola nessa altura; e sempre se considerou vítima de um saneamento político-militar.)

Tem meia centena de referências no nosso blogue.

Foto gentilmente cedida pela filha, dra. Helena Felgas, advogada, colega e amiga do nosso saudoso camarada Jorge Cabral, e com quem estive no funeral do pai (LG).
__________

Nota do editor:

(*) Vd. Último poste da série > 22 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23284: Documentos (39): Amílcar Cabral, a "honra militar" e o assassinato dos 3 majores e seus acompanhantes, no chão manjaco, em 20/4/1970: acta (informal) do Conselho de Guerra do PAIGC, Conacri, 11 de maio de 1970, um "documento para a história"

quinta-feira, 24 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23107: (In)citações (201): Invasão da Ucrânia pela Federação Russa (3): Similitudes (Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec Inf do CMD AGR 2957)


1. Em mensagem datada de 22 de Março de 2022, o nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf do CMD AGR 2957, Bafatá, 1968/70), a propósito da invasão da Ucrânia pela Federação Russa, fala-nos de similitudes.


“SIMILITUDES”

Como primeira e principal similitude, Putin e Hitler como não podia deixar de ser. Ambos ditadores.

Hitler pretenderia conquistar toda a Europa, senão todo o mundo. Putin como o próprio já referiu, pretende conquistar os suficientes países, senão muitos mais, para refazer o império dos czares.

Para o fim em causa, Hitler, à revelia das imposições do pós guerra de 14/18 e um tanto à custa do povo alemão, rearmou-se. Putim, também além de se rearmar, contou e conta, com a herança nuclear da União Soviética, em grande parte vinda precisamente da Ucrânia.

Hitler elejeu os judeus como bodes expiatórios, ao que o povo alemão aderiu. Putin colocou na mesma plataforma os americanos, pois sob muitos aspetos não são “flores que se cheirem”.

Hitler, para “experimentar” os outros países, começou por anexar a Renânia e mais tarde a Áustria e a Checoslováquia. Cobardemente, ou não, o resto da Europa aceitou e não cortou o mal na origem. Putim anexou a Crimeia e mais tarde, de forma perfeitamente despótica, implementa a independência dos territórios de Donetsk e Lugansk.

Na sequência da anexação da Áustria, Hitler, sentindo que a Europa continuaria estática e até porque tinha estabelecido um acordo mais ou menos secreto com a União Soviética, invade a Polónia na chamada “blitzkrieg”. Os soviéticos invadem também pelo leste e tomam a sua cota parte no “repasto”. Putin invade a Ucrânia, no que ele também achava ser uma “blitzkrieg”. Não o está a ser, mas ainda resta saber que quota parte levam os chineses, pois parece haver uma similitude com o caso Hitler-Stalin.

Pobres ucranianos, com uma nova similitude. Em 1931/33, Stalin, antevendo uma próxima supremacia da Alemanha pois Hitler se estava a rearmar, também tenta fazer o mesmo. Com a mesma finalidade e com a desculpa da formação dos Kolkozes, manda as tropas para a Ucrânia e saqueia toda a produção agrícola para vender à Europa. Morreram nessa altura, à fome, cerca de 15 milhões de ucranianos, HOLODOMOR, como ficou conhecida esta mortandade. O cheiro a cadáver era em todo o lado insuportável. Agora, a tentativa de Putin fechar a Ucrânia ao mar Negro, impossibilitando as exportações de cereais, parece ter os mesmos propósitos.

Se a última guerra foi uma guerra de Hitler agora, ainda mais, será e só, uma guerra de Putin.

A última guerra foi considerada mundial. Neste momento também está a começar a ser considerada uma guerra mundial por força da economia, sim, porque presentemente, mais do que as armas, a fraca economia fará tantas ou mais vítimas. Não esqueçamos ainda outra arma que é a cibernética.

Para já, a última similitude possível. Hitler sofreu vários atentados a que sobreviveu, mas por último deu um tiro na cabeça…

E para terminar tenho a dizer que já não tenho idade para ir combater, mas sabendo que Portugal mandou para lá, via Roménia, armamento incluindo espingardas G3, só espero que nessa remessa esteja incluida a G3 que me estava distribuida na Guerra da Guiné.

Porto, 18 de Março de 2022
Fernando Gouveia

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Março de 2022 > Guiné 61/74 - P23104: (In)citações (200): Invasão da Ucrânia pela Federação Russa (2): Glória à Ucrânia! Glória à sua Infantaria!... (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22998: Humor de caserna (43): Em dia de namorados, uma história pícara, o furriel sedutor e a filha do senhor Tenório de Bafatá (Fernando Gouveia, ex-alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > Vista aérea > Em primeiro plano, o rio Geba, à esquerda, e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962, tendo sido construído - segundo a informação que temos - por militares de uma unidade aqui estacionada ainda antes do início da guerra).

Ainda do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Ao fundo, ao alto da avenida principal, já não se chega a ver o troço da estrada que conduzia à saída para Nova Lamego (, que ficava a nordeste de Bafatá); havia um a outra, alcatroada, para Bambadinca, mas também com acesso à estrada (não alcatroada) de Galomaro-Dulombi, povoações do regulado do Cosse, que ficava a sul. À entrada de Bafatá, havia uma rotunda. ao alto. Para quem entrava, o café do Teófilo, o "desterrado", era à esquerda..

Do lado direito pode observar-se as traseiras do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, que representava os interesses da CUF, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... comas meninas do Bataclã.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*ª)


1. O
Fernando Gouveia foi Alf Mil Rec Inf, Cmd Agr 2957 (Bafatá, 1968/70), é autor de, entre outras séries notávais, "A Guerra Vista de Bafatá (Fernando Gouveia)" de que se publicaram cerca de 9 dezenas de postes, é arquitecto reformado, transmontano, vive no Porto; tem cerca de 170 referências no nosso blogue.

Da série "A Guerra Vista de Bafatá" fomos "respigar" esta deliciosa história (*), que vem a propósito do Dia dos Namorados, 14 de fevereiro. Quem passou por Bafatá, vai adorar o texto (e o contexto) (**)


A Guerra Vista de Bafatá > 15 > Uma estória de faca e alguidar


Por Fernando Gouveia


Antes de entrar propriamente na novela,  refiro que nos finais de 1969 o meu Comandante, Coronel Hélio Felgas, foi apanhado de surpresa. Uma ordem de Bissau, talvez forjada pelo recente Comandante do COP de Nova Lamego [COP 5]   e as elites do ar condicionado da capital, transferia-me a mim e mais alguns militares, do Comando Agrupamento 2957 para o COP. Quer eu, quer os meus superiores, achámos que foi um golpe baixo.

Confiando no Coronel Felgas que me disse que eu não estaria lá muito tempo. Foi só esperar que aparecesse outro alferes disponível para me substituir e eu regressei. Ao fim de uns quinze dias estava novamente em Bafatá, no Cmd Agr 2957. O Alf Mil Correia substituiu-me em Nova Lamego.

No Gabu, onde não me recordo de fazer o que quer que fosse relacionado com a guerra, conheci o Fur Mil Dinis (nome fictício), o protagonista desta estória, com quem aliás bebi uns bons whiskys.

Passado pouco tempo o Coronel Felgas acaba a comissão e o Coronel Neves Cardoso vai substitui-lo no Comando de Agrupamento. Com ele vem todo o pessoal afecto ao COP 5, incluindo o nosso Fur Mil Dinis.

Em princípios de 1970,  a guerra ia correndo com mais ataque, menos ataque, mais mina, menos mina e em Bafatá, oásis de paz, a vida corria entre o trabalho no aquartelamento, as idas ao café depois de almoço (quando não se dormia a sesta) e as idas ao cinema.

Tudo isso era propício ao devaneio.

O nosso Fur Mil Dinis, nas suas saídas para a cidade, começou a frequentar mais assiduamente determinada casa comercial. Era perto do quartel, comia-se lá bem, era agradável permanecer na esplanada, mas sobretudo o senhor Tenório (nome fictício) e a sua esposa tinham uma filha, a Rosinha (nome fictício),  de uns dezanove anos, que embora cheiinha não era nada de se deitar fora.

O nosso Furriel viu ali uma companhia que o faria esquecer as agruras da guerra.

Penso que um namoro se tinha desencadeado. Naquela altura, há 40 anos, e dado que a Rosinha não saía debaixo das saias da mãe, a coisa não teria ido além de algum beijito trocado num intervalo das idas da mãe à cozinha.

Imagino, naquele clima, que o nosso Furriel devia andar nas nuvens. Porém o Dinis cometeu um erro grave. Como militar que era,  não devia ter subestimado o adversário, que neste caso era o pai da Rosinha. O senhor Tenório, raposa velha, homem de pele curtida de trinta anos de Guiné, embora atarracado mas entroncado como um touro de lide, vivido como era, meteu-se ao caminho até ao Comando de Agrupamento.

Não o vi por lá mas logo a seguir, o Ten Cor Teixeira da Silva chama-me e em termos de desabafo diz-me:

 Oh,  Gouveia, sabe quem esteve aqui? Foi o senhor... Tenório!. Queria saber informações sobre o Furriel Dinis,  pois ele anda de namoro com a filha, a Rosinha, e era minha obrigação dizer-lhe tudo, nomeadamente que ele era casado…

Faltaria um mês para o Furriel Dinis acabar a comissão, mas à parte final fui assistindo eu diariamente: o Furriel Dinis nunca mais saiu do quartel até ir embora.

Tudo é real, excepto alguns nomes.

Fernando Gouveia

2. Fichas de unidades:


Comando de Agrupamento n.º 2957

Identificação: CmdAgr 2957
Unidade Mob: RAL I - Lisboa
Crndt: Cor InfHélio Augusto Esteves Felgas | Cor Art José João Neves Cardoso
CEM: TCor Cav Emanuel Xavier Ferreira Coelho ! TCor Inf Artur Luís Félix Teixeira da Silva
Divisa: -
Partida: Embarque em 09Nov68; desembarque em 15Nov68 | Regresso: Embarque em 19A9070

Síntese da Actividade Operacional


Em 18Nov68, rendendo o CmdAgr  1980,assumiu a responsabilidade da zona Leste, com sede em Bafatá, e abrangendo os sectores de Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego e depois os novos sectores, então criados, com a consequente reformulação dos respectivos limites, em Piche, em 24Nov68 e em Galomaro, em 07Nov69. 

De 11Mar69 a  11Out69 e de 26Jul69 a 06Nov69, foram ainda constituídos, transitoriamente, na zona Leste, o COP 5 e COP 7, respectivamente e criado, em 26Jun70, o COT I.

Desenvolveu a sua actividade de comando e coordenação dos respectivos batalhões e das forças atribuídas de reforço, planeando, impulsionando e controlando a respectiva actuação que foi, essencialmente, de patrulhamento, reconhecimento e de contacto com as populações e de acções sobre grupos inimigos infiltrados, com destaque para as operações "Lança Afiada", "Baioneta Dourada" e "Nada Consta", entre outras. 

Em 02/07Fev69, planeou e executou a operação "Mabecos Bravios", respeitante à evacuação dos aquartelamentos de Madina do Boé, Béli e Ché-Ché.

Em 001IAg070, já na fase de sobreposição com o CmdAgr 2970, passou a integrar o CAOP Leste, então organizado por despacho ministerial de 20Jun70, pelo que foi extinto e o seu pessoal recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 121 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM).

Fonte - Excerto de: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.35..


Comando Operacional nº 5

Identificação: COP 5
Cmdt: Cor Art José João Neves Cardoso
Início: 15Mar69  | Extinção: 11Out69

Síntese da Actividade Operacional

Este comando foi criado com a finalidade de actuar contra a ameaça inimiga sobre os regulados do Pachisse, Maná, Chanha, Tumaná de Cima e Cancumba e sobre a região de Nova Lamego, com vista a assegurar a coordenação da actividade operacional dos comandos de batalhão - BCaç 2835 e BArt 2857 - e das respectivas forças ali instaladas.

Em 15Mar69, assumiu a responsabilidade da zona de acção, com a sede em Nova Lamego, abrangendo os sectores de Nova Lamego (Sector L3) e Piche (Sector L4), tendo ficado subordinado directamente ao Comando-Chefe, a partir de 25Abr69.

Desenvolveu intensa actividade operacional, comandando e coordenando a acção das unidades atribuídas em acções de patrulhamento, batidas, emboscadas e de defesa e controlo das populações.

Em 11Out69, o COP 5 foi extinto, voltando os comandos de batalhão a assumir a responsabilidade completa dos respectivos sectores e as zonas respectivas a ficarem novamente na dependência do CmdAgr 2957.

Observações > Não tem História da Unidade.


Fonte - Excerto de: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.607. (Com a devida vénia...).

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de novembro de  2009 > Guiné 63/74 - P5232: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (15): Uma estória de faca e alguidar

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16672: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (16): o caso do soldado básico auxiliar de cozinheiro Miranda (Tino Neves, ex- 1º cabo escriturário da CCS / BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)



Guiné > Região do Gabu > Nova Lamego > CSS/BCAÇ 2893 (1969/71) > O 1º cabo escriturário Constantino (Tino) Neves e o sold básico auxiliar de cozinheiro Miranda, em missão de PU - Polícia de Unidade. "A foto foi tirada no salão do cinema de Nova Lamego, numa festa de variedades, em que actuava uma cantora vinda da Metrópole, do Seixal, e eu estava de cabo de dia. Como o furriel destinado à Polícia da Unidade (PU) se tinha baldado, o oficial de dia, o capitão, comandante da CCS, mandou-me substituir o furriel, e assim aproveitei para ir assistir às variedades".  O Miranda, acusado justa ou injustamente de ser "amigo do alheio", acabou por "fugir" para o PAIGC...

Foto (e legenda): © Tino Neves (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


1. Este texto, que se segue,  esteve para ser publicado em abril de 2007, chegou mesmo a ser editado sob o nº 1645, e depois retirado; devia inaugurar a série "Estórias do Gabu" (*)...

Por razões editoriais, ficou em "stand by": considerava-se, na época. que o tema da "dcserção" era delicado, polémico  e até fracturante; por outro lado, havia algum pudor em identificar o militar em causa, pertencente à CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71).

 Acabámos por publicá-lo em 10/11/2012, com pequenas alterações (*).  Afinal, é a história (pública) de um "desertor" (, "fujão", era o termo ainda cru e cruel, que vinha no título da "estória do Gabu"), contada por um camarada, o Constantino Neves,  que com ele privou e conviveu...

Toda a gente da CCS/BCAÇ 2893 sabia da história e muita gente inclusive terá acabado,    sem o querer,  por empurrar o Miranda, para os braços do inimigo de ontem... Não vemos hoje razões para esconder o seu rosto, mais de 45 anos passados sobre o acontecimento.

De resto, este militar, que foi nosso camarada,  é apenas identificado pelo apelido, como era prática comum na tropa.  Não sabemos nada sobre o seu paradeiro atual, nem sequer sabemos se ainda estará vivo.  Mais: não sabemos pormenhores sobre a sua saída do quartel (velho) de Nova Lamego nem sobre a sua eventual colaboração com o IN.

Convém lembrar que este caso se passou em 1970 por volta de março/abril de 1970. Em 15 de novembro desse ano, Nova Lamego é atacado em força, brutalmente,  pelo PAIGC,  originando 3 mortos entre as NT, 4 feridos graves, 8 ligeiros, 8 mortos entre a população, 50 feridos graves, 30 ligeiros (**)...

Não sabemos se a traição do Miranda foi ao ponto de fornecer informações preciosas, ao PAIGC, sobre o quartel (velho) e a vila de Nova Lamego. A verdade é que esta flagelação  a instalações militares e civis nossas foi das mais graves e "cegas" de que eu tive conhecimento, no leste, no meu tempo (maio de 1969/março de 1971). Também não sabemos se o Miranda nesta altura ainda estava nas fileiras do PAIGC, se é que alguma vez esteve... Entre o mito e a realidade, é sempre difícil descobrir a verdade (***)...

A  ter sido um caso de deserção (e tecnica e juridicamente foi), parece-nos um caso "atípico"... [Ou talvez não, veja-se o que esteve na origem de outra "deserção", já aqui relatada, a do fuzileiro António Trindade Tavares, o célebre G3 (**), Ambas  são histórias que, antes de provocarem a nossa indignaçãoo, devem merecer a nossa compaixão.]

Sobre o Miranda não encontrámos qualquer registo no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares. De resto, sobre os "nossos desertores" o Arquivo Amílcar Cabral é pobrezinhho... (LG)


2. O texto a seguir é da autoria  do nosso camarada Constantino (ou Tino) Neves, ex- 1º cabo escriturário da CCS / BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71) (*)


Conheci em tempos um camarada nosso que, em Nova Lamego, desertou para o PAIGC. Não me compete fazer juízos de valor sobre o seu comportamento.

Trata-se do soldado auxiliar de cozinheiro [, de apelido Miranda], de que mando foto, em que está marcado com uma seta a branco...

A foto foi tirada no salão do cinema de Nova Lamego, numa festa de variedades, em que actuava uma cantora vinda da Metrópole, do Seixal, e eu estava de cabo de dia. Como o furriel destinado à Polícia da Unidade (PU) se tinha baldado, o oficial de dia, o capitão, comandante da CCS, mandou-me substituir o furriel, e assim aproveitei para ir assistir às variedades.

O soldado Miranda,  já era velhinho (de 1966), e fora mobilizado para a Guiné, por castigo, pelo vício que tinha,  dizia-se, de se "apropriar do alheio", vício de que não se curou, tendo assaltado um dia, aliás uma noite, a Sala do Soldado,  e roubado 20.000$00 [, vinte contos], o que era bastante dinheiro na altura. [Equivaleria hoje a 5.698,45 €. (LG)]

Em fevereiro de 1970, o Miranda  foi punido com 10 dias de prisão disciplinar agravada e em março de 1970 novamente com mais 10 dias de prisão disciplinar agravada, referente ao mesmo delito, dados por Bafatá [Comando de Agrupamento 2957].

E, em face disso, nós dizíamos-lhe que ele iria apanhar 20 anos, 1 ano por cada conto roubado, quando a Ordem de Serviço (O.S.) chegasse ao general Spínola. O pobre coitado acreditou, de tal maneira que pediu a um elemento civil, a trabalhar no quartel (velho), nas limpezas, para que o ajudasse a fugir e que o levasse para junto do PAIGC. O pedido foi aceite, e ele fugiu.

Mais tarde, em alguns ataques, foram deixados nos locais de onde nos atacavam, vários papéis supostamente escritos pela mão do soldado Miranda, a solicitar para que fizéssemos o mesmo, que seríamos bem recebidos, como ele, que estava muito satisfeito, porque agora ele era o cozinheiro de serviço dos guerrilheiros.

Também havia relatos de que, em várias emboscadas, chegaram a ouvir ex-militares portugueses a gritar do outro lado, dizendo o seu nome, posto e nº mecanográfico, e que se entregassem, porque estávamos do lado errado.

Portanto, o soldado básico Miranda. não fugiu por motivos políticos, mas sim por medo à prisão. Isto é o que eu presumo. De qualquer modo, era uma situação diferente da de outros, desertores ou refractários, que, na metropóle, arriscaram a fuga nos Altos Pirinéus e a possibilidade de serem capturados ou mesmo alvejados pela polícia.

Um Abraço
Tino Neves


3. Comentários do editor, do autor e de Rogério Cardoso (*)

(i) Editor:

Tino: O teu camarada Miranda, soldado básico, auxiliar de cozinheiro (como outros soldados básicos que eu conheci, já com antecedentes "disciplinares"...), seria apenas um "pobre diabo", como se  pode deduzir da tua versão dos acontecimentos.

 Não sei se ele ainda é vivo e tem família, amigos, vizinhos, se vive algures em Portugal, e até se poderá vir a ter conhecimento deste poste... Espero bem que sim, que esteja vivo e de boa saúde, e que inclusive nos possa ler.

Como sabes, o nosso blogue não é nenhum tribunal (muito menos militar). E não fazemos  justiça, muito menos por nossas próprias mãos. Como qualquer um de nós que passou pelo TO da Guiné, o teu camarada Miranda  tem o direito ao bom nome e reputação,  tem direito a defender-se, se for caso disso, das acusações que lhe foram feitas.

Hesitámos em identicá-lo, mesmo através do apelido:  mas hoje já não faz qualquer sentido, a punição dele vem na Ordem de Serviço do batalhão, e na história da unidade, possivelmente disponível no Arquivo Histórico Militar para consulta de qualquer um de nós. E depois a deserção é um ato tão público como os demais que aqui relatamos e relembramos todos os dias: os ataque,  flagelações ou emboscadas no dia tal e  tal, as baixas que tivemos, os louvores, etc...

Já tinhamos publicado esta estória, sem a identificação clara do militar em causa... Mas afinal  o caso é público e notório, podendo toda a gente da tua CCS corroborar, confirmar ou infirmar a tua versão dos factos. Sabes disso, e por isso também não podem ser postas em causa a tua palavra e a tua boa fé... Já a memória pode ser mais traiçoeira..,

Como tive ocasião de te dizer,  esta história teve uma vida atribulada no blogue. Deveria ter sido a estória do Gabu nº 1. Não o foi. Hoje, que voltamos a abrir o dossiê dos "desertores", achamos que ela ser publicada, apenas com um título diferente daquele que tinhas sugerido, em que chamavas "fujão" ao teu cmarada... "Desertor" é uma palavra feia para a maior de nós, ex-combatentes, mas "fujão" ainda é mais...

Tino, quero que saibas que tens jeito e talento para contar estas histórias de caserna, passadas na "tua" Nova Lamega, de que tambéns boas recordações. Obrigado pela tua colaboração. E continuamos sempre à espera de mais. De resto, és um membro da nossa Tabanca Grande, de longa data,  sempre solícto e prestável. Boa saúde, longa vida e excelente memória.


(ii) Tino Neves

Uns anos atrás, um camarada da minha companhia contou-me que ele, o "fugitivo", quando regressou à sua terra natal, foi recebido como um herói, com recepção e tudo.

Tentei contactá-lo mas não consegui. Desconheço o seu paradeiro.

(iii) Rogério Cardoso

Eu também concordo, que a fuga teve a ver com o medo à provável quantidade de anos de prisão   que iria ter pelo furto e antecedentes, e que no fim era um pobre diabo, que a sua deserção não era por motivos politicos, o que na altura era o mais grave.

Pois se outros fugiram, individuos com grandes responsabilidades de comando, como oficiais, e foram desculpados e até candidatos a altos cargos da Nação, porque não este moço?

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10645: Estórias do Gabu (7): O soldado básico que um dia se passou para o lado do inimigo...

(**) 15 de julho de 2016 >  Guiné 63/74 - P16305: Efemérides (233): 15 de novembro de 1970, às 11 da noite, o quartel e a vila de Nova Lamego são violentamente flagelados com fogo de 4 morteiros 82, durante 35 minutos... 3 mortos entre as NT, 4 feridos graves, 8 ligeiros; 8 mortos entre a população, 50 feridos graves, 30 ligeiros... Valeram-nos os Fiat G-91 estacionados em Bafatá... Spínola mandou construir um quartel novo, fora da vila, inaugurado em 31/1/1971 (Tino Neves, ex-1º cabo escriturário, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)

(***) Vd. último poste da série > 27 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16647: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (15): Desertor era o militar que (i) foi incorporado, (ii) estava nas fileiras e (iii) as abandonava ao fim de algum tempo... Desconfio um bocado do número de desertores que foi avançado pelos historiadores Miguel Cardina e Susana Martins, se for aplicada a definição exacta dos regulamentos da época (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

domingo, 18 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16499: Memória dos lugares (347): Samba Juli, Sansancuta e Demba Tacobá, tabancas fulas em autodefesa, a sudeste de Bambadinca, para as quais foi destacado por mês e meio, em 20/7/1969, o 3º pelotão da CPM [, Companhia de Polícia Militar,] 2537 (Bissau, 1969/71), a que pertencia o sold cond auto Jerónimo de Sousa, hoje secretário geral do PCP


Foto nº 1 > Samba Juli


Foto nº 2 > Samba Juli


Foto nº 2 A  Samba Juli > Canto superior esquerdo


Foto nº 2 B > Samba Juli > Canto superior direito


Foto nº 2 C  > Samba Juli > Canto inferior esquerdo


Foto nº 2 D > Samba Juli > Canto inferior direito


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > c. 1969/70 > Samba Juli, tabanca fula em autodefesa, do regulado de Badora... A tabanca era já guarnecida por valas, em todo o seu perímetro (linha a verde), e por duas fiadas de arame farpado (linhas a amarelo)... Havia ainda abrigos, construídos ou em construção, em cada em dos cantos do perímetro e eventualmente no eixo central (retângulo a vermelho). A tabanca de Demba Tacobá não deveria ser muito diferente.

Sabemos que em fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sediada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)...

Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer,  não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos nharros da CCAÇ 12... Em dezembro de 1969, Beja Santos também veio, e Bambadinca, a Samba Juli, fazer um transporte de doentes, com o seu Pel Caç Nat 52, quando já tinha deixado Missirá e foi para a sede do BCAÇ 2852... A lealdade dos fulas (ou a sua aliança política com os tugas contra o PAIGC) era paga com estes e outros serviços: transporte de doentes, transporte da mancarra, reforço da autodefesa... Eles confiavam em nós, nós confiávamos deles.. Foi por isso que não os deixámos à mercê do terrível Mamadu Indjai...

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)


Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís & Camaradas da Guiné]



1. Em 10 de julho de 1969, a CPM; [, Companhia de Polícia Militar,] 2537, a que pertencia o sold cond auto Jerónimo de Sousa (hoje secretário-geral do Partido Comunista Português), tendo chegado ao CTIG em finais de maio de 1969, "cedeu um pelotão para reforço do BCaç 2856, que se instalou em Bafatá", sede do Comando de Agrupamento 2957, comandado pelo cor inf Hélio Felgas...

O pelotão terá ido de Dakota de Bissau para Bafatá.  Dez dias depois, em  20 de julho de 1969, este pelotão, comandado por um alferes, "seguiu para o setor do BCaç 2852 [, Bambadinca, Setor L1], para organizar a autodefesa de Samba Juli, Sansacuta e Demba Tacobá"...  

Segundo entrevista dada por Jerónimo de Sousa à revista "Visão" (edição nº, 1216, de 22/6/2016), esta missão ter-se -á prolongado por 47 dias,  "após o que recolheu para Bissau" [, portanto, em princípios de setembro de 1969].

Não era "normal" uma companhia de polícia militar (CPM) "alinhar no mato",  e para mais logo no início da comissão...  Já em 7 de julho de 1969,   esta CPM 2537 (Bissau, junho de 1969 / fevereiro de 1971; comandante: cap cav Hernâni Anjos Moás, hoje cor cav ref) tinha destacado  efetivos para reforço temporário (mês e meio) dos destacamentos de Rossum, Uaque, Jugudul e Infandre, no setor do BCaç 2885 (Mansoa, 1969/71).

Em ambos os casos eram missões para as quais as CPM  não se encontravam preparadas nem dispunham do material necessário: CPM 2537, mais concretamentem, foram confiadas "missões  de reforço às tropas de quadrícula e montagem da autodefesa de algumas tabancas" (nas região do Oio e de Bafatá).

No início da estação das chuvas do ano de 1969, as tabancas dos regulados de Padada (como Madina Xaquili), Corubal (Afiá, Candamã), Cossé e Badora, ficaram seriamente ameaçadas pela   ofensiva do IN, e nomeadamente pelo  bigrupo comandado por Mamadu Indjai, um grande chefe de guerrilha (que comandava o setor do Xime/Xitole). Spínola cometera um grave erro ao desguarnecer, com a retirada de Beli, Madina do Boé e Cheche, a defesa da margem direita do Rio Corubal... tornando mais vulneráveis os regulados de Padada, Cossé, Corubal e Badora...

No mês de Julho de 1969, a actividade do IN no Sector L1 (Bambadinca) foi intensíssima com ataques ou flagelações a diversas subunidades e tabancas, ou emboscadas nas imediações (indicam-se a seguir as localidades e entre parênteses o dia)... Grande parte destas ações têm a assinatura do comandante do PAIGC, na região, o temível Mamadu Indjai. Aqui vai uma listagem das ações do IN, no setor L1 (dia do mês de julho entre parênteses):

Dulombi (1),
Paia Numba (10),
Padada 2E4 (14),
Missirá (15),
Cansamba (15),
Madina Alage (15),
Cansamba (20),
Dulombi (24),
Mansambbo (24),
Xime (24),
Madina Xaquili (24),
Quirafo (25),
Xime (26),
Mansambo (27),
Madina Xaquili (28),
Dulombi (29),
Mansambo (30)
e Candamã (30)...

Demba Taco, Samba Juli e Sansancuta foram as 3 tabancas por onde o 3º pelotão da CPM 2537, o do Jerónimo de Sousa,  foi dividido. O pelotão era comandado por um alferes que acabou de ser evacuado, de Bambadinca para o HM 241 e, mais tarde, para a metrópole.

Um mês antes tinha  siodo enviado à pressa o alf mil  pel rec info Fernando Gouveia para Madina Xaquili, setor de Galomaro... Era um "homem de secretaria", não era um operacional, colaborador direto do cor inf Hélio Felgas,  comandante do Cmd Agr 2957 (Bafata, 1968/70)...  É preciso perceber que, na época, Spínola mobilizou toda a malta disponível para defender o chão fula, no seu flanco sul, face à ameaça do Mamadu Indjai... 

Jerónimo de Sousa e o seu pelotão não foram, pois, vítimas de nenhuma ação disciplinar, como se poderia deduzir, erradamente, do texto da "Visão", assinado pelo jornalista Filipe Luís.

Segundo Jerónimo de Sousa, Demba Tacobá (vd. carta de Duas Fontes) (nâo confundir com  Dembataco, no subsetor do Xime)  , foi a tabanca que lhe coube em sorte... Na altura nem arame farpado tinha... Os PM tiveram de abrir valas e  viver em condições precárias nas  moranças (palhotas) que lhe foram destinadas. 


Guiné > Carta da província (1961) > Escala 1/500 mil... Posição relativa das tabancas de Samba Juli e Demba Tacobá a sudeste de Bambadinca. Sansancuta ficava entre as duas.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12648: O segredo de... (17): O maior frio da minha vida (Fernando Gouveia)

1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf, CMD AGR 2957, Bafatá, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2014:


O Segredo De… e ainda a propósito de Mafra

O maior frio da minha vida

Presentemente não se pode considerar propriamente um segredo mas, na altura em os factos aconteceram, tive que me abster de falar nesse assunto para eventualmente não sofrer represálias dos meus superiores, instrutores, na classificação final da especialidade, determinante para a mobilização, ou não, para a guerra.

Começo novamente por lembrar a muita sorte que tive na tropa e na guerra:
Nas marchas finais da especialidade que duraram quatro dias o meu PEL REC foi escolhido para representar, nessa guerra de quatro dias, o inimigo. Enquanto o resto da tropa percorreu a pé talvez mais de uma centena de quilómetros, nós, o IN tínhamos à disposição uns “jeepões” para nos deslocarmos sempre à frente dos outros para lhe fazermos as emboscadas e outras tropelias. 

Recordo, agora com tristeza, que quando íamos, de jeep, a subir para o cimo da serra de Montejunto passámos por “uma guerra” que ia a subir a pé. Nessa coluna de pessoal ia um cadete meu conhecido, o Brandão, a quem acenei mas não obtendo qualquer resposta dado o seu cansaço. Digo com tristeza, porque ele veio a falecer na Guiné, na zona de Mato Cão, num estúpido acidente com uma arma capturada ao IN.

Caminho que levava ao cimo da serra 
Foto: All 4 Running, com a devida vénia 

Num à-parte e sobre o cansaço, andando mesmo os quatro dias sempre de jeep, acabei por nunca dormir. Na última noite armámos a tenda, com os habituais três panos, debaixo de uma oliveira. Peguei no sono e passado uma ou duas horas fui acordado dizendo-me que já estava todo o pessoal em marcha. Perguntando aos meus dois camaradas de tenda, porque não me acordaram, a resposta foi:
- Então não ouviste a granada que rebentaram no meio do acampamento?

Não, não tinha ouvido.
Feita a guerra que tínhamos que fazer nesse dia e já noite escura, foram-nos posicionar mesmo no cimo da serra. Era Agosto e lembro-me que nesse dia à tarde andámos a tomar banho numa lagoa. Porém no cimo da serra, de noite, estava nevoeiro, havia muito vento e um frio terrível. Estávamos só de camisa pois era verão.

Durante algum tempo estivemos todos encostados a um pequeno muro. Também, como era costume em casos semelhantes, fomo-nos encostando uns aos outros para conservar melhor o calor corporal. Alguns camaradas e eu próprio tentámos acender uma fogueira mas tornou-se impossível por estar tudo molhado. A situação estava a tornar-se insuportável, pelo menos para mim. Agora à distância posso dizer que efectivamente foi o maior frio que apanhei na minha vida.

Passado algum tempo, não aguentando mais a situação saí do local e comecei a andar, às escuras pelas imediações procurando algum local mais abrigado, quiçá um buraco, mesmo de bicho, onde me meter.
Alargando mais o meu raio de acção, em plena escuridão, às apalpadelas, a cerca de cem metros, fui dar com um jeep de capota de lona com alguém lá dentro nos bancos da frente. Instrutores pela certa. Como o meu desespero era grande e correndo o risco de ser escorraçado dali, resolvi, sem fazer barulho, entrar para a parte de trás do jeep, pensando eu que com assobiar do vento não me iriam ouvir.
Levantei parte da capota e entrei.

Os bancos, laterais, eram metálicos, frios portanto, mas como aí havia muitas cartas militares envoltas em plástico coloquei algumas num banco e cobri-me com as outras. Estando eu nesses preparos ouvi uma voz ensonada vinda da cabine:
- Tenham cuidado com isso.

Não dormi mas estive ali toda a noite no quente e com uma diversão suplementar.
A partir de determinada altura os elementos que estavam à frente estabelecem uma conversação, via rádio, com outra viatura daquela guerra. Tentavam perceber onde se encontravam uns e outros não chegando a conclusão alguma. Falaram, falaram até que ao fim de muito tempo o outro jeep ligou as luzes. Estava ali a uns cinquenta metros. Foi uma risada geral, lá e cá e eu muito calado a tentar suster o riso.

Quando começou a clarear o dia, sorrateiramente, saí do jeep e fui ter com os camaradas da minha guerra. Nunca soube quem estava na cabine daquele jeep e muito menos a eles lhe teria passado pela cabeça que naquela noite gélida deram guarida a um cadete instruendo.

Abraços
Fernando Gouveia
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Nota do editor

Último poste da série 25 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12632: O segredo de... (16): Ricardo Almeida (ex-1.º cabo, CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879, Farim, K3 / Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71): Como arranjei uma madrinha de guerra, como lhe ganhei afeição e amor, e como por causa da minha terrível doença fui obrigado a tomar uma dramática de decisão de ruptura... A carta de amor pungente que ela me escreveu, em resposta...