Soneto do paciente do IPO
por Luís Graça
[Com a minha gratidão para com as técncas de radioterapia Dina, Maria João, Rosa e a estagiária Inês, da jovem e fantástica equipa da unidade 3 do serviço de radioterapia do IPO de Lisboa... Há várias semanas que passo por lá, de manhã, em tratamento... E enquanto a máquina [, um "acelerador linear",] me "bombardeia" com radiações ionisantes, em estou deitado a olhar para uma "nesga de céu azul" donde se destaca um ramo de macieira, árvore sagrada na antiguidade clássica: conto e reconto mentalmente, todas as manhãs, de segunda a sexta, os 17 flores da macieira (três ainda em botão), cada flor com 5 pétalas e 20 estames... Ao todo são, 70 pétalas e 280 estames... E na semana passada, para me ajudar a passar o tempo e esquecer a dor provocada pelo controlo dos esfíncteres, fiz este soneto, que só posso dedicar a quem tão bem cuida de mim, com grande gentileza, humanidade, competência e empatia... Sempre que temos 1 minuto, enquanto elas imobilizam o meu corpo com precisão milimétrica, vamos comunicando verbalmente, o que é fundamental na relação terapêutica.]Hoje não quero ver as flores da macieira
Na nesga de céu desta sala de tortura,
É p'ra teu bem, mas é dia de amargura,
Diz o teu anjo da guarda, à cabeceira.
Aqui tens de aprender a ser paciente,
Vir de reto limpo e cheia a bexiga,
E confiar na radioterapia amiga,
Que te bombardeia algures no baixo ventre.
É a próstata, meu Deus, que te deu sinal,
Coisa que no céu nunca te aconteceria,
Belisca-te, estás vivo, mas não imortal.
Ao mal o mal, diz o hipocrático aforismo,
Faz da tua dor princípío de alegria,
E a quem cuida, sim, dá medalhas... de heroísmo!
Lisboa, IPO, Serviço de radioterapia, unidade 3
16 de abril de 2021
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Nota do editor:
Útimo poste da série > 6 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22074: Manuscrito(s) (Luís Graça) (203): Para a Joana, que hoje faz anos: "E os adultos, esses, já morreram todos. Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer” (Louise Glück | Frederico Pedreira, "Uma Vida de Aldeia", Lisboa, Relógio de Água, 2021, p. 133)
Vd. também poste de 28 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)É uma boa terapia para a ansiedade inicial e a claustrofobia: ajuda-te a passar o tempo deste não-tempo enquanto o robô anda à volta do teu corpo, "bombardeando-te" com radições ionisantes... Protésico e agora radioactivo... Não, emenda a radioterapeuta Dina. É um tratamento não invasivo, avançado, seguro... Confia nos teus anjos da guarda!.
Hércules roubando as maças do Jardim das Herpérides. Detalhe do mosaico romano dos Doze Trabalhos de Hércules (Llíria, Valência , Espanha ) (séc. III d.C.). Museu Arqueológico Nacaional de Espanha. Foto de Luis García ( Zaqarbal ) (2006). Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons. |
Contas e recontas as 14 flores de macieira na tua nesga de céu, artificial, mais as 70 pétalas, brancas, e os 280 estames. Um pequeno suplício de Sísifo, aceitável, de segunda a sexta-feira. Só tens que aprender a controlar os esfíncteres. Vais de bexiga cheia (e o reto limpo...) com 0,666 litros de água da EPAL (que sempre é mais barata). "Dia de purga, dia de amargura", diz o aforismo hipocrático... Mas já lá vai o tempo do nosso senhor dom João V em que se escrevia nos muros do Hospital Real de Todos os Santos: "Em Lisboa nem sangria má, nem purga boa"... Espantoso, não há grafitos nos muros do IPO de Lisboa... Os grafiteiros têm medo do cancro que se pelam!... O IPO é, de certo modo, um campo sagrado...
Um dia destes talvez saia um poema... à flor da macieira, e às meninas, delicadas e dedicadas, da equipa multidisciplinar da unidade 3 da radioterapia do IPO. Mal se comunica, cuidadores e pacientes, porque está tudo cronometrado ao minuto. Há 7 unidades destas, é um verdadeira linha de montagem. Segunda-feira, quando voltares ao tratamento, no fim podes riscar mais um "pauzinho" no teu "vademecum": das 28 sessões prescritas faltar-te-ão só 22... E na terça, 21, e na quarta, 20, na quinta, 19...
Há quem se queixe de tudo e de nada. Podias queixar-te da Pátria que te roubou 36 meses de vida... Mas para quê ? Afinal, entraste no segundo ano da "comissão de serviço" imposta por esta maldita pandemia de Covid-19. E ainda ninguém te viu apresentar queixa na competente repartição do Olimpo. Disseram-te que não valia a pena: afinal, há casos muito mais graves que ocupam o tempo do não-tempo do teu Criador...
Espera, ao menos, que Zeus e Hera continuem a estimar, e a cultivar, nos jardins do Olimpo, as macieiras... E que Higia, a deusa da saúde, te proteja...E lembrando-te sempre que a palavra terapeuta, que vem do grego "therapeuthes", é apenas um "medium, aquele que faz a ligação com o deus que cura... Cuidar e curar não é a mesma coisa. Cuida-te. Ámen.(...)