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terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25265: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte I: texto da intervenção do Nuno Rogeiro

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > A sessão foi presidida  pelo presidente da Associação de Comandos, Dr. José Lobo do Amaral.

A apresentação do livro do Amadu Djaló (o segundo da mesa, a contar da esquerda para a direita), esteve a  cargo de três oradores: o cor 'cmd' ref Raul Folques  (o último comandante do Batalhão de Comandos da Guiné), o cor inf ref e escritor Manuel Bernardo (o último da ponta, do lado direito) e ainda o jornalista e analista político Nuno Rogeiro (o primeiro da ponta, do lado esquerdo).  Vamos relembrá-las aqui, às três intervenções, começando pela do Nuno Rogeiro.

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >Sessão de  lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010). > A brilhante intervenção do Nuno Rogeiro, que se reproduz a seguir.

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >  Aspecto geral da assistência, que encheu a ala central das famosas caves manuelinas... Na primeira fila, do lado direito, reconhecemos a dra. Maria Irene, esposa do Virgínio Briote bem como o comandante Alpoím Calvão, além do representante do Chefe do Estado-Maior do Exército. A meio, na outra ala, a filha e o neto do Amadu Djaló.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa,  2010). O Autor, Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, e o presidente da Associação de Comandos, Dr.  José Lobo do Amaral... Nas suas palavras de abertura, este último  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido possível esta edição"... 

No final, também nos  agradeceu a divulgação do evento,  dada pelo nosso blogue,  e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem como  pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


 

Capa do livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) 



O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


1. Foi um dia grande para o nosso Amadu Djaló, o da apresentação do seu livro, no Museu Militar, em Lisboa, no 15 de Abril de 2010. Mas também para o seu amigo, camarada e editor literário, Virgínio Briote.

Vamos recordar os melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou nada mais nada menos do que cinco postes. 

O livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.)  foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando alguns conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas, incluindo guineenses, e membros da nossa Tabanca Grande (alguns, infelizmente, já falecidos).

Vamos relembrar aqui as intervenções dos três oradores (Nuno Rogeiro, Raul Folques, Manuel Bernardes), começando pela do jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeir0 que consideramos a mais original e estimulante nota de leitura do livro, do autor e da sua história de vida.


NO FIM DAS GUERRAS

por Nuno Rogeiro


A guerra e as suas entranhas, em terras próximas ou estranhas, sempre fascinaram, revoltaram e mobilizaram o homem.

Anarquistas e conservadores, aristocratas e operários, fascistas e antifascistas, descamisados e oficiais de monóculo, sobreviventes das trincheiras e gaseados, soldados de assalto e feridos de morte, poetas e prosadores, pintores e pensadores, muitos investiram as mais nobres energias na reflexão sobre o campo de batalha.

Este pode ser visto como uma simples planície da técnica, da era da espada ou da era de Urânio. Ou ser antes olhado, de forma que se diria “existencialista”, como um vale de lágrimas e revelações, onde se morre e se nasce, mas sobretudo onde habitam homens e mulheres comuns. E onde residem, soberbas ou incógnitas, evidentes ou traiçoeiras, contínuas ou explosivas, a violência e a morte.

Tivemos grandes obras sobre este continente trágico, onde vemos já não como um espelho baço, mas face a face. Como “As Tempestades Aço” de Jünger, como “O Fogo”, de Henri Barbusse, como E.E. Cummings em “O Enorme Quarto”, ou o “Entre Parêntesis” de David Jones, como o “Ronge Maille Vainqueur”, de Lucien Descaves, qualquer livro sobre guerra perturba, alerta, impede a normalidade. E pode despertar, para lá do desespero, a esperança.

É o caso do livro que nos traz aqui. Relato de guerra, seco e sem adornos desnecessários, este volume de Amadu Djaló, escrito em português escorreito e de lei, é tanto uma história de morte como de vida. De tempo de matar e de proteger. De tempo de golpes de mão, executados com precisão e destemor, e de lágrimas por uma criança perdida, em Darsalame Baio, na margem, literalmente na margem: à beira do rio Burontoni, à beira de sentença salomónica.

Relato de vida militar, da obediência perinde ac cadaver, também é uma fiel e lúcida exposição das dúvidas dos combatentes, quando confrontados já não com a obediência, a lealdade e a técnica, mas com os juízos políticos, a diplomacia e as relações internacionais.

Este clima de homens divididos encontra-se na breve descrição do prelúdio à operação “Mar Verde”: resgatar companheiros presos fazia parte da missão, mas o que dizer de levar a cabo um acto de guerra em território estrangeiro?

Estaríamos perante uma violação da soberania alheia, mesmo se de estado hostil, ou antes diante de uma espécie de auto-defesa legítima? Seria “regime change”, ou contra-ataque a quem nos agredia, ou oferecia bases a quem nos ofendesse?

“Obedientes como cadáveres”, como diria Inácio de Loyola. Mas pode um cadáver reflectir, se a alma, prestes a partir, ainda o habitar?

Relato de guerra, este volume, o primeiro de memória, é antes de mais um admirável retrato, de história oral e testemunhos vivos, sobre a humanidade, os seus encontros e desencontros, amores e desamores.

É a história dos condutores sem carta, dos oficiais à estalada em frente de soldados envergonhados, dos civis ambulantes que levavam o cinema às tabancas, de um ataque de abelhas que abatem um homem rijo, de romances ao luar, de misérias na estrada. Um relato de delicadeza e pudor.

Pudor na descrição do que hoje diríamos violência sexual, violência racial, violência animal. O autor, homem bom e reservado, é também bom e reservado, na visualização da desumanidade: o oficial que diz que “preto é como a tartaruga” não é “racista”, mas apenas “um branco mau”.

Este é também um livro sobre o terrível abandono, sobre a inutilidade, sobre o esquecimento. Sobre o absurdo.

Cito, talvez imprecisamente e sem consultar o original, um poema de um dos nossos grandes vates, António Manuel Couto Viana:

“A minha Pátria alçou o braço
Pátria pacífica e pequena
Baixou-o logo de cansaço
Foi Pena

“Cedo arrasou a altiva torre
Que ergueram todos
De mãos dadas
Agora sei como se morre
Por nada”


Esta obra, relato de guerra e do pós-guerra, relato da paz e da pós-paz, é também o mapa deste desencanto, dos combates declarados inúteis, dos combatentes declarados redundantes, dos feridos declarados descartáveis, dos órfãos e viúvas declarados dispensáveis, dos mortos declarados inexistentes, por regulamento ou decreto.

Mas é também uma história, se bem que só esboçada, de reconciliações e de abraços. Abraços e reconciliações às vezes traídos.

O autor encontra-se, a seguir ao 25 de Abril de 1974, com o cabo-verdiano Antero Alfama, quadro do vencedor político, o PAIGC. Os compromissos feitos pelo último são de transição generosa, de integração de todos os guineenses, sem vinganças ou retaliações, sem tribunais especiais ou valas comuns, sem julgamentos secretos e tiros na nuca, sem o “N’kré vivé”, o processo de choques eléctricos, sem asfixia colectiva, em antigos depósitos de munições. Promessas rasgadas pelo processo “revolucionário” em curso em Bissau, mas sobretudo pela iluminação sanguinolenta de algumas vanguardas.

Não vale hoje a pena, se calhar, chorar mais sobre as vidas derramadas, nesse intervalo onde Portugal, independentemente de credos, doutrinas, regimes e pessoas, não fez tudo o que devia, para proteger os que combateram em seu nome.

Não valerá a pena chorar mais sobre o “incidente”, que levou à execução de centenas de comandos, milicianos, civis, em Farim, Cumeré, Portogole, Mansabá, a partir de 1974.

Não valerá mais a pena chorar sobre a aplicação do artigo 86 da Lei de Justiça Militar do novo partido no poder. Não valerá mais a pena chorar sobre aqueles que preferiram ficar na Guiné, a sua terra, em vez de fugir ou de pedir colocação nas instâncias burocráticas de Lisboa.

Não valerá mais a pena chorar por aqueles que aguardavam por oportunidades para continuar a servir a Guiné, ou para serem julgados por crimes de guerra, com todas as garantias e recurso à verdade.

Não valerá mais a pena chorar por este processo. Mas será uma vergonha não o lembrar. Será uma vergonha ter vergonha de o lembrar.

Este livro é também, na tradição dos grandes relatos de combatentes, de tropas de escol ou de guerrilhas, de milícias ou de regimentos fardados a rigor, de irregulares ou de exércitos convencionais, este é também um relato sobre sonhos e premonições, sobre lendas e o outro mundo, sobre conchas mágicas e aparições.

É o caso de João Bacar Jaló, que fecha os olhos, e sabe o que vai acontecer nesse dia.

Nessa zona da mente onde desembarcamos do sono para o sonho, fazem-se também episódios onde imaginamos a morte, às tantas de tal, sem falta.

E lá está ela, pontual no encontro, no fim da picada. Ela, a velha ceifeira, que vem buscar os últimos guerreiros.

É também este um relato sobre acções militares das forças especiais, numa guerra que hoje se chamaria “de baixa intensidade”, mas que teve picos próximos de confrontos convencionais, com emprego de todos os meios, da aviação à artilharia, dos meios navais ribeirinhos à ofensiva em linha contra quartéis e bases.

É, no plano técnico, um bom relato, se bem que parcial e provisório, de incidentes localizados do “nevoeiro da guerra”, com descrições exactas de tácticas e princípios, doutrinas de contra-insurreição e aquilo que a prática, e as lições aprendidas, fazem aos manuais.

É a história da missão, talvez impossível, de ganhar corações e espíritos, num conflito subversivo, às vezes de armas combinadas, com os Harvard e os Alouette a zunir sobre as cabeças dos infantes, às vezes continuação de acções de polícia, de missões de assuntos civis, de operações psicológicas.

Às vezes, muitas vezes, demasiadas vezes, com “vítimas colaterais”, de um lado e de outro. Como diz o autor, no confronto verbal com o comandante guerrilheiro Pedro Nazi, logo a seguir ao cessar-fogo: “Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos, nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido” (p.205).

Neste sentido, o livro cumpre também o preenchimento da lacuna sobre relatos pessoais, ou de grupo, sobre pormenores operacionais na África Lusófona, do ponto de vista das forças armadas portuguesas e do seu inimigo.

Essa lacuna, que se foi preenchendo, nas últimas décadas, com documentos e relatórios de estado-maior, com romances de base realista, com fragmentos e com monografias, tem ainda muito poucas contribuições dos militares africanos, de um e de outro lado da barricada.

Não seria impensada a criação de uma instituição, no seio da parte da CPLP que directamente viveu as guerras africanas, que pudesse, mais activamente, colmatar a brecha.

Oio, Canjambari, Cunacó, Antuane, Cameconde, Bedanda…Nestas páginas pode-se também deambular pela Guiné desconhecida, uma terra onde as famílias, as raízes, os clãs e os laços ultrapassam fronteiras, e se espraiam para além dos estados definidos pelas regras das administrações europeias, ou dos orgulhos nacionais pós-europeus.

Este é assim, ainda, num tempo que preza os relatos de viagem e as descobertas das partidas do mundo, uma espécie de introdução à Guiné, à querida Guiné de todos os portugueses, tenham ou não deixado o seu melhor naquela terra.

À querida Guiné que – penso poder falar em nome de todos os presentes – continuamos a querer soberana, desenvolvida, feliz e capaz de repartir riqueza pelos seus filhos.

À querida Guiné que, acima de golpes de estado e revoluções, pronunciamentos e discursos com má pronúncia, sublevações e homicídios, narcotráfico e cleptocracia, ameaças estrangeiras e cancros internos, tem suficientes filhos, talentos e energias para erguer um futuro diferente. Um futuro melhor.

Porque este é também um livro para o futuro. Uma espécie de filho do autor, e dos que o ajudaram ao parto intelectual. Um manifesto que lembra, como no desfiladeiro das Termópilas:

“Estrangeiro, vai dizer a Atenas
Que morremos aqui para cumprir a sua Lei”.


Mas que, para além dessa lápide de sacrifício, afirma ainda, de forma límpida, o principio do amor entre os homens. Da possibilidade de recomeçar, mesmo na mais negra das noites. Da disposição firme de dar a mão a antigos inimigos, de erguer torres em conjunto, de obter a absolvição, e de absolver. Ou, como fizeram os bispos polacos, em 18 de Novembro de 1965, duas décadas apenas depois da grande carnificina, na carta pastoral aos irmãos alemães:

“Vimos perdoar, mas sobretudo pedir para ser perdoados”.

No fim das guerras, na lembrança interior, no armistício sem amnésia, na paz dos bravos, na reparação dos males, na humildade de reconhecer o que se fez, o que se sofreu, o que se poderia ter feito, na disponibilidade para afirmar os seus valores e reconhecer os dos outros, desta forma se fazem os futuros pactos de não agressão, os irmãos e os aliados.

E assim se alcança, talvez por milagre, a eternidade.

(Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao nosso coeditor Virgínio Briote, que nos facultou o texto.)
___________

Nota do editor:

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24046: Efemérides (381): Os 60 anos da formação dos primeiros Comandos, em Zemba, Angola... Convite para a sessão solene comemorativa do encerramento das Comemorações, no auditório do Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 15/2/2023, 17h00 (Associação de Comandos)



1. Convite que nos chegou ontem por intermédio do cor inf ref Manuel Bernardo, com uma mensagem da Associação de Comandos (Delegação de Lisboa), que é do seguinte teor:

De: Associação de Comandos Delegação de Lisboa <associacao.comandos.lisboa@gmail.com>
Date: segunda, 6/02/2023 à(s) 11:40
Subject: Convite

Caros Sócios, Companheiros e Amigos,

Anexo convite para a sessão solene do 60º aniversário da formação dos primeiros Comandos em Zemba.

Mama Sume
Jaime Silveira

2. Chama-se a atenção para os nossos camaradas que queiram comparecer a esta sessão solene, que deve ser dada, até ao dia 10 do corrente, a  confirmação de presença,  para estes contactos;

Telf: 21 353 83 73 

Tlm: 926 991 129

email: associacao.comandos.dn@gmail.com
__________

Nota do editor:

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Farim (e dos seus bairos  Nema e Morocunda), além de K3 e Bricama. Recorde-se que cada centímetro da carta corresponde a 500 metros no terreno.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022).


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, aos 74 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2a. edição. 

Recorde-se, aqui sumariamente, os primerios vinte e poucos anos do Amadú Djaló (1940-2015), a partir dos excertos que já publicámos (**):

(i) o Amadu Djaló era, em 2010, quando o seu livro foi lançado (no Museu Militar en Lisboa) um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, como muito bem lembrou o Virgínio Briote;

(ii) Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, juntando-se a milhares de guineenses; mas o seu pai  que era empregado de balcão de um comerciante libanês, em Bafatá, o Assad,  tivera antes o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos e antigos combatentes da guerra da Indochina; após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa, em sua opinião,  nunca poderia ambicionar:

(iii) recenseado pelo concelho de Bafatá, o Amadu acaba por ser  alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(iv) depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, ponde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas:

(v) é colocado depois em  Bedanda, na 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), em finais de 1962:

(vi) é tranferido, a seu pedido para a 1ª CCaç (mais tarde CCAÇ 3) em Farim, em meados de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim   (segundo semestre de 1963, pelas nossas contas). Mantemos a ortografia original.
  



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O início da guerra em Farim, no segundo semestre de 1963

(pp. 64-70)

por Amadu Bailo Djaló



Uma coluna de Farim a Susana em cerca de 20 horas

Cerca de um mês depois houve ordem para recolher os pelotões que se encontravam nos destacamentos. A nossa companhia 
[a 1ª CCAÇ]  tinha dois pelotões, um em Porto Gole e outro em Susana.

A minha viatura, depois de descarregada, ficou preparada para fazer parte da coluna com destino a Susana 
[na região de Cacheu]  . Partimos por volta das 08h30, andámos todo esse dia e toda a noite, debaixo de chuva torrencial, numa estrada difícil e lodosa, que exigia muita perícia e um andamento muito cauteloso.

De Farim até Bigene e Barro a estrada não estava muito mal, o pior foi depois, os carros patinavam e atascavam-se a toda a hora.

Quando chegámos a Susana, às 4h00 da madrugada, o pessoal já estava cansado de tanto esperar. Tivemos que carregar tudo rapidamente e por volta das 6h00 iniciámos o regresso a Farim.

Quando passámos pelo Ingoré, vi o alferes Almeida algo preocupado. Andava a ver se arranjava qualquer coisa para dar de comer ao pessoal que estava faminto, já que não comíamos nada desde que tínhamos saído de Farim. Vi-o regressar de mãos vazias. Compreendemos e resignámo-nos, não havia outro remédio.

Para acrescentar, a jangada estava avariada e tivemos que aguardar até às 19h00, que foi quando ficou pronta. Atravessámos o rio 
[Cacheu , seguimos para Bula, onde chegámos à noite, por volta das 21h00.

Aqui, o alferes ganhou esperança em encontrar comida. Mas, tal como no Ingoré,  veio com as mãos a abanar. Não havia nada a fazer e pusemo-nos a caminho de Binar e Bissorã. Em Binar, nem parámos, só quando chegámos a Bissorã descansámos, já passava das 3h00 da madrugada

Refeitos, prosseguimos, primeiro para o Olossato e depois para o K3 e aqui o alferes recebeu uma mensagem para rumar para Mansabá, onde nem parámos e depois para Mansoa.

Desde Susana, trazia de reboque um Unimog “gripado”. Em Mansoa ficámos a aguardar o pelotão que vinha de Porto Gole [1].

Quando chegaram de Porto Gole as duas viaturas, um jipe e um Unimog, a coluna pôs-se finalmente em marcha de regresso a Farim.


Bricama, uma tabanca de pouca confiança


Na tabanca de Bricama, viviam homens válidos para pegar em armas. O comandante da 1ª CCaç, um capitão cujo nome não recordo, era uma pessoa já com certa idade, tratava-me por cunhado, entendeu entregar ao chefe da tabanca dez armas Mauser, para a autodefesa da tabanca. E se tudo corresse bem estava na intenção de entregar, mais tarde, espingardas G-3.

Um mandinga, chamado Malan Injai, também conhecido por Manjai, andava, de tabanca em tabanca, a vender cola e aproveitava para colher informações, que depois passava à tropa. Um dia disse que a tabanca de Bricama não era de confiar e a tropa decidiu recolher as armas.

Um certo dia, Malan Injai entrou no quartel exausto e com ar de sofrimento. Apresentou-se ao oficial de dia e mostrou-lhe as costas em chagas provocadas por chicotadas que lhe tinham dado na mata de Bricama, onde fora preso por uma patrulha do PAIGC, que o acusou de prestar informações à tropa.

Depois de aprisionado e apresentado ao chefe e à população da tabanca, como informador da tropa e traidor, foi levado para um acampamento, onde foi julgado e condenado à morte, por fuzilamento, quando amanhecesse.

Felizmente para o Malan, no grupo que o prendeu, havia um patrício dele que se condoeu e o soltou por volta da meia-noite. Malan pôs-se em fuga e caminhou na mata até Farim, onde chegou mais morto que vivo. Muito emocionado, relatou tudo o que tinha acontecido.

Quando Malan se apresentou ao capitão da 1ª CCaç, em Farim, este, prudentemente, optou por recolher as Mausers que estavam em poder do chefe da tabanca de Bricama.

Para o efeito encarregou o alferes Almeida, do esquadrão de Bafatá 
 [2], para executar a diligência no dia seguinte, na qual eu também participei.

Chegados à tabanca de Bricama fomos acolhidos por pouca gente, ao contrário das outras vezes. O alferes perguntou pelo chefe da tabanca. Veio um filho que informou que o pai se tinha deslocado a Farim, chamado pelo administrador.

– E onde estão as armas?

–  Não posso mostrar. Quando o meu pai sai, fecha a casa e leva as chaves com ele.

–  Por onde passou o teu pai? Não o vimos no caminho!

–   Nós costumamos seguir a corta-mato, que é mais rápido.

Perante esta resposta e como não convinha demorar, o alferes resolveu regressar. Chegados a Farim, fomos directamente à casa do administrador, que informou o alferes Almeida de que o chefe da tabanca tinha ido a casa de Braima Baio, chefe da tabanca de Farim, e que desconhecia se ele ainda regressava naquele dia a Bricama ou se dormia em Farim. O administrador prontificou-se a enviar o motorista a casa de Braima, no bairro de Morocunda, incumbindo-o de trazer o chefe da tabanca, caso ele lá se encontrasse, o que não sucedeu. O motorista, quando regressou, disse que o chefe já tinha regressado à tabanca. E o alferes Almeida prontamente deu a informação ao nosso comandante.

No dia seguinte, de manhã, voltámos a Bricama e encontrámos o chefe da tabanca. Após os cumprimentos, o alferes quis saber dos motivos que o tinham levado a Farim, a casa do administrador, ao que ele respondeu que era devido ao atraso nos pagamentos do imposto. E o alferes continuou:

– Viemos cá, para falarmos sobre esta questão: o chefe tem entre 60 a 80 homens aptos a usarem armas. E, dentro de algum tempo, nós vamos receber mais armas. Assim temos que recolher todas as Mausers, que estão à sua guarda, a fim de serem substituídas por G-3, que são muito superiores. E, logo que seja possível, entregaremos mais algumas.

De imediato, o chefe da tabanca dirigiu-se a casa e, pouco depois, surgiu com nove armas.

– Não são nove. Pela relação que tenho, são dez Mausers!

A arma que faltava tinha já sido recolhida pelo cabo da arrecadação, uma vez que se tinha verificado anteriormente que a arma não estava em condições. Resolvida a questão, regressámos a Farim.


Os dois primeiros  ataques do PAIGC a Farim, no 2ºseemstre de 1963

Quatro ou cinco meses depois de ter sido transferido para Farim, a 1ª CCaç deslocou-se numa coluna de quatro viaturas, à serração de Carés, que ficava perto de Fajonquito, na linha da fronteira com o Senegal. 
[Carés, topónimo que não existe, mais provavelmente trata-se de Caresse]

Quando chegámos arrumei o meu carro junto de outras viaturas. Na minha viatura vinham soldados africanos, nas outras que me seguiam vinham soldados africanos e europeus, que pertenciam ao esquadrão de Bafatá e que estavam destacados na 1ª CCaç, em Farim.

Quando acabámos de estacionar, fui surpreendido por uma voz conhecida. Era o 1º cabo Eurico.

 Eh, pá, não há como na tropa! Um dia separámo-nos em Cacine, junto à fronteira com a Guiné-Conakry, nunca pensei voltar a encontrar-te na Guiné quanto mais neste local, junto à fronteira com o Senegal!

Chamou os colegas [3], fizemos uma grande festa e perguntei onde estavam agora colocados.

 Em Canhamina    responderam.   [Canhamina ,a seguir a Fajonquito, a nordeste, já na carta de Tendinto, que nos falta].

Pouco tempo depois,
 Carès passou a ser terra de ninguém. Num dia, o proprietário da serração, temendo ser atacado, comprou armas e munições para a defender. Mas não resistiram ao ataque do PAIGC. O dono da serração morreu no local e a serração fechou e foi transferida para Bafatá, para um local perto da minha casa [4].

Estava uma noite de luar. Eu tinha-me deslocado ao bairro de Sinchã e estive a divertir-me com alguns colegas. Com a noite já adiantada, resolvi regressar ao quartel. No caminho, quando estava a chegar ao bairro de Nema, vi o pelotão de milícias formado à porta do régulo Made Sissé. Estavam a preparar-se para se dirigirem para os locais de vigilância à segurança do bairro. Passei por eles, sem me dirigir a ninguém, pois estava com pressa de chegar ao quartel, que não ficava a mais de meio quilómetro.

Uns metros andados fui surpreendido por barulho de tiros e de rebentamentos, que me pareceram atingir toda a vila.

– Mas que é isto?  interroguei-me, espantado, sem saber bem o que fazer.

Se tentasse deslocar-me para o quartel, algum militar que me visse a aproximar, baleava-me logo. Por outro lado não me parecia que regressar ao local de onde tinha partido, fosse uma boa solução. As milícias armadas tinham-se espalhado pelo bairro e o perigo para mim era o mesmo. Agachei-me, colei-me ao chão, a pensar no que havia de fazer. O fogo abrandou e a correr alcancei o bairro de Mancanha, já muito próximo do quartel. Vi uma casa e abriguei-me na varanda. O tiroteio recrudesceu e eu bati à porta.

– Quem é?

– Abra a porta!

– Não!

– Se não abrir, vou ter que arrombar!

– Tenho medo!

– Não tem que ter medo, sou militar!

Vendo a porta aberta, entrei precipitadamente, fechei-a e fiquei com a chave na mão. Era um velho que vivia sozinho.

Desconfiados, mantivemo-nos algum tempo a olhar um para o outro. Não me sentia confiante no meu companheiro e, por isso, resolvi não dormir, embora os olhos se me quisessem fechar. Não o deixei sair, nem para urinar, permaneci toda a noite sentado e só resolvi sair, quando as armas se calaram, o que aconteceu por volta das 5 da manhã. Entreguei-lhe a chave, mostrando-lhe que, em mim, não havia qualquer má intenção, apenas queria abrigar-me do tiroteio.

Dirigi-me a um posto de vigilância, próximo dos Correios, e aguardei a viatura que estava a recolher os vários militares dispersos pelos postos de vigilância.

Quando cheguei ao quartel, viviam-se os momentos habituais depois de um ataque. Cada um falava e contava como tinha sido. Emoções e lembranças surgiam a cada passo. As recordações do acontecido duraram poucos dias. Mas estávamos certos que o 1º ataque, de que houve memória, do PAIGC a Farim se iria repetir.

Uma semana depois da recolha das armas em Bricama, o nosso comandante entendeu estar na altura de ver como a população da tabanca estava a reagir. A minha GMC, carregada de soldados,  abria uma pequena coluna de quatro viaturas. Íamos com destino a Bricama, uma localidade atravessada por um ribeiro com muita água e sobre o qual havia uma ponte de troncos de palmeiras.

A tabanca estava na outra margem, a pouco mais de 50 metros. Quando nos aproximámos da ponte, foi com surpresa que verifiquei que tinha sido queimada.

– Siga, continua    gritou-me o alferes Almeida.

– Então e a ponte, meu alferes?

Vendo-me parado a olhar para os restos calcinados da ponte, avançou com o jipe.

– Toca a saltar cá para baixo, menos os condutores    ordenou.

Verificando que a travessia não se podia fazer, mandou o pessoal embarcar novamente e regressámos a Farim.

Esta foi a última saída a Bricama e também o adeus à população da tabanca, que julgávamos nós estava libertada da influência do PAIGC. A partir deste acontecimento, redobrámos a vigilância, as vias de acesso a Farim passaram a ser mais controladas e tivemos consciência que a zona de Farim estava a entrar numa nova fase da guerra.

Não ficámos muito admirados, quando dias depois, Farim voltou a ficar debaixo de fogo. Não foi tão violento, nem tão prolongado como o primeiro. Não houve vítimas do nosso lado, do outro não sei. Também desta vez, me encontrava fora do quartel, estava de serviço aos Correios.

 (Continua)

______________

Notas do autor:

[1] Da CCaç 413, comandado por um alferes que me disseram mais tarde ser sobrinho do Brigadeiro Arnaldo Schulz, nomeado Governador-Geral em 29 março de 1964, quando eu me encontrava ainda em Farim.

[2] ERec 385

[3] Do Pel Caç 870

[4] Depois de 25 de Abril de 1974 a serração acabou por ser abandonada.


[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos /  negritos / parênteses rectos, com ntas adicionais, para efeitos de edição deste poste: LG. ]

__________


(**) Vd. os outros postes anteriores:

22 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência

16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

22 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)


sábado, 22 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > 17h543 > Um das nossas conhecidas ruas de Bafatá, já ao entardecer... Foto do João Graça, músico e médico, 40 anos depois do foto da mesma artéria tirada pelo Jorge Tavares, a seguir reproduzida.

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados    [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné > Bafatá > 1968 > Guiné > Bafatá > 1968> Foto do ex-furriel mil radiomontador Jorge Tavares, CCS/ BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70). (No livro, a foto é erradamente atribuída ao Humberto Reis, pág. 17).

Reconstituição feita pelo ex-fur mil op esp Humberto Reis, da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71): "Esta é (era) rua principal (alcatroada, como todas as demais) da doce e tranquila Bafatá, com as suas casas de arquitectura tipicamente colonial; ao fundo era o mercado e cortava-se à direita, para a piscina; na primeira à direita, ficava o restaurante A Transmontana; do lado esquerdo, no início da foto, ficava a casa do Administrador e os CTT; a meio, a rua era cortada pela estrada que ligava a Geba".

Legenda do Amadu Bailo Jaló: "Rua de Bafatá. Do lado direito, junto ao carro estacionado, era a casa do Chico Paulo, um comerciante europeu; a casa a seguir, pintada de branco, era de um libanês, Assad, one trabalhava o meu pai (in: Amadu Bailo Jaló -  - p. 17)

Foto: © Jorge Tavares (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


 

Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)


1. Continuamos a reproduzir, aqui no nosso blogue, alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk".

Como temos sublinhado, o livro, publicado em 2010, está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua na nossa memória e nos nossos corações.  Basta ler alguns comentários recentes dos nossos leitores.


(i) Carlos Silva:

(...) Convivi muito de perto com o Amadu Djaló, pois encontrava-o quase diariamente em Bissau II / Rossio onde sempre trocávamos uns "dedos de conversa ". O Amadu era um homem calmo, honesto, bom conversador. Contribuí para o seu livro com várias fotos a pedido do nosso amigo e camarada Virgínio Briote que estão publicadas no seu interior e a contracapa é de um slide meu que o Virgínio gostou muito. Estive no lançamento do livro que foi nas caves do Museu Militar. Paz à sua alma. (...) 

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)
 
(ii) António Graça de Abreu:

(...) Maravilhas estes textos do Amadu Djaló (...) Que nos valha, falar a sério, perto do coração, o Amadu Djaló, na sua e nossa, tão precária e inesquecível Guiné.(...)  

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)

(...) Palavras justas e sentidas do Amadu Djaló. Ainda tive o gosto de o conhecer e de lhe dar um grande abraço. Homem superior. Não o esqueço. (...) 

23 de setembro de 2022 às 01:59 (***)


(iii) Lucinda Aranha:

(...) Pelos vistos, o nosso Amadu, que conheceu o meu pai em Farim,  era muito namoradeiro. Não perdia tempo. (...)

20 de outubro de 2022 às 20:31 (*)

(iv) José Botelho Colaço: 

(...) Conheci o Amadu,  tenho o livro com autógrafo do prórprio, encontrei-me com ele algumas vezes, mas havia um inicio de um novo trabalho do Virgínio   [o II volume],só que o Amadu deixou de ter condições  [de saúde ].para o prosseguir. Pergunto ao amigo Virgínio será que esse pequeno esboço não tem algo de interesse principalmente para a nossa geração que possa ser publicado?  (...)  

5 de outubro de 2022 às 16:53 (**)

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

(...) Sim, o Virgínio começou a trabalhar com o Amadu no II Volume (memórias do "exílio": Senegal, Portugal)...Só ele pode esclarecer em que ponto ficou o trabalho... Em princípio havia um manuscrito, original, sobre o qual os dois trabalharam em conjunto. Foi uma feliz parceria!... Nunca teríamos o livro publicado (o Volume I) sem a infinita paciência, generosidade e competência do Virgínio. (...)

6 de outubro de 2022 às 11:05 (**)

 (...) O que o nosso Amadu Djaló deve ter consultado em 1961, em Catió, foi um "mouro" ou "muru", um vidente... O seu antigo colega de escola Djá (que o tentou aliciar para o PAIGC) seria um vidente, alguém com "poderes mágicos" capaz de adivinhar o futuro e dar conselhos em matéria de saúde, amores, dinheiro, profissão... Proliferam em todos os tempos e sociedades... Em Portugal, há muitos de origem africana e brasileira... Parece que hoje na Guiné-Bissau se usa mais o termo "pauteiro" (do crioulo, "pautéru") para designar  vidente ou mágico. (...)
 
23 de setembro de 2022 às 12:08  (***)


2. Vamos reproduzir um excerto (ou melhor, dois) em que o Amadu fala dos seus primeiros anos de vida, entre 1940 (o ano em que nasceu) e meados dos anos 50 (em que empreendeu a sua primeira grande viagem, até ao país vizinho, a Guiné Conacri, terra dos seus pais, e onde se inicia no comércio ambulante). E depois até a idade, 21 anos, 1962, em que foi para a tropa, fazendo a recruta no CIM de Bolama (**).

Neste primeiro excerto, que publicamos hoje,  podemos ler a notável  descrição, em estilo oral africano,  que ele faz das suas andanças pelo território vizinho, ainda colónia francesa (até 1958), longe dos pais e em plena adolescência, com os seus 13/14 anos. Andou um ano e tal fora de casa, trabalhando com o irmão mais velho. Não tivemos coragem de cortar nada desta prosa saborosa...

Embora nos interesse sobretudo a história da sua vida militar, é importante conhecer  alguma coisa da infância, adolescência e juventudade do Amadu Djaló, para se perceber melhor a sua decisão de se alistar na tropa portuguesa, antes de completar os 22 anos (**). 

Futa-fula, muçulmano praticante, frequentou também, além da escola corânica, a escola católica de Bafatá onde conheceu o missionário italiano do PIME, Arturo Biasutti, e aprendeu a gostar de jogar à bola. Esta experiência, digamos ecuménica, teve seguramenet reflexos positivos na sua formação como homem e na sua conduta na guerra.

Neste primeiro excerto, vamos ver o jovem Amadau, com apenas 13 anos, em princípios de 1954, partir com o irmão mais velho para Boké, para casa de um tio, de onde era natural a mãe; viagem de nove dias, a pé, que o marcou na sua adolescência; o irmão levava uma série de carregadores com mercadorias (roupas) para vender em Boké.

Um ano e tal depois (!), em novembro de 1955, regressa à terra natal,  Bafatá, numa viagem longa, novamente a pé. Aos 16 anos vai conheceu, pela primeira vez, Bissau e um ano depois Bolama.

Verenos depois como, desde muito jovem, ele  luta para  ganhar algum dinheiro e ser independente:  organiza, por exemplo,  bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobra as entradas; as meninas de então chamavam ao Amadu o Mari Velo (ou Mari Belo, como me parece mais lógico, podendo haver aqui uma gralha de transcrição do parte do "copydesk": o Amadu tricava os b pelos v...)..

Mas seguindo o resumo curricular que o Virgínio Briote (foto à direita)  fez do seu amigo e camarada (vd. anexos do livro, pp. 287/288), o  Amadu, enquanto não é incorporado, vai trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz, um pouco mais tarde em Bafatá; estávamos em 1958. 

Nos princípios de janeiro do ano seguinte, regressa a Bafatá; como sabe ler e escrever, é chamado para a campanha da mancarra. Aos 20 anos quer dar um salto, tornar-se verdadeiramente independente, e consegue abrir uma banca para vender srtigos no mercado de Bafatá.

Mas a incorporação está à porta, como já vimos (**):  recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, é alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama...

Já agora, ficam suamariamente, mais alguns factos relevantes da sua vida militar: depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim... Vai regressar à CCS/QG, depois vem os Comandos de 1964 a 1966, volta à CCS/QG, depois o BCav 757, BCaç 1877, BCav 1905 e BCaç 2856, todos sediados em Bafatá...

Em meados de julho de 1969, é transferido para a 15ª CCmds, seguindo-se então a 1ª CCmds Africanos, o BCmds da Guiné e a CCaç 21 (sediada em Bambadinca) até ao 25 de Abril de 1974.

E promovido a 1º cabo em 1 de janeiro de 1966 e louvado pelas atuações em operações nesse ano. É novamente louvado, em 1967, em Ordem de Serviço (OS) do BCaç 1877, de 30 de setembro de 1967, pelo seu comportamento em ações de combate  no período de 7 de janeiro a 24 de setembro de 1967.

É, entretanto, graduado em furriel em 6 de fevereiro de 1970 e em 2º sargento em 7 de novembro de 1971, tendo sido louvado pelas ações em que participou durante o ano de 1972. É ondecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª Classe em 1973.

Segue-se a sua graduação  em alferes em 28 de junho de 1973. Pela sua atuação nas operações do ano de 1973 recebe novo louvor. Passa à disponibilidade em 1 de janeiro de 1975, devido à independência do território da Guiné: Mas aí começam os sobressaltos...

Em 1986 veio para Lisboa (depois de  se ter refugiado no Senegal, onde se estabelecera como comerciante). Em 2015 publica  o seu livro de memórias, gracas ao apoio do Virgínio Briote e da Associação de Comandos (capa  à direita). Morre em 15 de fevereiro de 2015, em Lisboa, no hospital militar,  aos 74 anos. (****)


Os primeiros anos da minha vida - Parte I: 
infância e adolescência (pp. 16-24)

por Amadu Bailo Djaló

Chamo-me Amadu Bailo Djaló, nasci em 10 de Novembro de 1940, em Bafatá, na freguesia da Nossa Senhora da Graça.

A minha família era da Guiné Francesa [1]. O meu pai, Tcherno Iaia Tata Djaló, nasceu em 1895, em Tata Fulamori, a meia dúzia de quilómetros de Piche, e a minha mãe, Ana Condé, que nasceu em 1904, era da vila de Boké.

O meu pai amava muito os seus filhos, era um homem que estou sempre a recordar. Trabalhou muitos anos como empregado de balcão numa loja de um libanês, de nome Assad.



Guiné-Bissau > s/l > s/d > Cerimónia do fanado. Fotos cedidas pelo autor, Ernst Schade [2] , reproduzidas no livro, nas pp. 18 e 19.

Os meus pais matricularam-nos, a mim e ao meu irmão mais velho,  na escola do Alcorão [3], que frequentei durante três anos. 

Em 1948 fui para o mato, com três irmãos e mais sete rapazitos para a circuncisão [4]. Ficámos num grande acampamento com um homem mais velho, que tomava conta de nós e que nos dava aulas de moral, lições de comportamento e como respeitar os mais velhos.

Dois meses depois regressámos a casa e passei a frequentar uma escola católica, mesmo em frente à nossa casa, onde jogávamos futebol com as bolas que os padres italianos nos emprestavam.

Havia lá um padre italiano, de nome [Arturo] Biazutti [e não Viazutti..., pág. 19] (*****), que gostava muito de mim, talvez por eu ter grande facilidade em decorar as orações. Hoje tenho pena de a ter frequentado só dois anos. O meu pai não me obrigava a ir e eu acabei por abandonar a escola.

Foi uma época que foi correndo feliz até 1954, quando o meu pai me deixou ir com o meu irmão mais velho a Boké, onde a minha mãe tinha família. (...)

Numa manhã desse ano  [de 1954],  parti de Bafatá, a pé, acompanhando o meu irmão Baba Galé Djaló, que levava três carregadores e as respectivas mulheres. Ia também connosco o nosso primo – irmão, Ussumane Indjai, a mulher dele e mais três carregadores, com grandes quantidades de camisolas pretas, então com muita procura na Guiné Francesa.

Em direcção à fronteira, a corta mato, a olhar para trás e a chorar, é assim que me lembro do início da viagem. Uma viagem muito longa, demorámos nove dias a chegar a Boké 
[hoje 5 horas, de carro, pela N3, cerca de 223 km. LG]- 

Durante o dia caminhávamos, à noite dormíamos em tabancas, onde nos deixavam passar a noite.

Em Boké tínhamos lá um tio, um irmão da nossa mãe, que não conhecíamos. Chegámos num dia à noite e passámo-la em casa de um homem que tinha uma mulher em Bafatá. De manhã, fomos para a praça, à procura do meu tio.

No passeio avistámos um homem, que fixou o olhar no meu irmão. Quando nos encontrámos deu a mão ao meu irmão e perguntou:

− Fula, de onde é?

− Da Guiné Portuguesa.

− De que parte?

− De Bafatá.

− Eu tenho uma irmã em Bafatá, chamada Ana Condé.

− É a nossa mãe  
− respondeu o meu irmão.

Era o meu tio, um homem alto, bonito, de cor clara. Agarrou-me na mão e levou-nos a casa dele. Apresentou-nos à família e aos vizinhos, que ficaram muito contentes por nos verem e terem notícias da família de Bafatá.

Os carregadores do meu irmão transportaram cerca de duas mil e quinhentas camisolas pretas. Levámo-las para Bofa, Doupurou, Colom, Mancunta, Colabui, Tamarance e Boké. Vendemos tudo o que levámos.

Eu estava na altura com cerca de 14 anos. Passado um mês, o meu irmão foi à Serra Leoa, comprar panos, lenços e contas, que passámos a vender nas ruas. Mas estes artigos não se vendiam como as camisolas e o meu irmão mandou-me com a mercadoria para a vender em Bintomodiá.

Dias depois fomos para a ilha de Baga e em fevereiro de 1954 regressámos a Bintomodiá. O meu irmão, que já estava em Boké, telefonou ao homem pedindo-lhe para comprar cola. Com o dinheiro que eu tinha juntado comprou 550 quilos de noz de cola e depois segui para Boké.

Acompanhado de Coto Bobo, três ou quatro quilómetros andados chegámos à estrada que ligava Conackry a Boké. Ficámos ali à espera de transporte e encontrámos um militar, que estava de férias, acompanhado de outro homem que lhe transportava a mala. Pouco tempo depois apareceu um jipe, com duas pessoas, um africano e um branco, que vinha a conduzir e que vim a saber depois que era americano. Pedimos boleia, o jipe parou e nós corremos para entrar. 

O americano disse logo que não podia levar três pessoas. O militar olhou para mim mas eu não quis saber de que assunto estavam a falar. Então, ele e o homem que o acompanhava saíram do jipe e fui só eu. Se soubesse não tinha ido, porque a boleia era só até Tamarance, que ficava a cerca de doze quilómetros de Boké. Eu não podia andar sozinho esses quilómetros todos, de noite, a pé, era ainda muito rapazito para uma viagem tão comprida.

Quando atingimos Tamarance, o americano parou o jipe e fez-me sinal para sair. E agora, onde é que eu estou? O sol estava a pôr-se, a noite ia cair não faltava muito. Condoído, talvez, por me deixar ali, o americano olhou para o relógio e fez um gesto para eu me sentar outra vez. Na minha ideia ele ia-me levar a Boké.

Pôs o jipe a andar e, passado pouco tempo, chegados a um monte, mandou-me descer e apontou com a mão uma tabanca ali em baixo. Agradeci-lhe e fiquei a ver o jipe desaparecer no meio do pó. Dirigi-me para a tabanca, onde à entrada das casas encontrei um homem com uma lata de mel.

− Mano, para onde vais 
  perguntei.

− Boké 
  respondeu.

− Eu também quero ir para lá, vamos juntos?

Disse que ficava essa noite na tabanca e que só ia para Boké na manhã do outro dia. Então, eu respondi-lhe que ia com ele.

Segui-o até uma grande morança, vedada com lascas de cana de bambu, com quatro palhotas, entrámos, vi as pessoas a cumprimentá-lo. Era muito conhecido ali, pensei. A certa altura, ouvi alguém perguntar-lhe para onde levava ele o rapazito.

 
−  Não sei de onde ele vem, disse que vai a Boké  − respondeu.

Aproveitei para dizer que vinha de Bintomodiá, que tinha apanhado boleia num jipe e pedi-lhes para me deixarem passar a noite com eles. O homem disse logo que não tinha vindo comigo, que só nos tínhamos encontrado na estrada.

O homem da tabanca mandou-me ir embora o mais depressa possível. Implorei-lhe, mas ele ameaçou-me com porrada, sempre a dizer alto, "vai-te embora, vai-te embora". Mantive-me sentado e quando o vi levantar a mão para me bater, levantei-me, abandonei a casa e fui para a estrada. Era noite, já estava muito escuro.

Fui a outra casa pedir para me deixarem dormir na varanda, mas responderam que fosse a casa do chefe da tabanca, que era o homem que tinha ameaçado bater-me. De casa em casa, a resposta foi sempre a mesma.

Atravessei uma ponte de ferro, para o outro lado, e dei com outra tabanca, onde só falavam sosso. Havia uma casa, um pouco afastada das outras, e, como não vi ninguém, entrei na varanda, que tinha uma maca. Pensei logo em aproveitá-la para dormir. Quando me sentei nela, a maca fez barulho e ouvi uma voz de homem a perguntar quem estava ali. Voltei a levantar-me, o barulho voltou a ouvir-se, a voz do homem também e eu saí dali sem dizer nada.

Vi a luz de um candeeiro a chegar, alumiou-me a cara, e uma voz perguntou-me quem eu era e o que estava ali a fazer. Que queria descansar um pouco, respondi. Era um velhote, que também me mandou ir embora, a gritar alto que fosse para a estrada, que era lá que se pedia boleia, na casa dele não.

Agora o único plano que eu tinha era chorar alto, para as pessoas ouvirem e ficarem incomodadas. Eu chamava alto pela minha mãe, mas ninguém se aproximou ou quis saber de mim. Estive ali a chorar até já não ter mais lágrimas.

De um momento para o outro, ouvi o ruído de um carro a aproximar-se, corri para a ponte e pus-me no meio. O condutor teve que parar e eu pedi-lhe boleia para Boké. Reparou que eu tinha a camisa toda molhada e mandou-me entrar e sentar-me na cabine, entre ele e o outro homem que o acompanhava. Contei-lhes o que se tinha passado nessa noite, enquanto rumávamos para Boké. Deixou-me perto da casa do meu tio, onde encontrei o meu irmão.


Guiné > Bafatá > Mercado local > c. 1968/70 > Foto de Fernando Gouveia (publicado a preto e branco no livro, pág. 32)


Em novembro de 1955 regressámos a Bafatá, também a pé, com os carregadores, outra viagem que nunca mais tinha fim. Às dez horas de uma manhã, entrei na minha casa. 

Depois de matar as saudades dos meus pais e da minha família, fui ter com um santomense, o Carlos Espírito Santo Rafael, que tinha um negócio de venda de fruta e uma taberna ao lado. Trabalhava lá um irmão meu, numa grande horta, com cana-de-açúcar, goiaba, limoeiros, mangos, bananeiras e ananases.

Na altura, com cerca de 15 anos, comecei a trabalhar lá também. Carregava a cana para os carros e levava-a para a destilaria onde se fazia aguardente de cana. Entrava às sete da manhã, fazia um intervalo ao meio-dia para almoçar e retomava o trabalho das 14 até às 17h00 
 [nove horas e meia de trabalho por dia... LG]  

Ganhava 4 escudos por dia [1,94 euros a preços atuais... LG] , que recebia ao mês. Mas raramente recebia o mês inteiro. Quando nos via a urinar ou a mastigar um pedaço de cana, o patrão descontava-nos cinco dias ou 20 escudos [9,68 euros a preços atuais... LG] , por isso raramente recebíamos o mês inteiro. Trabalhei lá, na horta do Rafael, durante um ano, ou nem tanto.

Num dia em que fui visitar o meu pai na loja do Assad, na praça de Bafatá, encontrei um sobrinho do patrão do meu pai, chamado Salimo, que me convidou a ir com ele, trabalhar como capataz, numa obra que estavam a fazer no Gabu [5]. 

De junho de 1957 a janeiro de 1958 fui o capataz da obra, o meu trabalho era contar, ao princípio da manhã e da tarde, os trabalhadores que estavam presentes e entregar a lista do pessoal ao Salimo, para ele fazer os pagamentos todos os sábados.

A seguir ao regresso a Bafatá 
[, no início de 1958], o Salimo encarregou-me de entrar na campanha da mancarra [6]. Nesse tempo, era costume adiantar dinheiro aos agricultores e eu passei a ir numa camioneta, às tabancas cobrar as dívidas, receber a mancarra correspondente ao dinheiro ou ao arroz que tinha sido adiantado. A seguir pesávamos a mancarra e procedíamos aos acertos. 

Depois da campanha da mancarra começámos com a do óleo de palma e depois a do mel e da cera, trabalho este que durou até Junho de 1958.  Salimo queria que eu continuasse a trabalhar com ele mas decidi não ir. O dinheiro que estava a ganhar neste trabalho não compensava, qualquer jila [7] ganhava muito mais.

Voltei para casa e, em julho 
[de 1958],  fui trabalhar com o meu primo, Ussumane, que se dedicava ao negócio do gado. Comprava em Piche, Canquelifá, Buruntuma, Pirada e Paunca e depois levávamos o gado, a pé, para o vendermos em Bissau.

Para o que estava habituado ganhava muito dinheiro mas era um trabalho muito árduo. De Bafatá a Bissau, nunca demorávamos menos de dez dias.

__________

Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Os Fulas da região do Gabú são originários da antiga Guiné Francesa. Os Futa-Fulas vieram do Futa-Djalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Toro, Futa-Quebo…)

[2] Nota do editor: Ernst Schade (1949, Holanda), especialista em agricultura tropical, trabalhou durante cerca de 16 anos na Zâmbia, Zimbabué e Moçambique, com instituições governamentais e não-governamentais em programas de desenvolvimento rural. De 1989 até 1995 foi o representante em Moçambique da Organização Norueguesa “Save the Children”. Ernst é um amante da fotografia, agora a sua principal actividade. É representado pelas agências de fotografia Hollandse Hoogte (Holanda) e Panos Pictures (UK).

[3] Nota do editor: a religião seguida pelos Futa-Fulas é o Islamismo, herdado dos árabes, segundo as tradições escritas.

[4] Nota do editor: é aproximadamente entre os onze e os quinze anos que os rapazes Fulas vão ao “fanado”. No dia combinado entre as famílias e o “operador”, os jovens dirigem-se para o mato, onde são aguardados junto a uma árvore. Cada um leva uma pessoa, um amigo ou familiar (um irmão já circuncidado), para o segurar no momento da intervenção. Tiram as roupas e os corpos são cobertos com cinza. Os jovens dispõem-se numa grande roda, voltados para nascente e o “operador”, munido de uma navalha bem afiada, procede à circuncisão do prepúcio. O familiar ou amigo do jovem faz-lhe um penso, cuspindo um pouco da cola (que esteve a mastigar) sobre a ferida ou espalhando uma mistura de ervas e cola moída, após o que liga a ferida com uma tira de pano, em volta dos rins de forma a manter o pénis em posição horizontal. O penso é mudado ao fim de três dias e as lavagens são feitas com água a cair de uma determinada altura. 

Depois da cerimónia os jovens recolhem a uma barraca, onde permanecem trinta dias, sob a vigilância dos responsáveis. Durante este período recebem ensinamentos destinados a orientar-lhes o comportamento futuro, como membros da comunidade familiar ou da etnia. Dormem de costas enquanto a ferida não cicatriza e não lhes é permitido olhar para as mulheres ou raparigas nem tão pouco falar com pessoas estranhas à cerimónia. Durante o tempo que permanecem na barraca do “fanado”, a família prepara uma túnica de pano de cor branca ou azul e uns calções do mesmo tecido. No fim dos trinta dias regressam às suas casas, após o que se segue a festa da saída do “fanado”, aberta a toda a gente.

[5] Nova Lamego.

[
6] Amendoim.

[7] Vendedor ambulante.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

(**) Vd. poste de 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

(ªªª) Vd. poste de 22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

(****) Vd. poste de 22 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)

(*****) Deve tratar-se de Arturo Biasutti, que esteve vinte anos na Guiné, entre 1946 e 1966. Pertencia ao PIME (Instituto Pontifício para as Missões no Exterior). Vd. aqui algumas das suas publicações sobre a Guiné-Bissau:

BIASUTTI (Arturo), Venti anni in Guinea Portoghese (1946-1966). Ricordi personali e privati del padre Arturo Biasutti del PIME. Marino, Villa Scozzese (Italia), 1967. Policopiado.

BIASUTTI (Arturo), Vokabulari kriol-purtguîs (Esboço -. Proposta de Vocabulário).
Bafatá (Guiné-Bissau), 1982. (1ª edição). Segunda edição, com o mesmo título, Bubaque (Guiné-Bissau), 1987.

BIASUTTI (Arturo), Jisus nô Salbadur. Esta obra foi escrita com o pseudónimo de PA BIÀS. Bubaque (Missão Católica), 1972.

Fonte:  Vd. Dioceses da Guiné-Buissau > O que diferentes Missionários da Guiné-Bissau escreveram sobre a própria Guiné-Bissau, Por Fr. João Vicente, ofm