quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23739: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte V: a juventude antes da tropa, quando o pai sonhava para ele uma grande carreira no exército francês


Lisboa > Museu Militar >  15 de Abril de 2010  > 
 Sessão de apresentação do livro Amadu Djaló > A filha e o neto, antes do início da sessão...  [Foto da criança reproduzida com a devida autorização, na altura, da sua mãe e do seu avô].

 O Amadu foi apresentado como um grande contador de histórias, dotado de uma prodigiosa memória, como um homem bom, recto e profundamente religioso, bem como um grande operacional que serviu, com coragem e dedicação o exército colonial português, a partir de 1962,  ano em que fez a sua recruta em Bolama... Promovido a 1º Cabo em 1966, foi sucessivamente graduado em furriel (1970), 2º sargento (1971) e alferes (1973). Na altura, tinha mais uma filha e um filho, a viverem no estrangeiro

Foto: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu, neste caso  relativas ao período que antecedeu a sua incorporação na tropa portuguesa, no princípio do ano de 1962 (*). Antes disso, o seu pai tinha o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos. Após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa nunca  poderia ambicionar...

Neste segundo excerto, que publicamos abarcando os seus primeiros vinte anos,  podemos  vê-lo como negociante de fruta (que ia comprar, com um primo,  na região de Tombali para depois ir vender no Senegal) e de gado, além de organizador de "festas de despedida de rapariga solteira", nos bairros populares de Bafatá.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro.

O  nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk". É de relembrar  aqui o "making of" deste livro. Reproduzimos um mail recente que ele nos mandou, aos editores de serviço, no dia 22 do corrente: 

(...) "Boa noite, Caros Camaradas Carlos e Luís: Obrigado pelo excelente trabalho de edição que tem sido feito sobre o livro do Amadú. E naturalmente trazem-me à memória o ano que levou a preparar o livro. Quase todos os dias o Amadú tocava à campainha para mais um dia de trabalho. Almoçava comigo (não era grande garfo, por falta de dentes) e muitas vezes prosseguíamos pela tarde fora até o levar ao comboio em Entre-Campos. Foram uns tempos muito interessantes que me fizeram recuar mais de 40 anos.

Lamentavelmente o negócio não foi devidamente esclarecido entre as partes e julgo que a pressa em levar por diante o projecto (as folhas já tinham passado por mais que uma mão) interferiu com o desentendimento que se seguiu. Mas levámos a peito o projecto e fomos até ao fim, o lançamento do livro. E é sobre esse acontecimento que vos envio algumas fotos que me vieram parar às mãos . Quase todas elas estão identificadas. Obrigado pelo vosso empenho.
Abraço do Virgínio Briote. (...)

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Os primeiros anos de vida - Parte II:
a juventude antes da tropa, quando o pai sonhava para ele uma grande carreira no exército francês 
 (pp. 26-29)

por Amadu Bailo Djaló



O meu pai tinha dois sobrinhos-netos na Guiné Francesa, que eram militares do Exército Francês, ambos 2º sargentos e ex-combatentes na guerra da Indochina. Depois de três anos de serviço, tiveram direito a três meses de férias. Quando as vieram gozar, um deles, o Aguibo [1], veio a Bafatá visitar a mãe e, nessa ocasião, encontrou-se em nossa casa com o meu pai.

− Aguibo, quando regressares, podes levar o Amadu para o Senegal e deixá-lo em casa do meu sobrinho, o Idrissa Djaló? Ele fica lá até arranjarmos documentos para ele poder ir também para França.

− Sim, tio, não vejo inconveniente.

O meu pai, apesar de eu ter irmãos mais velhos e mais novos, via em mim, algo diferente dos outros. Quando estava com a doença, de que veio a morrer, quis falar comigo, não sei se para me contar algum segredo se para me dar algum conselho, mas eu, infelizmente, não pude ir. 

Na altura, eu já era militar, estava em Bissau, e não me autorizaram a deslocação a Bafatá. Minha mãe pediu que lhe confiasse a conversa que ma transmitia, quando surgisse a oportunidade de estar comigo. Meu pai, doente, não disse nada, não sei porquê, talvez porque a minha mãe, em certas ocasiões,  revelava mais afeição a um dos meus irmãos.

Sempre que podia, o meu pai ia trocando escudos por francos. Às vezes, era eu próprio que os ia trocar a uma loja que fazia câmbios, a Casa Pinheiro. E ia-me informando dessas poupanças.

Dizia-me que não queria que eu fizesse tropa no exército português, pois nunca passaria de cabo. Falava-me disto como se fosse um segredo. Que, em consultas que tinha feito, tinha visto para mim um posto brilhante, com galões, que na Guiné nunca eu viria ter. Que preto não conseguia postos desses na Guiné.

Um rapaz que trabalhava comigo na horta, chamado Abdulai, vinha todos os dias dormir a nossa casa e era o meu companheiro de quarto. Queria acompanhar-me, ir comigo para o Senegal, mas antes queria fazer uma consulta para a viagem e perguntou-me se eu conhecia algum adivinho.

Levei-o ao meu tio-avô Canjura Drame, tio da minha mãe. Era um velho com cerca de 70 anos, muito estimado, procurado por muitas pessoas para consultas. Quando chegámos a casa do meu tio-avô, disse-lhe que o meu companheiro o queria consultar.

Depois de Abdulai lhe entregar 2$50, Canjura juntou os búzios, fechou-os numa mão, passou-lhos para a mão de Abdulai e disse-lhe:

 Pensa aí o que desejas.

O rapaz ficou algum tempo com a mão fechada junto à boca e devolveu-lhos. Mas Canjura, disse:
 Larga-os!

Os búzios espalharam-se na esteira e o meu tio-avô, passado um bocado, perguntou:
 Trata-se de alguma viagem?
 Sim − respondeu Abdulai.

Esta operação do lançamento dos búzios repetiu-se mais duas ou três vezes. Depois, o meu tio-avô, virando-se para Abdulai, disse:
 Olha, vejo que se fores,  vais encontrar muito dinheiro. Agora, eu não estou a ver nenhuma viagem nem nenhuma saída tua.

No fim da consulta o meu tio-avô olhou para mim e perguntou-me para onde eu queria ir.
− Para o Senegal, o Abdulai quer ir comigo.
 O teu pai sabe disso?   perguntou-me o meu tio.
 O meu pai está a tratar da viagem!
 Diz então ao teu pai que veja bem essa viagem. Porque se fores, nunca mais voltarás a ver os teus pais. Quando o teu pai morrer, ninguém te vai substituir em casa e tu és o único herdeiro. A vossa casa vai ser abandonada, vai cair de velha, e os terrenos vão ser ocupados por gente de outra etnia. 

E continuou:
 Tu, Amadu, se não fizeres a viagem, vais ficar com a casa, com os terrenos, com a família à tua beira, mas isso só vai acontecer até um dia. E quando esse dia chegar vais ter que aguentar, porque é o dia em que vais acordar com uma calça, uma camisa e um par de chinelos, mais nada [2]! Quando a camisa se romper, vais querer mudar e não vais ter outra para vestir. Então, a sorte vai outra vez aproximar-se de ti.

Voltámos, eu e o Abdulai, para casa e à noite perguntei ao meu pai se ele tinha feito alguma consulta sobre a minha ida para o Senegal.

 Não, tu fizeste?
 Eu também não, pai.

Não lhe contei nada da conversa com o meu tio-avô. Nesse próprio dia, o meu pai disse que no dia seguinte me diria o resultado, porque ainda ia fazer a consulta.

Desde os meus quinze anos, o meu pai obrigava-me a fazer um tratamento para evitar que alguma coisa má me pudesse atingir no futuro. Era um costume a que alguns pais recorriam para bem dos seus filhos. Um tratamento simples. À noite ao deitar-me e ao levantar-me de manhã, dirigia-me ao quarto do meu pai, despia-me e lavava-me com a água [3], as mãos, os braços até ao cotovelo, a cara e a cabeça e espalhava um pouco pelo corpo e pelos pés. Um tratamento que durava quarenta dias, durante o qual não era permitido ter relações. Eu era muito jovem e não me agradava o tratamento, por isso o meu pai obrigava-me a lavar-me no quarto dele. Vendo a minha cara, às vezes, um pouco contrariada, apontava-me o dedo e dizia:
 Amadu, se soubesses o que tens à tua frente, agradecias-me!

O meu pai falava, às vezes, de uma guerra e que eu iria participar nela. E, quando ele falava nisso, eu pensava numa guerra que se viria a travar na Europa.

Na manhã do dia seguinte, entrei no quarto do meu pai, para me lavar. Quando peguei na garrafa reparei numa grande quantidade de notas de francos, em cima do Alcorão. Abanei a cabeça e disse para mim, que já não ia viajar. O meu pai entrou, nessa altura, no quarto e disse-me:
 Estive a ver aquilo da viagem, ontem à noite. Tu não podes ir, Amadu. És o meu único herdeiro e, se fosses para o Senegal, isto iria ficar ao abandono. Vai morrer um homem de cor clara, que sou eu, e tu és o meu único herdeiro. E finalizou:
 Leva o dinheiro, é teu, guarda-o ou compra o que quiseres, não quero que penses que é por causa do dinheiro que não vais fazer a viagem.

Troquei as notas por escudos, comprei um maço de “Português Suave”, uma caixa de fósforos e o que restou devolvi-o ao meu pai, que não queria aceitar. Mas eu insisti, deixei-lhe o dinheiro em cima da cama.

Nos finais de 1959, o meu primo Ussumane comprou um carro, uma Commer, de caixa aberta, e passámos a negociar laranjas com as populações senegalesas de Ziguinchor. Deslocávamo-nos para sul, ficávamos em Salancaur, cujo régulo era nosso patrício e dali partíamos para comprar a laranja em Guilege, Quebo Sutubá, Mejo, Afiá, enchíamos a Commer e íamos para o Senegal vender a fruta. Este trabalho durou até Abril de 1960.

A incorporação de Janeiro já tinha passado. Tive conhecimento que os meus companheiros, da reunião com o governador, já tinham sido todos incorporados, feito a recruta em Bolama e, depois, escolhidos para condutores. E também soube que, na administração em Bafatá, tinham chamado pelo meu nome.

Terminadas as viagens para Ziguinchor, voltámos ao negócio do gado. Levava uma vida boa, tinha 19 anos, algum dinheiro no bolso e gostava de me divertir. Ia a festas e depois, eu e o meu primo Fuad, começámos a organizá-las, cobrando as entradas. 

Tínhamos uma casa desocupada, que era do meu irmão mais velho, que servia para as nossas festas. Falávamos a dois ou três amigos que sábado ou domingo ia haver baju [4] de sala e eles encarregavam-se de contar a outros e em breve quase toda a Bafatá sabia. Quando queríamos fazer festas de despedida de rapariga solteira, fazíamos uma carta e entregávamo-la no bairro da Ponte Nova e em Nema, onde tínhamos amigos que se encarregavam de avisar as pessoas. Era sempre aos sábados e ia até às madrugadas de domingo, a dançar e a comer. Passou-se assim o ano de 1960.
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Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Aguibo Djaló já morreu. O irmão, Tchana Djaló, seguiu a carreira militar até atingir o posto de Coronel. Foi piloto de aviões, reformou-se e enveredou pela carreira política, chegando a ser Ministro da Agricultura da República da Guiné-Conakry.

[2] Durante dois dias seguidos, em 1979, não tive comida em minha casa, para os meus cinco filhos, a minha mãe, as minhas duas mulheres e para mim próprio. Recordo que no terceiro dia fui até ao mercado, encontrar-me com dois antigos companheiros de infância. Um tinha um bar e o outro uma banca com artigos diversos. Quando chegou o meio-dia, as mulheres trouxeram-lhes os almoços. Que tinha comido bem, foi assim que respondi ao convite deles. Se não havia comida em casa, também não tinha direito a comer, dizia para mim. Levantei-me e fui embora dali. Para passar o tempo dirigi-me a casa de um amigo, Suleimane, que era comandante do PAIGC. Quando entrei, Suleimane disse que lhe tinham oferecido tanto cuscuz, que ele sozinho não conseguia comer. Suleimane, não me apetece, há três dias que não tenho nada para dar de comer em casa. Amadu, se queres ter alguma coisa para dar, tens que comer aqui, respondeu o meu amigo. Depois de lhe fazer companhia, Suleimane repartiu comigo um saco de arroz, 25 quilos para cada um, e ainda me passou para as mãos 500 escudos. Fui ao mercado, gastei pouco mais de 50 escudos em peixe, óleo de palma e cebolas, e fui para casa.

[3] Consiste em escrever, numa tábua de madeira, um versículo do Alcorão e depois lavar as letras com água. Depois da lavagem a água passa a designar-se por “Nassi”. Perfumada com algumas gotas, é metida numa garrafa e tapada. É essa água que é utilizada nos tratamentos do jovem.

[4] Baile.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A angústia de ter de tomar decisões difíceis, que podem ser de sorte ou azar, ou até de vida ou de morte, leva-nos, em muitas culturas, e não apenas as africanas, a tentar aliviar a carga, partilhando esse ato com outrem a quem reconhecemos poderes sobrenaturais: a pitonisa de Delphos, o vidente, o feiticeiro, o curandeiro, a bruta, o padre, o médico, o "psi".... O tio-avô do Amadu sabia espalhar e "ouvir" os búzios... Afinal, foi ele que o aconselhou a não sair da casa paterna... O Amadu poderia ter ido parar à Legião Estrangeira... E ainda combater na Argélia.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Que alternativas tinhan então os nossos guineenses ? A tropa ou o "mato"...