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sábado, 15 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21255: 16 anos a blogar (15): A Mãe-de-água e as Fontelas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 14 de Agosto de 2020, para nos fala mais uma vez do povo de Trás-os-Montes, seus usos e costumes:


A MÃE-DE-ÁGUA E AS FONTELAS

Francisco Baptista

São sete homens, é meio-dia, de um qualquer dia de Julho, o calor aperta nas serranias transmontanas, abrem as sacas de linho ou estopa e retiram, o pão, o chouriço, o presunto, o toucinho, o frango assado, ovos cozidos ou omeletes, tiram dos bolsos das calças as navalhas de Palaçoulo, já gastas pelo uso, o almoço de cada um que varia entre todos estes produtos, vai começar, debaixo de sobreiros altos que ensombram a "fontela" da água que brota à superfície da terra, com que matarão a sede. Há também algum vinho numa "cabaça" que passará de mão em mão e de boca em boca, para revigorar as forças..

Cinco homens feitos, já todos chefes de família, são tiradores de cortiça, enrijecidos e queimados, pelo trabalho e pela exposição solar, com as mãos calejadas e negras pelo contacto frequente com o "verde" das tábuas de cortiça. O sexto homem, forte e atlético é o patrão, que orienta e ajuda na tiragem da cortiça sempre com a preocupação de que não se estraguem as árvores. O sétimo é um dos filhos dele que tanto poderá ter treze como vinte anos e tem por missão pintar nos sobreiros descortiçados o ano da tiragem e as iniciais do proprietário e transportar às costas a cortiça para as "rodeiras" onde possam ir os carros de vacas. Se tiver energia, curiosidade e habilidade para tal, poderá também subir aos sobreiros e colaborar na tiragem, o mais velho deles tinha. A cortiça para ter uma grossura razoável para ser vendida para as fábricas de Fiães e Lourosa, por lei, tem que ter pelo menos nove anos de crescimento, que qualquer pessoa pode ler nela, pois cada ano faz uma marca.

Nesse tempo, última metade do século passado, havia na aldeia cerca de quinze tiradores de cortiça, poucas aldeias de Trás-os-Montes, teriam tantos. Hoje por causa das alterações climáticas e das secas que tem provocado a morte de milhares de sobreiros, a produção de cortiça é muito menor, porém os tiradores de cortiça muitos filhos ou netos desses, continuam a ser no mesmo número.

A tiragem da cortiça é dos poucos trabalhos agrícolas que ainda não é mecanizável, tal como no passado e não o será no futuro penso eu. Trabalho humano, muito duro, mesmo para retirar as tábuas mais largas do tronco, que sai da terra, requer muita destreza e equilíbrio, quando se sobe aos canos. Usam uma machada própria, por ferramenta principal e uma panca, pau rijo e comprido, em cunha, a que alguns chamavam Vicente, (como se fosse mais um trabalhador) para ajudar. Trabalho de preferência, em grupo, por ser mais rentável e seguro. Antigamente, porque a cortiça era muita, a colheita da aldeia ocupava-lhes todo o tempo, agora que é menor, os novos corticeiros vão a aldeias próximas e percorrem ainda as Beiras e o Ribatejo enquanto o tempo o permite.

Brunhoso persiste em não ficar parado e em tentar sobreviver à desertificação. Há jovens empresários na aldeia que se esforçam tanto nesta como noutras áreas por criar trabalho e rendimento para eles e para os outros A cena do almoço, a que eles chamam merenda, (é a seco, a comida não é cozinhada ao lume) passa-se na Lagariça onde há a maior mancha de sobreiros de Brunhoso. O mais novo terá também por tarefa, transportar água da fontela sempre que os trabalhadores tenham sede.

Depois de alguns dias na Lagariça cenas semelhantes se repetirão na Hortelã, Fonte da Dona, Ferreiros, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Relva, Azinhal, Gaiteiro, Ribeira, Entre-Caminhos, Cova dos Lobos, Escaleiras.

Hortelã 

Lagariça

Bem perto, a um quilómetro, fica a Fonte da Dona, onde os homens almoçavam debaixo de um grande sobreiro. Tanto a água desta fonte como a da Lagariça embora fresca não era muito saborosa, talvez por causa das raízes dos sobreiros ou das folhas que caíam e que muitas vezes apodreciam lá dentro, pois a limpeza era sazonal, quando alguém aparecia.
Do outro lado no "avessedo" é a Hortelã, onde existe a mata mais densa de sobreiros, muitos quilómetros ao redor, lá não há fontes ou fontelas.

Fontela da Fonte da Dona 

Fontela da Lagariça (encoberta) 

Fontela de Juncais, com corcha de cortiça

Uma corcha, mais visivel

Descendo mais um quilómetro na direcção do Sabor existe o sobreiral dos Ferreiros com uma fontela num olival próximo onde havia também uma macieira com boas malapas (maçãs pequenas e saborosas) Quando não havia fontelas tinha que se transportar a água de longe em cabaças, cântaros ou garrafões.

Na Fonte do Junco e no Azinhal, no termo de Remondes, havia quatro sobreirais, os do Azinhal, encravados na grande área de sobreiros e oliveiras, propriedade da Aprígia uma ricaça de Mogadouro. No sobreiral de baixo, quase no limite, havia uma fonte onde a água, muito boa, manava com abundância e ia irrigar hortas e árvores de fruto dessa senhora.

As fontes ou fontelas estavam espalhadas por toda a zona camprestre para tirar a sede a tantos lavradores e trabalhadores da terra que além de grandes caminhadas, muitas vezes a pé, suportavam trabalhos cansativos e duros. Essas fontes normalmente eram pequenas nascentes de água que brotavam do solo e onde desde tempos antigos as pessoas cavavam uma pequena de poça, onde se pudesse beber, de bruços, com o auxílio de uma corcha de cortiça (no Alentejo chamada cocho ou cocharro) ou com as mãos a fazer concha. Quem bebia dumas e doutras sabia distinguir as suas águas pelo sabor, pela frescura, pela doçura, pela salinidade ou outros atributos. Não eram objecto de qualquer análise bacteriana ou outra por parte das entidades públicas. Com a sua experiência e o seu saber, os habitantes da aldeia é que as analisavam e discutiam entre eles as suas qualidades.

À beira de alguns caminhos havia fontelas muito conhecidas, como as de Juncais e Juncaínhos. A mais famosa era a de Juncaínhos pela frescura e doçura da sua água. Dela contava o Sr. João Passarinho o seguinte facto passado nos anos quarenta: Em 1940 foram para Mogadouro várias equipas dos Serviços Cartográficos do Exército para fazer o cadastro geométrico da propriedade rústica de todo o concelho, onde se demoraram durante mais de dois anos. Para Brunhoso foi uma equipa comandada por um tenente, tendo sido o Sr João, então um jovem trabalhador, já bem conhecedor dos prédios rústicos e dos caminhos, contratado para informador e guia. Disse-me ele, repetidas vezes, que o Sr. Tenente só gostava da água de Juncaínhos, e que todos os dias mandava lá o impedido buscá-la. Infelizmente hoje, essa fontela, está coberta por arbustos e silvas, espreitando pelo emaranhado que a cobre, nem água se vê, provavelmente some-se por outro sítio.

O Sr. João Passarinho já morreu há mais de trinta anos, acredito que durante a vida dele a fontela sempre teve boa água ao dispor de todos os caminhantes e que ele a terá limpado muitos vezes. Era um grande homem, de pequena estatura, humilde, trabalhador, que à jeira ou ajudando outros tão necessitados como ele, conheceu palmo a palmo toda a área agrícola da aldeia. O Sr. João Lagoa, outro bom homem, sendo o homem mais rico da aldeia, a quem ele chamava padrinho, seria dos filhos dele, e de metade dos habitante da terra, não terá sido mais feliz do que ele. Penso que ele morreu a sonhar que toda a área agrícola de Brunhoso, de vinte e um quilómetros quadrados onde ele tinha trabalhado quase 80 anos e onde ele tinha uma pequenina parcela se despedia dele.

Depois de um dia de trabalho extenuante não haveria sono mais reparador e gratificante do que o dos trabalhadores da terra. Ao deixarem a vida, no caminho para o sono eterno seriam transportado por campos de searas, hortas, prados, vinhas, freixos, olmos, sobreiros, carrascos, oliveiras, castanheiros e outras árvores, fontes, rios, ribeiros. Vidas tão cumpridas como eles somente terão tido os cientistas e artistas que se empenharam em grandes projetos criativos.

Nesse tempo toda a água que se consumia em Brunhoso, nascia dentro do seu "termo". A nascente que alimentava a aldeia a chamada "Mãe-de-Água" ficava a um quilómetro da aldeia, numa encosta , que subia para o souto dos castanheiros a nordeste. Era uma mina de água construída em tempos antigos por especialistas, que fazia confluir as águas subterrâneas da área, para um depósito, donde depois era canalizada para as quatro "bicas" da aldeia, para a Fontoz nas Fontaínhas e o tanque das Eiras de Baixo para os animais beberem e onde as pessoas podiam também colher água dos canos, antes de cair nos depósitos, nos tanques.


No limite sudoeste a cinco quilómetros da aldeia passava o rio Sabor, que criava nas suas arribas um microclima mais ameno, quase mediterrânico, propício às culturas das oliveiras, das amendoeiras e das figueiras. Criava fantasias de brincadeiras na água entre os mais novos e lindos espelhos de água com paisagens belas pintadas de azul celeste.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

terça-feira, 14 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Brunhoso - Horta de Lamas


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 12 Julho de 2020:


VIAGEM


A música parece vir do Além. 
Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer. 

Neste tempo de pandemia, entre confinado e desconfiado, é ela que me me leva a conviver, a recordar com saudade e melancolia, a comunidade das mulheres e dos homens que amei e já partiram. A música derrama-se com suavidade sobre o silêncio que me cerca e traz consigo um tempo que foi morrendo. Vem-me à memória uma caminhada que fiz há dias na aldeia

Passei pelo sítio dos Olmos, tão verdes , tão frondosos, morreram há muitos anos, agora há lá freixos e choupos, passei pelo largo da Lameira, cruzamento de caminhos e sigo em direcção a Lamas por um caminho sombreado de sobreiros, carrasqueiras e carvalheiras. Em Lamas avisto uma horta bem plantada e bem cuidada, como esta somente irei encontrar mais duas. As outras hortas estão cheias de fenanco, silvas e, arbustos, entre elas está a horta que foi duns avós, depois dos meus pais, onde cavei, lavrei, reguei, apanhei batatas, muitos vegetais, comi melões e nabos, ginjas, amoras de silva.
Toquei a burra , nas voltas da nora, ainda antes de ir à escola, por vezes parava já cansado de tantas voltas, a burra parava também, e de longe, na parte de baixo da horta, ouvia o meu avô chamar-me malvado, porque a água se acabava na "augueira".

A água das poças e charcos de Lamas e Vale-do-Meio que regava "por pé" cerca de trinta hortas destes dois sítios corre agora com abundância pelo caminho que de Vale-de-Meio desce para Lamas que encharca o caminho de Vale-do Meio e prossegue entre as hortas de Lamas. Aprendi a viver com tudo e a viver em todos os ambientes, gostaria de ter a experiência de vida de viver algum tempo no deserto mas o tempo de vida e as comodidades de 50 anos de cidade já me condicionam. Tornei-me um pequeno-burguês, com carro, com sofá, com horários, hábitos e outras comodidades. Sou um cidadão bem comportado, vigiado pelos meus iguais e outros, ainda antes do Covid 19.

Lameiro de Vale-de-Cabo

Os habitantes da aldeia agora reduzidos a um quinto de tempos passados, cultivam alguns quintais e pequenas hortas à volta do povo. Cultivar para vender deixou de ser rentável há muitos anos. Continuo, passo pelos lameiros (prados) de Vale-de Cabo, são dois, um deles era dos meus pais, é de sobrinhos meus, gostava de ir para lá com as vacas, tinha luz, visibilidade, avistava-se a aldeia, ficava no planalto, ao lado era o Urzal, com terras de cereal a perder de vista, com algumas vinhas na Tapada perto, dos meus tios, onde roubei algumas uvas. Já não há vinhas, nem searas douradas ao vento, no seu lugar alguns donos das terras plantaram oliveiras e amendoeiras.

 Sobreiros das Rodelas

Subo um pouco mais o planalto, chego às Rodelas e avisto a paisagem típica transmontana, para lá do Sabor, escondido no vale e algumas franjas de Castro Vicente, atrás do cabeço de Santo Cristo. O caminho entre as Rodelas e as Avessadas é frondoso, com sobreiros com muita rama, grandes e fortes, de ambos os lados. Sinto um grande prazer em caminhar à sombra destas árvores gigantes, que ganharam direito de cidadania , pela riqueza que têm dado à terra..Viro para casa por um caminho paralelo e em parte igual, com muitas terras de "adil" e bastante oliveiras também. Nas Avessadas havia algumas vinhas, entre elas a dos meus avós maternos, onde fui ainda à vindima, quando era garoto da escola. Só já resta uma vinha mais nova, cereais também não há, há oliveiras e amendoeiras, a cobrir parte da área Desço os Lameirôes, volto aos Olmos e entro na aldeia com a igreja à vista, a grande casa, a Casa de Deus, agora mais deserta, como as casas e os terrenos e eu que gostos de cânticos, sem saber cantar, recordo o canto compassado, arrastado por vozes pesadas, gastas, graves, dos homens grandes (mais velhos) da aldeia, num latim antigo, em tempo de Quaresma, fechados na Igreja, perto do portão grande. por onde saiam as procissões. ainda saem. Há muitos anos que não se ouve esse cântico, os que o cantavam já morreram todos, com as suas mortes a terra foi definhando e morrendo, para mim essa música parecia vir do Além.

Texto, fotos e legendas: © Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a segunda e última parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte II

Gen Carlos Azeredo
No Porto, o Tenente-Coronel Carlos Azeredo e a sua malta do MFA gastaram apenas 8 minutos a consumar o êxito do 25 de Abril em todo o Entre Minho e Douro - até o Covid-19 acha que o Norte é uma nação -, fizeram apenas duas prisões, o 2.º Comandante e o Comandante da Região Militar, e por menos de 24 horas, e decidiram não prender o seu General Comandante, sem dúvida pessoa importante, considerando que aquele Quartel General era a sua residência familiar, a sua filha estar de casamento marcado para o dia 27 e serviço da boda contratado para ser servido seu Salão Nobre.

Em Lisboa, o 25 de Abril foi feito à grande e à escala de Clausewitz; no Porto foi feito à “Português Suave” e à moda de D. Afonso Henriques, em Guimarães!

O “vírus” do MFA surgiu na Guiné, em 1972, o General Spínola o seu profeta e os capitães “seus rapazes” da Spinolândia os seus apóstolos, no contexto da sua ambição de substituir o Almirante Américo Tomás no cargo de Presidente da República, para o que contava com a cumplicidade de Marcello Caetano; tendo-lhe este roído a corda, ao saber que diligenciava apoios políticos de Sá Carneiro, de Pinto Balsemão e da Ala Liberal e de Mário Soares, Salgado Zenha, da Acção Socialista Portuguesa, mantendo a cumplicidade com os seus capitães, como “barriga de aluguer” para a mudança. A influência do feitiço da Guiné e da dinâmica do pensamento e acção de Amílcar Cabral a contaminar militares e políticos portugueses, e, plausivelmente, a grande oportunidade perdida de dar um fim decente e justo às guerras ultramarinas.

Em 1972, o PAIGC estava na mó de baixo e o seu “balneário” de guineenses e cabo-verdianos era um saco de gatos. Foi quando Amílcar Cabral foi à Rússia implorar armamento da última geração. Ouvi Nino Vieira dizer na RTP que ele agitava o catálogo do míssil Strela enquanto implorava aos seus interlocutores: - A nossa luta está a morrer de sede; a União Soviética tem nesta arma a nossa salvação. Não nos deixem morrer de sede.

A União Soviética não se fez rogada e veio em seu socorro, redimensionou o armamento do PAIGC e, em Março de 1973, o seu semi-secreto míssil Strela chegava à Guiné e os seus operadores prontos para retirar a supremacia do seu céu aos pássaros metálicos de Base Aérea n.º 12, em Bissalanca.

Sendo a espinha dorsal do Exército, a classe dos Capitães é tradicionalmente refilona, qual espinha na garganta das hierarquias. No meu tempo já reclamavam contra as “violências do Ministério do Exército”. A revolta antecedente, o 28 de Maio de 1926, havia sido detonada por capitães (mas com hierarquia, o General Gomes da Costa o seu chefe) e foi a guerra do Ultramar que fez esgotar o prazo de validade dos quase 50 anos de centuriões e de convívio da classe com o regime do Estado Novo.

O 25 de Abril de 1974 foi detonado pela mesma classe dos Capitães, “rapazes da Guiné” na sua maioria, improvável, por ser um colectivo, e horizontal, sem chefe nem hierarquias. Uma revolta acéfala, quase perfeita, mas com consequências.

 Junta de Salvação Nacional

A operação “Viragem Histórica” não deixou cair o poder na rua, o MFA não quis o poder formal e personificou-o de imediato nos seus “padrinhos” Generais António de Spínola, Costa Gomes e na Junta de Salvação Nacional. Os seus actores regressaram aos seus quartéis, o Major Otelo, seu comandante operacional em Lisboa, voltou a instrutor na Academia Militar, o Tenente-Coronel Azeredo, seu comandante operacional no Porto, manteve-se sem comando nem comandados, a aguardar a Junta Médica do Hospital Militar, para o passar à reserva como “deficiente mental” e o Capitão Vasco Lourenço, o seu enfant terrible e locomotiva da revolta, protagonizou-o no seu desterro nos Açores.

A par da vitória do movimento em todo o universo português, da efectivação em Lisboa do poder político e da cadeia de comando militar, do Minho a Timor, na manhã do dia 26, o MFA de Bissau detonou a sua própria revolta, desnatou o Comando Militar na Guiné da sua cúpula, alardeando que o PAIGC e a Guiné eram a mesma coisa, os seus factores não eram arbitrários e começou a fazer o seu caminho, mais para se libertar e libertar Portugal da Guiné que libertar do seu povo. Com tão insano proceder num estado de guerra, o MFA da Guiné tornou-se em potencial vitorioso do PAIGC, e, sem ter legitimidade, subtraiu a Portugal o seu peso negocial.

Acontecera a primeira deriva do MFA. Não é preciso galões para saber que a melhor negociação é sempre conseguida a partir de posição de força e não com piedosas declarações de intenção da capitulação.

O MFA abriu avenidas a movimentos de opinião, legalizou 13 partidos políticos, 10 revolucionários de esquerda, apenas 3 moderados, decretou a proscrição dos movimentos da Direita e ele mesmo se dividiu em duas 2 facções político-militares: os spinolistas, representando cerca de 20%, tendenciais a um certo cesarismo, personificado pelo General Spínola e os “puros”, representando 80%., mais ou menos afectos à personalidade do General Costa Gomes.

Com o PREC (Processo Revolucionário em Curso), o MFA “empalmou” os spinolistas, passou a dividir o poder com a rua e a sua massa dos “puros” dividir-se-á em 3 facções: os moderados, da democracia por eleições justas e livres, respaldados no General Costa Gomes; os gonçalvistas, filo-comunistas ou engrenados nas suas estruturas partidárias, afectos ao General Vasco Gonçalves; e copconistas, os esquerdistas contestatários da democracia formal e os revolucionários da democracia directa, que converteram e alçaram a seu profeta Otelo Saraiva de Carvalho, ora graduado em Oficial-General.

As consequências da acefalia hierárquica do MFA começavam a vir ao de cima: o divisionismo resultou no PREC, no abandalhamento dos quartéis, que espantou o mundo e tanto maculou a honra castrense das FA Portuguesas, a tragédia da descolonização do Ultramar e a acelerada instalação do caos na organização económica da Sociedade portuguesa. O MFA que se portara à altura de todas as solicitações militares, parecia desconhecedor do seu próprio povo e da sua história.

Cap Salgueiro Maia
Os efeitos da sua acefalia e do seu colectivismo tiveram a sua evidência logo no seu primeiro momento vitorioso: aceitaram que Marcello Caetano, já rendido ao MFA e prisioneiro do Capitão Salgueiro Maia, lhes escolhesse o General Spínola para Presidente da Junta de Salvação Nacional/ Presidente da República de Portugal e, por inerência, Supremo Comandante das Forças Armadas!...

O MFA começou o seu desvario menos de 2 meses após o sucesso da sua revolta, ao tirar o tapete ao Prof. Palma Carlos e ao seu Governo, na sua falta de análise da discrepância da lógica civilista e de “estado de direito” do Governo com a lógica militar e voluntarista do seu Programa, e, enquanto noviços da democracia, sobrepuseram-se a democratas militantes, ajuizaram o valor da sua proposta ao Conselho de Estado, órgão composto por 12 militares e 7 civis, com poderes constituintes, escolhidos pelo MFA, como golpe conspirativo. Em última análise, propunha-se a busca de um “quadro jurídico”, pela troca da prioridade de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, pela de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, com começo na rápida eleição do Presidente da República e por um governo legítimo, empossado por ele.

Republicano e civilista, para o I Governo Provisório só o Povo legitimava o poder, uma cabeça um voto era urgente, um direito inalienável, daí a prioridade atribuída à democratização; para os “Capitães de Abril”, o poder residia no Programa do MFA, a sua legitimação residia no seu colectivo e no poder das suas armas, o controle político do Governo era uma prerrogativa revolucionária da Comissão Coordenadora, a descolonização tinha prioridade sobre a democracia formal.

E, enquanto considerou que, com a transferência da ditadura portuguesa para a ditadura dos seus partidos únicos e armados, sem permissão de outros partidos políticos nem quaisquer eleições, os povos do Ultramar ficariam automaticamente “livres”, o MFA procrastinou durante mais de 2 anos a democracia a Portugal, impôs-nos eleições constituintes, legislativas e presidenciais, e, após a instituição da nossa democracia pluralista, ainda a tutelou durante 7 anos com um Conselho da Revolução.

Gen Vasco Gonçalves
O MFA dos Capitães abrira-se às hierarquias, a Comissão Coordenadora alçou o seu presidente, Coronel Vasco Gonçalves à chefia do II Governo Provisório e começou a fazer o seu caminho para retirar o General Spínola de inquilino do Palácio de Belém, tecendo uma “teoria da conspiração”, ao embargar a manifestação em seu apoio, a ”Maioria Silenciosa”, segundo os seus promotores, coordenada pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, que havia comandado a “Operação Tridente” e derrotado o PAIGC nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, ou a conspiração do “28 de Setembro”, segundo o MFA e políticos apoiantes, que o COPCON desmantelou, a prender organizadores e manifestantes, a dinamizar cortes das estradas, barricadas e a permitir que milícias populares molestassem e prendessem pessoas a eito, por impulsão do fogoso Capitão Vasco Lourenço, o que o popularizará como o Capitão “Melena e Pá”. Vasco Lourenço aqueceu o forno e Otelo Saraiva de Carvalho coseu o pão. Como esse poder na rua foi concessão do COPCON, o evento serviu para germinar a facção político-militar copconista ou revolucionária, a que ele dará o seu patrocínio.

O Primeiro-ministro Vasco Gonçalves ascendeu ao generalato, formou e chefiou mais 3 governos provisórios mas populistas, o germe da facção político-militar gonçalvista, e, sem mandato do povo e na ausência de qualquer quadro político democrático, mudou profunda, embora provisoriamente, a nossa organização económica, com não raros atropelos à nossa realidade de 3.º país mais antigo do mundo, o respeito merecido pelos 900 anos de independência, de instituições governamentais e de história e, no referido à descolonização, os deveres e responsabilidades contraídos por Portugal para com os seus povos, ao longo de 500 anos da sua soberania ultramarina.

Em 11 de Março de 1975, eclodiu em Lisboa uma esquisita tentativa de golpe de Estado, anti-MFA, por terra e pelo ar, com o pretexto de prevenir o massacre de largas dezenas de militares e civis sob o nome código de “Matança da Páscoa”, a perpetrar por revolucionários naturais e internacionais (até constava haver tupamaros aboletados no Ralis!…), segundo informações do governo franquista de Madrid. O MFA superou-o e aproveitou para retirou a facção spinolista da circulação, catrafilando-a e a muitos civis na cadeia; os escapados à captura foram conspirar para a Espanha, organizaram-se no MDLP, e, por ironia do destino, constituirão o potencial estratégico dos moderados do 25 de Novembro, que meter na cadeia os gonçalvistas e os copconistas

11 de Março de 1975

Senti revolta, quando proeminentes Capitães de Abril não tiveram pejo em ir a Cuba pavonear-se de revolucionários e reverenciar Fidel Castro, apenas um ano era passado sobre a crise dos 3 G´s, planeada e comandada por oficiais do exército regular cubano, destacados para o PAIGC, que ajudaram a matar 63 e a ferir gravemente em combate 269 seus e nossos camaradas de armas, o preço do nosso sangue desses eventos bélicos; e o MFA não teve pejo em disponibilizar o aeroporto da ilha de Santa Maria, Açores, a Cuba, para escala técnica do trânsito do exército cubano, a substituir-se a Portugal em Angola, a ajudar o MPLA a espoliar os bens e na expulsão de centenas de milhares de portugueses, muitos com apenas a roupa do corpo (os Retornados).

É a memória que faz a História e não o contrário. Um facto não comentado e quase desconhecido: em 1973, a agenda de Marcello Caetano passara a inscrever a autodeterminação do Ultramar africano. Os Estados Unidos e a União Soviética “estiveram” na operação “viragem Histórica”?

Em 25 de Abril de 1974, a esquadra da NATO da operação “Daw Patrol” estava fundeada no Tejo e o MFA sabia - o então Comandante Rosa Coutinho estava de serviço ao “quarto da noite” no Comiberlant, em Oeiras, - que não dispararia sobre os revoltosos, não obstante a fragata canadiana Huran apontar os seus canhões ao Terreiro do Paço. Quando do 11 de Março de 1975, a informação da “Matança da Páscoa” teve origem em Moscovo e o evento coincidiu com a operação “Intex 75” da NATO, com passagem por Lisboa.

A prioridade civilista “democratização” não vingou sobre a prioridade militar “descolonização”. Na afirmativa, será plausível os contactos preliminares bilaterais terem passado a negociações sérias, prevenidos o êxodo ou o milhão de retornados do Ultramar, os mais de dois milhões de mortos das guerras civis subsequentes e o empobrecimento de colonizador e de colonizados e até os legítimos interesses dos 500 anos de soberania portuguesa salvaguardados.

A FNLA e o MPLA tinham perdido a guerra de Angola por falta de comparência, as negociações da sua autodeterminação estavam praticamente concluídas com Jonas Savimbi e a UNITA, a conceder em 1975, trabalho começado pelos Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e levado a bom porto pelo Eng.º Santos e Castro e os Generais Soares Carneiro e Passos Ramos (irmão do major homónimo assassinado no Pelundo-Guiné). No respeitante a Moçambique, havia negociações conduzidas pelo Eng.º Jorge Jardim. A Guiné era o nosso calcanhar de Aquiles, mas havia contactos com o PAIGC, do Comandante Alpoim Calvão e Luís Cabral.

Começar a descolonização pela Guiné e não por Angola terá sido o maior erro estratégico do MFA ou da descolonização portuguesa. O Programa do MFA inscrevia-a, mas nem a discutira nem a planeara, houve navegação à bolina, não se olhou para as origens das ondas e foi liquidada com a acelerada retracção militar, sem equidade, pelo abandono, para espanto do mundo - e Portugal ficará sob o protectorado do FMI, Fundo Monetário Internacional.

Portugal foi a única potência que fez a descolonização, a empobrecer colonizador e descolonizados.

Eleições Legislativas de 1975

Na sua curta era, o MFA garantiu-nos as eleições constituintes e legislativas e fez outras coisas notáveis, como o Recenseamento Eleitoral, a organização do regresso de centena de milhares de refugiados e a instituição do IARN, que realizou a sua integração plena.

A coragem e a generosidade são fontes do erro e foram apanágio dos “Capitães de Abril”. Mas o seu maior legado é a nossa Democracia.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

domingo, 17 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a primeira parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte I

Abril legou a Maio a Primavera, o seu esplendor e a pandemia do Covid-19, esse sinistro vírus rotundo e cornudo.

Os poetas cantam que “a primavera vai e volta sempre,/A mocidade vai e não volta mais”, as zaragatoas neofaríngeas ajudam a confirmar que esse malvado pode ir e voltar, os epidemiologistas consideram-no democrático, mas, do seu regime, nós apenas vamos conhecendo, hora a hora, dia a dia, o número de infectados, dos seus condenados à morte, e experimentado o confinamento e a distanciação social - a praxis das ditaduras (ou ele não seja made in China).

O confinamento encurta o prazo de validade do nosso grupo etário, provoca o esvaziamento das garrafeiras, cuida da alteração dos valores da nossa composição química, com erupções de ácido úrico, diabetes, colesterol, a escalada da tensão arterial, e, no relativo à distanciação social, cuida de enfraquecer a nossa resistência mecânica, com o reumático e pela rarefacção daqueles movimentos mecânicos de corpo a corpo, para os quais os irracionais têm época própria, mas que a espécie humana exercita todo o ano. Que a Ciência, essa divina componente da espécie humana, o sepulte rapidamente no inferno.

Panorâmica da Avenida dos Aliados, no Porto, a 1 de maio de 1974. O primeiro 1º de Maio em liberdade
Foto e legenda com a devida vénia a Expresso

Como os ecos das celebrações “nacionais” do 25 de Abril e do 1.º de Maio ainda não se esvaíram, começo a servir esta prosa memorialista, confeccionada nessa ditadura temporal do Covid-19, pondo o avental de contestatário: não perdi nem a devoção ao 25 de Abril nem a estima pelos “capitães de Abril”, sou crítico da impreparação política e derivas do MFA, sou contrário aos feriados nacionais do 25 de Abril e do 5 de Outubro, porque celebram as mudanças de regime, pela sua lógica triunfalista, divisionista, o oposto da união, e, em desafio à gramática, sou crítico de se grafar República Portuguesa e não República de Portugal.

A celebração do 1.º de Maio, pela sua dimensão mundial, abrangente pelo seu sentido de exaltação da dignidade do trabalhador e do emprego, como criadores de toda a riqueza da espécie humana, da sua distribuição, equitativa como direito natural, é merecedora do decreto de feriado nacional.

Invocando o princípio de equidade e considerando a nossa maioridade cívica um dado adquirido, preconizo a substituição de alguns feriados nacionais, celebrativos das mudanças de regime e religiosos (dias santos) por outros, celebrativos da nossa história e identidade, por exemplo da fundação da nacionalidade, da independência nacional, da Batalha Real (de Aljubarrota), do nosso primeiro Descobrimento marítimo, etc.

A celebração do primeiro 1.º de Maio de 1974 do após 25 de Abril foi de toda a gente, abrangente, à dimensão nacional, ainda a CGTP nem era ideológica nem havida cometido o seu pecado original de complementar um partido político, um milhão de pessoas celebrou-o em Lisboa, um pouco menos celebrou-o no Porto, o país um mar de unidade nacional, de maturidade cívica e a primeira evidência da pureza e sinceridade do ideal dos “capitães de Abril”, cujas projecções matemáticas davam 95% de adesão à sua revolta. Foi um massivo aval do Povo ao MFA.

No referido neste blogue à celebração pelo PAIGC do 28 de Maio de 1965 com a CArt 676, em Pirada, a efeméride da gestação do regime do Estado Novo não era feriado nacional, mas o PAIGC sinalizava-a com bombardeamentos nocturnos e a fogachar as tabancas fronteiriças; desgastar o moral e matar a tropa era o seu intento, mas as granadas são cegas e geralmente matavam e estropiavam crianças, mulheres e velhos, seus compatriotas.

O PAIGC celebrou o 28 de Maio de 1965 não só em Pirada, mas também noutras quadrículas; chamou a minha CCav 703 à colação da sua celebração, sobre a população fula e mandinga da tabanca de Buruntuma, no extremo Leste, com tiro tenso e curvo, de armas ligeiras em proximidade e de armas pesadas em território estrangeiro, o seu gozo e o nosso mau bocado duraram menos de 5 minutos – arriscamos o envolvimento à sua retaguarda, no estrangeiro - e o resultado da sua celebração foi: PAIGC, 2 (mortos) – Tropa e população, 0 (mortos).

As suas flagelações sobre a CCav 703 e a populosa tabanca de Buruntuma tornaram-se rotineiras – pela alvorada, pela hora do almoço e pela hora de recolher. Nesse mesmo ano, obrigou-nos a participar na sua comemoração nocturna do 19 de Setembro, aniversário do seu líder Amílcar Cabral, e, também, na celebração nocturna de 24 de Setembro, aniversário da sua fundação, paternidade que ele nunca usurpou, mas que “historiadores” do politicamente correcto teimam em lhe imputar, expropriando-a ao pedreiro comunista Rafael Barbosa. Porquê? Por a PIDE não o ter liquidado, hospedado no Tarrafal e por ele ter regressado a Bissau “reeducado”, adversário do PAIGC e entusiasta do spinolismo.

O engenheiro agrónomo Amílcar Cabral só não foi hóspede do Tarrafal, quando estudava os solos e subvertia o “proletariado rural” do sul e do leste da Guiné, porque o Governador Comandante Melo e Alvim, bom conhecedor do povo e da realidade guineense, o estimava e não deixou. Liderou a guerra de libertação da Guiné, é o pai da Nacionalidade bissau-guineense, não foi o pai fundador do PAIGC, mas seu padrasto.

Para não deixar os meus parcos créditos de veterano e de cronista da Guerra da Guiné arrastar-se pelas ruas da amargura, não resisto em abordar os acontecimentos do mês de Maio de 1973 – as celebrações bélicas do PAIGC sobre Guileje, Gadamael e Guidaje -, ou “crise dos 3 G´s”, cuja extensão e profundidade provocaram a gestação do 25 de Abril e serviram de rampa de lançamento à sua declaração unilateral de independência.

O impensável aconteceu na guarnição de Guileje, nesse mês de Maio de 1973. A guerra contava 12 anos, muito aguerrida e dura no sul, e, pela primeira vez, um oficial superior do Exército Português baixou a espada, de renúncia ao combate e à soberania de Portugal sobre o sector militar que comandava, concedendo às FARP a sua primeira libertação territorial - o seu aquartelamento fortificado, deserto de tropa, e a sua tabanca, deserta de gente.

A “Operação Amílcar Cabral” havia sido idealizada por ele, e, em sua memória póstuma, o PAIGC confiou o planeamento e o seu comando no terreno a oficiais cubanos, seus cooperantes. Nesse mês de Maio de 1973, as suas FARP (Forças Armadas Revolucionárias Populares) de Nino Vieira (comandante) e Pedro Pires (comissário político) fizeram da tabanca, das suas acessibilidades e do aquartelamento de Guileje, no sul, o seu campo de tiro tenso e curvo, montaram emboscadas sangrentas nas suas acessibilidades, a privá-la de água e reabastecimentos, orientaram e acertaram-lhe com mais de 900 obuses.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje. 
Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]

Por sua análise da situação, o comandante do sector Major Coutinho e Lima reagiu a esse dilúvio de metralha inimiga pelo descarte ao combate, optou pela economia de sofrimento, sangue e na prevenção a aprisionamentos. Contrariando as ordens presenciais do Comandante-Chefe, manobrou a retirada ordenada da guarnição para Gadamael Porto, secundada pelo êxodo da totalidade população, na sua aversão à sua “libertação” pelo PAIGC. Terá negligenciado que transferia a problemática de Guileje para essa tabanca e subavaliado a elevada remuneração que concederá à avidez territorial do PAIGC e da sua propaganda internacional: abandonou a principal base fortificada de soberania portuguesa, na extensa fronteira entre Buruntuma e Aldeia Formosa (Quebo), e, pela sua incompatibilidade com a táctica furtiva dessa retirada, teve de deixar para trás 2 obuses de 140, autometralhadoras Fox, granadeiros Whaite, camiões Mercedes e Berliet, morteiros de 82, de 107, bazucas de 89, algumas G3, bens de aquartelamento e provisões da intendência, incluindo os whisquies do seu bar de oficiais, mapas do Estado-Maior, etc., etc.

Então, a partir de 28 de Maio de 1973, o PAIGC passou a içar a sua bandeira no pau da bandeira, na parada desse aquartelamento fortificado, que pertencera à bandeira nacional, e o mundo viu-se invadido pela sua propaganda gráfica e audiovisual, com enfoque nos cenários do abandono pelo Exército Português das instalações, do içar da sua bandeira e daquele volumoso espólio de guerra, acreditamos que deixado inoperativo. E foi a crise de Guileje que credibilizará junto da OUA, da ONU e das chancelarias de países ocidentais a futura manobra do PAIGC da declaração unilateral da independência, no Boé, em 24 de Setembro seguinte, que encravilhou mais a diplomacia de Portugal.

Como Guileje era uma base bem armada e com abrigos de betão armado, construídos pela Engenharia militar, os planeadores dessa operação não previam a sua autoderrota, o seu principal objectivo seria a captura de alguns prisioneiros, para trunfo e trofeu, (a “Operação Mar Verde” tornara a sua cadeia em Conacri devoluta de militares portugueses). Este sucesso artilhou-lhes o etos belicista, as FARP avançaram do estrangeiro o seu armamento pesado cerca de 15 km no interior da Guiné e sacrificaram a tabanca de Gadamael-Porto com o seu dilúvio de metralha, apenas protegida com valas a céu aberto, ora pejada de gente em pavor, de tropa desmoralizada e à beira de um ataque de nervos.

Ouvi o comandante Pedro Pires dizer na RTP que as coordenadas e a precisão do tiro curvo sobre Gadamael lhes foram facultadas por um desses mapas de Estado-Maior, deixado para trás em Guileje. Depois de terem gasto mais de 1000 obuses a destruir instalações e a revolver o espaço de Gadamael Porto, investimento alto mas de parcos os resultados, as FARP foram forçados à retirada acelerada para os seus refúgios no estrangeiro, ameaçadas pelo general “época das chuvas” e já a confrontar-se com os reforços de tropas especiais, vindas de Cufar, de Bissau e até de Guidaje, em reforço da sua defesa, sua missão extensiva ao assalto e destruição das suas bases de retaguarda, em Kandiafara, Simbel e Tarsaia, na Rep. da G-Conacri, manobra idêntica à que havia destruído e pilhado a base de retaguarda em Cubam-Hori no Senegal, que alimentava a operação sobre Guidaje.

Major Correia de Campos
Nesse mesmo mês de Maio de 1973 e quase em sintonia com os desenvolvimentos em Guileje, as FARP de Chico Té (comandante) e Manuel dos Santos (comissário político), cumprindo e sintonizados com o planeamento e o comando operacional e oficiais cubanos, também cercaram a tabanca de Guidaje por todos os lados, na fronteira com o Senegal, despejaram mais de 1000 obuses sobre ela, mas nem conseguiram o seu isolamento e nem puderam lançar-se ao seu assalto, planeado para o dia de 23 Maio. Os Fuzileiros, a Companhia de Paraquedistas 121, comandada pelo Capitão Moura Calheiros e a CCav 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, furavam o seu isolamento, o Tenente Coronel Correia de Campos, comandante do sector, embargava a repetição de Guileje. Quando os seus subordinados lhe abordaram a retirada para Bigene, plantou-se na frente do cavalo de frisa, impecavelmente fardado, a agitar o pingalim, de pistola em punho e a dizer-lhes:
- Só por cima do meu cadáver!

As valas de Guidaje  
Com a devida vénia a SPM 0018 - CCAÇ 3

E as FARP tiveram de desmontar o cerco a Guidaje e manobrar a retirada para os seus abrigos no estrangeiro, já a contas com uma manobra de envolvimento montada pelo Batalhão dos Comandos Africanos à sua base de retaguarda de Cumbam-Hori, no Senegal, comandado pelo Tenente-Coronel Almeida Bruno, as suas subunidades comandadas pelos Capitães Raul Folques, Matos Gomes e António Ramos, que eliminaram o seu coordenador, tenente cubano Raul Abade, lhes causaram elevadas baixas, entre nativos e cooperantes estrangeiros, e a perda de 100 armas automáticas, 100 morteiros de 60, 81 e 120, 14 canhões e de 100 toneladas de munições.

Os dois oficiais Correia de Campos e Salgueiro Maia, que em Maio de 1973 se notabilizaram no contexto bélico de Guidaje, virão a ser essenciais ao sucesso da revolta do dia 25 de Abril, em Lisboa, com os seus desempenhos no Terreiro do Paço, no Largo do Carmo, etc. Se muitos foram os chamados, estes foram dos decisivos.

Se o 25 de Abril é contentamento e cantado como um “dia inteiro e limpo” (poesia de Sophia), pela sua bondade intrínseca e virtude profissional dos seus actores, a estragação ou pecados do MFA são susceptíveis de reparos, por se ter contraído o esquerdismo, a doença infantil das revoluções e pelas derivas ao seu ideal.

O Major Otelo Saraiva de Carvalho ter-se-á inspirado no pensamento (formado e estruturado na Casa dos Estudantes do Império) e na acção (tirocinada na China e como comandante supremo da Guerra da Guiné) de Amílcar Cabral, para planear e comandar a operação “Viragem Histórica” vulgo “25 de Abril”.

Amílcar Cabral planeou o dispositivo subversivo e militar da sua guerra sobre um mapa escolar da Guiné, o leste contrariou-o, os fulas ciosos de poderem fazer a sua própria libertação e ganhou-a sem Marinha nem Força Aérea; o Major Otelo planeou essa operação sobre um mapa do ACP das estradas de Portugal, mas o Norte dos “portugueses dos mais antigos” quis fazer o próprio golpe – e o MFA ganhou e sem precisar da Marinha e da Força Aérea.

Em Lisboa, o Major Otelo e o estado-maior da conspiração precisaram das tropas do Centro, Lisboa e Sul, de meter muita gente na prisão, sob o pretexto da sua importância e gastaram 20 horas até à vitória da revolta, e ficou a dever a sua materialização sem combate, incruenta, ao “espírito da Guiné” do Coronel Romeiras Júnior, comandante do RC7, ao desempenho e espírito de missão do Capitão Salgueiro Maia, da sua malta, da malta das guarnições de Tomar e de Estremoz, e, sobremaneira, à consciência do Comandante António Louçã, que desobedeceu à ordem recebida pelos canais hierárquicos e não disparou sobre a sua manobra no Terreiro do Paço as granadas de urânio empobrecido que municiavam dos canhões da sua fragata Gago Coutinho – Salgueiro Maia e a sua malta teriam sido dizimados.
(O MFA do PREC cometeu a insanidade de sinalizar ambos de “reaccionários”)…

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20971: 16 anos a blogar (11): Poema de João Afonso Bento Soares, maj gen ref, sobre a sua terra natal: "Meimoa, Princesa da Cova da Beira"

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20971: 16 anos a blogar (11): Poema de João Afonso Bento Soares, maj gen ref, sobre a sua terra natal: "Meimoa, Princesa da Cova da Beira"


Penamacor > Meimoa > c. 2001 > Ponte Romana sobre o rio Meimoa, afluente do rio Zêzere


Foto (e legenda): © JA Bento Soares  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


MEIMOA, Princesa da Cova da Beira

Pergunto o que sou e o que fiz

Questiono, da vida, o seu sentido 
Interrogo o que penso e o que quis 
Indago porque aqui terei nascido.

Percebi que há nascer, há primaveras,
Houve mesmo as maleitas estivais;
Colhi outonais frutos, quais quimeras,
Perdido em sonhos que não sonho mais.

Mas ficou, da Meimoa, o chamamento,
Bendigo suas gentes e seu chão
Verdejando ou terreando em seu lamento... 

Deixando-lhe estes versos numa reza
Ergo uma prece, um voto, uma oração
A quem, da Cova da Beira, é Princesa!

Dia da Senhora da Póvoa – 4 de Junho de 2001 –
João Afonso


[João Afonso Bento Soares, ex-capitão eng trms, STM / QG / CTIG (1968/70), hoje maj gen ref, nosso grã-tabanqueiro nº 785; vive em Oeiras, tem sete referências no blogue]


2. Trocando mensagens pascais, já em plena pandemia de COVID-19,  recebi do João Afonso  a seguinte mensagem:

 sábado, 11/04, 17:58



Bem haja, e que tudo vá correndo bem aí para baixo. Eu vivo nos arredores de Lisboa, mas nasci na Beira Baixa, numa aldeia chamada Meimoa (concelho de Penamacor) e a ela (que um irmão meu mais velho baptizou de "Princesa da Cova da Beira") fiz os dizeres em anexo, na qualidade de mui fraco bardo (...)
 
Mais um Abraço

JA Bento Soares
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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20928: 16 anos a blogar (10): Independências - Parte II (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20928: 16 anos a blogar (10): Independências - Parte II (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

 

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2020, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos um longo texto subordinado ao tema "Independências", do qual publicamos hoje a segunda parte.




(Clicar na imagem para ampliar)


INDEPENDÊNCIAS - PARTE II

(Continuação)

No cortejo de misérias o pior ainda está para vir, com a desestabilização das potências emergentes, que não conseguiram, não puderam, ou não quiseram alterar a relação do poder com os seus cidadãos, distribuindo para o bem geral as riquezas que os seus territórios são detentores.
Quando o dinheiro entrava a rodos teria sido muito mais barato criar infra-estruturas como rede de esgotos, água, habitação e emprego, sistemas de saúde, do que o custo a pagar pelas epidemias, de cólera, ébola, sarampo, guerras com milhares de mortos e estropiados para não falar na hecatombe que esta pandemia fará num continente tão desprotegido apesar de tão rico, se atentarmos no mapa da distribuição das suas riquezas.

Como já mencionei, o problema já não pode ser resolvido pelos próprios países que ficaram reféns das grandes companhias que dominam a economia mundial, que não estão nada interessadas nisso.
As moedas nacionais não contam para nada, são os dólares ou francos que encharcam as economias conforme a zona de influência. Vejamos a acusações dos ganhos que a França aufere com a sua moeda tutelar sobre as moedas nas ex-colónias em África a que até a nossa Guiné já se rendeu funcionando aí um franco oriundo do Senegal.

Dizem economistas que estudam o fenómeno da pobreza em pais ricos, enquanto esses povos são empurrados para becos sem saída. Não há solução pois os seus países são impedidos de promoverem o desenvolvimento sustentável equilibrado, porque as empresas petrolíferas e de minério, passam a explorar essas riquezas despejando milhões de dólares sobre esses países, que assim, não transformam o tecido produtivo mas passam auferir do que não produzem, não deixando as mais-valias que receberiam se o transformassem e vendessem depois da transformação.

"Não lhes dês peixe ensina-os a pescar". Assim diz o ditado.

A Noruega, quando foi descoberto petróleo na sua costa, era um país pobre de pescadores. Negociou duramente, foi chantageada, mas conseguiu não ser relegada e assim participar no bolo que lhe permitiu ser hoje o que é. E porquê? Porque era um país com uma vincada politica social para redistribuição as riquezas ali descobertas.

Outro caso paradigmático passou-se na Holanda.

A Doença Holandesa

No Norte da Holanda, a Royal Dutch Shell em parceria com Exxon junto à aldeia de Shochterem em 1959, descobre a maior jazida de gás da Europa. Seguiu-se a fartura do gás. Mas não tardou muito que os dirigentes desse país se questionassem sobre os benefícios de tal descoberta e se ela seria uma bênção. As pessoas começaram a perder os empregos e outros sectores da economia afundaram-se, criando assim um padrão que a revista The Economista chamou em 1977 como a “Doença Holandesa”. Está claro que a Holanda reverteu essa situação para seu bem e não para sua desgraça.

Mas em África dirigentes deslumbrados com tudo o que conseguem comprar, vivem numa bolha embriagados com uísque nunca menos de 18 anos, vinho importado das melhores castas e roupas compradas nas melhores capitais europeias . O dinheiro parece cair das árvores sem fim.
Os preços são alavancados, a produção cai a pique, impera o desenrasque do pequeno comércio de rua nas grandes cidades e quem tem posição de chefia começa a amealhar. O preço do petróleo tomando por exemplo Angola ($3,5 milhões dias antes da baixa desse produto) dá para tudo e como não há incentivo à produção, não se produz, importam-se até produtos de primeira necessidade, que eram produzidos antes, só pelo o luxo de dizer que é importado.

Também não há cobrança de impostos de monta, a justiça funciona na lei de extorsão do mais forte, segurança social é coisa que nem ouviram falar, o estado é assim uma cadeira do poder só para alguns e raros, são os que não acabaram nas malhas da corrupção numa rede infindável de filhos, sobrinhos e alguns amigos que esbanjam pelo o Mundo fora o dinheiro que não lhes custou a ganhar, já que a liberdade tão duramente conquistada, perde-se na falta de solidariedade e da Justiça social e duma politica e reguladora da causa pública.
Para essas fortunas existem sempre contas especiais e os offshore mal de que sofre a economia portuguesa, também onde se cruzam muitas vezes.
Em Angola por exemplo a teia não é diferente da de outros países.

Por estranho que pareça, embora seja a ideia aqui no blogue, não foram a URSS nem os seus satélites apoiantes das lutas armadas, os beneficiários das riquezas e julgo que o seu envolvimento acaba por ser deficitário, pois só a Rússia emerge como potência económica e militar. Os outros apressaram-se erigir duvidosas democracias musculadas e a recolher-se sob o manto da NATO, participando em aventuras como Iraque, Afeganistão, e em manobras que visam intimidar os antigos patronos, com resultados que espero nunca sejam funestos para eles e para nós, a julgar pelos resultados do passado.

Assim o desenvolvimento da industria petrolífera da Sonangol deve-se à BP, do Reino Unido e a Chevron e a Exxon Mobil, dos Estados Unidos e à Total francesa que extraiu mais petróleo do país do que qualquer outra empresa. As receitas do petróleo angolanas, em 2011, equiparam-se às receitas da Coca-Cola ou da Amazon em todo o Mundo. A China, maior importador de petróleo do Mundo, também reclama o seu pedaço com empresas estatais. Também Moscovo, Manhattan, Coreia do Norte e Indonésia, todos associados em offshores, a BP, a Total, mais empresas petrolíferas, mais o gigante da distribuição Glencore, sediada na Suíça, formam a Queensway Group que tem como riqueza o que sacam do subsolo africano.

Uma última palavra para a “nossa Guiné” tão maltratada pelos seus dirigentes, que lutam num pós-independência por um poder de riqueza de pouca monta. Sem riquezas no subsolo, têm deixado desbastar as suas florestas, que saem do país rumo à China e alimentam assim a fome devoradora que o pais tem pela transformação que, depois vende ao Ocidente com valor acrescentado.

Fala-se pontualmente da existência de alumínio e petróleo mas a verdade é que são produtos como o caju, os únicos produtos dignos de nota numa monocultura perigosa. A Guiné é acusada de ser um narco-estado e qualquer um pode ver também que é um estado falhado. Os golpes de estado, institucionais ou armados, são uma constante, as eleições são subvertidas constantemente, a parte que perde nunca aceita o resultado e a que ganha através de chapelada eleitoral, também finca os pés num daqui não saio, daqui ninguém me tira.
Que estará guardado para aquele pais onde a sua maior riqueza será a diversidade étnica, que também pode ser o seu maior problema pois o sonho de Amílcar Cabral, de um País um povo e uma só bandeira está cada vez difícil de atingir?
Será anexada pelos vizinhos do Norte, mais bem posicionados?
Esperar para ver é o que nos resta.

Por cá, a busca do precioso ouro preto também tem tido a suas épocas de procura obstinada. Em Alcobaça furaram em vários lados, fizeram tremer zonas residenciais, perfuraram em zonas agrícolas, e por último no mar em Aljezur o que irá por em risco o nosso turismo bem como meio ambiente. Não sei se com algum ganho, pois os ganhos tirando os gastos, também reportados, o estorno para o Estado português e, uma vez que não temos condições para a própria exploração, logo os galifões mundiais assentarão arraiais de onde levarão a maior parte do lucro, de nada servindo a boa experiência Norueguesa ou da Doença Holandesa, que de má memória foi convertida a tempo e não se transformou em pandemia.

“Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.”
Mahatma Gandhi

Um abraço caseiro para todos os camaradas
Dia 28/04/2020
45.º dia de confinamento e com muito tempo ainda pela frente.
Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20925: 16 anos a blogar (9): Independências - Parte I (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20925: 16 anos a blogar (9): Independências - Parte I (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

 

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2020, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos um longo texto subordinado ao tema "Independências", do qual publicamos hoje a primeira parte.




(Clicar na imagem para ampliar)


INDEPENDÊNCIAS - PARTE I


Caros Camaradas

Começaria por pedir a especial atenção para os dados bem como mapa da existência de minérios, tanto de usos mais gerais bem como preciosos, petróleo e gás natural. Foram dados publicados pelo o Jornalista de investigação premiado do Financial Times, Tom Burgis no seu livro "A Pilhagem de África":
No mapa é referido onde estão as riquezas desse continente tão rico e talvez, por isso mesmo, tão miserável.

À medida que nos distanciamos dos anos em que a libertação das colónias foi exigida pelos respectivos movimentos, vão-se avançados como novas visões da solução dos problemas, que os países emergentes sofrem passados que são 50/60 anos da sua autodeterminação.
Pelo que me é dado a perceber, segundo as opiniões dos mais diversos comentários, é que a independência é boa para mim, que sei viver com ela. Como diria uma velhota da minha terra com ar da maior sabedoria quando via o marido chegar perdido de bêbedo a casa:
– O vinho devia ser só para alguns e para mim, que o sei beber.

A África subsariana já ia com atraso em relação aos países do Índico e Sudoeste Asiático bem como o próprio Norte de África, tinham alcançado a sua independência logo no fim da II Guerra Mundial e vai revindicar pela voz de activistas mais esclarecidos na sua maioria estudantes nacionalistas, que passam a militar clandestinamente nas cidades das potências colonizadoras.
Na altura os dirigentes coloniais fizeram leituras erradas sobre o que se estava a passar. Confundiram nacionalismo, autodeterminação e independência, com comunismo, o que levou às cruzadas do costume e ao abafamento dos direitos humanos, bem como a uma repressão brutal pouco aceitável para um Mundo que se tinha visto livre do totalitarismo nazi e fascista.

Os impérios coloniais governavam dentro de uma bolha. Usavam, exploravam mas não conheciam e não se misturavam os povos sob sua administração. Assim, quando alguma coisa acontecia debaixo do seu nariz, o preconceito e racismo só lhes indicava uma direcção, que era a repressão. Aconteceu em todo o lado e com muitas dezenas de anos de intervalo. O pretenso castigo usado de forma exagerado acaba por ser recebido como justificação para que a violência se instale por todo o lado.

Assim, não era anormal ouvir um soldado chamar filho da puta a um negro e dizer-lhe que era por causa dele que ele para ali tinha ido. Ora o que era mentira, pois os autóctones tinham pegado em armas e revoltando-se contra o poder colonial, que o soldado defendia e representava.
O que quero dizer com isto, é que quem tem o poder dificilmente aprende com isso, se tem os olhos e sentidos abertos, logo os fecha porque a ganância é mais poderosa.
Crescem assim os movimentos iniciados por minorias intelectuais, que são fortemente reprimidas e que dai passam à luta armada.

Os países que foram atingindo a autodeterminação, passaram a servir de abrigo para os activistas, que a partir dai, lançavam ataques aos territórios sobre administração colonial.
Mas a luta dos povos tem avanços e recuos e muitos desses países sofreram golpes de estado, apoiados pelas potências ex-colonizadoras e assim nasce o neocolonialismo. Esses países com atitudes mais ao menos dúbias, acabaram por escorraçar quem o anterior regime apoiou numa inversão valores e politicas, ajudam a formar grupos armados, que passam a ter um papel activo muitas vezes contra os movimentos que tinham reivindicado junto das organizações internacionais o direito à independência da sua terra. É assim o prelúdio das guerras civis, que grassam por todo o continente sem fim à vista, num cortejo de horrores miséria e morte.

Atribui-se hoje como beneficiários dessas hecatombes humanitárias as claques governantais, que em total ausência de escrúpulos rege em proveito próprio o que devia servir para o bem estar do povo. A ambição desmedida, o novo-riquismo, as purgas, infectaram para sempre os dirigentes, que na sua juventude teriam vertido o seu sangue pelo ideal. (a ler "A Geração da Utopia", de Pepetela. para ter uma ideia).
Mas quem são os responsáveis pela continuação da criação de estados falhados, pelo aproveitamento da pilhagem feita à custa de trabalho escravo nas minas de diamantes, ouro, coltan, petróleo etc? Na verdade criticamos os governos africanos, mas não os verdadeiros responsáveis. Quem lhes compra os produtos a preços de miséria e lhes vende armamento para manterem a desestabilização permanente para assim continuarem a retirar dividendos com produtos regados com sangue?

Mediante esse estado de coisas, vai germinando entre saudosistas e preconceituosos, a opinião de que os povos nativos tudo dariam para voltarem para as potências colonizadoras e que se lá continuassem, os países que antes os administravam ou melhor se tem chegado à independência com minorias brancas no poder, então sim, atingiriam o paraíso na terra e que os negros, fornecedores da mão de obra barata, salvo honrosas excepções, estariam hoje todos contentes num regime, que acabaria por ser a separação entre cidade do asfalto e cimento, a da terra batida e a palhota, entre a cidade dos néon e os bairros nativos de duvidosa salubridade, num projecto falhado como se comprovou com a África do Sul e Rodésia. Falhado porque talhado em moldes de separação da comunidade branca e os direitos das outras comunidades, que ainda assim eram divididas por castas e em escalões étnicos.

Numa palavra, sociedade onde um engenheiro negro devia serventia a um servente branco. Uma sociedade onde as crianças brancas eram criadas pelo o carinho dos seus servos negros mas quando cresciam, ficavam tão maus como os pais, rejeitando e não retribuindo o amor que tinha recebido.
Um continente dividido em tempos idos a régua e esquadro pelas potências dominantes, sem qualquer cuidado nem respeito por laços familiares e culturais. Os problemas que persistem nunca serão resolvidos em mais sessenta anos, pois a resolução desses mesmos problemas está sujeito a interesses exteriores de quem não lhes interessa nada que sejam resolvidos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20924: 16 anos a blogar (8): Outro combate (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P20924: 16 anos a blogar (8): Outro combate (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Porto - Parque da Cidade
Foto: Com a devida vénia ao autor


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 29 de Abril de 2020:


OUTRO COMBATE

Francisco Baptista

Os dias de confinamento vão passando devagar, com algumas leituras agradáveis, algumas passagens breves pela televisão e pela internete e com algumas saídas ao Parque da Cidade ou às ruas próximas de casa, para desentorpecer as pernas, renovar o ar dos pulmões e viver a ilusão de caminhar só pela Terra a sentir, a liberdade, a paz e o silêncio, que esses momentos de solidão proporcionam. Anteontem foi o dia da Terra, essa entidade suprema, que criou todas as formas de vida e nos criou, que aprendi a amar por viver tantos anos em contacto próximo com ela, que na minha filosofia de vida, depois de muitos anos elegi como a justificação plausível e satisfatória para compreender os princípios e os fins, o nascimento e a morte.

Interrompo a escrita porque me telefona um camarada da Guiné, que vive em Santarém com a Boneca, uma cadela mais velha do que ele pois já tem 16 anos. Foi sempre um aventureiro, foi corredor de automóveis, teve um bom hotel numa pequena cidade do litoral, em Buba foi um organizador de paródias, criou no quartel uma emissora de rádio, com microfone e colunas potentes com discos pedidos e bailes fandangos e carnavalescos de militares na messe de sargentos. Continua a ser um bom amigo

Volto ao computador, e eu, que gosto de música, para preencher os espaços vazios que o meu pensamento um pouco letárgico cria, escolho no Youtube "Hasta Siempre Camarada" uma canção melódica e nostálgica sobre um guerrilheiro que sonhou e morreu a lutar por um ideal. Nathalie Cardone, com os requebros melódicos da sua voz jovem e com o bambolear ritmado do seu corpo esbelto, transmite prazer e emoção estética. a quem a ouve e a quem a vê.

A Terra, como uma Deusa indiferente à vontade dos humanos, continua a girar em torno do sol e em torno do seu eixo há milhões de anos, já teve somente um grande continente que por fenómenos geológicos vários ao longo de milhões de anos se foi fraccionando até tomar a forma actual com cinco continentes e cinco mares, até um dia muito distante. Na sua transformação foi criando as vidas mais simples e as mais complexas, até criar o homem que inventou a escrita, o amor, a informática, a arte e a bomba de hidrogénio.

Na Terra, o nosso adorável planeta azul e verde já houve cataclismos terríveis, grandes vulcões em erupção, terramotos, maremotos, idades de gelo implacáveis, epidemias, pandemias, pestes e outras grandes calamidades em que morreram milhões de seres vivos, de muitas espécie e muitos humanos também. A peste negra que veio também da China, nos meados do século XIV, terá matado 30 a 60% dos habitantes da Europa, a gripe espanhola que surgiu em 1918, terá matado entre 20 a 100 milhões de pessoas em todo o mundo, em quase todos os séculos houve grandes gripes e pandemias. Houve guerras terríveis entre os homens os filhos mais inteligentes da Terra. Bem perto de nós, no século vinte, na 1.ª Guerra Mundial morreram cerca de 40 milhões de pessoas: na 2.ª Guerra Mundial terão morrido 80 milhões de pessoas. Na Europa houve também a guerra civil espanhola, a guerra dos balcãs com muitos milhares de mortos e em Portugal, país de brandos costumes, houve a guerra do Ultramar com mais de 8 mil mortos.

Esta pandemia do covid-19 que nos altera as rotinas e obriga ao recolhimento , terá em comum com as outras que se têm sucedido talvez a omnisciência da Terra em procurar equilibrar os seus recursos de acordo com os seus habitantes.

Os homens por pensarem ser entidades superiores sonham com a vida eterna por não quererem aceitar o destino dos restantes habitantes da Terra. Dizem-nos que temos espírito, dizem-nos que temos alma, mas a nossa alma ou espírito volatiza-se quando o corpo, que é feito de água, de carbono, de ferro, de enxofre e doutras matérias-primas que a terra nos deu, morre e regressa às origens. Depois do dia da Terra tivemos o dia do livro, livros que vieram acrescentar a minha curiosidade em me compreender e conhecer a Terra que no sítio onde me criei se alongava por horizontes a perder de vista, que ainda me enchem a memória de sonhos. Os livros têm-me dado muito prazer muitos conhecimentos e têm também sido fontes de muitas dúvidas e interrogações de que nem sempre encontrei respostas. Penso muitas vezes se não teria sido mais feliz se fosse como os rapazes da minha aldeia e da minha idade, todos trabalhadores valentes e musculados que somente leram os livros da escola primária porque a isso foram obrigados. A esses que nunca foram curiosos e aceitaram o destino procurando melhorá-lo embora, aceitando os poderes e os deuses dos pais sem discussão, desejo longa vida ou mais breve se já vos pesarem os anos.

Os velhos portugueses do meu tempo, os da minha aldeia e doutras aldeias e cidades de Portugal, que regressaram e ainda se conservam vivos, agora vêem-se ameaçados pela clausura e pela segregação para sobreviverem, sem armas de defesa eficazes contra um inimigo que não dá a cara. Fragilizados pelas doenças das guerras africanas e pelas outras que vão surgindo com a idade, não quererem esconder-se por muito tempo debaixo das saias das mulheres, longe dos filhos, dos netos e dos amigos. Quando a vida lhes prometia realizações e aventuras, foram mandados para longe ouvir o troar assustador dos canhões e dar o corpo às balas com coragem, por uma Pátria que nunca lhes agradeceu. Que ninguém queira agora quando os seus filhos já estão criados e os seus netos são promessas de futuro, arrumá-los em casa como se fossem trastes velhos, fora de prazo. Há rumores, temos que estar atentos.

Para quem gostar de ler recomendo dois livros que estou a ler e outros dois que já li:
"Origens - Como a Terra Nos Criou" autor Lewis Dartnell;
"O Naufrágio das Civilizações" de Amin Maalouf

Acabei de ler já em Abril o romance "Um Milionário em Lisboa", de José Rodrigues dos Santos, que continua a história do "Homem de Constantinopla" sobre a vida de Calouste Gulbenkian.

Interessantes.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20921: 16 anos a blogar (7): Os camiões Volvo... e outras peripécias da cooperação com Bissau (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71)