Queridos amigos,
Há que reconhecer que o inquérito sobre as raças da Guiné elaborado pela Direção dos Serviços e Negócios Indígenas e aprovado pelo governador Leite Magalhães, e enviado às autoridades administrativas preponderantes com obrigação de resposta é uma peça de bastante interesse, abre caminho a sucessivos inquéritos que irão envolver governadores como Ricardo Vaz Monteiro e Sarmento Rodrigues, já na década de 1940. Terão seguramente estes inquéritos exigido às autoridades em causa a obrigação de olhar as populações na sua identidade socioeconómica e cultural. Agora, que acabo de ler integralmente o Boletim Oficial de 1928, só encontrei a resposta do administrador da Costa de Baixo e não me recordo de ter lido nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa outros elementos. Inquérito que dava muito trabalho, são múltiplas as questões levantadas pelo questionário, havia que ouvir os régulos e perceber a natureza das chefaturas, ouvir os comerciantes, conversar com os sipaios, os milícias, os chefes de posto, os professores, organizar convenientemente a resposta aos quesitos. Não era só o governador que ganhava informação e passava a deter conhecimento, a recolha de informação ajudava implicitamente a melhorar as relações humanas entre o colonizador e o colonizado. Ponto curioso, não conheço qualquer estudo que se debruce quanto à natureza destes inquéritos e as suas respostas.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927 e 1928, por inteiro (43)
Mário Beja Santos
O major António Leite Magalhães, através de portaria publicada em 12 de abril de 1927, determina aos administradores de concelho e circunscrições que efetuem um inquérito sobre as raças da Guiné de acordo com um questionário que fora elaborado pelo diretor dos Serviços e Negócios Indígenas. Alega, nos considerandos, que é um dos primeiros deveres das autoridades administrativas o de procurar conhecer o meio social indígena, sem esse conhecimento nenhum administrador de circunscrição se poderá julgar competente para o desempenho profícuo da sua missão. Além do mais, uma das funções mais importantes dessas autoridades é a administração da justiça dentro dos usos e direito consuetudinário quanto não ofenda os nossos direitos de soberania. É também uma das obrigações dos administradores promover o bem-estar económico dos povos, o que exige o conhecimento prévio e perfeito da sua organização económica, etc., etc.
O inquérito solicita aos respondentes que caracterizem os tipos diferentes de população, a sua origem segundo a tradição, as relações de simpatia ou hostilidade com os vizinhos e até as guerras e formas de combate praticadas; passando para as características morfológicas, pede informações sobre a estatura dos homens, a cor mais recorrente de pele, a conformação da cabeça (não esquecer que ainda estávamos numa época em que prevaleciam doutrinas raciais e a cabeça ser redonda ou alongada assumia grande importância), a cor e a inclinação dos olhos e dos cabelos, a forma e o comprimento do nariz, passava-se depois para a vida material (alimentação, habitação, vestuário, meios de existência), era bem pormenorizado o questionário sobre a organização familiar; e os últimos quesitos prendiam-se com a organização socioeconómica, a chamada vida psíquica (lazeres, artes, religião e ciência); e, por fim, competia aos administradores traduzir em todas as línguas um conjunto de palavras referindo os dez primeiros números, seguindo-se Deus, homem, mulher, pai e mãe, e acabando em alimentos correntes.
Posso informar o leitor que as únicas respostas que chegaram a ser publicadas no Boletim Oficial no ano de 1925 tem a ver com a circunscrição da Costa de Baixo, que, em termos muito reduzidos dá informações do seguinte tipo: a sede da circunscrição é Canchungo, as etnias predominantes são os Manjacos e os Brames ou Mancanhas, mas há também outras etnias com menos peso como Balantas, Fulas, Mandingas, Papéis, Fulas do Toro ou Turancas, Soninqués e Felupes. Habitam fundamentalmente entre os rios Cacheu e o Mansoa; são bastantes os regulados existentes, por exemplo: Costa de Baixo, Pelundo, Calequisse, Bassarel, as ilhas de Pecixe e Jata.
O administrador disserta com detalhe sobre as lendas existentes, isto com base numa relação amorosa entre um Mandinga e uma Fula de nome Bula; quanto à origem da etnia aventa a hipótese de ser um povo aborígene do Sudão. Considera que o Brame está destituído de espírito guerreiro, defende-se por necessidade, é singularmente indolente e guloso por bebidas; quanto ao aspeto étnico observa que os habitantes das ilhas de Pecixe e Jata devem ter conservado o primitivo tipo da etnia; não esquece de se falar das guerras dizendo que Manjacos, Brames e Papéis não se guerreiam entre si, já houve guerras entre Brames e Balantas, a última guerra datava de 1911.
A estatura média destes homens variava entre 1,60 m e 1,70 m; a cor da pele é preta, brilhante ou pardacenta; crânio pequeno, levemente alongado com um pronunciado achatamento nos temporais; olhos pretos ou castanhos; faces ossudas, de maçãs salientes pela dilatação dos côndilos maxilares que definem o traço facial; os rapazes têm muito orgulho nos seus trabalhosos penteados; a alimentação destas etnias é predominantemente vegetal: arroz, milhinho cozinhados com azeite de palma; cozinha-se em potes de barro e os alimentos são servidos em cabaços; constroem as suas casas de forma redonda.
Depois de dissertar sobre a dispersão das povoações, vai responder ao inquérito dizendo que o vestuário dos homens é uma tira de pele de cabra a tapar os órgãos genitais. É vulgar o uso de tatuagens, especialmente as mulheres e explica a natureza das mesmas: pequenas incisões à navalha localizadas no ventre, peito e braços, operadas as incisões são cobertas de uma mistura de cinza e azeite de palma que provoca nelas uma cicatrização em relevo.
Detalha-se sobre a circuncisão, passa para a agricultura e para as produções mais importantes: arroz, feijão, milhinho e o fundo; criam vacas e cabras, são muito habilidosos na indústria da tecelagem, tecem em tiras medindo 20 cm de largura, as quais, depois, cosidas umas às outras, formam os panos ricos de grande apreço.
Manjacos e Brames são polígamos e também se alonga a explicar a organização familiar, refere a dissolução do casamento, a gravidez, o parto, compete ao homem escolher o nome da criança, havia a curiosidade de escolherem nomes cristãos como Vicente, Ambrósio, Luís ou João Bico. O régulo principal tem o nome de Baticã, que significa Deus teve dó de mim. Trata-se de uma resposta ao questionário com imenso pormenor, tem praticamente resposta para tudo, quando não sabe e as perguntas que fez a seus colaboradores não lhe merecem confiança, prefere não responder. Irá até ao fim, tem referências sobre a educação dos filhos, sobre o direito sucessoral, enfatiza o respeito pelos velhos e loucos e os ritos funerários. Detalha a organização económica e dá resposta a questões sobre a religião, cultura e lazer, fala dos feiticeiros, jogos, danças, das manifestações da religião fetichista e da importância do Irã. Estima que o modo de contar dos Manjacos e Brames é muito rudimentar e termina com uma lista dos vocábulos tidos como essenciais.
O ano de 1928 merece necessariamente destaque. A Ditadura Nacional não encontrara solução para minorar a crise da dívida, negou-se a aceitar os termos do empréstimo que exigiam a presença de uma entidade vigilante em Portugal. Lançou-se desesperadamente a desempregar, a baixar ordenados e pensões, a encerrar instituições. Verificando os falhanços, mandaram um conjunto de políticos a Coimbra, pedir a Salazar para formar Governo. Encontramos no Boletim Oficial referências ao sufoco de sublevações e à prisão de republicanos, as deportações podiam ir dos Açores a Timor. Ainda estamos longe de 1931, haverá uma insurreição que começa nos Açores e chega à Guiné, haverá mesmo a destituição e o envio de Leite Magalhães para a metrópole. Mas vamos falar primeiro de 1929 e 1930.
Porto de Bissau, 1930
Decreto em que a Ditadura Nacional conforma a ação missionário do Império como missão civilizadora com Portugal na vanguardaMovimento revolucionário dominado pela Ditadura Nacional
Leite Magalhães nomeado governador da Guiné
Resposta ao inquérito sobre as raças da Guiné e seus caracteres étnicos, dada pelo administrador da circunscrição civil da Costa de Baixo, Vítor Hugo de MenezesChegada de Salazar ao poder
Começam as prisões dos democratas
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 2 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26976: Historiografia da presença portuguesa em África (488): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927, o novo governador é o major Leite de Magalhães (42) (Mário Beja Santos)