1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2025:
Queridos amigos,
Estamos em guerra,há´restrições, preparam-se as comemorações dos Centenários, estreou-se a Mocidade Portuguesa em Bissau, a aviação sobrevoa diariamente os Bijagós, não se sabe exatamente para quê (parece existir a lenda que havia bases de submarinos alemães, infraestruturas criadas à socapa por comerciantes dessa nacionalidade), inaugura-se o monumento à pacificação de Canhabaque, lê-se no despacho do governador que o dito monumento foi pago pela população Bijagó, os processos disciplinares continuam e estou certo e seguro que o leitor lerá com espanto o processo disciplinar do Dr. Petronilho, tomada a decisão pelo Conselho Disciplinar, o governador Carvalho Viegas quis dar a volta ao texto, o ministro das Colónias, Vieira Machado, não aceitou parte da argumentação do governador e explica categoricamente porquê, é prosa que merece reflexão.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, primeiros meses de 1940 (51)
Mário Beja Santos
O ano anuncia-se com as festas da Restauração de dezembro e a chegada da Mocidade Portuguesa a Bissau, assim se escreve no Boletim Oficial n.º 1, de 2 de janeiro, e escreve Carvalho Viegas:
“No dia primeiro de dezembro último, data em que na Colónia foi celebrado com vibrante entusiasmo e patriotismo o aniversário da Restauração de Portugal, foi-me dado o prazer de apreciar a exibição de vários pelotões da Companhia de Polícia Indígena e das classes de ginástica infantil e de adultos da Mocidade Portuguesa numa magnífica parada que empolgou, mostrando-se à altura dos objetivos das respetivas organizações, pelo garbo primoroso da sua apresentação;
Considerando que os exercícios militares efectuados no campo de jogos da cidade de Bissau pelos referidos pelotões revelaram, pela correcção, disciplina e desenvoltura na execução dos variados números do programa, apreciáveis cuidados, zelo e dedicação dos graduados dessa formação e bem assim boa vontade dos indígenas que assim vêm adquirindo hábitos de disciplina e amor pela defesa da Bandeira de Portugal;
Considerando que o desfile nas ruas e no mencionado campo de jogos e os exercícios de ginástica rítmica executados pelas referidas classes da Mocidade Portuguesa suscitaram a atenção geral do público e provocaram aplausos do público unânimes e sinceros, devido ao entusiasmo que despertaram nas populações juvenis pelos exercícios de cultura física, pelo que é justo pôr em relevo que esses resultados foram alcançados pelo esforço e dedicação do funcionário Adolfo de Oliveira, determino: que sejam louvados os oficiais, sargentos e praças, da companhia de polícia indígena e Adolfo de Oliveira.”
Ponto curioso, é até agora não esclarecido, sabendo nós que estavam a ser tomadas medidas de vigilância das fronteiras, dá-se a informação que estava a ser sobrevoadas quase diariamente o arquipélago dos Bijagós, impunha-se a maior moderação no gasto de combustíveis.
No Boletim Oficial n.º 11, de 26 de fevereiro, voltamos às medidas disciplinares, emanam do gabinete do governador. Escreve-se que em 7 de novembro do ano anterior, o funcionário Odorico Gomes de Pina fora punido com doze meses de inatividade por se terem verificado, na sua gerência, como encarregado da Circunscrição Civil do Gabu, sobretudo quanto a emendas e rasuras nos livros de contabilidade e ainda à falta de concordância entre documentos e lançamentos a eles respeitantes; e ainda mais, falta de encerramento de contas da cobrança de impostos de palhota, falta na prontidão na entrega dos fundos do Estado, etc., etc. O arguido vem agora recorrer com novos elementos de prova e o Governador Carvalho Viegas tece a seguinte crítica:
“Mais uma vez sou forçado a registar a forma deficiente como os funcionários defendem nos processos disciplinares que lhes são instaurados, alguns certamente de má fé o fazendo, para depois, julgados os processos apenas com os elementos de prova que oportunamente ofereceram, virem apodar de injusta a decisão da entidade que puniu. No recurso, Odorico Gomes de Pina não terá dado respostas satisfatórias, e o inspetor dos serviços da fazenda considera que havia para ali muita desorganização, escrituração feita à pressa e por quem não tem a obrigação de conhecer os serviços administrativos, etc., etc., não substituindo nenhuma dúvida acerca da irresponsabilidade do recorrente. Dá-se em parte provimento ao recurso alterando-se a pena."
No Boletim n.º 31, de 29 de julho, voltamos a Canhabaque, vai-se falar no monumento construído pelos indígenas, é uma narrativa de glorificação:
“Tendo sido colocado interinamente como chefe de posto de Canhabaque, em 10 de agosto de 1939, José d’Assenção Júnior, o qual inteligentemente tem desenvolvido uma política de atracção fundada na justiça, bondade e interesse pela vida indígena, demonstrando assim uma nítida compreensão de qual deve ser a nossa atuação e finalidade sobre povos ainda num atrasado estado de civilização;
Considerando que o mesmo funcionário manifestou um claro conhecimento dos seus deveres e ainda pôs uma absoluta lealdade e disciplina nas directrizes recebidas do governador da colónia, quanto à orientação da política indígena, a bem do aperfeiçoamento da sua vida material e psíquica;
Considerando, ainda, que tendo os indígenas patenteado o desejo de realizarem qualquer acto que ficasse ligado às suas crenças religiosas e que perdurasse aos olhos de todos como afirmação segura de início de uma era de amizade perpétua com o Governo português, o mesmo funcionário soube traduzir essa mesma ideia e desejo numa feliz representação material que à crença do indígena se impusesse, dando-lhe assim um ambiente de religiosidade.”
Tudo isto para dizer que foram os Bijagós que pagaram o monumento onde se glorifica a ação militar das operações realizadas em 1936. E o governador louva José d’Assenção Júnior. O monumento foi inaugurado no lugar de In-Orei, Canhabaque em 31 de março de 1940, muita gente presente, coube ao governador descerrar o referido monumento que se achava coberto com a bandeira nacional.
Neste mesmo Boletim Oficial se volta às questões disciplinares, desta vez após um recurso entreposto pelo médico Dr. António dos Santos Petronilho. Indo aos factos, o administrador da circunscrição civil de Bafatá participara que o delegado de saúde procedia sem consideração pela sua profissão em detrimento de pessoas cuja saúde lhe está entregue e que abandonou, aos cuidados do enfermeiro indígena, o chefe de posto Eiras, atacado de pneumonia, recusando-se a ir vê-lo apesar da insistência do doente e do administrador. O Dr. Petronilho requereu um inquérito aos seus atos como delegado de saúde. Diz a acusação que o médico se recusara a visitar o chefe de posto Cruz Eiras e que por motivos da sua recusa o doente foi obrigado a solicitar os socorros médicos de Bissau, apenas entregue ao cuidado do enfermeiro, o doente veio a falecer; o delegado não cumpria com zelo e assiduidade os seus deveres profissionais, tinha um feitio por vezes ríspido e ganancioso, cobrando pelas suas visitas.
Na defesa, alega que no mesmo dia em que recebera o telegrama lhe chegara a notícia de um outro caso através do sírio Jamil, faltava em Bambadinca óleo canforado, eletrargol e linhaça, e só após ter entregue ao portador esses medicamentos é que o dito Jamil lhe disseram eu tinha vindo chamar o arguido para ir ver um chefe de posto Eiras, ora o arguido estava com a temperatura de 38ºC e acessos palustres, respondeu que não podia ir ver o doente mas que no dia imediato viesse buscá-lo, iria então visitar o doente e regressar a tempo de presidir à mesa eleitoral de Bafatá… E porque torna e porque deixa, e até porque o arguido, por motivos que brigam com a sua dignidade está e estará de relações cortadas com o pessoal do administrador, este, sem nenhuma consideração pelo médico pretendia requisitar para seu uso o carro que se pusera à disposição do arguido.
O instrutor do processo, ponderados todos os argumentos, não deixa de frisar que a circunstância do arguido estar de relações cortadas com o administrador não pode anular o sentimento do dever profissional, acresce que estava provado que o Dr. Petronilho tinha mostrado pouco zelo e assiduidade no exercício da sua profissão, daí a proposta de aplicação do castigo de 181 dias de inatividade. O governador manteve o castigo em recurso, diz que há duas partas distintas na acusação: uma, diz respeito ao caso do Chefe de Posto Eiras e a outra trata do procedimento em geral do recorrente. Quanto a não ter ido socorrer o chefe de posto, há divergência de opiniões; analisando o telegrama, não se vê que fosse pedida urgência ao recorrente e não se explica porque é que o administrador, em vez de regressar o carro de Bambadinca a Bafatá para levar o recorrente, pediu, para Bissau, a ida de um médico.
O documento é longo, o governador considera que há para ali acusações vagas e genéricas e observa cabalmente:
“Ter este ou aquele feitio não é infração, as infrações ou omissões influenciadas pelo mau feitio é que podem cair sob a sanção disciplinar. Se o recorrente infringiu as disposições da tabela dos honorários, é indispensável dizer-se-lhe quais os casos em que as infringiu, para eu poder ou justificar-se ou convencer-se de que errou e deve corrigir-se.”
O governador pede a anulação do teor de algumas alíneas, mas dá como comprovadas certas irregularidades, havendo que reformular a instrução. Acontece que o ministro das Colónias, Vieira Machado, exara o seguinte despacho:
“Tenho muita pena não poder estar de acordo com o Conselho, mas não posso admitir que por questiúnculas pessoais um médico não cumpra o seu dever. O médico podia muito bem ir no automóvel com o administrador e não falar com este, com quem estava de relações trocadas. O facto de utilizar o mesmo meio de locomoção, sobretudo em África e nas circunstâncias que constam no processo, não implicava um reatamento de relações. Pelo critério seguido pelo médico, não tomava ele assento num carro elétrico ao lado de um desconhecido, porque o simples facto da vizinhança aplicaria relações pessoais. Isto não quer dizer que aprove o procedimento do administrador, antes pelo contrário, entendo que lhe deve ser instaurado um processo disciplinar. Anulo o processo quanto às acusações de duas alíneas desde a audição do arguido para poderem ser feitas as averiguações propostas que afinal se julgar qual a pena que se deve aplicar, é ponto assente para mim que o médico não pode deixar de ser castigado.”
Monumento à Pacificação de Canhabaque, onde se lê “Àqueles que tombaram pela civilização”, fotografia de Francisco Nogueira, publicada no livro Arquitetura dos Bijagós, Tinta da China, com a devida vénia
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 27 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27157: Historiografia da presença portuguesa em África (495): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1939 (50) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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quarta-feira, 3 de setembro de 2025
segunda-feira, 1 de setembro de 2025
Guiné 61/74 - P27173: Notas de leitura (1834): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Não é demais salientar que procurei encontrar a mensagem deste romance em que um herói de guerra da Guiné, educado no meio de um bordel (o que nos lembra o romance Sagal, um herói feito em África, de António Brito, Clube do Autor, 2024), vive de expedientes e falcatruas, assumidamente chulo, hábil prestador de serviços na recruta e na especialidade, que soube montar o negócio da intendência da Guiné e que recheou a sua conta no banco Borges & Irmão, regressado de guerra, e na companhia de uma trupe trazida da Guiné, montou sucessivas empresas, mais tarde associou-se com um antigo alferes da polícia militar em Angola, aí a coisa fiou mais fino, meteu diamantes e outros negócios com os retornados. Acontece que Rui Sérgio diaboliza a descolonização e a gente sórdida que dela prosperou, e não sabemos muito bem o que ele fica a pensar deste Jordão Ribeiro que na sua ficção, pensava-se, merecia o lugar digno de alguém que praticara atos temerários, merecedores do respeito dos portugueses. Mas o autor nega-nos qualquer resposta.
Um abraço do
Mário
A arte da batota, antes, durante e depois da guerra da Guiné (2)
Mário Beja Santos
Corja de Batoteiros, de Rui Sérgio, 5livros.pt, 2019, confesso ao leitor que é um livro que me deixou desorientado quanto à natureza da mensagem que o autor pretende passar. Vimos antes que Jordão Ribeiro, pouco dado aos estudos, educado no meio de um bordel, cedo se habitou a viver de expedientes e falcatruas, chulando e recebendo os préstimos de senhoras ferventes de carícias. Andou pela Guiné e fez lautos negócios com outro tipo de falcatruas, no Porto desviava pregos, na Guiné forja quebras e faltas, escreve aerogramas para gente iletrada, manda clientela para o Chez Toi, teve um ato de heroicidade, recebeu uma Cruz de Guerra de 1ª Classe.
Regressa ao Porto e o patrão Pires, do tal armazém de ferragens onde trabalhou desde a juventude, propõe-lhe a venda do negócio. Trouxe consigo gente da Guiné. Mariama, a mulher de Bacar, terá direito a uma lavandaria para todas as roupas dos lupanares da madrinha, Bacar conduz uma carrinha furgão para o transporte das encomendas feitas ao armazém de ferragens e roupas da lavandaria. Jordão irá fazer percurso na Associação Comercial do Porto, no Ateneu Comercial do Porto.
Viera também da Guiné Ana Carolina, entra também no negócio, sempre a propósito ou a despropósito o Jordão vai cumprindo a sua função de garanhão. É convidado para pertencer à DGS, recusa. Ganha dinheiro chorudo num bilhete da lotaria, os negócios prosperam. Jordão investe em ações num banco fundado por Jorge de Brito, o Banco Intercontinental Português, compra ações de um conjunto de empresas bem cotadas na Bolsa, compra libras de ouro, as cotações sobem vertiginosamente em 1973.
Depois Rui Sérgio faz uma leitura do que se passa no país, no seio das Forças Armadas, aborda os acontecimentos de 1973; deplora que Marcello Caetano tenha recusado a ideologia esquematizada por Spínola, para se chegar a uma África lusófona. Jordão concluiu nesse ano o curso do Instituto Comercial, os negócios desenvolvem-se, há a compra de uma garagem/armazém, chega mais um guineense para tomar conta da garagem.
Os negócios de Jordão estendem-se aos diamantes de Angola, Jordão estabelece relações com Jarvas Pinto, alferes da Polícia Militar, as pedras preciosas vão circular por diferentes países, funda-se uma nova sociedade, a J. J. SA (Jarvas e Jordão – Sociedade Comercial por Ações), sempre benemérito, Jordão reparte a sua riqueza por Ana Carolina, Tristão, Bacar, Mariama, Sofia, Mamadu primo de Bacar graças à empresa Jota e Jota, Lda. de transportes. Dera-se o 25 de Abril, há desordem por toda a parte, Jarvas propõe ao sócio uma ida ao Alentejo para falar com um soldado do seu antigo pelotão, o Malaqueijo diamantes, mais internacionalização, desta vez entra-se numa offshore com sede em Gibraltar.
Começam a chegar os retornados, há caos por toda a parte, mas os bons negócios não vacilam, graças à companhia de transportes sai muita coisa do Alentejo para outros mercados, depois segue-se o transporte de retornados, e então Rui Sérgio perde a cabeça:
“Destruíram a essência da nossa cultura e da nossa estrutura multiétnica, multicultural, deste país pequeno, com um povo enorme, que mantinha territórios em todos os continentes, que esses políticos internacionais de merda levaram à liquidação do Império, estando-se a marimbar para o que se passava em relação aos ultramarinos que tiveram que abandonar os seus bens, as suas terras de origem.
O fundamental para esses cabrões era provocar o abandono pelo medo, de tudo e de todos, sem qualquer pingo de vergonha que nunca tiveram, nem medo das consequências, dizendo, quando perguntados pela maneira como descolonizaram, que foi possível (…) Tudo patranhas e balelas, destes batoteiros esquerdelhos que se dizem revolucionários, que conduziram ao fim de um sonho de globalização. A falta de planeamento de um programa de autodeterminação, faseada e com formação de quadros, irá levar a guerras civis partidárias e a centenas de milhares de mortos e feridos.”
Como uma sentença, caíra a desgraça neste jardim à beira-mar plantado, por culpa quer dos capitalistas de Estado quer por todos esses que vivem à custa do trabalho dos outros, com as suas teorias marxisantes, para se apropriarem do suor e das poupanças que tanto custam a juntar. Nunca sabemos se dentro da catilinária do autor cabem os negócios batoteiros do Jordão e do Jarvas, que ainda por cima se meteram como empreiteiros.
Depois veio o 25 de novembro, os negócios da empresa Jota e Jota andavam de vento em popa. “Enquanto o Império português acabava, outro começava, o nosso, em qualquer lugar do mundo, em qualquer moeda, com qualquer propósito e com o destino que lhe quiséssemos dar (…) Corja de batoteiros internacionais portugueses vendidos ao exterior, as vossas almas não terão paz e terão sempre a companhia de demónios para vos infernizar.”
Jamais saberemos o que o destino irá reservar a Jordão Ribeiro, herói na guerra da Guiné, o único filho de Maria Rameira, que se impôs desde a juventude como habilidoso falcatrueiro, entrou na engrenagem de negócios sórdidos e, tanto quanto me parece, não tem quaisquer problemas de consciência nem demónios para o infernizar…
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Notas do editor:
Vd. post de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 29 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
Guiné 61/74 - P27157: Historiografia da presença portuguesa em África (495): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1939 (50) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2025:
Queridos amigos,
A 4 de setembro, o Governador Carvalho Viegas faz questão de informar os seus governados de que o novo conflito que se abriu na Europa vai seguramente exigir apertos de cinto. O governador prossegue a consolidação constitucional e administrativa, depois da Censura temos agora a Mocidade Portuguesa, procura-se valorizar o ensino primário, desejam-se estátuas em agradecimento ao presidente Ulysses Grant e a todos aqueles que serviram a Guiné, bem como os navegadores que aqui chegaram; a fortaleza de Bissau passou a ser considerada monumento nacional; louva-se um chefe de posto em Canhabaque e o governador não se coíbe de se auto-elogiar, fá-lo discretamente; e em novembro começam a ser tomadas medidas rigorosas contra o mercado negro e o açambarcamento. Vai começar um tempo em que circulará nos mercados uma quantidade inusitada de ouro em pó. O Governo de Lisboa vai pedir informações sobre a situação da África Ocidental Francesa, a partir da capitualção da França, em junho de 1940, a Resistência encabeçada pelo general de Gaulle merece muitas simpatias na região, Lisboa, a todo o transe, quer um equilíbrio de relações com o Eixo e os Aliados, o que acontecerá até 1943.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1939 (50)
Mário Beja Santos
Anuncia-se a 4 de setembro que há novamente guerra no palco europeu, a população que se prepare para sacrifícios. O ano inicia-se com mais informações de caráter organizacional e institucional. A Mocidade Portuguesa chegou à Guiné, esboça-se as ações de formação em Bolama e Bissau; no mesmo ano em que se inicia a guerra dá-se uma reorganização do ensino primário; apela-se aos doadores que contribuam para se erguer em Bolama um monumento ao presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant; a fortaleza de Bissau para a ser considerada monumento nacional; é decidida a construção de um monumento ao Esforço da Raça.
As punições e castigos a casos de mão baixa merecem destaque no Boletim Oficial. Por exemplo, há processo ao Secretário da Repartição Técnica das Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro, António Cândido Duarte de Magalhães, em que ficou provado ter cometido graves infrações disciplinares, obrigado a restituir 250 escudos que indevidamente recebeu pela venda ilegal que fez de materiais do Estado.
No Boletim Oficial n.º 31, de 31 de julho, volta-se a falhar de Canhabaque, dá-se um louvor e o governador Carvalho Viegas não se ensaia nada em se autoelogiar, assim:
“Tendo o chefe de Posto de Canhabaque, Camilo José Maria Sousa Soares Montenegro dos Santos, concluído, integralmente, a cobrança do imposto de capitação, respeitante àquela área, num prazo bastante limitado, pelo que se torna merecedor dos mais justos louvores;
Considerando que a ação desenvolvida por aquele funcionário em cumprimento das ordens e instruções emanadas do governador da colónia como orientador da política indígena, é tanto mais de apreciar quanto é certo que o mesmo funcionário, há pouco alocado em Canhabaque, não podia conhecer, com segurança, a índole e psicologia do Bijagó, bastante diferenciadas das restantes raças da colónia;
Considerando ainda, que a execução dada às diretivas do governador da colónia, demonstra da parte do funcionário em referência uma nítida compreensão dos seus deveres profissionais e o maior interesse pela função que desempenha, porquanto, devido a uma política de atração inteligentemente desenvolvida, muitos indígenas houve que, voluntariamente, se apresentaram para pagar as contribuições de soberania com que não haviam sido coletados, em virtude de se encontrarem ausentes da ilha de Canhabaque – facto este que, por si só, basta para desanuviar a atmosfera menos patriótica e de menos confiança que havia sido criada e alimentada, com fins inconfessáveis, em torno da forma suasória como o governador solucionou a decantada questão Canhabaque, após a campanha militar que pessoalmente dirigira.”
E louva-se o chefe de posto que executou as diretivas do governador, “quanto à orientação da política indígena de uma ilha que, recentemente batida, militarmente, se encontra já no concerto geral das demais raças da colónia, há muito submetidas aos ditames da nossa soberania".
E prosseguem as reprimendas, há sanções que por vezes não são nada brandas. No Boletim Oficial n.º 34, de 21 de agosto, o governador manda descontar nos vencimentos do Chefe de Posto Joaquim Moreira a quantia de 200 escudos, a favor e como indeminização à Circunscrição Civil de Cacheu, pela inutilidade dos artigos que danificou. No seu despacho o governador diz que foi com manifesta benevolência que se tratou este chefe de posto. Consta dos autos que se fazia acompanhar de um corte de concubinas, descendo os seus insatisfeitos desejos de macho a pretender as mulheres dos seus subordinados; por tal comportamento o castigo foi regressar à categoria imediatamente inferior; já havia sido punido com a pena de 14 dias de multa, foi suspenso do exercício e perda de vencimento por 120 dias.
Começara a guerra na Europa, o governador deliberou travar o consumo. No suplemento ao Boletim n.º 36, de 5 de setembro, escreve-se em portaria que se tornava necessário fazer restringir ao mínimo o consumo de artigos cuja falta ou a insuficiência era provável que se viesse a dar, assim o consumo de gasolina, óleos e quaisquer carburantes ficava limitado ao transporte de mercadorias ou a serviços de absoluta necessidade; e todo o indivíduo que se servisse de viaturas automóveis quando não fosse em absoluta necessidade de serviço, por um caso de urgência particular ou de pronto-socorro, ou por imperiosa necessidade de serviço comercial, era multada em mil escudos pela primeira falta e no dobro em caso de reincidência.
Quem diz guerra diz mercado negro, açambarcamento, especulação, etc. E logo em 10 de dezembro, no suplemento ao Boletim Oficial n.º 45, o Governo toma medidas firmes, veja-se o preâmbulo e o conteúdo da portaria, depois de se dizer que é intuito do Governo acautelar os interesses do público consumidor contra injustificados aumentos de preços, e que o Governo iria exercer uma ação vigilante em defesa da economia privada contra a ganância desenfreada do especulador e açambarcador, havia necessidades de toda a ordem, impunha-se de modo terminante impedir ou punir os lucros ilícitos à custa do público consumidor; dizia-se também que os conflitos internacionais traziam sempre consigo perturbações de ordem mercantil; e o governador mandava constituir em Bolama uma comissão com vários altos funcionários, incumbindo-lhes, com a maior urgência possível, de elaborar um preçário dos artigos de consumo corrente.
E dava-se conta das contravenções que seriam punidas: “Todo o produtor ou comerciante que ocultar as suas existências de mercadorias ou produtos ou que se recusa, a vendê-las segundo os usos normais da atividade agrícola, industrial ou comercial, e ao preço corrente no mercado indicado no preçário, incorrerá na multa correspondente ao máximo permitido pelo código penal, e as existências açambarcadas apreendidas e vendidas extrajudicialmente, revertendo o produto em benefício do tesouro.” A lista das sanções não se fica por aqui, explica-se o que é um comportamento de recusa, os castigos que impendem sobre os especuladores, como se processará o arresto dos bens do infrator, etc.
E no Boletim Oficial n.º 50, de 11 de dezembro, por portaria dá-se como extensivas ao interior da colónia as tabelas elaboradas pelas Comissões de Bolama e Bissau por forma a haver regularização de preços. E no mesmo Boletim, fala-se então de Ulysses Grant e do monumento ao Esforço da Raça:
“Sendo de portugueses o espírito nobre de fazer justiça ainda há bem pouco tempo vincado nos projetos da construção dos monumentos ao Esforço da Raça e ao presidente da grande república norte-americana, Ulysses Grant – está na consciência nacional prestar homenagem a todos aqueles que bem merecem da Pátria;
E, assim, cairá bem no sentir de todos que se perdure no mármore e no bronze eternos a memória dos grandes navegadores que, na febre intensa de descobertas e conquistas, abrindo novos horizontes ao mundo, chegaram às costas da Guiné.
Considerando que da importância recolhida para a construção do monumento ao Esforço da Raça há um saldo importante que se pode aproveitar na mesma situação de homenagear os nossos maiores… O governador apela então que se construa um monumento em homenagem aos navegadores portugueses descobridores da Costa da Guiné, e que o saldo a haver da importância consagrada ao monumento do Esforço da Raça seja consagrado a um fundo destinado à construção desse monumento de homenagem aos navegadores. O monumento ao Esforço da Raça devia ser erigido na avenida principal de Bissau.”
Anuncia-se aos guineenses que há guerra na Europa, a Alemanha invadiu a Polónia, Grã-Bretanha e França declararam guerra à Alemanha
Três imagens retiradas do livro Babel Negra, de Landerset Simões, publicado em 1935
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 20 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27134: Historiografia da presença portuguesa em África (494): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1938 (49) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
A 4 de setembro, o Governador Carvalho Viegas faz questão de informar os seus governados de que o novo conflito que se abriu na Europa vai seguramente exigir apertos de cinto. O governador prossegue a consolidação constitucional e administrativa, depois da Censura temos agora a Mocidade Portuguesa, procura-se valorizar o ensino primário, desejam-se estátuas em agradecimento ao presidente Ulysses Grant e a todos aqueles que serviram a Guiné, bem como os navegadores que aqui chegaram; a fortaleza de Bissau passou a ser considerada monumento nacional; louva-se um chefe de posto em Canhabaque e o governador não se coíbe de se auto-elogiar, fá-lo discretamente; e em novembro começam a ser tomadas medidas rigorosas contra o mercado negro e o açambarcamento. Vai começar um tempo em que circulará nos mercados uma quantidade inusitada de ouro em pó. O Governo de Lisboa vai pedir informações sobre a situação da África Ocidental Francesa, a partir da capitualção da França, em junho de 1940, a Resistência encabeçada pelo general de Gaulle merece muitas simpatias na região, Lisboa, a todo o transe, quer um equilíbrio de relações com o Eixo e os Aliados, o que acontecerá até 1943.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1939 (50)
Mário Beja Santos
Anuncia-se a 4 de setembro que há novamente guerra no palco europeu, a população que se prepare para sacrifícios. O ano inicia-se com mais informações de caráter organizacional e institucional. A Mocidade Portuguesa chegou à Guiné, esboça-se as ações de formação em Bolama e Bissau; no mesmo ano em que se inicia a guerra dá-se uma reorganização do ensino primário; apela-se aos doadores que contribuam para se erguer em Bolama um monumento ao presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant; a fortaleza de Bissau para a ser considerada monumento nacional; é decidida a construção de um monumento ao Esforço da Raça.
As punições e castigos a casos de mão baixa merecem destaque no Boletim Oficial. Por exemplo, há processo ao Secretário da Repartição Técnica das Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro, António Cândido Duarte de Magalhães, em que ficou provado ter cometido graves infrações disciplinares, obrigado a restituir 250 escudos que indevidamente recebeu pela venda ilegal que fez de materiais do Estado.
No Boletim Oficial n.º 31, de 31 de julho, volta-se a falhar de Canhabaque, dá-se um louvor e o governador Carvalho Viegas não se ensaia nada em se autoelogiar, assim:
“Tendo o chefe de Posto de Canhabaque, Camilo José Maria Sousa Soares Montenegro dos Santos, concluído, integralmente, a cobrança do imposto de capitação, respeitante àquela área, num prazo bastante limitado, pelo que se torna merecedor dos mais justos louvores;
Considerando que a ação desenvolvida por aquele funcionário em cumprimento das ordens e instruções emanadas do governador da colónia como orientador da política indígena, é tanto mais de apreciar quanto é certo que o mesmo funcionário, há pouco alocado em Canhabaque, não podia conhecer, com segurança, a índole e psicologia do Bijagó, bastante diferenciadas das restantes raças da colónia;
Considerando ainda, que a execução dada às diretivas do governador da colónia, demonstra da parte do funcionário em referência uma nítida compreensão dos seus deveres profissionais e o maior interesse pela função que desempenha, porquanto, devido a uma política de atração inteligentemente desenvolvida, muitos indígenas houve que, voluntariamente, se apresentaram para pagar as contribuições de soberania com que não haviam sido coletados, em virtude de se encontrarem ausentes da ilha de Canhabaque – facto este que, por si só, basta para desanuviar a atmosfera menos patriótica e de menos confiança que havia sido criada e alimentada, com fins inconfessáveis, em torno da forma suasória como o governador solucionou a decantada questão Canhabaque, após a campanha militar que pessoalmente dirigira.”
E louva-se o chefe de posto que executou as diretivas do governador, “quanto à orientação da política indígena de uma ilha que, recentemente batida, militarmente, se encontra já no concerto geral das demais raças da colónia, há muito submetidas aos ditames da nossa soberania".
E prosseguem as reprimendas, há sanções que por vezes não são nada brandas. No Boletim Oficial n.º 34, de 21 de agosto, o governador manda descontar nos vencimentos do Chefe de Posto Joaquim Moreira a quantia de 200 escudos, a favor e como indeminização à Circunscrição Civil de Cacheu, pela inutilidade dos artigos que danificou. No seu despacho o governador diz que foi com manifesta benevolência que se tratou este chefe de posto. Consta dos autos que se fazia acompanhar de um corte de concubinas, descendo os seus insatisfeitos desejos de macho a pretender as mulheres dos seus subordinados; por tal comportamento o castigo foi regressar à categoria imediatamente inferior; já havia sido punido com a pena de 14 dias de multa, foi suspenso do exercício e perda de vencimento por 120 dias.
Começara a guerra na Europa, o governador deliberou travar o consumo. No suplemento ao Boletim n.º 36, de 5 de setembro, escreve-se em portaria que se tornava necessário fazer restringir ao mínimo o consumo de artigos cuja falta ou a insuficiência era provável que se viesse a dar, assim o consumo de gasolina, óleos e quaisquer carburantes ficava limitado ao transporte de mercadorias ou a serviços de absoluta necessidade; e todo o indivíduo que se servisse de viaturas automóveis quando não fosse em absoluta necessidade de serviço, por um caso de urgência particular ou de pronto-socorro, ou por imperiosa necessidade de serviço comercial, era multada em mil escudos pela primeira falta e no dobro em caso de reincidência.
Quem diz guerra diz mercado negro, açambarcamento, especulação, etc. E logo em 10 de dezembro, no suplemento ao Boletim Oficial n.º 45, o Governo toma medidas firmes, veja-se o preâmbulo e o conteúdo da portaria, depois de se dizer que é intuito do Governo acautelar os interesses do público consumidor contra injustificados aumentos de preços, e que o Governo iria exercer uma ação vigilante em defesa da economia privada contra a ganância desenfreada do especulador e açambarcador, havia necessidades de toda a ordem, impunha-se de modo terminante impedir ou punir os lucros ilícitos à custa do público consumidor; dizia-se também que os conflitos internacionais traziam sempre consigo perturbações de ordem mercantil; e o governador mandava constituir em Bolama uma comissão com vários altos funcionários, incumbindo-lhes, com a maior urgência possível, de elaborar um preçário dos artigos de consumo corrente.
E dava-se conta das contravenções que seriam punidas: “Todo o produtor ou comerciante que ocultar as suas existências de mercadorias ou produtos ou que se recusa, a vendê-las segundo os usos normais da atividade agrícola, industrial ou comercial, e ao preço corrente no mercado indicado no preçário, incorrerá na multa correspondente ao máximo permitido pelo código penal, e as existências açambarcadas apreendidas e vendidas extrajudicialmente, revertendo o produto em benefício do tesouro.” A lista das sanções não se fica por aqui, explica-se o que é um comportamento de recusa, os castigos que impendem sobre os especuladores, como se processará o arresto dos bens do infrator, etc.
E no Boletim Oficial n.º 50, de 11 de dezembro, por portaria dá-se como extensivas ao interior da colónia as tabelas elaboradas pelas Comissões de Bolama e Bissau por forma a haver regularização de preços. E no mesmo Boletim, fala-se então de Ulysses Grant e do monumento ao Esforço da Raça:
“Sendo de portugueses o espírito nobre de fazer justiça ainda há bem pouco tempo vincado nos projetos da construção dos monumentos ao Esforço da Raça e ao presidente da grande república norte-americana, Ulysses Grant – está na consciência nacional prestar homenagem a todos aqueles que bem merecem da Pátria;
E, assim, cairá bem no sentir de todos que se perdure no mármore e no bronze eternos a memória dos grandes navegadores que, na febre intensa de descobertas e conquistas, abrindo novos horizontes ao mundo, chegaram às costas da Guiné.
Considerando que da importância recolhida para a construção do monumento ao Esforço da Raça há um saldo importante que se pode aproveitar na mesma situação de homenagear os nossos maiores… O governador apela então que se construa um monumento em homenagem aos navegadores portugueses descobridores da Costa da Guiné, e que o saldo a haver da importância consagrada ao monumento do Esforço da Raça seja consagrado a um fundo destinado à construção desse monumento de homenagem aos navegadores. O monumento ao Esforço da Raça devia ser erigido na avenida principal de Bissau.”
Anuncia-se aos guineenses que há guerra na Europa, a Alemanha invadiu a Polónia, Grã-Bretanha e França declararam guerra à Alemanha
Casa Gouveia, Ilhéu do Rei, Guiné-Bissau, 2015.
Fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
Imagem do Carnaval de Bissau, 2015, publicada no jornal O Democrata, com a devida vénia
Correio aéreo, Império Colonial Português, carta registada na estação de Bissau a 10 de Março de 1940, chegou a Nova Iorque em 2 de abrilMonumento ao Esforço da Raça, decisão tomada por Carvalho Viegas em 1939
Tatuagens "Mulher Bijagó"
Escultores Bijagós
Futa-Fulas fiando
Três imagens retiradas do livro Babel Negra, de Landerset Simões, publicado em 1935
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 20 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27134: Historiografia da presença portuguesa em África (494): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1938 (49) (Mário Beja Santos)
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
Guiné 61/74 - P27134: Historiografia da presença portuguesa em África (494): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1938 (49) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2025:
Queridos amigos,
Peço a todos que leiam o texto anexo do princípio ao fim. Carvalho Viegas tem sido dado como um governador que impulsionou a vida da colónia, introduziu rigor e moralidade na administração. Quanto a rigor e moralidade na sua vida, quero só recordar o que dele escreveu o chefe da delegação do BNU em Bissau e com o envio para a administração em Lisboa, onde pontificavam homens poderosos do regime, caso de Vieira Machado, denunciava o governador levar ao hospital de Bolama uma senhora para abortar, houvera para ali uma discussão canalha, com recusa médica. Pretendi, depois de ler de fio a pavio este ano de 1938, focar-me nas medidas disciplinares. Landerset Simões, chefe de posto nos Bijagós, recebera, por parte do Conselho Disciplinar, a pena de demissão, mandara aplicar castigos corporais a homens entre os 60 e 80 anos, que se tinham recusado a trabalho compulsivo. Custou-me a acreditar o que Carvalho Viegas escreveu depois do recurso de Landerset Simões ao ministro das Colónias. Tenho para mim que o seu despacho é um texto abominável.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1938 (49)
Mário Beja Santos
Não se pode negar ao governador Carvalho Viegas o esforço organizativo, projetos de desenvolvimento e procura de rigor no funcionamento da administração. Continua a azáfama na transferência para Bissau dos serviços até agora em Bolama, vai entrar em funcionamento a censura, organiza-se o aeródromo marítimo de Bolama. Iremos fixar-nos no rigor administrativo. Logo em 7 de fevereiro temos o caso de Landerset Simões, o autor da Babel Negra, obra marcante para o conhecimento etnográfico, simples, mas muito bem elaborado. O chefe de posto Armando de Landerset Simões tinha como comprovadas no seu processo várias acusações: recrutar trabalhadores indígenas usando meios violentos e compulsivos, para serviço de um particular; forçara e coagira esses mesmos indígenas a venderem a esse mesmo particular azeite de palma e coconote provenientes de trabalho compelido; fizeram aplicar, pelos sipaios, castigos corporais a indígenas, alguns entre 60 e 80 anos de idade, por se negarem a vender aqueles produtos ao aludido particular; invocara o nome do governador para impor o cumprimento dessa ordem. Ele era chefe de posto de Canhabaque. No texto da acusação dizia-se que não possuía a intuição e noção perfeitas de qual deve ser a ação colonizadora e de soberania. Era dado como demitido e enviada ao Ministério Público a respetiva participação acompanhada de cópias das peças do processo disciplinar. O documento vem da Repartição Central dos Serviços da Administração Civil, o Conselho Disciplinar homologou a decisão.
Voltamos a uma Portaria do Conselho Disciplinar publicada no Boletim Oficial n.º 9, de 28 de fevereiro. Desta vez é o Administrador da Circunscrição Civil de Fulacunda, Ernesto Lima Wahnon, e o encarregado da mesma circunscrição, Eduardo Lencastre de Laboreiro Fiúza. O primeiro não dera entrada nos cofres de uma quantia superior a 6 mil escudos proveniente da percentagem adicional sobre direitos de importação; que recebera a importância de perto de 43 contos tendo entrado nos cofres apenas cerca de 35, entre outras faltas. O arguido revelara grande falta de zelo profissional, denunciara um completo desconhecimento das disposições legais reguladoras dos serviços a seu cargo, tinha como atenuantes 27 anos de serviço, recebeu uma pena com perda vencimentos e Laboreiro Fiúza foi demitido.
No Boletim Oficial n.º 14, de 4 de abril, temos o anúncio dos estatutos do Sporting Club de Bafatá, à semelhança de outras já aqui referidas, os seus fins eram de promover e praticar todos os jogos desportivos e recreativos adaptáveis ao meio e promover passeios e festas para distração dos sócios.
No Boletim Oficial n.º 23, de 6 de junho, volta a funcionar a palmatória da justiça, matéria tratada no Conselho Superior de Disciplina das Colónias. Fizera-se sindicância aos atos do Secretário da Câmara Municipal de Bolama, Joaquim Afonso Gonçalves Ferreiro, e ao amanuense Vitorino da Silva Ferreira, aplicara-se uma pena, o Secretário recorreu, o processo de recurso subiu ao Ministério. A arguição para este castigo vinha resumida num relatório da comissão municipal, o Secretário apoderara-se abusiva e ilegalmente de cerca de 16 contos e meio. O Secretário no recurso afirmou que quando exercia as funções de tesoureiro dera pela existência de uma falha, procurou averiguar as suas causas, etc., etc., etc. Houvera reposições feitas pelo recorrente e a sua promessa de pagar o mais que faltou no cofre municipal; o recorrente reconhece que andou mal. A decisão do Conselho Superior foi a de não dar provimento ao recurso. Manteve-se a pena.
E voltamos, de novo, ao processo de Landerset Simões, como consta do Boletim Oficial n.º 48, de 28 de novembro. Trata-se de um despacho oriundo do gabinete do governador. De novo se referem as violências exercidas sobre os indígenas, extorsões em benefício de um particular; que relevara pouca humanidade mandando aplicar castigos corporais. Landerset Simões recorrera ao Ministro das Colónias. Carvalho Viegas começa por aflorar a legislação que se prende com a mão-de-obra indígena nas colónias, “um repositório de preceitos de lei inspirados por um sentimento de humanidade que marca sem sofismas um período de transição do trabalho indígena escravizado para a livre estipulação para prestação de serviços. Este último objetivo altruísta do legislador não conseguiu na prática a sua eficiente consagração, porquanto numa colónia como a Guiné, em que há uma infinita variedade de raças, não é tarefa fácil criar-lhes necessidades determinadas pelo influxo da civilização, para desta feita procurarem pelo trabalho, espontaneamente oferecido, os meios necessários à sua subsistência e ao cumprimento dos deveres impostos sob o Estado soberano. Dos povos da Guiné, o mais indolente e avesso à independência que o homem conquista pelo trabalho, vivendo apenas do que a natureza oferece quando não é da mulher, sua eterna escrava, é o indígena da tribo Bijagó. Rebelde, refratário a tudo a que respira civilização, considera o trabalho um castigo e a ociosidade um prémio. Com uma raça deste jaez, que faz da mulher a única base produtora de tudo que ao consumo do homem se torna necessário, como se conseguiria fazer a exploração do arquipélago dos Bijagós, rico em matérias-primas, sem que a mão-de-obra seja fornecida por via de imposição da autoridade? Responda com consciência quem souber e conhecer a colónia da Guiné. Sendo, contundo, pouco regular a linha de conduta do recorrente quanto à maneira como procedeu com certos indígenas dos Bijagós, apesar de em parte poder considerar-se justificada, de uma maneira geral, a sua ação, porque ninguém ignora, como já foi dito, que os indígenas daquele arquipélago vivem indolentes e refratários ao trabalho, só pelo grande esforço das autoridades podem ser levados a produzir alguma coisa de útil; mas tendo algumas vezes o recorrente levianamente exagerado a sua ação, como chefe de posto, molestando indígenas de avançada idade e produzindo-lhe ferimentos de certa gravidade, como se verifica pelos autos; considerando que contra o recorrente há no processo factos que representam indesculpável advertência…” e em vez de demissão foi-lhe aliviada a pena.
Tenho para mim que este despacho do Governador Carvalho Viegas é um dos mais demolidores textos quanto à natureza pérfida da justiça colonial e à manipulação dos argumentos.
Pioneira nos princípios do matriarcado, Okinka Pampa, ou Okinca Pampa, rainha do povo Bijagó, arquipélago da Guiné-Bissau, entre 1910 e 1930, deixou um legado na defesa dos direitos humanos. A rainha foi encarregue de manter as tradições da ilha, portanto, resistiu às campanhas coloniais de ocupação do território por Portugal até conseguir assinar um tratado de paz, o que pôs fim ao regime de escravidão. Imagem de espetáculo de recriação da história da rainha.
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Nota do editor
Último post da série de 13 de agosto de 2025 >Guiné 61/74 - P27117: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1937 (48) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Peço a todos que leiam o texto anexo do princípio ao fim. Carvalho Viegas tem sido dado como um governador que impulsionou a vida da colónia, introduziu rigor e moralidade na administração. Quanto a rigor e moralidade na sua vida, quero só recordar o que dele escreveu o chefe da delegação do BNU em Bissau e com o envio para a administração em Lisboa, onde pontificavam homens poderosos do regime, caso de Vieira Machado, denunciava o governador levar ao hospital de Bolama uma senhora para abortar, houvera para ali uma discussão canalha, com recusa médica. Pretendi, depois de ler de fio a pavio este ano de 1938, focar-me nas medidas disciplinares. Landerset Simões, chefe de posto nos Bijagós, recebera, por parte do Conselho Disciplinar, a pena de demissão, mandara aplicar castigos corporais a homens entre os 60 e 80 anos, que se tinham recusado a trabalho compulsivo. Custou-me a acreditar o que Carvalho Viegas escreveu depois do recurso de Landerset Simões ao ministro das Colónias. Tenho para mim que o seu despacho é um texto abominável.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1938 (49)
Mário Beja Santos
Não se pode negar ao governador Carvalho Viegas o esforço organizativo, projetos de desenvolvimento e procura de rigor no funcionamento da administração. Continua a azáfama na transferência para Bissau dos serviços até agora em Bolama, vai entrar em funcionamento a censura, organiza-se o aeródromo marítimo de Bolama. Iremos fixar-nos no rigor administrativo. Logo em 7 de fevereiro temos o caso de Landerset Simões, o autor da Babel Negra, obra marcante para o conhecimento etnográfico, simples, mas muito bem elaborado. O chefe de posto Armando de Landerset Simões tinha como comprovadas no seu processo várias acusações: recrutar trabalhadores indígenas usando meios violentos e compulsivos, para serviço de um particular; forçara e coagira esses mesmos indígenas a venderem a esse mesmo particular azeite de palma e coconote provenientes de trabalho compelido; fizeram aplicar, pelos sipaios, castigos corporais a indígenas, alguns entre 60 e 80 anos de idade, por se negarem a vender aqueles produtos ao aludido particular; invocara o nome do governador para impor o cumprimento dessa ordem. Ele era chefe de posto de Canhabaque. No texto da acusação dizia-se que não possuía a intuição e noção perfeitas de qual deve ser a ação colonizadora e de soberania. Era dado como demitido e enviada ao Ministério Público a respetiva participação acompanhada de cópias das peças do processo disciplinar. O documento vem da Repartição Central dos Serviços da Administração Civil, o Conselho Disciplinar homologou a decisão.
Voltamos a uma Portaria do Conselho Disciplinar publicada no Boletim Oficial n.º 9, de 28 de fevereiro. Desta vez é o Administrador da Circunscrição Civil de Fulacunda, Ernesto Lima Wahnon, e o encarregado da mesma circunscrição, Eduardo Lencastre de Laboreiro Fiúza. O primeiro não dera entrada nos cofres de uma quantia superior a 6 mil escudos proveniente da percentagem adicional sobre direitos de importação; que recebera a importância de perto de 43 contos tendo entrado nos cofres apenas cerca de 35, entre outras faltas. O arguido revelara grande falta de zelo profissional, denunciara um completo desconhecimento das disposições legais reguladoras dos serviços a seu cargo, tinha como atenuantes 27 anos de serviço, recebeu uma pena com perda vencimentos e Laboreiro Fiúza foi demitido.
No Boletim Oficial n.º 14, de 4 de abril, temos o anúncio dos estatutos do Sporting Club de Bafatá, à semelhança de outras já aqui referidas, os seus fins eram de promover e praticar todos os jogos desportivos e recreativos adaptáveis ao meio e promover passeios e festas para distração dos sócios.
No Boletim Oficial n.º 23, de 6 de junho, volta a funcionar a palmatória da justiça, matéria tratada no Conselho Superior de Disciplina das Colónias. Fizera-se sindicância aos atos do Secretário da Câmara Municipal de Bolama, Joaquim Afonso Gonçalves Ferreiro, e ao amanuense Vitorino da Silva Ferreira, aplicara-se uma pena, o Secretário recorreu, o processo de recurso subiu ao Ministério. A arguição para este castigo vinha resumida num relatório da comissão municipal, o Secretário apoderara-se abusiva e ilegalmente de cerca de 16 contos e meio. O Secretário no recurso afirmou que quando exercia as funções de tesoureiro dera pela existência de uma falha, procurou averiguar as suas causas, etc., etc., etc. Houvera reposições feitas pelo recorrente e a sua promessa de pagar o mais que faltou no cofre municipal; o recorrente reconhece que andou mal. A decisão do Conselho Superior foi a de não dar provimento ao recurso. Manteve-se a pena.
E voltamos, de novo, ao processo de Landerset Simões, como consta do Boletim Oficial n.º 48, de 28 de novembro. Trata-se de um despacho oriundo do gabinete do governador. De novo se referem as violências exercidas sobre os indígenas, extorsões em benefício de um particular; que relevara pouca humanidade mandando aplicar castigos corporais. Landerset Simões recorrera ao Ministro das Colónias. Carvalho Viegas começa por aflorar a legislação que se prende com a mão-de-obra indígena nas colónias, “um repositório de preceitos de lei inspirados por um sentimento de humanidade que marca sem sofismas um período de transição do trabalho indígena escravizado para a livre estipulação para prestação de serviços. Este último objetivo altruísta do legislador não conseguiu na prática a sua eficiente consagração, porquanto numa colónia como a Guiné, em que há uma infinita variedade de raças, não é tarefa fácil criar-lhes necessidades determinadas pelo influxo da civilização, para desta feita procurarem pelo trabalho, espontaneamente oferecido, os meios necessários à sua subsistência e ao cumprimento dos deveres impostos sob o Estado soberano. Dos povos da Guiné, o mais indolente e avesso à independência que o homem conquista pelo trabalho, vivendo apenas do que a natureza oferece quando não é da mulher, sua eterna escrava, é o indígena da tribo Bijagó. Rebelde, refratário a tudo a que respira civilização, considera o trabalho um castigo e a ociosidade um prémio. Com uma raça deste jaez, que faz da mulher a única base produtora de tudo que ao consumo do homem se torna necessário, como se conseguiria fazer a exploração do arquipélago dos Bijagós, rico em matérias-primas, sem que a mão-de-obra seja fornecida por via de imposição da autoridade? Responda com consciência quem souber e conhecer a colónia da Guiné. Sendo, contundo, pouco regular a linha de conduta do recorrente quanto à maneira como procedeu com certos indígenas dos Bijagós, apesar de em parte poder considerar-se justificada, de uma maneira geral, a sua ação, porque ninguém ignora, como já foi dito, que os indígenas daquele arquipélago vivem indolentes e refratários ao trabalho, só pelo grande esforço das autoridades podem ser levados a produzir alguma coisa de útil; mas tendo algumas vezes o recorrente levianamente exagerado a sua ação, como chefe de posto, molestando indígenas de avançada idade e produzindo-lhe ferimentos de certa gravidade, como se verifica pelos autos; considerando que contra o recorrente há no processo factos que representam indesculpável advertência…” e em vez de demissão foi-lhe aliviada a pena.
Tenho para mim que este despacho do Governador Carvalho Viegas é um dos mais demolidores textos quanto à natureza pérfida da justiça colonial e à manipulação dos argumentos.
Um dos documentos mais espantosos que li sobre a paranoia anticomunista do Estado Novo
Não há em toda a Guiné monumento tão espantoso como este, um maciço de pedra que nenhuma dinamite abalou. Talvez o mais impressionante monumento Arte Deco em toda a África Ocidental, é uma homenagem aos aviadores italianos falecidos num desastre aéreo à saída de Bolama, a tragédia ocorreu no início de 1931Pioneira nos princípios do matriarcado, Okinka Pampa, ou Okinca Pampa, rainha do povo Bijagó, arquipélago da Guiné-Bissau, entre 1910 e 1930, deixou um legado na defesa dos direitos humanos. A rainha foi encarregue de manter as tradições da ilha, portanto, resistiu às campanhas coloniais de ocupação do território por Portugal até conseguir assinar um tratado de paz, o que pôs fim ao regime de escravidão. Imagem de espetáculo de recriação da história da rainha.
Bilhete-postal de 1930
Livro de bilhetes-postais publicados em 1946, nas comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné
(continua)_____________
Nota do editor
Último post da série de 13 de agosto de 2025 >Guiné 61/74 - P27117: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1937 (48) (Mário Beja Santos)
segunda-feira, 18 de agosto de 2025
Guiné 61/74 - P27130: Notas de leitura (1830): "África Contemporânea", por Castro Carvalho, editado em S. Paulo - Brasil, 1962 (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Suscitou-me a curiosidade este livro brasileiro intitulado "África Contemporânea", editado em S. Paulo em 1962, por um investigador amador, que não esconde o seu deslumbramento pelo despertar de África para a autodeterminação, resolve fazer uma obra que enumera os Estados africanos enquanto Repúblicas, Enclaves, Protetorados, Monarquias (Líbia e Etiópia), Federações, um sultanato (Zanzibar) e três províncias ultramarinas portuguesas (Guiné, Angola e Moçambique, não há qualquer referência a Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe). É uma obra puramente de divulgação, o autor terá ingenuamente tirado nalguma documentação de propaganda que se permitiu falar em mais de 3000 km de estradas que substituíam vantajosamente os caminhos de mato, numa exuberância de fauna e flora onde não faltavam chimpanzés e ruínas de Cacheu e o Forte de S. José de Bissau a atestar os tempos heróicos das Descobertas. Castro Carvalho não previra que no segundo semestre da publicação do seu livro de divulgação iria começar a sublevação do Sul da Guiné, a tal autodeterminação que tanto o entusiasmava, dava os seus primeiros passos.
Um abraço do
Mário
A Guiné Portuguesa num livro brasileiro de 1962
Mário Beja Santos
Numa loja solidária, numa aldeia perto de Óbidos, encontrei uma obra em estado lastimável, mas que me acicatou a curiosidade por ter sido editada no Brasil em 1962 e falar da Guiné Portuguesa. O seu autor, Castro Carvalho, foi médico e farmacêutico, ex-deputado estadual e capitão médico do Exército Brasileiro, apresenta bibliografia como a sua tese de doutoramento sobre moléstias infeciosas, escreveu mesmo em francês um romance realista de sexologia. Explica o que o atraiu a escrever esta obra sobre uma África em que a ignorância sobre ela é quase total. “O Brasil acompanha com simpatia a evolução rápida que os países recém-criados possuem no conceito geral das nações”, lembra a independência do Gana e como em menos de dez anos 22 novas nações alcançaram a sua autodeterminação. Escreveu este livro para se avaliar o grande desenvolvimento no rumo certo da real independência socioeconómica e política destes nossos Estados. E daí esta síntese que envolve geografia, história, mosaico étnico, distinções culturais, pan-africanismo. Lembra-se ao leitor que em 1960 o Brasil despertara para uma nova realidade política. Um quase obscuro Jânio Quadros ganhara as eleições presidenciais com farta maioria e João Goulart, também com farta maioria, fora eleito vice-presidente dos Estados Unidos do Brasil.
O Brasil virara à esquerda, houvera mesmo a condecoração de Che Guevara, deu escândalo. O país recebia oposicionistas de diferentes cartilhas, por ali andou Humberto Delgado, ali vai regressar Henrique Galvão depois de sequestro do paquete Santa Maria.
O médico e farmacêutico Castro Carvalho procura dar um resumo histórico do continente, como está a organizar a nova África, não deixa de mencionar as expedições dos exploradores do século XIX e dirige-se para aquilo que ele denomina como o drama da libertação: um continente cheio de recursos, com mais de 90% da população analfabeta, uma libertação conquistada por vezes com sangue, enumera alguns dos líderes africanos com proeminência na altura, as tentativas de neocolonialismo, os esforços de alguns novos Estados para fazerem federações, tudo com maus resultados, as potencialidades turísticas, o quadro da presença islâmica no continente. Postos estes resumos, pretende dar-nos uma imagem de quem é quem em África: o Sudoeste Africano, Alto Volta, Angola, Argélia, Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo Brazzaville, ex-Congo Belga, Costa do Marfim, Daomé, Egito, Etiópia, Enclaves Britânicos (Suazilândia e outros), Enclaves Espanhóis, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné Portuguesa, Libéria, Líbua, Republica Malgaxe, Mali, Mauritânia, Moçambique, Níger, Nigéria, Quénia, Rodésia, Rolanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Tanganica, Togo, Tunísia, Uganda, África do Sul (então União Sul Africana) e Zanzibar. Não há qualquer menção a Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. Vejamos como ele nos apresenta a Guiné Portuguesa.
Menção da chegada de Nuno Tristão em 1446 à Costa da Guiné, início das expedições de penetração no interior, “A Guiné Portuguesa desempenhou desde o século XV ao século XIX um papel predominante do povoamento e na economia do Arquipélago de Cabo Verde, a que esteve estritamente ligada até 1869, data em que adquiriu autonomia administrativa. No começo do século XX, esse pequeno território português estava empobrecido, desorganizado e rebelde. Criou-se, então, um conselho em Bolama e comandos militares nas povoações de Buba, Geba, Cacheu e Bissau (não foi exatamente assim, mas adiante); a centralização dos serviços públicos principais, em Bolama, atraíra à vila o grosso da população portuguesa.”
E continua:
“A completa pacificação da Guiné foi realizada pelo Chefe do Estado-Maior, João Teixeira Pinto, sem o concurso do exército metropolitano, utilizando-se, apenas, dos recursos militares locais (também não foi assim, Abdul Indjai não era recurso local, era o chefe de mercenários, oriundo dos povos Jalofos). Foi só depois de 1886, época em que ficaram marcadas as fronteiras da Guiné Portuguesa, que esse território começou a progredir sendo isso hoje uma realidade incontestável.
Para atingir essa finalidade, muito esforço foi despendido, pois essa terra era olhada como inferno de vida e de morte. No decorrer dos anos, porém, pacificou-se o indígena, fizeram-se obras de saneamento e criou-se uma estrutura sanitária eficaz e completa (longe de ser verdade, mas faz de conta).
Nasceram aglomerados urbanos, cimentou-se uma cultura, rasgaram-se mais de 3000 quilómetros de estradas que substituindo vantajosamente os tortuosos e inumeráveis caminhos do mato, permitiram a ocupação efetiva da Província. Em consequência, abriram-se grandes perspetivas na valorização das terras. E assim é que hoje a Guiné Portuguesa segue pela estrada reta do soalheiro.”
Castro Carvalho pontua pela localização, os limites e fronteiras, a superfície, a população, os dados religiosos, os recursos económicos, as potencialidades turísticas e os meios de comunicação. Uma palavra sobre este último tópico. É referida a TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa) que estabelecia ligações entre as principais localidades da província e entre Bissau e Varela. Um elevado número de veículos e barcos a motor faziam a ligação regular dos portos marítimos (Bissau, Bubaque, Catió e Cacheu) com o interior, através de uma vasta rede fluvial a cerca de 1800 km; como referido atrás, a rede rodoviária atingia mais de 3000 km. Com o exterior, e principalmente com a Europa, as comunicações eram feitas através de Dacar, a TAGP mantinha contacto duas vezes por semana com a capital do Senegal. A Sociedade Geral de Transportes mantinha duas carreiras marítimas por mês, entre Lisboa e Bissau. A rede rodoviária da Guiné ligava-se através de Cacine e de Pitche com a República da Guiné; de Pirada com a Gâmbia; de Colina do Norte (Cuntima) com Sedhio e Kolda, com o Senegal.
Segundo Castro Carvalho, Bissau contava então com 20 mil habitantes, era um porto de mar bastante movimentado, e os principais aglomerados eram Bafatá, Bolama, Cacheu e Farim. É o que cumpre dizer de um livrinho redigido por um investigador amador sobre o tal continente ignorado, estávamos no início da década de 1960 e o Brasil abria-se declaradamente aos ideais da autodeterminação. Tudo vai mudar com a chegada da ditadura militar, em 1964.
Uma das mais belas fotografias tiradas ao icónico monumento de Bolama. Imagem de Francisco Nogueira, com a devida vénia, este monumento é considerado o mais impressionante monumento Arte Deco da África Ocidental
Bissau, José Luís de Braun, 1780. Propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Fotografia tirada numa picada da Guiné, por Andrea Wurzenberger, com a devida vénia
_____________Nota do editor
Último post da série de 15 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
Guiné 61/74 - P27117: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1937 (48) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:
Queridos amigos,
Vamos finalmente saber alguma coisa sobre as operações de Canhabaque, que decorreram no ano anterior, o governador concede múltiplos louvores e vale a pena observar um punhado de régulos premiados, um bom número deles irá aparecer no apoio às autoridades portuguesas, durante a luta de libertação. A colónia vè crescer a sua administração, estruturam-se mais e mais serviços, o governador vê-se que tem mão dura com os atos de corrupção. Pela leitura atenta das reuniões de Conselho de Governo vê-se que há um apreciável anseio em expandir as infraestruturas, em melhorar a urbanização de Bissau, nesta altura é inevitável a transferência da capital de Bolama para aqui, aliás os diferentes serviços básicos vão sendo transferidos, desde a saúde às comunicações. Há expetativas que ficarão por concretizar, irão materializar-se quando o comandante Sarmento Rodrigues aqui chegar com alguns alforjes de dinheiro e um dinamismo insuperável.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1937 (48)
Mário Beja Santos
O grande destaque para os acontecimentos deste ano é o do crescimento da Administração, espalha-se de modo capilar por todo o território, veremos, enfim, referência aos acontecimentos de Canhabaque, há mão dura para os atos de corrupção. Regressou o major Carvalho Viegas à Guiné, depois de uma apreciável ausência, em que este substituído pelo Encarregado de Governo, capitão Salvação Barreto. A A.E.G. Lusitana, representante da Telefunken, fica responsável pelo fornecimento e instalação na Guiné de postos radiotelefónicos e radiotelegráficos. Já no segundo semestre será criada a secção de estatística da colónia (suplemento ao Boletim Oficial n.º 35, de 2 de setembro); processa-se formalmente uma orientação da lavoura com a criação de um organismo dito estreme (puro, que não tem mistura) destinado a estudar todos os problemas que se relacionam com a produção agrícola, o organismo chama-se Conselho Técnico da Agricultura, tem a principal finalidade de promover que sejam modificados os métodos e sistemas de agricultura empregados pelos indígenas (BO n.º 39, de 27 de setembro, com a legislação respetiva publicada no BO n.º 40).
Falou-se atrás que o Boletim Oficial vai dando conta de várias demissões por roubos administrativos, como se passa a referir. No Boletim Oficial n.º 3, de 18 de janeiro, ficamos a saber que Jorge António Medina, secretário do Quadro Administrativo e chefe de posto, que estava na inatividade por dois anos, era arguido de ter desviado em seu proveito próprio, do cofre da Administração da Circunscrição Civil de Farim, uma quantia superior a 28 contos, e tinha pretendido atribuir o desvio ao aspirante Eduardo Melo, na data gravemente doente no hospital de Bissau, onde faleceu.
Nos autos provou-se a má-fé com que procedera, ludibriando o seu superior hierárquico, que na sua honestidade confiara; havia contra ele as agravantes de já ter sido punido com a pena de regresso à categoria inferior em consequência de um desvio de 6 contos e também pelo desaparecimento de conhecimentos de cobrança do imposto de palhota, numa quantia superior também a 6 contos.
O conselho disciplinar, de forma retórica procede a despacho, elabora portaria a demiti-lo; na mesma data, o conselho disciplinar demite o professor auxiliar do ensino primário Zeferino José Simão Monteiro de Macedo por atos praticados contra a moral e prestígio da função pública, tinha levado alunos de ambos os sexos da escola oficial a seu cargo a banharem-se no rio, em completo estado de nudez e numa promiscuidade imoral; levou os alunos a uma dança regional, caracterizadas por gestos e atitudes obscenos, dançando conjuntamente com eles… Houve depois relações sexuais com uma aluna, com a mulher de um aluno.
Foi-me dado ver pela primeira vez que havia apartheid puro e duro, consagrado na legislação. No Decreto n.º 27:491, do Ministério das Colónias, publicado no Boletim Oficial n.º 9, em 1 de março, pode ler-se, tendo em consideração que os caminhos-de-ferro de algumas colónias não dispõem de carruagens de 3.ª classe próprias para nelas puderem viajar os cabos e os soldados europeus, era necessário providenciar que se evitasse que aquelas praças viajassem em promiscuidade com os indígenas durante largos períodos de muitas horas; o governador-geral do Estado da Índia tinha procurado providenciar sobre a matéria, a fim de ser mantida a dignidade da farda. Assim sendo, era decretado que quando os cabos e soldados europeus viajassem, por motivo de serviço, em caminho de ferro onde as respetivas carruagens de 3.ª classe não possuíssem compartimentos especiais para europeus, sendo apenas destinado a indígenas, tinham o direito ao transporte em 2.ª classe.
Temos finalmente uma referência a Canhabaque, consta da Portaria n.º 37, Boletim Oficial n.º 13, de 20 de março. Ficamos a saber que tinha cessado as medidas de exceção do arquipélago dos Bijagós:
“Sendo certo que o prolongado estado de insubmissão do indígena – obrigando o Governo à adopção de um regime de força – o empobreceu pela perda do seu armentio (rebanhos) e outros valores, o que aconselha que se anotem medidas de proteção que restabeleçam, naquela ilha, o primitivo índice de riqueza indígena, determina-se que entre imediatamente em vigor:
1.º Que seja restabelecido, na ilha de Canhabaque, o regime de administração civil, constituindo a área da ilha um posto administrativo com sede em Inorei integrado na circunscrição civil dos Bijagós;
2.º Que seja criado, na mesma ilha, um centro comercial fixado na sede do posto, sendo expressamente vedado o exercício do comércio fora dele;
3.º Que a concessão de licenças do comércio fique rigorosamente limitada a firmas individuais ou coletivas que se encontrem matriculadas no Tribunal do Comércio.”
E os indígenas de Canhabaque passavam a ter completa liberdade de se movimentarem.
No suplemento ao n.º 14 do Boletim Oficial n.º 9, de 8 de abril, publicam-se várias portarias emanadas do gabinete do governador, louvores. “Terminadas as operações militares na ilha de Canhabaque, com o bom êxito das quais ficou a Colónia inteiramente pacificada, e sendo de justiça publicamente patentear o esforço dos que expuseram a vida em serviço da Pátria e da civilização, não se poupando a sacrifícios, mostrando patriotismo, desinteresse pessoal e destemor, operando numa região de climas deveras inóspito, e através de uma serrada vegetação em que todas as emboscadas são fáceis”, louvam-se tenentes de infantaria e um tenente-médico, dois sargentos, vários primeiros-cabos, é promovido a capitão de 2.ª linha o então tenente de 2.ª linha, régulo de Badora, Boncó Sanhá, pela maneira decidida como mandou os auxiliares do seu regulado durante as operações na ilha de Canhabaque; também promovido a capitão de 2.º linha o régulo de Sancorlá, Bram Jam, pela coragem, brio e valentia que deu provas num combate, apesar de ver cair morto, a seu lado, o seu filho primogénito, a tenente de 2.ª linha, o alferes de 2.ª linha, régulo do Ganadú, Demba Danelho, pela dedicação, coragem e valentia que dera provas; e também promovidos a alferes de 2ª linha os régulos de Quinará, Buli Jassi, Braima Baldé e do Cossé, Infali Baldé, pela coragem e valentia que deram provas.
E termina-se com mais medidas disciplinares, constantes do Boletim Oficial da Guiné n.º 46. Desta feita estava envolvido o capitão do extinto quadro de administração de saúde das colónias, António das Neves Jacob:
“a) Sendo Fiscal do Hospital de Bolama, apesar de fazer expedir de uma maneira irregular circulares para o fornecimento de géneros para dietas, continuava a proceder incorretamente, não respeitando as propostas mais vantajosas, prejudicou os interesses do Estado;
b) Pretendeu mancomunar-se com o seu subordinado e inferior hierárquico, combinando com este as repostas a dar ao encarregado do inquérito;
c) Falta de lealdade para com o diretor do hospital, dando-lhe a assinar um recibo e não lhe levando à assinatura o talão respetivo, diversamente escriturado;
d) Praticou graves irregularidades de escrituração das contas e recibos dos doentes;
e) Serviu-se de dinheiros do Estado para pagamento das suas contas circulares, sem lhes ter dado entrada na fazenda, como cumpria.” Com todas as atenuantes somadas, não acusando o seu registo disciplinar castigo algum, o governador aplicou-lhe o mínimo de pena de inatividade por 181 dias, ficou com direito às regalias concedidas aos militares das Forças Armadas e tem vencimento militar, perde as gratificações de comissão e de serviço.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 6 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27097: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o segundo semestre de 1936) (47) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Vamos finalmente saber alguma coisa sobre as operações de Canhabaque, que decorreram no ano anterior, o governador concede múltiplos louvores e vale a pena observar um punhado de régulos premiados, um bom número deles irá aparecer no apoio às autoridades portuguesas, durante a luta de libertação. A colónia vè crescer a sua administração, estruturam-se mais e mais serviços, o governador vê-se que tem mão dura com os atos de corrupção. Pela leitura atenta das reuniões de Conselho de Governo vê-se que há um apreciável anseio em expandir as infraestruturas, em melhorar a urbanização de Bissau, nesta altura é inevitável a transferência da capital de Bolama para aqui, aliás os diferentes serviços básicos vão sendo transferidos, desde a saúde às comunicações. Há expetativas que ficarão por concretizar, irão materializar-se quando o comandante Sarmento Rodrigues aqui chegar com alguns alforjes de dinheiro e um dinamismo insuperável.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1937 (48)
Mário Beja Santos
O grande destaque para os acontecimentos deste ano é o do crescimento da Administração, espalha-se de modo capilar por todo o território, veremos, enfim, referência aos acontecimentos de Canhabaque, há mão dura para os atos de corrupção. Regressou o major Carvalho Viegas à Guiné, depois de uma apreciável ausência, em que este substituído pelo Encarregado de Governo, capitão Salvação Barreto. A A.E.G. Lusitana, representante da Telefunken, fica responsável pelo fornecimento e instalação na Guiné de postos radiotelefónicos e radiotelegráficos. Já no segundo semestre será criada a secção de estatística da colónia (suplemento ao Boletim Oficial n.º 35, de 2 de setembro); processa-se formalmente uma orientação da lavoura com a criação de um organismo dito estreme (puro, que não tem mistura) destinado a estudar todos os problemas que se relacionam com a produção agrícola, o organismo chama-se Conselho Técnico da Agricultura, tem a principal finalidade de promover que sejam modificados os métodos e sistemas de agricultura empregados pelos indígenas (BO n.º 39, de 27 de setembro, com a legislação respetiva publicada no BO n.º 40).
Falou-se atrás que o Boletim Oficial vai dando conta de várias demissões por roubos administrativos, como se passa a referir. No Boletim Oficial n.º 3, de 18 de janeiro, ficamos a saber que Jorge António Medina, secretário do Quadro Administrativo e chefe de posto, que estava na inatividade por dois anos, era arguido de ter desviado em seu proveito próprio, do cofre da Administração da Circunscrição Civil de Farim, uma quantia superior a 28 contos, e tinha pretendido atribuir o desvio ao aspirante Eduardo Melo, na data gravemente doente no hospital de Bissau, onde faleceu.
Nos autos provou-se a má-fé com que procedera, ludibriando o seu superior hierárquico, que na sua honestidade confiara; havia contra ele as agravantes de já ter sido punido com a pena de regresso à categoria inferior em consequência de um desvio de 6 contos e também pelo desaparecimento de conhecimentos de cobrança do imposto de palhota, numa quantia superior também a 6 contos.
O conselho disciplinar, de forma retórica procede a despacho, elabora portaria a demiti-lo; na mesma data, o conselho disciplinar demite o professor auxiliar do ensino primário Zeferino José Simão Monteiro de Macedo por atos praticados contra a moral e prestígio da função pública, tinha levado alunos de ambos os sexos da escola oficial a seu cargo a banharem-se no rio, em completo estado de nudez e numa promiscuidade imoral; levou os alunos a uma dança regional, caracterizadas por gestos e atitudes obscenos, dançando conjuntamente com eles… Houve depois relações sexuais com uma aluna, com a mulher de um aluno.
Foi-me dado ver pela primeira vez que havia apartheid puro e duro, consagrado na legislação. No Decreto n.º 27:491, do Ministério das Colónias, publicado no Boletim Oficial n.º 9, em 1 de março, pode ler-se, tendo em consideração que os caminhos-de-ferro de algumas colónias não dispõem de carruagens de 3.ª classe próprias para nelas puderem viajar os cabos e os soldados europeus, era necessário providenciar que se evitasse que aquelas praças viajassem em promiscuidade com os indígenas durante largos períodos de muitas horas; o governador-geral do Estado da Índia tinha procurado providenciar sobre a matéria, a fim de ser mantida a dignidade da farda. Assim sendo, era decretado que quando os cabos e soldados europeus viajassem, por motivo de serviço, em caminho de ferro onde as respetivas carruagens de 3.ª classe não possuíssem compartimentos especiais para europeus, sendo apenas destinado a indígenas, tinham o direito ao transporte em 2.ª classe.
Temos finalmente uma referência a Canhabaque, consta da Portaria n.º 37, Boletim Oficial n.º 13, de 20 de março. Ficamos a saber que tinha cessado as medidas de exceção do arquipélago dos Bijagós:
“Sendo certo que o prolongado estado de insubmissão do indígena – obrigando o Governo à adopção de um regime de força – o empobreceu pela perda do seu armentio (rebanhos) e outros valores, o que aconselha que se anotem medidas de proteção que restabeleçam, naquela ilha, o primitivo índice de riqueza indígena, determina-se que entre imediatamente em vigor:
1.º Que seja restabelecido, na ilha de Canhabaque, o regime de administração civil, constituindo a área da ilha um posto administrativo com sede em Inorei integrado na circunscrição civil dos Bijagós;
2.º Que seja criado, na mesma ilha, um centro comercial fixado na sede do posto, sendo expressamente vedado o exercício do comércio fora dele;
3.º Que a concessão de licenças do comércio fique rigorosamente limitada a firmas individuais ou coletivas que se encontrem matriculadas no Tribunal do Comércio.”
E os indígenas de Canhabaque passavam a ter completa liberdade de se movimentarem.
No suplemento ao n.º 14 do Boletim Oficial n.º 9, de 8 de abril, publicam-se várias portarias emanadas do gabinete do governador, louvores. “Terminadas as operações militares na ilha de Canhabaque, com o bom êxito das quais ficou a Colónia inteiramente pacificada, e sendo de justiça publicamente patentear o esforço dos que expuseram a vida em serviço da Pátria e da civilização, não se poupando a sacrifícios, mostrando patriotismo, desinteresse pessoal e destemor, operando numa região de climas deveras inóspito, e através de uma serrada vegetação em que todas as emboscadas são fáceis”, louvam-se tenentes de infantaria e um tenente-médico, dois sargentos, vários primeiros-cabos, é promovido a capitão de 2.ª linha o então tenente de 2.ª linha, régulo de Badora, Boncó Sanhá, pela maneira decidida como mandou os auxiliares do seu regulado durante as operações na ilha de Canhabaque; também promovido a capitão de 2.º linha o régulo de Sancorlá, Bram Jam, pela coragem, brio e valentia que deu provas num combate, apesar de ver cair morto, a seu lado, o seu filho primogénito, a tenente de 2.ª linha, o alferes de 2.ª linha, régulo do Ganadú, Demba Danelho, pela dedicação, coragem e valentia que dera provas; e também promovidos a alferes de 2ª linha os régulos de Quinará, Buli Jassi, Braima Baldé e do Cossé, Infali Baldé, pela coragem e valentia que deram provas.
E termina-se com mais medidas disciplinares, constantes do Boletim Oficial da Guiné n.º 46. Desta feita estava envolvido o capitão do extinto quadro de administração de saúde das colónias, António das Neves Jacob:
“a) Sendo Fiscal do Hospital de Bolama, apesar de fazer expedir de uma maneira irregular circulares para o fornecimento de géneros para dietas, continuava a proceder incorretamente, não respeitando as propostas mais vantajosas, prejudicou os interesses do Estado;
b) Pretendeu mancomunar-se com o seu subordinado e inferior hierárquico, combinando com este as repostas a dar ao encarregado do inquérito;
c) Falta de lealdade para com o diretor do hospital, dando-lhe a assinar um recibo e não lhe levando à assinatura o talão respetivo, diversamente escriturado;
d) Praticou graves irregularidades de escrituração das contas e recibos dos doentes;
e) Serviu-se de dinheiros do Estado para pagamento das suas contas circulares, sem lhes ter dado entrada na fazenda, como cumpria.” Com todas as atenuantes somadas, não acusando o seu registo disciplinar castigo algum, o governador aplicou-lhe o mínimo de pena de inatividade por 181 dias, ficou com direito às regalias concedidas aos militares das Forças Armadas e tem vencimento militar, perde as gratificações de comissão e de serviço.
Bombas contra Franco
Luta da Mantampa, Papéis, Guiné Portuguesa
Imagem de evento Bijagó, 1946
'Beleza Bijagó, Guiné', fotografia de Domingos Alvão, postal fotográfico da 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, 1934Indígena Bijagó, Guiné, 1940
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 6 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27097: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o segundo semestre de 1936) (47) (Mário Beja Santos)
segunda-feira, 11 de agosto de 2025
Guiné 61/74 - P27112: Notas de leitura (1828): "Histórias de Amor em Tempo de Guerra, Guiné 1963-1974", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2017 (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Tem sido graças ao bom acolhimento que me dá a Biblioteca da Liga dos Combatentes que vou lendo as investidas do médico Rui Sérgio pelas suas memórias da Guiné. Não resiste a falar de Galomaro, nem dos Bijagós nem da região de Pitche e Nova Lamego, por ali andou ele e gente do seu batalhão. Compõe agora quatro histórias que gizou como um guião para um filme: a mulher de um oficial de informações precisa de ter um filho que o marido não lhe pode dar e daí os encontros libidinosos com um furriel paraquedista; o Neco de Leixões, encaminhador para casas de alterne na vida civil e que passou a apresentar-se como percussionista e vocalista no Chez Toi, já na idade avançada o Neco acha que todas aquelas meninas deveriam ter sido condecoradas com a Medalha de Mérito Militar; Tomaz e Bárbara também têm como pano de fundo o Chez Toi, até o médico Dr. Rui Sérgio aparece como salva-vidas, Bárbara e Tomaz casarão na catedral de Bissau; e como o amor redime sempre, um grupo de quatro marinheiros frequenta na estrada de Bor um espaço onde atuam moças cabo-verdianas, também tudo acabará em casamento e o autor dá como comprovada a capacidade dos tugas em espalharem a sua bondade e poder de miscigenação já que a genética da portugalidade tem muito que se diga.
Um abraço do
Mário
Sim, o amor não nos deixa em descanso em tempos de guerra
Mário Beja Santos
O alferes miliciano médico Rui Sérgio, que cirandou entre Galomaro, Gabu e Bijagós, mostra fervor pela Guiné, dedicou-lhe um acervo de livros, chegou a vez de falarmos de Histórias de Amor em Tempo de Guerra, Guiné 1963-1974, 5livros.pt, 2017. Apresenta quatro histórias como um guião para um filme, despede-se com um poema onde se revela taciturno, diz-se contentar em viver só, com ilusões e sentimentos que jamais realidade serão.
Primeira história, um furriel paraquedista, vindo de uma operação no Morés, tenta nos CTT de Bissau uma ligação para a metrópole. Rui Sérgio não esconde que é médico e que tem que dar explicações, neste caso falando do intertrigo, a propósito de virilhas empapadas, gretadas e cheias de micose. Enquanto espera pela chamada, mete conversa com uma metropolitana, esta diz ser mulher de um oficial de informações no Quartel-General e professora de liceu. O furriel, que aspira chegar a Lisboa para terminar o sétimo ano, pergunta se ela lhe pode dar explicações de matemática, biologia e físico-química.
Um dia, lá em casa, e na ausência do marido que está em missão em Nova Lamego, irrompem os ardores libidinosos. O furriel não se sente muito bem pela sua consciência, passados uns tempos o casal partiu para Lisboa. Há depois uma terrível operação em Guidaje, ele é ferido, e foi evacuado de Bissau para Lisboa. Acontece o 25 de Abril, o furriel casa-se e tem uma filha, um acidente de viação leva-lhe a mulher. Um dia, numa esplanada do Príncipe Real reencontra aquele amor de ocasião de Bissau na companhia de uma filha. Mais tarde o furriel recebe um telefonema da mulher do oficial de informações, ela conta-lhe a seguinte história:
“Espero que não te zangues comigo e não aches que te usei, mas a verdade é que antes de irmos para a Guiné, e após exames analíticos, pois não engravidava, soube que o meu marido tinha azoospermia e que não podia ser pai. Ocultei tal facto para não ferir a virilidade e o desejo de ser pai, dizendo-lhe que a culpa seria minha. O facto de termos caído nos braços um do outro levou-me a engravidar. A minha gravidez e a minha vinda coincidiram com o facto de seres ferido em combate. Nunca mais te vi, agradecia todos os dias a Deus o ter-te posto no meu caminho e teres me dado a nossa filha que salvou o meu casamento.” Choraram abraçados um ao outro com a certeza de que a guerra da Guiné não fora assim tão má.
A segunda história envolve o Neco de Leixões, tinha historial de barman em estabelecimentos noturnos, após a recruta e especialidade foi colocado como criado de mesa na messe de oficiais do RASP, daqui foi mobilizado para a Guiné, deixou imensas saudades, era bom angariador de prostitutas, encaminhando embarcadiços para as casas de alterne. Partiu para a Guiné numa companhia de comandos e serviços como amanuense. Rui Sérgio usa indiferenciadamente a sua narrativa na primeira e na terceira pessoa do singular, umas vezes para descrever o contexto outras para pôr a personagem a falar. Em Bissau encontra um tenente-coronel com quem passara borgas e noitadas nos bares de Matosinhos, nos tempos em que ele era capitão, ele passa a impedido deste oficial superior, um dia encontra o Pinto, filho do dono da casa de câmbios mais famosa de Valença, a Casa Condessa, que atuava como guitarrista no Chez Toi, também conhecido como o Gato Negro, Rui Sérgio descreve ao pormenor. Agora, na velhice, o Neca de Leixões acha que todas aquelas meninas que trabalhavam naquele espaço lúdico de Bissau deveriam ser condecoradas com a Medalha de Mérito Militar.
A terceira história intitula-se Tomaz e Bárbara. Tomaz era tenente do Quadro Especial de Oficiais. Tirara o curso em Mafra, como aspirante fora colocado em Tancos, onde concluiu a especialidade de sapador. Mobilizado para a Guiné, cumpriu a primeira comissão no batalhão de Tite, trabalhou na desminagem da picada para Nova Sintra. É numa ida para Bissau que passou a ingressar no Quadro Especial de Oficiais, viu a sua comissão encurtada, veio até à Academia Militar, está agora em estágio no batalhão em Pitche, participa novamente nas atividades de desminagem, desbravava-se a picada de Nova Lamego até Pirada, um pelotão de Paúnca fazia a proteção à picada, as colunas deslocavam-se com uma GMC à frente, quando a coluna chegava a Nova Lamego um pelotão da CCS protegia-os até Pitche.
Aqui começa verdadeiramente a história. No trajeto para Canquelifá, a coluna é emboscada, causou dois feridos graves, um dos quais um alferes amigo de Tomaz. Este não descansou enquanto não foi a Bissau para visitar o amigo. Depois de jantar foi ver as moças no Gato Negro, aí conhece Bárbara nascida no Largo da Rua Chã, menina de 18 anos, católica temente, batizada na Sé Patriarcal do Porto. Rapidamente teremos derriço entre Bárbara e Tomaz. Este está de volta à região de Pitche, mal chega há um grande ataque do PAIGC a Copá, Pirada e Buruntuma, toda a zona Leste ficou em estado de sítio, tiveram que vir os comandos africanos e o grupo de Marcelino da Mata. A população de Copá fugiu, tiveram que vir os paraquedistas. O pelotão de Tomaz tem um comportamento formidável na desminagem da picada para Copá. Entretanto chega a notícia de que Bárbara tinha sido internada no Hospital Civil de Bissau com uma crise palúdica severa.
O autor não resiste a autorretratar-se, pois Tomaz é apresentado como médico do batalhão de Galomaro que tinha ido a Bissau acompanhar a evacuação de feridos e prestava assistência itinerante nos Bijagós (era esta a situação de Rui Sérgio). E temos novamente o médico Rui Sérgio em ação, ficamos a saber como Bárbara foi tratada:
“O médico mandou aplicar soro Ionosteril-G (Soro Polieletrolítico com glicose a 5%) com um fluxo rápido de 90 gotas por minutos, para uma hidratação adequada. Resochina 500 mg em infusão endovenosa de 8 em 8 horas. Aplicou-lhe intramuscularmente uma injeção de Fenobarbital para a agitação e Dolviran em supositório para a temperatura.”
Bárbara recupera. Tomaz chega ao fim do estágio, Bárbara e Tomaz casam na catedral de Bissau. Até na Guiné Jesus faz milagres.
A última história intitula-se Amor em tempo de guerra. Jorge oferece-se como voluntário para a Marinha, tem uma compleição física notável e uma musculatura bem desenvolvida. Ligado desde os 11 anos à mecânica e eletricidade, foi-lhe destinada a especialidade de Armas Pesadas. No início de 1972 é mobilizado e colocado nos Serviços de Reparação Naval da Armada. Viaja de avião com gente fixe, trabalha na manutenção de armamento das Lanchas de Fiscalização sediadas na base. Teremos seguidamente uma descrição de armas, fuzileiros, vias fluviais, formou-se uma dupla entre o Jorge e o José Russo, frequentam o Gato Negro, juntam-se mais dois, o Zé Bófia e o César Red River, passam a frequentar uma casa de cabo-verdianas nas estrada de Bor, os quatro amigos vão-se afeiçoando a quatro meninas do sítio, depois de muitas peripécias, numa refrega Jorge é ferido, por atos de bravura será condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe, tudo acabará em bem, o quarteto marcou o dia de casamento na catedral de Bissau com as meninas de Bor.
“O amor também venceu a guerra e a capacidade dos tugas de espalharem a sua bondade, a sua capacidade de miscigenação, a sua entrega de amor e a alma lusófona, que espalha constantemente a sua portugalidade que geneticamente é uma mistura amerinda, africana, árabe, luso-galaica.”
Aqui finda o guião para um filme.
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Nota do editor
Último post da série de 8 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5 (Mário Beja Santos)
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