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sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Deixo-vos o terceiro e último apontamento acerca do ensaio em que Philip Havik mostra o tratamento da imagem do homem e da mulher antes e após o período da ocupação efetiva. Ele não deixa de observar a mudança fundamental que se operou quando a vida do colono se transferiu das Praças e Presídios para o interior, apareceram as administrações e os postos, os governadores passaram a exigir relatórios anuais a estes funcionários, o modelo mais saliente destes anos 1930 foi o inquérito elaborado por um sobrinho do governador Velez Caroço, uma matriz que permite observar o que era a imagem da mulher. Neste tempo ainda imperavam teses raciais que proibiam categoricamente a mistura de raças, o que entra em contradição com a presença do colono neste interior onde os administradores e chefes de posto não levavam, em regra geral, a mulher branca, daí o mulato ter um desenvolvimento notório na Guiné. E há a preponderância de sinharas, como Nhá Bijagó e até perto da nossa presença colonial Nha Carlota. Este ensaio de Philip Havik é um estupendo ponto de partida para a continuação de estudos sobre as relações luso-africanas a partir de finais do século XIX e até ao fim do império.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3


Mário Beja Santos


Data de meados de 1930 a primeira monografia etnográfica que faz o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”. O seu autor deixa claro que a sua contribuição quebra o silêncio, haverá uma meia dúzia de trabalhos de grande interesse para alguns, mas destinado aos arquivos. Evidentemente que se produziram relatos pelos primeiros navegadores, somente publicados nos séculos XIX e XX, em que o registo in loco das tradições locais ocupa um lugar central. A monografia em apreço, "Babel Negra", tem uma lógica étnica e não administrativa, fornecendo dados sobre o parentesco, o casamento, a organização social, a agricultura e as línguas, obtidas essencialmente, mas não exclusivamente, pelos administradores e os seus intérpretes.

Os resultados eram em parte baseados sobre um novo questionário preparado pelo chefe dos assuntos indígenas do tempo do governador Vellez Caroço. As justificações dadas para este novo inquérito eram associadas ao projeto do novo Código Civil e Penal que se destinava a substituir as leis portuguesas então em vigor, considerando que não correspondiam à “mentalidade primitiva da população indígena”. O seu quadro e conteúdo são particularmente reveladores das doutrinas subjacentes ao pensamento colonial da época. O documento versa uma grande variedade de questões incluindo a família, refere por exemplo a divisão do trabalho entre sexos e nota-se uma boa dose de ignorância quando fazem perguntas como “Quem trabalha, os homens ou as mulheres?”. As questões referentes à autoridade paternal e maternal fazem-se acompanhar de perguntas postas do ponto de vista do marido: “Na vida do casal, quais são os papeis a que a mulher é obrigada a cumprir?”.

No livro "Babel Negra" identificam-se doze “tribos”, cada uma será objeto de um capítulo sob a forma de curtas vinhetas, isto ao mesmo nível do questionário atrás referido, tratando depois as características físicas e até as atividades de lazer. Cada capítulo inclui a fotografia de um homem e de uma mulher, bem como um glossário elementar do dialeto “étnico”. Dá-se mais importância aos grupos patrilineares, tais como os Mandingas e os Fulas, mas também aos Balantas “animistas” que aos grupos matrilineares. As relações entre homens e mulheres são sempre apresentadas como desiguais e demonstram a segregação existente entre os sexos que constituem um fio condutor no contexto destas sociedades dominadas pelos homens.

As liberdades sexuais das mulheres Baiotes são objeto de uma menção especial enquanto as suas proezas como remadoras ou lutadoras só são marginalmente referidas. O capítulo sobre os Felupes ou Djolas, caracterizados como “guerreiros” e “produtores de arroz” se releva o peso da autoridade da primeira mulher sobre o marido, situação que influencia a vida política da tribo, mas sem indicar especificamente em quê. Se bem que se vivesse num regime dito patriarcal, as sacerdotisas nesta gerontocracia masculina eram responsáveis pela manutenção dos lugares sagrados aos quais os homens não tinham acesso.

Philip Havik refere devidamente a teoria linguística sobre o género, e observa que os estudos etnológicos foram produzidos por administradores e não por antropólogos; os dados etnológicos extraídos dos relatórios coloniais sobre as populações da Guiné por mais que identifiquem modelos de discurso centrados sobre a imagem pejorativa das mulheres, fornecem nuances que obrigam a um exame semântico. Importa não esquecer que nas dinâmicas entre géneros nos setores do comércio e da intermediação aparecem mulheres grandes – as Nharas – impuseram-se nos pontos do comércio do litoral com poder e autoridade equivalentes aos que vemos associados aos homens da mesma região.

Depois da conquista militar, o poder político ficou doravante concentrado nas mãos de uma administração europeia e assistiu-se a uma mudança de paradigmas nas estruturas das relações entre os géneros. O centro de interesse colonial passou dos portos do comércio afro-atlântico para o interior, as chefaturas foram consideradas como aliados políticos potenciais e cooptados na administração local. O branco passou a viver com a negra, surgiram os mulatos. O questionário etnográfico de 1934 sobre o qual se baseou a maior parte dos trabalhos dessa década traziam já uma questão reveladora sobre a aparência das mulheres, se estas quanto tinham um tom de pele mais claro não tinham uma fisionomia mais perfeita e mais escultural. E passou-se a escrever muito sobre a poliandria e o matriarcado Bijagó, o que se vem a demonstrar mais tarde ter pouco ou nenhum fundamento, fazendo-se o contraponto entre a mulher Bijagó primitiva e a beleza das mulheres Fulas, dizendo-se mesmo que a mulher Futa-Forro era inteligente e entre todas as mulheres indígenas da Guiné a mais civilizada.

Dentro destas observações de categorização, destacam-se os manjacos por uma atitude positiva, por falarem mais o crioulo cabo-verdiano, por serem grandes trabalhadores, considerados pois como um dos elementos étnicos mais úteis no desenvolvimento e valorização da colónia, e tecem-se considerações elogiosas sobre a beleza das mulheres, não deixando de se escrever que o seu comportamento sexual libertário podia levar à extinção da “tribo”. Não se pode esquecer que os contactos entre os funcionários coloniais e as mulheres africanas não se limitava ao domínio público, estendia-se ao espaço doméstico onde elas muitas vezes partilhavam a cama com os seus senhores. Os administradores e os chefes de posto viviam e trabalhavam muitas vezes no mesmo edifício. As mulheres foram impulsionadas para a cena como geradoras, mas há que referir as teorias raciais que dominaram os anos de 1920 e 1930 em que a mestiçagem era fortemente criticada e desencorajadas as relações legítimas ou ilegítimas entre indivíduos de raças diferentes, havia inquietação de que se formasse um estrato de mestiços, a etnologia oficial a ela se opunha veementemente, acusando-a de degenerescência da raça. E com a finalidade de reduzir as ocasiões de relações sexuais entre os colonizadores e os indígenas procurou-se recrutar pessoal civil e militar casado, julgava-se assim que se ia impedir a procriação de mestiços.

Nos espaços urbanos a organização era de criar linhas que separavam os europeus dos africanos e também as etnias. Aumentou-se o número de enfermarias e da assistência indígena. Mas há um aspeto interessante e bastante ignorado da etnografia colonial que é a prostituição. A migração dos insulares Bijagós para o continente como de camadas urbanas para o arquipélago é mencionada em certos relatórios como a causa principal das doenças venéreas entre os habitantes das ilhas. Daí a tentativa de os governadores procurarem reter os Bijagós nas suas ilhas, protegendo-os da má influência dos cristãos.

Em suma, assiste-se em meados dos anos 1930 à consolidação do esquema que apresentava as mulheres no discurso oficial como criadores de filhos e trabalhadoras, excetuando sempre as mulheres Bijagós, tratando-as como dominadoras. Entretanto, e apesar dos dados etnográficos, a figuras da mulher continuou, no discurso colonial, a aparecer como um simples apêndice dependente da autoridade e do domínio do homem, uma sombra sem rosto. Mas, entretanto, deu-se uma mudança com implicações no estatuto da mulher. Essa mudança resultou da crescente atenção dos etnógrafos portugueses atribuindo à família o conceito de unidade sólida em vez daquela visão holística até então dominante das sociedades indígenas. Em meados dos anos 1930 era evidente a mutação das prioridades coloniais, mesmo pálida projetou-se a imagem da mulher africana, ela vai aparecer como a mulher indígena entendida como um poderoso agente de civilização e não como uma simples guardiã da espécie e uma besta de carga.

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de Novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia Bijagó, natural de Bissau).
"Mulheres combatentes do PAIGC com as suas armas”, exposição “Revoluções – Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974) Fotografias de Uliano Lucas”
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26598: Historiografia da presença portuguesa em África (470): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1908 (27) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Saímos da pasmaceira da nomeação de terras em concessão, aforadas ou em enfiteuse, com nomeações e boletins sobre o estado de saúde, o governador Oliveira Muzanty parece não tolerar insubmissões e de 1907 para 1908 ajustou contas com Infali Soncó, no Cuor, brandiu armas na circunscrição de Geba, afrontou o régulo rebelde do Xime, mandou uma expedição a Varela e pôs em sobressalto toda a ilha de Bissau; farto do videirinho Graça Falcão, determinou o seu despacho para S. Tomé e Príncipe; é cuidadoso no levantamento da moral das suas tropas; louva todos e mais algum. Isto naquele ano extraordinariamente difícil em que a monarquia parece oscilar depois do regicídio de 1 de fevereiro. Estamos num ano que ainda não acabou e que promete mais acontecimentos.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1908 (27)


Mário Beja Santos

Se os anos mais recentes se revelam marcadamente taciturnos, espelho de uma burocracia entediante e de estranhíssimas omissões sobre o que realmente se passa na Guiné, o Boletim Official de 1908 revela-se totalmente diferente, há razões de sobra, Oliveira Muzanty é um governador que aposta em expedições, procurará resolver o corte à navegação no Geba, perpetrado pelo régulo do Cuor, e com alianças espúrias, e uma nova situação de indisciplina na ilha de Bissau. E chegam-nos referências elucidativas na página oficial dos resultados obtidos.

Logo no Boletim n.º 7, de 2 de fevereiro, portarias com um conjunto de louvores: “Tendo sido dissolvida em 31 do mês findo a coluna de operações no rio Geba e em vista dos relatórios apresentados; hei por conveniente louvar por todas as forças que fizeram parte da referida coluna pela muita subordinação, coragem e sangue-frio de que deram provas no combate de Campampe em 1 de dezembro do ano findo e bem assim nas marchas de 29 de novembro a 2 de dezembro e em especial pela maneira como dirigiram as suas forças e serviços, por vezes com risco do própria vida".
E enumeram-se os oficiais, tenentes da Armada, e tenentes do Exército; e, mais adiante:
“Tendo sido dissolvida em 31 do mês findo a coluna de operações no rio Geba e em vista dos relatórios apresentados; hei por conveniente louvar a guarnição da lancha canhoneira Cacheu pela muita coragem e sangue-frio que deu provas nos combates travados entre aquele navio e o gentio insubmisso do Cuor em especial pela maneira como cumpriram os seus serviços, por vezes com o risco da própria vida.”
E enumera-se os oficiais e as praças.

No Boletim Official n.º 10, de 14 de março, o Governador manda publicar a seguinte portaria: “Considerando o estado de rebelião em que se encontra a região de Varela e a forma como se portou o gentio, com o Residente de Cacheu, na ocasião em que esta autoridade procedia à receção do imposto nas povoações próximas, vindo junto ao acampamento em que se achava, dirigir-lhe os maiores insultos: “Hei por bem organizar um destacamento misto do comando do capitão de Infantaria José Carlos Botelho Moniz, sendo apoiado pela canhoneira D. Luís, do comando do capitão-tenente Alberto António da Silveira Moreno, para castigar o gentio em revolta.”
E enumera-se o efetivo em oficiais, sargentos e praças, incluindo uma companhia de atiradores indígenas, corpo de auxiliares indígenas, serviços de saúde e administrativo.

No Boletim n.º 19, de 16 de maio, uma nova informação de Oliveira Muzanty, desta feita sobre os acontecimentos da ilha de Bissau:
“Considerando que durante os sucessivos combates, em que foi derrotado o gentio de Intim, Bandim e Cuntumbo, se reconheceu a manifesta rebelião de todos os regulados da ilha; considerando mais que a aproximação da época das chuvas inibe a coluna de prosseguir com as alterações em terra, hei por conveniente determinar o seguinte:
1 – É mantido para todos os efeitos o estado de guerra em toda a ilha de Bissau, continuando suspensas as garantias dos seus habitantes;
2 – A suspensão de garantias será proclamada por bandos, em todas as residências em que se acha dividida a província;
3 – Fica proibido todo o género de comunicação da ilha de Bissau, com exceção da Praça, ficando os contraventores sujeitos às consequências da perseguição dos navios de guerra, sendo as embarcações contraventoras consideradas como presas e os seus tripulantes deportados para outras colónias;
4 – Em todas as residências fica proibida a administração do gentio de Bissau, como trabalhadores, quer do Estado, quer de particulares, à exceção dos que tiverem permissão especial do Governo da Província.”


Vale a pena vir um pouco atrás e voltar à campanha do Cuor. No Boletim Official n.º 8, de 10 de julho, o governador que comandou a campanha mandará publicar um conjunto impressionante de louvores, atendamos ao início desta ordem especial de serviço:
“Tendo sido batido e repelido o régulo Infali Soncó, e ocupada a região do Cuor, há muito em rebelião, operações estas levadas ao fim com um bom êxito e honra para a nossa bandeira, que o soldado português tanto ama e respeita, o que mais uma vez veio aumentar o nunca desmentido lustre das armas portuguesas; e que tiveram consequência o livre trânsito da navegação no rio Geba, que se achava fechado desde outubro do ano findo, e durante as quais a coluna suportou não só o embate do inimigo, como também as fadigas de campanha sempre com energia, boa vontade e disciplina, Sua Excelência o Governador manda louvar os oficiais e praças que fizeram parte da coluna de combate, durante as operações no rio Geba…”

E já cá faltava mais uma travessura dos ex-alferes Graça Falcão. No Boletim Official n.º 27, de 11 de julho, o governador não está para os ajustes:
“Tendo chegado ao meu conhecimento que o negociante Jaime Augusto da Graça Falcão, residente em Bissau, reincide na prática de actos para os quais já fora punido, tendo-lhe sido interditado habitar nas circunscrições de Cacheu e Farim;
Tendo sido mandado levantar auto desta reincidência pela competente autoridade da acima citada circunscrição, e averiguando-se, por ele, que o referido Graça Falcão tem feito aleivosas e injuriosas referências ao pessoal da coluna de operações, bem como as vários funcionários, com a agravante de os provocar constante e persistentemente a discussões irritantes e perturbadoras da pública tranquilidade, quer nas ruas quer nos estabelecimentos mais frequentados por estrangeiros e indígenas, prejudicando assim o bom conceito da nação e o brio nacional, perante aqueles, e o nosso prestígio perante estes últimos;
Considerando que lhe não serviu de corretivo o castigo já sofrido;
Considerando que, nessa portaria, não lhe foi aplicado todo o rigor que a lei impõe aos delinquentes dessa sua espécie, em atenção a ter sido oficial do Exército e condecorado, mas deixando de merecer qualquer ato de benevolência por parte dos poderes públicos;
Em virtude dos recentes conflitos, por ele provocados; e
Com o fim de evitar a continuação de factos que podem trazer consequências graves e pôr em risco não só o sossego como a segurança pública:
Hei por conveniente determinar que o mesmo siga, no primeiro transporte, para a província de S. Tomé e Príncipe.”


Temos de agradecer ao governador Oliveira Muzanty ter vindo animar a vida do Boletim Official, tão pardacenta nos últimos tempos.

Notícia do regicídio no Boletim Oficial de 8 de fevereiro
Telegrama alusivo à campanha do Cuor e fuga do régulo Infali Soncó
Estátua de Oliveira Muzanty, Governador da Guiné entre 1906 e 1909, de autoria do escultor António Duarte, erguida em 1950 na cidade de Bafatá, permaneceu intacta após a independência, embora tombada no chão.
Nota de 10 mil réis do BNU, 1909, pagável na sua agência em Bolama
Moeda de 2 tostões de prata com a efígie de D. Manuel II, 1909

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 12 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26577: Historiografia da presença portuguesa em África (469): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, até 1907 (26) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Se é verdade que uma imagem pode valer por mil palavras, a fotografia que mostra o governador Carvalho Viegas em Canhabaque, no início de 1937, é dada então como pacificada toda a região dos Bijagós, bem como a Guiné por inteiro, veja-se a encenação da postura, o branco imaculado da indumentária, apagando tudo o resto, de facto o que fica atrás é uma sombra, ele representa a civilização, uma cultura superior, é mesmo um agente político da Cristandade, a tal Babel Negra tem as suas hierarquias entre as etnias superiores e as que estão no último escalão, as animistas. O que Philip Havik trata primorosamente neste seu ensaio é a evolução a partir desses anos da pacificação de como o branco vê o negro, escalpeliza esse imenso manancial que são os relatórios que vão para Bolama e de Bolama para o Terreiro do Paço.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2


Mário Beja Santos

Importa recapitular o que já se escreveu quanto ao conteúdo deste artigo. Em concreto, ao lingo da história da presença portuguesa na região da Senegâmbia a observação do Outro pelo cronista, navegador, viajante, autoridade local, missionário, não podia, por razões óbvias, proceder a inventários de etnias, áreas ocupadas, dados culturais e religiosos, modos de vida, natureza do potencial económico, etc., etc., só a consagração de um espaço que devia ser ocupado levou a que os governadores fossem obrigados a enviar ao ministro da Marinha e do Ultramar relatórios, e que a partir do Bolama fossem implicados os administrados de circunscrição e chefes de posto a emitirem relatórios, com base em questionários que se foram modificando ao longo de décadas.

Não se pode pedir a Zurara, Diogo Gomes, Cadamosto, Pedro de Sintra, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André de Faro, André Donelha, Francisco Lemos Coelho, e mais tarde, entre os séculos XVIII e século XIX, aos autores de memórias e documentos endereçados às autoridades de Lisboa, o que se vai agora pedir à administração colonial local. Como se viu, foi necessária também um quadro de pacificação e ocupação relativa, começam a aparecer monografias dirigidas a Bolama, há peças sugestivas que tive a possibilidade de ler nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Tudo começa com estudos etnográficos incipientes, o governador Carlos Pereira publica em 1914 um documento importante com base na sua participação numa conferência internacional, ganha realce o anuário de 1925, começam a aparecer dados do primeiro recenseamento colonial de 1924, atiram-se números incomportáveis como o de dizer que havia 770 mil habitantes na Guiné, constata-se hoje que a produção do departamento de assuntos indígenas foi menor, o governador Vellez Caroço conduzirá no cargo um sobrinho seu que deu uma certa consistência e qualidade às informações dadas.

As autoridades locais nunca deixam de revelar nos seus relatórios a penúria constante de fundos e a inexistência de um estudo etnográfico com fundamentos científicos. Philip Havik chama à atenção para uma missão de um etnógrafo austríaco, Hugo Bernatzik, que no fundo vem fazer o que os portugueses não faziam, não se escondia a clamorosa existência de dados que dessem expressão a um estudo para o conhecimento das etnias (naqueles tempos falava-se em raças). O major Carvalho Viegas, será governador durante alguns anos, fez da segregação entre africanos e europeus a pedra angular da sua política, importa não esquecer que havia legislação que consagrava a compartimentação de espaços entre brancos e negros, seria o caso de uma viagem de comboio de 3ª classe, o europeu podia transferir-se para a 2.ª classe, caso a viagem fosse demorada. Havia a ideia de “degenerescência” racial nas comunidades etnicamente puras, não esquecer que em toda a documentação oficial ou não se refere de forma trivial o civilizado e o indígena.

Mas a realidade era mais forte. A mobilidade populacional incitava a que se procurasse ter uma compreensão para os hábitos, costumes e tradições, e mesmo o estudo das instituições sociais e políticas destes diferentes povos, pensava-se que era a única maneira de os ganhar para a nossa civilização cristã. Daí o modo como foi recebida a publicação Babel Negra, em 1935, de autoria de Landerset Simões (um funcionário que virá a ser expulso dos quadros da administração), apareceu como um acontecimento importante na etnografia colonial da época.

O autor vai agora abordar a produção de dados etnográficos no decurso de três fases distintas: durante todos os últimos anos que precedem a ocupação militar, nos anos de 1920, quando a administração portuguesa se estabeleceu sobre o território, e nos anos 1930 quando o Estado Novo se impregnou do discurso colonial. Os primeiros relatórios vindos das residências utilizam a norma de referência masculina, dá-se pouca atenção às mulheres, o nível de submissão feminina é sempre revelado, as mulheres são dadas em casamento numa idade muito precoce, é obediente ao marido e quando este morre é transferida para a posse do herdeiro. A tradição da poligamia reserva à mulher a maioria dos trabalhos, inibe-a da mobilidade social. Ela está desprovida de direitos de propriedade, de herança ou de sucessão, são pessoas secundárias; os homens, ao contrário, aparecem imbuídos de autoridade, são eles que tomam decisões. O espaço social é segregado em função dos sexos.

A monografia de Ernesto Vasconcelos, datada de 1917, segue exatamente este itinerário, fala em raças semitas ou hamitas e na raça negra repartidas em numerosas tribos e subtribos. A inferioridade que se dava aos africanos, aparece escrita como uma verdade definitiva: o africano não tem a noção da palavra honra, ele não se sente constrangido por qualquer compromisso a não ser sob juramento ou profundas razões de religiosidade. E daí, os autores destes relatórios puderem livremente hierarquizar as “civilizações”, no topo estão os grupos islamizados e na base os animistas, caso dos Nalus e dos Bijagós. Há ainda também uns tipos sociais indeterminados, caso dos Grumetes, dos mulatos e “Brancos”.

Estamos num tempo em que se consolida a autoridade colonial, e adverte-se os interessados que para tirar partido destas raças guerreiras, destes agricultores e gente preguiçosa impõe-se um fino espírito político, é preciso guiá-los como um jogador de xadrez que dispõe as suas peças para a vitória final. Tomando como referência as observações dos administradores que responderam ao inquérito de 1927, constata-se que eles fornecem um panorama um pouco mais detalhado das tradições indígenas, mas continua-se a falar nas diferentes raças, sub-raças e tribos. Os autores destes relatórios não escondem a sua falta de conhecimento em etnologia, mas procuram uma abordagem, mesmo que superficial das tradições e práticas africanas. Se no inquérito anterior se punha uma grande insistência nas características físicas, agora relevam as tradições apresentadas face a exemplos concretos e que se fazem acompanhar de medições corporais de classificações segundo uma tipologia racial e começam a fazer-se descrições detalhadas da circuncisão praticada em homens e mulheres nos diferentes grupos; e quase com uma precisão médica aborda-se a gravidez e o parto e até a escarificação. O adultério feminino considerado habitual merece destaque pelas formas de punição, a transmissão matrilinear também passa a ser descrita com frequência, insinuando sempre a suspeita de infidelidade das mulheres do pai. Continuando neste itinerário, os relatórios falam sobre a divisão de trabalho entre os sexos, as hierarquias internas no grupo familiar, etc.

Estamos chegados aos anos 1930, aparece a primeira monografia etnográfica com o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”.

Carnaval na Guiné-Bissau: toda a diversidade étnica à mostra
Os Balantas
Os Fulas
Os Manjacos
Os Mandingas
Os Bijagós
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 10 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26571: Notas de leitura (1779): Habitação para indígenas em Bissau, 1968 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26577: Historiografia da presença portuguesa em África (469): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, até 1907 (26) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Longe vaI o tempo em que o Boletim Oficial permitia tomar o pulso a uma Guiné que começava a dispôr de uma vida orgânica colonial, um mapeamento administrativo, uma débil ocupação, o despertar de atrativos comerciais, isto apesar de uma imensidade de conflitos interétnicos e outros relacionados com os impostos e a perda de influência das chefaturas locais. Folhear agora este Boletim Oficial é procurar uma agulha no palheiro, e o contraste é por vezes brutal quando se ouvem as descrições que nesse exato momento perpassam pela Guiné, como conta Armando Tavares da Silva do seu acervo monumental A Presença Portuguesa na Guiné, que aqui se publica separadamente. O governador Muzanty, como veremos nas descrições de Armando Tavares da Silva, conseguirá meios para desembaraçar a navegação do Geba, que estava sujeita à hostilidade do régulo do Cuor e penetra a fundo na ilha de Bissau, esta será uma vitória temporária, entretanto o aventureiro Abdul Injai já está ao serviço das tropas portuguesas, rouba que se farta, é exilado para S. Tomé, voltará para mais altos voos, ao lado do capitão Teixeira Pinto, terá depois a sua queda.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, até 1907 (26)

Mário Beja Santos

Creio que o leitor que acompanha esta tentativa de sequência cronológica de encontrar no Boletim Official da Guiné elementos válidos para melhor conhecer a realidade socioeconómica e cultural da época já se apercebeu de que as autoridades reduziram a atividade do Boletim a um documento praticamente inócuo; numa tentativa de procurar os dados da realidade da história política, militar e socioeconómica e cultural voltamos ao convívio do acervo monumental organizado por Armando Tavares da Silva em "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", edição Caminhos Romanos, 2016, é o modo que julgo mais facilitado para se procurar iluminar uma época.

Os anos passam, a rotina administrativa mantém-se impassível, assim chegamos a 1905 e no Boletim Official n.º 9 de 25 de fevereiro encontramos os elementos de corografia da Guiné exigidos pelo Conselho Inspetor de Instrução Pública para inserir no compêndio Corografia de Portugal. Abrira-se um concurso, quem concorria devia preencher com as seguintes bases aprovadas pelo dito Conselho Inspetor. Em termos de geografia física: situação geográfica, limites e superfície, rios, canais, ilhas, etc.; clima, regime das chuvas, fenómenos atmosféricos frequentes e produções naturais; em termos de geografia económica: a importância do comércio nacional e estrangeiro, os principais artigos de importação e exportação, agricultura e indústrias subsidiárias, meios de desenvolvimento e indústrias indígenas; em termos de geografia política: população, esboço etnográfico, organização política das diversas raças, suas aptidões e organização política e administrativa da província. O Conselho Inspetor exigia para este concurso noções de cultura tropicais, uma resenha das principais produções naturais da província: plantas alimentares, industriais, essências florestais mais comuns e espécies exóticas. É visível neste programa didático o juntar o útil ao agradável: davam-se informações de caráter geral e também orientadoras a possível investidores e comerciantes.

No Boletim Official n.º 52, de 23 de dezembro desse ano, a Secretaria Geral do Governo emite o seguinte determinação: “Tendo chegado ao conhecimento de Sua Ex.ª o Governador Interino que algumas casas comerciais vendem ao público substâncias medicinais sem que para isso tenham competência, e sendo certo que tal facto, além de representar uma desleal concorrência aos estabelecimentos que a lei protege, pode acarretar perigosas e desastrosas consequências para a salubridade pública, encarrega-me o mesmo Exm.º Sr. de chamar à atenção dos senhores administradores do concelho e comandantes militares para tão importante assunto, e de lhes dizer que procedam como é de lei contra os infratores, na certeza de que lhes atribuirá a responsabilidade de qualquer desaire que possa dar-se no futuro, quando se prove a sua negligência no cumprimento desta determinação.”

Estamos agora em 1907, no Boletim n.º 14, de 6 de abril, o governador João Augusto d’Oliveira Muzanty, farto das traquibérnias do ex-alferes Graça Falcão (de quem ainda se muito falará) publica a seguinte portaria:
“Tomando na maior consideração que me expôs o Residente de Cacheu, o que se confirma pelo auto levantado e pelo conhecimento pessoal dos péssimos precedentes do negociante Jaime Augusto da Graça Falcão;
Considerando a permanência deste negociante nas circunscrições de Cacheu e Farim constitui um desacato permanente à autoridade, que nestas circunscrições mais do que em quaisquer outras precisam de maior prestígio, visto o caráter pouco submisso de grande parte dos indígenas que as povoam, e não estar ainda concluída a sua ocupação militar;
E, como julgo a permanência deste negociante nas referidas circunscrições como podendo comprometer a segurança e ordem pública, com a propaganda que tem feito contrária às determinações de autoridade, propaganda que não desiste de fazer apesar de todos os concelhos e outros meios de brandura empregados:
Hei por conveniente determinar que seja intimado a sair da circunscrição de Cacheu no prazo de 30 dias a contar da data de intimação, ficando-lhe interdita esta circunscrição, bem como a de Farim, até que o seu procedimento futuro e as boas informações dos Residentes nas outras circunscrições, indiquem o permitir-se-lhe a livre circulação em toda a colónia.”


No Boletim Official n.º 24, de 15 de junho, somos informados de que se iniciou o reinado da Gillette. Informa-se o pedido de registo que fora feito em 4 de setembro de 1906 efetuado em 13 de março do ano seguinte, a favor da sociedade anónima americana Gillette Safety Razor Company. A marca é destinada a navalhas de barba, folhas de navalha de barba, cutelaria e instrumentos cortantes.

E despedimo-nos com uma daquelas raríssimas notícias em que se dá conta que há profundas tensões na Guiné, vem no Boletim Official n.º 36, de 7 de setembro, assina o governador Muzanty:
“Tendo o Residente de Cacheu terminado o serviço de cobrança de imposto na sua circunscrição com o aumento de receita tão considerável que demonstra um trabalho insano e uma dedicação digna do maior elogio:
Considerando que parte da região se encontrava insubmissa, o que obrigou o Residente a arriscar a sua vida sempre que a percorreu no desempenho dos serviços que lhe estavam confiados:
Considerando ainda, que se houve com um critério tal, que, apesar de se ter feito acompanhar de um limitado número de auxiliares, evitou sempre os conflitos que pudessem pôr em cheque este Governo: hei por conveniente louvar o Residente de Cacheu, tenente do quadro da Índia, Rodrigo Anastácio Teixeira de Lemos, pelo valor, dedicação, zelo e lealdade com que se houve no desempenho das funções do lugar que exerce.”

Governador da Guiné Alfredo Cardoso de Soveral Martins (1903-1904)
Queimada da tabanca de Intim, na guerra de 1908. Imagem da Coleção Jill Rosemary Dias, com a devida vénia
A fazer esteiras, imagem retirada da Casa Comum/Fundação Mário Soares, com a devida vénia
Bissau em 1910

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26557: Historiografia da presença portuguesa em África (468): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1900 e 1901 (25) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26557: Historiografia da presença portuguesa em África (468): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1900 e 1901 (25) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Não posso esconder que é quase num completo desfastio que ando a folhear estes Boletins Officiais de fim de século, os trâmites administrativos parecem dominar tudo, quem lê número após número pode ficar na ilusão de que a província está pacificada e gradualmente ocupada pela administração portuguesa. Até em 1900 se dá a notícia de que vai haver o primeiro recenseamento da população. Procurando tirar a prova dos nove, procurei ler ao pormenor que Armando Tavares da Silva escreve no seu trabalho gigante intitulado A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926 quanto à governação de Herculano da Cunha, percorre a província de um lado para o outro, informa o ministro que é saudado em todos os pontos entusiasticamente, foge às expedições militares, tem pouquíssimos efetivos e em geral gente desordeira. Se é verdade que em determinados períodos o Boletim Oficial constitui um documento esclarecedor no caso presente é um puro encobrimento das tensões e dificuldades sem número em que vivia a Guiné.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1900 e 1901 (25)


Mário Beja Santos

Tenho dado a saber ao leitor que os últimos anos da década 1890 e o início do novo século registam com estranhíssima parcimónia os acontecimentos políticos que a Guiné teve. Os Boletins Officiais estão enxameados da legislação do Governo Central, tratados internacionais, e quanto ao que se passa no burgo são as costumadas nomeações e exonerações, chegadas e partidas, publicação do orçamento da província, relatos sanitários das principais povoações, etc. Vou aqui registar o que me parece mais curioso de 1900 e do início de 1901 e contrapor com a listagem de eventos que Armando Tavares da Silva elenca no seu importante acervo documental intitulado "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", 2016.

No Boletim n.º 10, de 10 de março de 1900, o boletim recolhe uma portaria do Governador Álvaro Herculano da Cunha que reza o seguinte:
“Tendo-me o régulo de Antula em abril do ano findo tido para se levar a efeito a ocupação do seu território, o que eu lhe havia prometido; e
Tendo, quando agora me veio cumprimentar, por ocasião da minha visita a Bissau, renovado o seu pedido e solicitado o cumprimento da minha promessa;
Atendendo às vantagens de ordem económica, política e administrativa, e do prestígio que, para o nosso domínio, advém da referida ocupação: hei por conveniente determinar que se ocupe o referido território, estabelecendo-se ali um posto militar de força oportunamente determinada.”


Em Lisboa, era aprovado o regulamento disciplinar das forças militares ultramarinas que veio publicado no Boletim Official n.º 31, de 4 de agosto desse ano. Não deixa de ser curioso o que ali se escreve e como tais preceitos chegaram aos nossos tempos de oficiais, sargentos e praças naquelas décadas de 1960 e 1970: a disciplina consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares; para que a disciplina constitua a base em que judiciosamente deve firmar-se a instituição armada, observar-se-ão rigorosamente as seguintes regras fundamentais – obediências pronta e passiva, ficando o superior responsável pelas ordens que der; em ato de serviço a obediência é sempre devia ao mais graduado e na concorrência de militares com a mesma graduação ao mais antigo; todo o militar deve sofrer com resignação as fadigas e privações, conservando-se intrépido dos perigos, generoso na vitória e ciente na adversidade; todo o militar deve regular o seu procedimento pelos ditames da religião, da virtude e da honra, amar a pátria, ser fiel ao Rei, guardar e fazer guardar a constituição política da monarquia, etc. etc.

Estamos agora em 1901 e o Boletim n.º 13, de 30 de março, publica um conjunto de portarias que nos levam a saber que houve uma operação em Jufunco. O 1.º tenente da Armada, Bernardo de Melo e Castro Moreira, comandante da canhoneira Cacongo, prestou relevantes serviços aos Governo, coadjuvando-o com inexcedível zelo na expedição contra o gentio rebelde de Jufunco, bombardeando eficazmente as povoações dos revoltosos, facilitando assim o desembarque dos Grumetes e concorrendo, portanto, para a vitória obtida; o 2.º tenente da Armada, Artur Ernesto da Silva Pimenta de Miranda, comandante da lancha-canhoneira Flecha, prestou relevantes serviços ao Governo, bombardeando eficazmente as povoações do revoltosos; são louvados os oficiais e praças da canhoneira Cacongo e lancha-canhoneira Flecha pela dedicação e boa vontade com que concorreram para o bom êxito da expedição contra o gentio rebelde de Jufunco. Os louvores não ficaram por aqui, foram extensivos ao comandante militar de Bissau, ao comandante militar de Cacheu e até ao diretor da alfândega em Bolama.

Fica-se com a noção de que lidos desgarradamente estes pontos aqui e acolá ao longo destes anos a Guiné parece trilhar na serenidade, foram minimizados os conflitos, pacificado o Forreá, crescem os postos militares, enfim, a ocupação do território vai de vento em pompa. Hora as coisas não se passam exatamente assim como conta Armando Tavares da Silva a partir da página 431. Herculano da Cunha não tem meios para se envolver em qualquer operação militar, viaja muito pelo território. A ilha de Bissau mantém conflitos interétnicos, rivalidades entre os régulos. O Governador fugiu sempre à resolução dos problemas da província que pudessem envolver as operações militares, escreve para Lisboa que procura exercer um magistério de influência para evitar guerras, sobretudo nos regulados da margem direita do Geba. Quando visita o Forreá, recebe queixas dos régulos; no regresso de Geba viaja até ao Xime, cujo régulo foi por ele repreendido asperamente por ter batido a uma sua mulher com um chicote e que agora vinha reclamar que fugira, tinha o desplante de pedir ao Governado que atuasse.

E assim chegamos à questão de Jufunco de que registei os louvores. Tudo começara quando se admitiu a possibilidade de impor à população o pagamento de tributos, a resposta foi o descontentamento. Herculano da Cunha queixa-se sempre que não tem tropas em qualidade e quantidade, a indisciplina é geral, as forças da província são compostas de deportados, há poucos oficiais, quando se pretende punir Jufunco, a estratégia foi bombardear as povoações e só depois intimidá-las, nada de combates em campo aberto.

As queixas contra o estado em que se encontrava a administração da província eram muitas. A população de Bolama enviou ao rei uma petição na qual pediam que Bolama fosse novamente administrada por uma câmara municipal. Os Bolamenses consideravam que estavam votados ao abandono. Eram inúmeras as carências em tudo o que era público: arruamentos, pavimentação, muros, iluminação, cemitério, prisões.

Vindo de Lisboa, Herculano da Cunha continua as suas visitas e cumprimentos de régulos. Os governantes em Lisboa devem-se ter fartado desta inoperância, Herculano da Cunha será exonerado em maio de 1900. Na véspera de deixar a Guiné envia para Lisboa um oficio em que, devido aos ataques dos Balantas de Nhacra aos Brames, pedi autorização para bombardear o território dos Balantas, isto na véspera de partir.

É nos meses finais desta governação que se inicia uma nova fase dos trabalhos de demarcação da fronteira com os territórios vizinhos de administração francesa. Tudo correu mal logo no início, isto em 1888, os delegados franceses pretendiam que se fizesse uma alteração à Convenção de 1886, substituindo o Cabo Roxo pela Ponta Varela, de onde partiria a linha de fronteira, os delegados portugueses rejeitaram a proposta. Em 1899, há novos trabalhos de demarcação, do lado português estão Oliveira Muzanty e Telles de Vasconcelos, começam pela fronteira sul, nova rutura nas negociações, os franceses queriam entrar em territórios no Forreá, só em finais de 1902 os trabalhos de demarcação serão retomados, mas o mais importante, a fronteira entre o Casamansa e o rio Cacheu será objeto de uma nova missão, em janeiro de 1904.

Como o leitor pode constatar entre a linguagem cinzenta da burocracia e o que se passava na província política, militar e económica, a distância era um abismo.

Nomeação do Governador em 1900, Judice Biker
Em 1897, o novo Governador chama-se Álvaro Herculano da Cunha
Oficinas da Sociedade Comercial Ultramarina, imagem restaurada e que consta da Casa Comum/Fundação Mário Soares
Serração do Sonagui, imagem restaurada e que consta da Casa Comum/Fundação Mário Soares
A Casa Gouveia em Bissau, 1920

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 26 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26530: Historiografia da presença portuguesa em África (468): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1897 e 1898 (24) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26538: Notas de leitura (1776): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Quando escreveu em parceria com António Estácio sobre os chineses na Guiné (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Não é, de todo, uma completa novidade a referência à presença de chineses na colónia da Guiné e hoje na Guiné-Bissau, fruto da descendência de quem aqui chegou no virar do século, com o estatuto de degredado, António Estácio já escrevera um trabalho sobre o assunto, e mais tarde a parceria com Philip Havik aclarou não só o histórico dos degredados em África, por ordem das potências coloniais, como se completou a radicação dos chineses na Guiné, tanto no Sul como no Norte, como se ficou a conhecer melhor a sua descendência. Indubitavelmente, esses chineses tiveram um papel fulcral a aprimorar as variedades de arroz, tal qualificação também veio a ajudar o aparecimento de muitos outros ponteiros, caso de Manuel Pinho Brandão, assim este Sul se transformou no celeiro da Guiné. Os autores não tiraram conclusões apressadas sobre a institucionalização destas comunidades chinesas em África, há estudos por fazer, mas as imagens do artigo que publicaram na revista Africana Studia mostram como é indesmentível o que eles fizeram em prol do movimento agrícola guineense.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Quando escreveu em parceria com António Estácio sobre os chineses na Guiné (3)

Mário Beja Santos

Procurando dar continuidade aos trabalhos do investigador Philip Havik relacionados com a Guiné Portuguesa, recordamos o artigo que ele escreveu em parceria com o nosso saudoso confrade António Estácio sobre a presença dos chineses na colónia. A chegada de populações não autóctones era devida ao envio de pessoal ligado à governação, comércio, trato marítimo, tropa. As potências coloniais socorriam-se de marginais e de contestatários, degredados de múltiplas razões, desde o homicídio ao furto.

Os autores recordam:
“Estima-se que entre 1607 e 1775 mais de 50 mil degredados tenham sido enviados, pelos tribunais estatais e da Igreja Católica (incluindo os tribunais do Santo Ofício) para possessões ultramarinas, servindo como mão-de-obra, como pessoal militar e administrativo.”
E, adiante:
“As sentenças variavam entre seis meses à perpetuidade. Ao longo dos tempos é de notar uma mudança nos países de origem dos degredados, por exemplo após a Guiné obter autonomia administrativa de Cabo Verde em 1879, os cabo-verdianos continuavam a constar nos registos, mas a Guiné passa a receber mais degredados de Angola e São Tomé, facto que se manteve até ao final do século XIX. Ao mesmo tempo, registava-se um crescente uso político do exílio forçado, à base de condenações por insubordinação, motim e revolta criam uma concentração de opositores à monarquia em Bissau e em Bolama. Muitos dos degredados, sobretudo aqueles condenados a sentenças superiores a cinco anos, acabam por sucumbir a doenças tropicais. Alguns dos chineses recém-chegados também pereceram pouco tempo após a sua chegada, contudo, por estarem acostumados a um clima tropical asiático, provavelmente, resistiram melhor às intempéries da Guiné.”

Os autores referem-se às mudanças operadas no fim do tráfico de escravos e no início da plantação de culturas de renda. “No caso da Guiné, esta transformação baseou-se na introdução de amendoim e a colheita de amêndoas de palmeira (chamada coconote na Guiné). Ao mesmo tempo, a cultura de arroz também sofreu alterações profundas, através da comercialização, na região da África Ocidental, de variedades originárias da Ásia, por comerciantes da Gâmbia. A região do Casamansa até à Serra Leoa era tradicionalmente conhecida como a Costa do Arroz. Nos meados do século XIX, a crescente procura por parte dos colonos, de embarcações de cereais para a sua subsistência e exportação, fez com que outras variedades, vindas da Ásia, fossem introduzidas”.
Recorda igualmente o debate sobre a presença de comunidades de origem chinesa e dos seus descendentes na atual África do Sul só agora começa a ser feito, esta descendência era descrita como “coolies”. Os chineses chegaram em número reduzido à Guiné Portuguesa, e marcaram a história e a sociedade, matéria deste estudo.

É no contexto do processo de ocupação efetiva, do século XIX para o século XX que se operou a chegada de ponteiros de origem cabo-verdiana que na região do Tombali adquiriram terrenos para o cultivo do amendoim. Os autores falam num colono belga que tinha uma feitoria no rio Cacine, Pierre Puvel, tinha obtido uma concessão de 400 hectares em 1899 para exportação de borracha, Puvel fundou quatro feitorias nas margens do rio Cacine. Também pela região andou o general Henrique Dias de Carvalho, em 1898/9, com o propósito de adquirir terrenos, em nome de terceiros, tratou-se de uma época em que se pensou entregar a Guiné a uma companhia majestática, operação falhada. O então governador da Guiné enviou para Lisboa algumas amostras de arroz cultivado pelos Balantas, valorizava-se a produção de arroz, e os autores citam diferentes opiniões favoráveis ao cultivo do arroz, o principal alimento da população.

Chegou um grupo de chineses em 1895. “Existem indícios nos arquivos que, pelo menos, dois chineses, de nome Chan-a-leng e Las-Asseng, que se dizem oriundos de Macau e eram à época residentes em Bolama, terem feito um pedido para a sua repatriação em 1909. Enquanto o primeiro tinha sido condenado a sete anos de degredo, o segundo foi sentenciado a oito anos de degredo pelo crime de roubo. Outra questão que suscita dúvidas fundadas é o facto de estes recém-chegados serem chamados ‘macaístas’ , quando se tratavam de chineses vindos da região de Cantão, que emigraram para a Guiné.”

O escritor Fausto Duarte, que também foi funcionário administrativo faz referência a esta presença chinesa, dando-os como hábeis navegadores e pescadores com grande conhecimento da zona costeira, e também cultivadores de arroz em terrenos lodosos na região dos Bijagós, criaram sinergias importantes com as populações da zona de Catió, localizada entre os rios Tombali e Cumbidjã e encostadas às ilhas de Como e Caiar. “O rio Cumbidjã – junto com os seus afluentes – sem dúvida, o melhor curso fluvial em todo o curso da Guiné para a criação de arrozais; as marés fazem-se sentir rio acima até os afluentes, o rio de Hebi, Sare e Balana, numa extensão de mais de 80 kms. O facto de hoje ter nas suas margens muitas povoações cuja população trabalha os extensos arrozais demonstra que aquela escolha foi acertada.”

Dado importante, sublinhado pelos autores, é a atração chinesa pela zona do Tombali, provavelmente no período de 1915-1920 fazendo parte do fluxo migratório interno, do Norte para o Sul, houve fixação a Norte do rio Geba, a partir de Canchungo. “Apesar dos chineses terem aberto o caminho, os Balantas acabaram por se tornar os donos das sementeiras de arroz, o que lhe permitiu, mais tarde, reivindicar os direitos de usufruto da terra. O povoamento correu de forma pacífica, pelo menos inicialmente, porque os migrantes Balantas fizeram contratos com os Nalus.”
O governador Vellez Caroço procurou limitar a expansão desenfreada de pequenos ponteiros, deu-se a instalação de ponteiros de maior dimensão, europeus e mestiços nesta região de Catió, cresceu o cultivo de arroz e a partir dos anos 1930 introduziram-se estímulos à produção de arroz para exportação. Os autores descrevem a evolução do quadro da produção, recordando que houve aceitação e integração de muitos membros da comunidade chinesa na Guiné. “Estes laços, que também incluíram casamentos à moda da terra, foram marcados por uma reciprocidade, no sentido de permitir a cada parceiro obter certos benefícios, por exemplo acesso a produtos da terra, cuidados de saúde ou acesso privilegiado às chefias locais obtidas através das esposas. Inversamente, os sócios ou parceiras nativas receberam artigos de origem estrangeira e conseguiram contactos, apoios e bens".

O estudo de Havik e Estácio não esquece as lutas da libertação, referindo que alguns membros da comunidade luso-chinesa se juntaram ao PAIGC, como houve também quem tivesse entrado em rutura com Amílcar Cabral, outros emigraram para a Guiné-Conacri. “Apesar do conflito e das mudanças políticas que se seguiram, ainda se encontram descendentes da de terceira, quarta e quinta geração na Guiné-Bissau, por exemplo na região de Catió, onde se instalaram os primeiros chineses, mas também em Portugal para onde emigraram, a partir dos anos 1960.” Falta investigação sobre as comunidades chinesas em África e sobretudo nas antigas colónias portuguesas, “investigação que poderia dar resposta a várias questões como determinar se podemos sequer falar de uma diáspora chinesa ou de várias e se existem identidades sino-africanas ou se variam segundo o seu país ou região de destino.”

O leitor mais interessado por este estudo poderá ter acesso ao artigo publicado no n.º 17 da Revista Africana Studia - Edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, através do link https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/article/view/7379/6763.

António Estácio
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Notas do editor:

Vd. post de 21 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26516: Notas de leitura (1774): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: A sua colaboração num livro de arromba, Orlando Ribeiro em 1947, na Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 24 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26524: Notas de leitura (1775): Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné em "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26530: Historiografia da presença portuguesa em África (468): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1897 e 1898 (24) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
O Dr. Marques Perdigão, em nome da Junta de Saúde, faz o relatório alusivo a 1896, não esconde o quadro de ineficiências e faltas, deixa os seus apelos para haver mais médicos e enfermeiros, volta a apelar ao Governo da Província para ainda se continuar a estudar a flora da Guiné; o novo Governador é Álvaro Herculano da Cunha, pede pensões para dois heróis de guerra, um deles, em combates no Oio, foi mortalmente atingido e tudo fez para entregar a bandeira portuguesa, de que ele era portador e zelador; o régulo de Intim anuncia o seu preito e homenagem ao rei de Portugal, é mesmo batizado em Bolama, chama-se Tabanca Soares, promete obediência de todos os régulos da ilha de Bissau, o que não vai acontecer, suceder-se-ão as rebeliões que só conhecerão acalmia na campanha de Teixeira Pinto em 1915.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1897 e 1898 (24)

Mário Beja Santos

Fez-se a referência no texto anterior ao relatório do serviço de saúde da Guiné Portuguesa referente a 1896, é assinado por António Maria Marques Perdigão. À semelhança de outros relatores, o médico descreve o contexto histórico, a geografia, o quadro das condições hígiossanitárias nas principais povoações e não deixa de observar os problemas postos à classe médica, farmacêutica e de enfermagem, como escreve:
“Durante a minha gerência só houve três médicos do quadro em toda a província que são os que ainda hoje existem. É urgentíssima a necessidade de médicos para o serviço da província. Em Bolama devem estar, para comporem a Junta de Saúde, três médicos: o subchefe, um facultativo de 1.ª classe e um de 2.ª ou 3.ª, pronto sempre para seguir para qualquer ponto que demande socorros urgentes; em Bissau, um de 1.ª classe; e em cada uma das povoações acima indicadas (Geba, Farim, Cacheu e Buba) um de 2.ª ou 3.ª. Há falta também de pessoal farmacêutico. Se os três farmacêuticos que devem pertencer à Guiné estivessem sempre, o mal estava remediado, porque em Bolama são indispensáveis dois e em Bissau um. Ora, durante a minha gerência, nunca houve três farmacêuticos na província. É assim impossível dar-se cumprimento ao serviço, atendendo a que na Guiné não há farmácias particulares e, por isso, as do Estado têm que vender ao público. Os farmacêuticos em Bolama têm em seu cargo, além de toda a escrituração que é grande e complexa, o satisfazerem de todas as requisições na farmácia, o aviamento de todos os medicamentos para o hospital, remédios a indigentes, e venda ao público. Pois, repetidas vezes, tem estado um só farmacêutico com todos estes encargos, como agora sucede por motivo de doença de um deles.
É impossível cumprir-se convenientemente o serviço só com um farmacêutico, porque além do receituado do hospital tem a farmácia de Bolama de satisfazer todas as requisições para a farmácia de Bissau e para as sete ambulâncias da província.”


E continua a insistir para que se mande para a Guiné dois facultativos e um farmacêutico. Lembra que não há socorros médicos em Geba, Farim, Cacheu e Buba e mais pontos ocupados da Guiné. Recorda ao pessoal de enfermagem: em Bolama enfermeiro-mor, um enfermeiro de 2.ª classe e dois ajudantes; em Bissau, um enfermeiro de 2.ª classe e um ajudante; em cada uma das duas ambulâncias e delegações um enfermeiro de 2.ª classe. As irmãs hospitaleiras têm a seu cargo alguns serviços de enfermagem e tece-lhes louvor.

Lembra o mau estado em que se encontra a enfermaria militar e civil de Bissau e a respetiva farmácia: é um verdadeiro pardieiro, a enfermaria é uma casa velha sem condições de salubridade e higiene, soalho sujo, parecendo não ter sido lavado há muitos meses. E o seu relatório não deixa de acabar de modo surpreendente:
“A Junta de Saúde da Guiné torna bem patente o seu interesse pelas ciências naturais e em especial pela ciência que professa, propõe que desde já se proceda à exploração botânica da Guiné. A verba que para esse fim é destinada no orçamento da província é diminutíssima, e é por isso que a Junta de Saúde vem solicita toda a proteção. O estudo da flora da Guiné é em grande parte desconhecida, sendo certo poucas regiões haverá onde ela seja mais abundante, mais variada e mais útil sob o ponto de vista médico.”
Tudo isto é matéria constante do Boletim Oficial n.º 18 de 1897.

Estamos agora em 1898 e vejam-se algumas notícias curiosas publicadas no nº9, de 26 de fevereiro: “Tendo sido morto na última guerra do Oio o chefe Mandiga de nome Quecuta Mané, pela sua valentia, coragem e inexcedível dedicação pela bandeira portuguesa, e atendendo aos bons e irrelevantes serviços que prestou nas últimas guerras de Geba e Bissau, aonde se distinguiu sempre dos seus companheiros: hei por conveniente, com o intuito de galardoar tais serviços à nação, conceder a começar desta data uma pensão anual de 36$000 a Mané, filho do referido Quecuta Mané, ficando esta minha resolução pendente da aprovação do Governo de Sua Majestade.” E, mais adiante: “Tendo sido morto, em diligência o Mandiga de nome Lamini Injai, chefe de uma das tabancas do presídio de Farim, na ocasião em que foram atacados pela gente do Oio, defendendo enquanto pôde a bandeira nacional que lhe tinha sido confiada, entregando-a a um soldado que chamou depois de se sentir mortalmente ferido, o que demonstra muita dedicação e patriotismo: hei por conveniente, no intuito de galardoar os serviços que prestou à nação estabelecer a começar da presente data, uma pensão anual de 36$000 ao filho do referido Lamini Injai, de nome Jaime Falcão, ficando esta minha resolução dependente da aprovação do Governo de Sua Majestade.”

E terminamos com o auto de preito e homenagem prestada ao Governo português, pelo régulo de Intim, Tabanca Soares e seus grandes, vem publicado no Boletim n.º 21, de 27 de maio de 1899. O auto indica a data de 13 de maio, decorre no Palácio do Governo, estão presentes o Governador e altas individualidades e escreve-se o seguinte:
“Pelo régulo de Intim foi dito que vinha cumprimentar Sua Excelência o Governador, que nunca régulo algum da ilha de Bissau tinha vindo a Bolama com este fim, por a isso se oporem as suas leis, mas que, reconhecendo ele plenamente a soberania de Portugal, sobre o seu país, vinha espontaneamente dar preito e homenagem a Sua Majestade.
Para provar a sinceridade das suas declarações, pedia que o Governo colocasse um destacamento militar no seu território, o qual seria garantia segura da completa submissão dos povos de Intim mais que lhe estão subordinados. Disse que nenhum régulo da ilha de Bissau tinha mais poder do que ele. Punha à disposição do Governo português toda a sua influência para que a ordem na ilha de Bissau nunca fosse alterada.”

Respondeu o Governador que aceitava este preito de homenagem, que imediatamente ia dar conhecimento ao Governo da metrópole, e que o Governo português estava pronto a proteger todos aqueles que mostrassem submissos às suas ordens e que nada mais queria senão paz e trabalho, porque eram as únicas garantias do progresso do desenvolvimento da Guiné. Na sequência deste auto de preito e homenagem segue-se o auto da ocupação do território de Intim, na circunstância foi batizada em Bolama o rei de Intim, Tabanca Soares, com o nome de Carlos. Dava-se como confirmado que os povos da ilha de Bissau (Intim, Antula, Bandim, Biombo e Safim) têm se esmerado em demonstrar respeito e amizade pelo Governo. No ato de se assinar o auto de ocupação, o negociante Otto Schacht, como o mais antigo estrangeiro na Guiné, levantou um viva à bandeira portuguesa e a Sua Majestade, foi correspondido pelo Governador e todas as pessoas presentes, deram-se vivas aos chefes de Estado a Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Bélgica.

Dezembro de 1897, vai chegar novo Governador, 1.º Tenente da Armada Real, Álvaro Herculano da Cunha
Morreu Pedro Ignacio de Gouveia, duas vezes Governador da Guiné
Provavelmente atividade tipográfica na Imprensa Nacional da Guiné. Imagem restaurada e que consta da Casa Comum/Fundação Mário Soares
Estaleiros da Casa Gouveia no Ilhéu do Rei. Imagem restaurada e que consta da Casa Comum/Fundação Mário Soares

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 19 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26510: Historiografia da presença portuguesa em África (467): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1896 e 1897 (23) (Mário Beja Santos)