Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta Guiné. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Guiné. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26933: Historiografia da presença portuguesa em África (486): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, de 1925 a 1926, é o fim da era do governador Vellez Caroço (40) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Janeiro de 2925:

Queridos amigos,
1925 é um ano marcado por operações em Canhabaque, Vellez Caroço declarara estado de sítio em virtude de insubmissão do régulo, seguiram-se operações que se estenderam por vários dias de maio, delas o governador publicará um relatório bastante pormenorizado; como sabemos, a submissão foi sol de pouca dura, será necessário chegar a 1936 para dar os Bijagós como região pacificada; a estrela que tem acompanhado esta governação vai empalidecer, não por perda de firmeza na governação, vamos chegar a 1926 com gravíssimos problemas financeiros, caiu a I República, temos agora governos da Ditadura Militar, Vellez Caroço pede insistentemente ao ministro João Belo que tome as medidas necessárias, por fim ameaça demitir-se, e o ministro demitiu-o mesmo, tudo isto se vai passar no final do ano de 1926. Vellez Caroço, sem margem para dúvida, foi um dos mais brilhantes governadores da colónia da Guiné.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1925 a 1926, é o fim da era do governador Vellez Caroço (40)


Mário Beja Santos

O ano de 1925 é fundamentalmente marcado pelas operações de Canhabaque, vamos ter acesso ao suplemento ao n.º 26, do Boletim Oficial n.º 9, de 30 de junho desse ano, está aí o relatório das operações redigido pelo próprio governador, o tenente-coronel Vellez Caroço.

Em números anteriores há já indícios da insurreição e da declaração de estado de sítio, como se viu no texto anterior. No Boletim Oficial n.º 21, de 23 de maio, o governador mandara publicar uma portaria em que se referia explicitamente ao estado de sítio nas ilhas de Canhabaque, Galinhas e João Vieira, mas o foco da rebelião era Canhabaque, houvera uma operação para destruir estas povoações e os indígenas refugiaram-se no mato e nunca fizeram a sua apresentação nos comandos militares. O governador convocou o Conselho Executivo, que deu o seu voto para que Canhabaque e João Vieira ficassem provisoriamente sujeitas a um comando militar, com sede em Meneque, e postos em Bine, Bane, In-Orei e Meneque, ficando igualmente proibido todo o comércio para o exterior; e mais: todo o coconote, arroz, gado e galinhas seriam apreendidos pelos agentes do Governo, enviados para Bolama e vendido em hasta pública; não seria permitida nova construção de palhotas aos indígenas enquanto não fizesse a sua apresentação incondicional.

Vejamos agora este documento marcadamente histórico, o referido relatório de Vellez Caroço que começa por fazer um historial dos acontecimentos. Em março de 1917 fora estabelecido o estado de sítio no arquipélago dos Bijagós, tinham-se recusado a entregar as armas e pólvora e também recusado a pagar o imposto de palhota; fora organizada uma coluna para os castigar, as nossas tropas tiveram muitas baixas, ocupara-se exclusivamente postos do litoral; os indígenas de Canhabaque nunca desarmaram, geraram um estado de coisas intolerável; em fevereiro de 1925 o Governador recebera um ofício da autoridade dos Bijagós anunciando que fora a Canhabaque a fim de proceder ao arrolamento para a cobrança do imposto, não teve qualquer sucesso; e Vellez Caroço escreve:
“Tive em Canhabaque três vezes as forças de auxiliares que o administrador propunha, tive um avião, tive artilharia, metralhadoras e duzentos homens de forças reguladas e, apesar disso, embora tivesse derrotado os rebeldes em todos os pontos onde em número apareceram a oferecer resistência, o facto é que eles ainda lá estão refugiados no mato, e que nas suas ciladas e emboscadas continuam causando bastantes baixas nos nossos soldados. Estou convencido que batidos como foram em todos os combates que nos ofereceram, destruídas por completo todas as suas povoações, pois nem só uma escapou, e feita agora a ocupação pelas forças militares em todos os pontos importantes da ilha, os rebeldes hão-de acabar por se entregar à discrição, visto que, dentro em pouco tempo, acossados pela chuva, sem terem coberturas ou abrigos e apertados pela fome, por lhes faltarem os géneros que lhes forem apreendidos, por lhe estar interdito o comércio com o exterior, não terão mais remédio do que submeterem-se.”

Posta esta exposição preliminar, Vellez Caroço relata os procedimentos adotados, seguiu para Bine um contingente militar, reconheceu-se a necessidade de fazer um desembarque em Canhabaque, foi recrutado um corpo de auxiliares indígenas, declarou-se o estado de sítio, realizaram-se voos sobre a ilha de Canhabaque, a ver se se atemorizavam os indígenas. São explicadas pormenorizadamente as operações em Bine, estavam presentes no contingente militar os auxiliares do régulo Monjur do Gabu, foi atacada a povoação de Bine, seguiram-se novas operações com mais auxiliares e ocupou-se Ambene e In-Hoda; houve depois operações em Meneque e Bane, seguiram-se operações em Canhabaque, o relatório refere a composição das colunas e a natureza do comando, e faz-se o histórico da operação a partir de 1 de maio, na marcha rompeu um nutrido fogo de longa sobre a coluna, Vellez Caroço acompanhado por um médico, Sant’Ana Barreto, dirigiram-se para a linha de fogo, foi uma hora de tiroteio e levou-se o inimigo de vencida, mas os rebeldes contra-atacaram, sendo repelidos, isto passou-se em Meneque, no dia seguinte as operações prosseguiram para Bane, mais tiroteio, os rebeldes fugiram; a 3 de maio, saiu uma coluna de Meneque em direção a Indena; mais fogo, as nossas tropas tiveram baixas, mas reagiram com firmeza, no fim do combate foi indiscritível a alegria de todo; enfim, a 12 dava-se ordem para a ocupação definitiva e no dia seguinte iniciou-se a evacuação dos auxiliares.

No resumo final, o governador refere que tivemos 22 mortos e 74 feridos. “A resistência foi tenaz. O estado de indisciplina era mais profundo. A propaganda dos comerciantes ambulantes, criaturas desonestas e sem noções de patriotismo e deveres cívicos, foi persistente e por largos anos exercido impunemente. Estou convencido de que acabou agora o seu reinado e ai daquele que for apanhado a permutar armas e pólvora com o indígena! Seja tudo Pró-Pátria!” O documento prossegue com um longo rol de louvores abarcando as forças intervenientes, de terra e mar, e mesmo louvado o médico pelo seu comportamento de destemor e bravura.

O ano de 1926 será vivido por Vellez Caroço com inúmeras inquietações no plano financeiro, há falta de dinheiro para pagar aos funcionários da administração, é grande o contencioso entre o Governo e o BNU, Vellez Caroço não se cansa de reclamar medidas enérgicas ao ministro das Colónias, no final do ano este governador é pura e simplesmente demitido.

Veremos com mais detalhe as situações por ele vividas no próximo texto. Já não se vivia na I República, era o Governo da Ditadura Militar.

Imagens publicadas na revista Ilustração Portuguesa, n.º 124, de 6 de junho de 1908, tem a ver com as operações militares no Cuor, fotografias de José Henriques de Mello, o primeiro fotógrafo militar português, estas operações no Cuor foram comandadas por Oliveira Muzanty, governador da Guiné, nunca até então a Guiné conhecera um contingente militar tão grande de tropa vinda da Metrópole e de Moçambique, marcou a derrota de Infali Soncó e Abdul Indjai recebeu como prémio o regulado, revelou-se um patife de todo o tamanho.
_____________

Nota do editor

Último post da série de 11 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26908: Historiografia da presença portuguesa em África (485): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Vellez Caroço (39) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Aparece finalmente uma coletânea de depoimentos dos milicianos que intervieram entre 1973 e 1974, em convergência com os oficiais do quadro permanente, na formação e atividade do MFA da Guiné, são depoimentos que em alguns casos forçosamente se repetem mas há em muitos deles a singularidade do testemunho, um olhar lúcido sobre a evolução da guerra, a participação nas conversações com os quadros do PAIGC, muitos deles dão conta do anacronismo das pretensões de Spínola fazer um referendum na Guiné quando já houvera o reconhecimento internacional para um Estado soberano que terá a liderança do PAIGC. Esta obra, que se saúda pela pertinência dos testemunhos, tem o poder de complementar um acervo de depoimentos e análises do MFA da Guiné, em que constam nomes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes e António Duarte Silva.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (1)

Mário Beja Santos


Muito se tem escrito sobre a formação e atividade do MFA da Guiné, intervenientes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes, investigadores como António Duarte Silva, são algumas das figuras mais salientes desse fenómeno original de um movimento altamente sigiloso formado em 1973 e que ganhou vida própria. É facto que a presença dos milicianos não é descurada da narrativa, aparece sempre a figura do capitão José Manuel Barroso, mas quanto à competição do desempenho dos milicianos ainda não existia um conjunto organizado de depoimentos, e daí saudar-se esta obra coletiva intitulada "Guiné Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", com doze testemunhos de participantes, e aonde não falta a lembrança daqueles que já partiram como José Aurélio Barros Moura, Luciano Avelãs Nunes, Jorge Cabral Ventura e Joel Hasse Ferreira, Âncora Editora, 2024.

O primeiro depoimento cabe a Álvaro Marques que dá ênfase à crise académica de 1969 e à incorporação nas Forças Armadas. Esteve em Mafra e em Santarém, aí conheceu Salgueiro Maia, é amnistiado em 1970, reincorporado em 1972, tem uma troca de palavras com Spínola, este convida-o para um jantar no Palácio, não esconde ao general que aquela guerra perdeu sentido, segue depois para Aldeia Formosa, recebe o convite do capitão José Manuel Barroso para vir para Bissau trabalhar no PIFAS, vai fazer parte do Núcleo de Luta Anticolonial, irão juntar-se, entre outros, Celso Cruzeiro, Barros Moura, Sacadura Botte, estes pretenderam ser advogados de Coutinho e Lima, que estava preso no Cumeré, a ira de Spínola não se fez esperar, Barros Moura foi despachado para S. Domingos; o núcleo alargou-se, vão assistir à criação do MFA em Portugal, o MFA da Guiné passa a ter estatuto próprio, incluindo o projeto de desencadear o golpe de Estado, caso falhasse o de Lisboa.

Os milicianos terão desempenho na criação do MAPOS, um movimento para a paz que em 1 de julho aprovou uma moção onde se repudiava qualquer solução local e unilateral que não fosse aceite pelo Governo central em Portugal, exigindo que fossem imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC e, ponto curioso, “Apelar para que os militares portugueses encarem a sua presença atual e estrutura na Guiné como uma forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné, assim contribuindo para o pagamento da dívida histórica criada pelo colonialismo português.” Álvaro Marques refere o seu trabalho na publicação Voz da Guiné.

O segundo depoimento pertence a Amaro Jorge, que foi alferes miliciano no Batalhão de Intendência de Bissau, também esteve ligado à crise académica de 1969, pertenceu aos Serviços Auxiliares, assim chega à Intendência de Bissau, colocado na chefia da Secção de Reabastecimentos, dá-nos conta da delicadeza do que era organizar a listagem de bens, combustíveis e outros, havia sempre comida a estragar-se ou a desaparecer. Foi destacado da Intendência para o Palácio do Governo, para adjunto do Governador, tendo ficado com os assuntos do pessoal e das relações de trabalho. Regressou a Portugal em 1 de setembro.

O terceiro testemunho vem de Canhoto Antunes, foi capitão miliciano, este em Madina Mandinga, Nema e Empada. Estagiou na Guiné integrado na CAOP 2 (Gabu), voltou a Mafra, forma a CCAÇ 4944, conta por onde andou, a atividade operacional, incluindo em 26 de maio de 1974 que houve 10 feridos numa emboscada. Chegou a Empada em 4 de junho, estabelecem-se contactos com o PAIGC. Regressa a Lisboa em 28 de setembro, em plena manifestação da “maioria silenciosa”, o que os obrigou a vários stops nas estradas até casa, até pensou que saíra de uma guerra para entrar noutra.

O quarto testemunho pertence a Celso Cruzeiro, da chefia do serviço de Justiça do Quartel-General, redator do Voz da Guiné. Chamo a atenção para o reconhecimento que os jovens capitães cedo fizeram do papel desempenhado pelos milicianos, eles contribuíram para melhor compreender a guerra como fenómeno dependente dos interesses do poder económico e do sistema de influência geopolítica. Salienta a importância dos encontros na Guiné em 1973 entre os jovens oficiais do quadro permanente e o conjunto dos oficiais milicianos ali presentes, ao longo dos primeiros meses de 1974 foram-se estreitando os laços. Recorda o abaixo-assinado lançado no dia 28 de abril de 1974 e dirigido ao Presidente da Junta de Salvação Nacional, solicitando um cessar-fogo imediato e conversações prontas com o PAIGC; fará um historial das etapas subsequentes, as conversas havidas entre Fabião e Spínola, a importância dos Movimento para a Paz, à institucionalização do MFA da Guiné, a ira de Spínola que convocou para Lisboa vários oficiais do quadro permanente e milicianos e recorda, em jeito de conclusão, que a participação dos milicianos tinha a dupla preocupação de colaborar com o MFA no processo de descolonização da Guiné e, por outro lado, fornecer uma base mínima de politização ao contingente dos soldados portugueses. Não deixa de lamentar como o novo país independente vestiu rapidamente o manto dramático da tragédia em que permanece.
Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26916: Notas de leitura (1808): Lembranças do que foi o Museu da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26908: Historiografia da presença portuguesa em África (485): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Vellez Caroço (39) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Estamos a viver a época das circunscrições civis, a Guiné vive numa angustiante situação económica e financeira, o próprio BNU chegou a proibir as transferências para a metrópole, houve insurreição no território do comando militar dos Balantas, de Nhacra a Jugudul, não foi fácil de sanar, os acontecimentos dos Bijagós exigiram uma expedição militar, com o governador à frente, houve muito tiroteio, mortes e feridos. Excecionalmente, este texto deu lugar a uma série de anúncios que são reveladores do grau de transparência com que o governador agia, era meticuloso na análise dos dossiês, comprova-se com o despacho que ele elaborou sobre a situação dos médicos na Guiné, era igualmente um governador que acompanhava as situações do abastecimento interno, e por isso aqui se mostra a sua decisão de impedir temporariamente a exportação de arroz, para que não faltasse este alimento básico à população.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Velez Caroço (39)


Mário Beja Santos

O governador Vellez Caroço também se distinguiu e singularizou pela forma como comunicava com os cidadãos. Nenhum outro governador fez publicar com tanta minúcia os relatórios das operações ou explicar cabalmente os motivos que as empreendia. Vimos em texto anterior como se pauta pelo rigor e tratamento de equidade nos casos de infrações, desleixos e sanções de todo o tipo quer na administração civil quer na administração militar. Vamos começar por ver as imagens e comentá-las de acontecimentos passados em 1924, a Guiné vive ainda sequelas da Primeira Guerra Mundial, cresceu o número daqueles que pedem concessões, há sociedades agrícolas em plena atividade (embora com vida precária, como a Estrela de Farim ou a Sociedade Agrícola do Gambiel). O destaque do ano vai para os acontecimentos militares e mostra-se o teor de um despacho que tem a ver com o cuidado que o governador punha nos serviços de saúde.

Tenente-coronel Vellez Caroço
Anúncio da declaração de estado de sítio na região de Nhacra por desobediência de Balantas
Anúncio da manutenção de estado de sítio em território de Balantas e nomeação de um oficial averiguante assumindo o comando militar dos Balantas
Uma amostra de como o governador cuidava do abastecimento interno, estava atento aos preços do arroz, por isso decretou a exportação desse alimento até ver a normalização de transportes marítimos.

No Boletim Oficial n.º 25, de 26 de junho, publica-se um despacho do governador, que reza o seguinte:
“Não concordo com o parecer do Conselho de Saúde e Higiene na parte referente a considerar mais importante e de necessidade mais instante a colocação de um médico em Cacheu, do que prover o importante centro comercial, que é Bissau, com uma população tanto indígena como europeia maior do que Bolama e com tendências pronunciadas com rápido crescimento dos recursos clínicos reclamados pelo seu comércio e Câmara Municipal. De há muito venho reconhecendo essa necessidade e sempre considerei a cidade de Bissau como sendo a povoação da Guiné que melhor e mais urgentemente precisa ser dotada de um bom hospital com todos os melhoramentos que se encontram em outras colónias nossas, apesar de estarem em piores condições financeiras do que a Guiné, e por consequência, com os respetivos serviços médicos. A necessidade dos dois médicos em Bissau, quando não tivesse outros argumentos que a defendesse, bastava a circunstância providenciada de importantes lucros auferidos pelos que ali têm feito e fazem serviço, para plenamente a justificar. É incontestável que mesmo com dois médicos, o serviço clínico de Bissau é remunerado por forma tal que qualquer dos médicos fica com lucros superiores ao chefe e subchefe dos serviços de saúde da província.

Cacheu está há muito tempo sem médico, assim como o estão outros centros importantes e mais populosos da Guiné. Esse inconveniente está hoje, até certo ponto, compensado com as facilidades que há de comunicações, que permitem socorros médicos rápidos e o transporte de doentes para Bissau, como frequentemente está sucedendo. De resto, folgo bastante em constatar que o Conselho de Saúde e Higiene concorda com a necessidade de haver dois médicos em Bissau, como aliás já está consignado no Regulamento de Saúde, apresentando como único inconveniente para que Bissau seja desde já dotado de assistência clínica por dois médicos a falta que presentemente há de facultativos na província, mas, certamente o Conselho esqueceu que se apresentou recentemente na direção dos serviços de saúde o médico de Cacheu, o Dr. Sant’Ana Barreto, que muito bem podia voltar ao seu antigo lugar, visto que a Saúde considera tão imperiosa a necessidade de haver médico em Cacheu (e assim será se essa necessidade se confirmar) sendo dispensável o provimento desde já de diretor, interino, do Laboratório Central de Análises, pois esse cargo está desocupado há pelo menos quatro anos, embora oficialmente constasse que estava a cargo do sr. chefe dos Serviços de Saúde. Não há, pois, razão para deixar de atender as justas pretensões de Bissau, tendo chegado agora a oportunidade de restabelecer um pouco o equilíbrio de interesses dos médicos do quadro da Guiné, reduzindo aos limites do razoável a ucharia de Bissau, que tantos dissabores tem causados aos governadores da província pela luta de interesses que sempre provoca quando se lhe pretende bulir.

O Governador tem de orientar-se pelo bem geral ou interesses e comodidades do maior número, embora tenha de ir ferir interesses e necessidades, aliás ainda não criadas, do ilustre facultativo que é agora chamado a chefiar a secção médica de Bissau e por quem tem a maior consideração. Os outros pontos da província, e especialmente Cacheu, terão médico quando a Guiné tiver o seu quadro de saúde completo. Bolama terá dois médicos, Bissau terá dois. Cumpre-se assim o que está estabelecido no Regulamento de Saúde. É o que em última análise determino; indo para Bissau o Dr. José Vitorino Pinto e ficando ali fazendo serviço o Dr. Brandão que já lá se encontra e tem prestado serviços clínicos em Bissau a contento de toda a população. O Dr. Sant’Ana Barreto, se o sr. chefe dos serviços de saúde entender que os seus serviços são mais necessários em Bolama, poderá aqui continuar como diretor interino do Laboratório de Análises.”

Novo ciclo de rebeliões nos Bijagós, Canhabaque atacou à mão armada as forças do destacamento, o governador anuncia estado de sitio
Ficou na História com o nome Golpe dos Generais, Filomeno da Câmara pertencia à Cruzada Nun’Álvares, caminhamos passo a passo para o 28 de maio de 1926
Anúncio de que as operações em Canhabaque tiveram sucesso
Novo Governo, os Governos duram cada vez menos em Lisboa, os militares estão plenamente descontentes e começou a sua aliança com as forças conservadoras
Um dos problemas mais graves da economia guineense, havendo mesmo paralisação da economia, de tal modo que nem os funcionários públicos podiam transferir dinheiro para a metrópole, era resultado dessa suspensão do BNU, pelo que o governador autoriza as firmas comerciais a título provisório a fazer livremente transferências de dinheiro para a metrópole.

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26881: Historiografia da presença portuguesa em África (484): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26902: Notas de leitura (1807): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Estão aqui muitos anos de aturado trabalho, investigação de longo fôlego que marcou a diferença na historiografia ao pôr o acento tónico na luta na Guiné Portuguesa que se iria constituir um fator principal do direito da descolonização e do próprio 25 de Abril. Todo o processo da independência da Guiné-Bissau tem subjacente a intervenção genial de Amílcar Cabral pela sua habilidade diplomática e por ter encontrado uma estratégia adequada conducente à declaração unilateral da independência. Acresce que o autor observa com extremo cuidado como este processo da independência acabou por definir os termos e os limites da descolonização portuguesa. Foi este o grande avanço e o virar de página que António Duarte Silva imprimiu neste ramo da historiografia.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (3)

Mário Beja Santos

A diferentes títulos, este primeiro livro de António Duarte Silva constituiu uma singularidade nos termos da visão de como se processara a independência da Guiné-Bissau da colonização portuguesa. A historiografia da época (acima de tudo, a de caráter internacional) centrava-se no pensamento de Cabral e na forma como procedera estrategicamente na luta armada, em caso algum, toda essa vasta bibliografia jamais pusera acento tónico no que havia de revolucionário no processo jurídico que fora montado para a declaração unilateral da independência, por exemplo, matéria que o autor disseca em profundidade. Obviamente que não foge a dar-nos a moldura da ascensão do nacionalismo guineense, o papel que tiveram as decisões tomadas na reunião em Bissau em 1959, como se preparou a luta armada, a questão da unidade Guiné-Cabo Verde, a ligação do processo independentista guineense com o de outras colónias quando outros movimentos emancipalistas de colónias portuguesas africanas.

Em consequência, o ponto alto desta laboriosa investigação é desenhado pela originalidade das estratégias conducentes à declaração unilateral, não descurando que pelo caminho houve tentativas de negociação que pudessem conduzir à autodeterminação da colónia. Vimos no texto anterior o essencial da constituição do Boé, as reproduções da declaração de independência foram enormes, em pouco mais de 80 países reconheceram a República da Guiné-Bissau.

Mas há que atender a uma outra dimensão contemporânea à aceitação e reconhecimento do novo Estado independente, o caminho que nos conduz ao 25 de Abril, a existência do MFA da Guiné. Com o 25 de Abril, como o autor observa aprofundadamente houve um percurso por vezes muito acidentado nas negociações, isto a despeito de os Capitães de Abril reconhecerem que se impunha ratificar a existência de um novo Estado, partiu-se do cessar-fogo, de conversações em Londres e em Argel, perante o insustentável de não haver vontade para combater o próprio Spínola, como estribado do Conselho de Estado, promulga legislação que abre as portas à autodeterminação das colónias, a partir daí abria-se uma larga clareira para se chegar ao Acordo de Argel, a lei 7/77, de 27 de julho, fora determinante. Depois a Guiné-Bissau é admitida na ONU, concluído o Acordo de Argel que, como o autor releva, teve um papel impulsionador para outras independências.

Para os estudiosos, a quarta parte desta investigação de referência, dedicada à formação do Estado, é de consulta obrigatória, analisa os textos da formação do Estado Guiné-Bissau, é um exaustivo levantamento de caráter jurídico em que o autor conclui dizendo que “A Guiné-Bissau é, quanto aos modos da formação do Estado, um Estado criado por descolonização mediante uma declaração unilateral de independência. Em primeiro lugar, porque a proclamação de independência se fundou juridicamente no direito à autodeterminação e independência dos povos coloniais e, à data da sua formação, a Guiné-Bissau já não era, face ao direito internacional vigente, parte do território português. Depois, porque a luta armada de libertação nacional se tornara legítima quanto a repressão do exercício do direito à autodeterminação correspondia a um uso da força contrário à Carta da ONU e, mais ainda, porque o PAIGC fora reconhecido como único, autêntico e legítimo representante do povo.”

Esta apreciação inovadora carreada pelo autor prossegue com a sua leitura do direito à autodeterminação, leitura que desagua no direito de descolonização em que se formou a Guiné-Bissau pois o autor diz que a formação da Guiné-Bissau foi um acontecimento excecional, constituindo uma etapa importante internacional da descolonização, e passa-se revista a todo o processo histórico vivenciado pelos movimentos de libertação das colónias portuguesas, o estabelecimento de contactos do PAIGC com a ONU, a justificação do recurso à guerra, e, por fim, as bases jurídicas do reconhecimento da Guiné-Bissau, um processo que não foi linear para todas as independências das colónias portuguesas. Os anexos do trabalho incluem peças fundamentais: relatório da reunião do PAI, de 19 de setembro de 1959; proclamação do Estado da Guiné-Bissau; Constituição da República da Guiné-Bissau, aprovada em 24 de setembro de 1973; as leis portuguesas conducentes ao reconhecimento do Estado soberano da Guiné-Bissau; a legislação guineense sobre a orgânica do Estado, a atribuição a Amílcar Cabral do título de Fundador da Nacionalidade; a resolução da ONU de 2 de novembro de 1973 que alude à presença ilegal de Portugal na Guiné-Bissau; a moção do MFA da Guiné de 1 de julho de 1974; o texto do Acordo de Argel e respetivo anexo.

Para a época, o autor revelava a mais extensa bibliografia relativa à colonização, guerra colonial e luta de libertação nacional, bem como a bibliografia sobre o processo de independência da Guiné-Bissau e a sua relação com a descolonização portuguesa.

Dá-se como provado o que o autor induz na sua escrita da contracapa da obra: uma perspetiva multidisciplinar, abordando as vertentes histórica, jurídica e política quer nos planos interno, colonial e internacional; trata das características locais do colonialismo português e do desenvolvimento do nacionalismo guineense; recorre a fontes primárias, documentos inéditos e alguns testemunhos orais, apoia-se numa bibliografia extensa e pesquisas em múltiplos centros de documentação.

Sujeito às rugas do tempo e às correções suscitadas por novas fontes e novos olhares sobre este complexo caminho que levou à independência da Guiné-Bissau, mantém-se com um estudo admirável que beneficiará toda e qualquer investigação em torno da presença portuguesa e da criação do Estado soberano da Guiné-Bissau.

_____________

Notas do editor:

Post anterior de 2 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26875: Notas de leitura (1805): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26898: Notas de leitura (1806): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte III: O orgulho da ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26893: Notas de leitura (1805): "Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização", coordenação de Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges; Bertrand, 2024 (Mário Beja Santos)



Obra de referência sobre os últimos anos do colonialismo português

Mário Beja Santos

Publicado em novembro de 2024, pela Bertrand, "Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização", coordenado por Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges, este volume de quase oitocentas páginas, que reúne a colaboração de mais de três dezenas de autores, destina-se a familiarizar o público com algumas das investigações mais inovadoras acerca das guerras coloniais de Portugal. Beneficia, naturalmente de avanços historiográficos facilitados pela abertura dos arquivos portugueses.

“Instituições como o Arquivo Histórico Militar e o Arquivo da Defesa Nacional têm recebido, nos últimos anos, significativas incorporações, e funcionam segundo normas que, em geral, se alinham com as políticas de acesso arquivístico mais abertas no plano internacional. 

Como a história das guerras coloniais não se cinge apenas à sua dimensão militar e operacional, outros arquivos têm sido procurados pelos investigadores, com destaque para os acervos depositados nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo e nos Arquivos Histórico-Diplomático e Histórico-Ultramarino. 

A isto teremos também de acrescentar toda uma pletora de arquivos internacionais, que tanto inclui os antigos aliados ocidentais de Portugal como os de vários ex-satélites da URSS que a partir de 1990 adotaram regras mais abertas no tocante aos acervos dos seus serviços diplomáticos e de inteligência (como a República Checa), ou a constelação de países do agora chamado Sul Global que desempenharam papel de relevo na solidariedade e apoio aos movimentos independentistas das colónias portuguesas”.

Vejamos, em síntese, a estrutura da obra:

A primeira parte intitula-se “Enquadramento”, aqui se procura estabelecer um quando contextual das guerras coloniais portuguesas em termos políticos, estratégicos e militares; 

a segunda parte denomina-se “Economia e Sociedade”, aqui explora-se a dimensão económica das guerras e os seus impactos sociais; 

a terceira parte obedece ao mote “Mobilização, Luta e Propaganda”, procura familiarizar os leitores com diversos aspetos da conduta do conflito, numa visão que procura conciliar uma abordagem analítica e algum sentido cronológico;

 “Dor e Sofrimento” é a quarta parte, aqui se enunciam os aspetos mais dolorosos do conflito, aqueles que resultam das baixas em operações militares, atrocidades, situações de cativeiro. 

A quinta e última parte é “Fim do Império”, são duas sínteses sobre as vicissitudes deste processo, primeiro na metrópole e em África, e depois nos territórios onde o nível de empenhamento militar português foi comparativamente menor do que em África, mas nem por isso menos gerador de consequências dramáticas, basta recordar Timor.

Sendo totalmente inviável alargar comentários a todos os diferentes comentários, vejamos, a título meramente ilustrativo o modo como os investigadores abordaram certos temas:

“Insistir na tese da vitória traída pode ser politicamente conveniente ainda hoje, mas é insistir em não querer perceber que uma guerrilha não ter por objetivo uma vitória convencional. Ela aposta na atrição prolongada da vontade de combater de um inimigo à partida muito mais forte. As guerrilhas independentistas sabiam não ser realista, nem tiveram como objetivo marchar sobre Lisboa, Paris ou Londres, pois não precisavam disso para atingir o seu objetivo estratégico: transformar o colonialismo num ativo tóxico na política internacional e demasiado custoso em vidas e despesas para ser viável a prazo na política interna das potências colonizadoras.”

“Ponto determinante foi a incapacidade de o poder político transmitir às suas Forças Armadas o que pretendia delas, isto é, o que considerava uma vitória e qual o seu objetivo. Esta incapacidade está plasmada nas cartas de comando entregues pelo Governo aos generais quando os nomeava comandantes-chefes. São todas elas idênticas e do tipo de ordens gerais: manter a ordem no território, colaborar com as autoridades civis e assegurar a relação pacífica entre os habitantes. Com esta latitude de objetivos cada general deduziu a sua missão. E daí cada um ter agido de acordo com a sua análise.

A perda da vontade de combater é uma das condições para o fim de uma guerra. Os capitães preferiram derrubar o regime, antes que o regime fizesse deles os bodes expiatórios da sua incapacidade, como acontecera na Índia. Preferiram defender o seu povo antes que o regime levasse o povo à exaustão.

O 25 de Abril de 1974 também resulta do sentimento de desconfiança dos militares relativamente ao poder político da ditadura do Estado Novo e dos seus dirigentes.”


No ensaio dedicado à estratégia e liderança do Conselho Superior de Defesa Nacional, abordando-se a situação na Guiné no período que vai de novembro de 1969 a maio de 1973, escreve-se:

“A situação na Guiné era a mais crítica. Na reunião de maio de 1971, Spínola deixou claro não ser possível vencer militarmente, levantando forte oposição dos ministros da Defesa e do Ultramar, que preconizavam a possível solução política teria de ter uma vitória no campo militar. Para Spínola, a solução ultrapassava largamente a possibilidade de uma vitória militar, e apenas no quadro de uma plataforma diplomática e política era possível encontrar uma solução de fundo para a Guiné. Qualquer solução que fosse orientada para a vitória militar tinha apenas como consequência e exaustão de recursos humanos, materiais e financeiros. Sem demonstrar aberta concordância com Spínola, Caetano considerava que o esforço financeiro suportado era muito elevado e não tinha a certeza de que a economia do país pudesse continuar a suportá-lo por muito mais tempo.”

Abordando a condição em que ficaram os combatentes africanos que tinham sido leais a Portugal, vejamos o que se escreve sobre a Guiné:

“O elevado número de guineenses ao serviço de Portugal, a sua reconhecida destreza militar, e a própria notoriedade alcançada por muitos deles num território com aquelas dimensões, tornava o PAIGC particularmente receoso quanto à desmobilização daqueles elementos. O seu desarmamento começou a ser feito a partir de 19 de agosto, imediatamente após o acordo de independência, sob a supervisão do Brigadeiro Carlos Fabião. Esse processo deveria ter lugar contra o pagamento de seis meses de salário e uma guia de marcha que habilitaria os antigos combatentes a apresentarem-se ao serviço nas Forças Armadas do Novo Estado, a partir de janeiro de 1975.

A possibilidade de os militares guineenses das Forças Armadas portuguesas, na qualidade de cidadãos da República da Guiné-Bissau, serem elegíveis para o pagamento de pensões de sangue, invalidez e reforma por parte do Estado português estava previsto no Acordo de Argel, mas nos anos seguintes nenhum programa completo para concretizar essa promessa seria implementado. 

A queda em desgraça do setor spinolista da Revolução, na sequência dos acontecimentos do 11 de março de 1975 em Lisboa, trouxe graves consequências para estes elementos, particularmente para os que se tinham distinguido em unidades de operações especiais.

 Os serviços de segurança do novo Estado, organizados por elementos formados na URSS, RDA e Checoslováquia, terão sido instrumentais na identificação e eliminação de vários ex-comandos. Dados revelados em 1980, mencionam 53 fuzilamentos ocorridos em 1965, mas as matanças conheceriam um novo pico em 1978, a propósito de rumores que apontavam para o envolvimento de antigos elementos do Exército colonial num alegado golpe de Estado liderado por Malam Sanhá, um ex-comando.”

Livro essencial, portanto.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 2 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26875: Notas de leitura (1804): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26881: Historiografia da presença portuguesa em África (484): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Há indícios de progresso nestes tempos de grande penúria, impacto das carestias deixadas pela Primeira Guerra Mundial e a constante instabilidade política que se refletiu em governações incolores até à chegada de Vellez Caroço. A década de 1920 marca a chegada do primeiro voo de Lisboa a Bolama, de que se mostra aqui uma fotografia aérea; e surgiu a Empresa de Viação da Guiné que anuncia em sucessivos Boletins Oficiais o seguinte:
"Com o fim de estabelecer carreiras automóveis para transporte de passageiros entre Bissau e as principais povoações desta colónia acaba de se constituir esta empresa com sede nesta cidade (Bissau). As carreiras serão abertas ao público com dois automóveis, de 1 de outubro próximo em diante. Para serviço de transporte de carga temos em Bissau dois camiões à disposição dos nossos excelentíssimos clientes. Possuímos garagens em Bissau e Nhacra, e para manter com regularidade estas carreiras teremos permanentemente um automóvel Overland nesta última localidade. Passagem e fretes a preços módicos e sem competência, o gerente técnico, Adriano Pinto da Costa."
Velez Caroço terá forte contestação pela questão dos câmbios e sobretudo dos cambiais, tive a oportunidade de desenvolver esta questão no livro sobre o BNU da Guiné, tudo tinha a ver com o estado financeiro do país.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38)


Mário Beja Santos

Nem tudo o que domina a atualidade política e governamental está sob a égide da firmeza do governador Vellez Caroço. Há outros acontecimentos que talvez mereçam a nossa atenção. O Boletim Oficial n.º 51, de 23 de dezembro de 1922, são publicados os estatutos da Associação Desportiva de Bissau, ela tem como finalidade praticar todos os jogos desportivos e recreativos adaptáveis ao meio, futebol, críquete, ténis, jogos atléticos, etc., mas conseguir a união de toda a mocidade de Bissau promovendo passeios e festas, logo que os seus fundos permitam (confesso que não voltei a ouvir falar nesta associação, nem sei mesmo se não passou de uma boa intenção). Antes, em 18 de março, no Boletim Oficial n.º 11, uma singular notícia emanada da Secretaria dos Negócios Indígenas: “Para conhecimento dos interessados e devidos efeitos, faz-se público que na madrugada 16 do corrente se suicidou, cortando as carótidas o régulo da região de Ganadu, área na 9.ª Circunscrição Civil (Bafatá) de nome Iobá Sirá.”

Estamos agora em 1923, no Boletim Oficial n.º 21, de 26 de maio, vamos de novo ouvir falar de Jaime Augusto da Graça Falcão. Ele interpusera recurso junto do Conselho Colonial, nessa altura Falcão era administrador efetivo em Cacheu, fora punido com 30 dias de suspensão. No seu recurso Falcão alega que não houvera propósito de desrespeito, atenda-se à natureza da decisão deste Conselho:
“O motivo da suspensão foi o de o recorrente não dar cumprimento à ordem que contratara alguns indígenas da sua circunscrição para o serviço do tráfego comercial em Bolama, por entender que a ordem era ilegal, por não poder ser engajador de serviçais para particulares, tanto mais que o recorrido sabia que na circunscrição que administrava lhe eram precisos trabalhadores para a construção do edifício para a administração e para a conservação de estradas e ainda era sabido que as casas comerciais costumavam arranjar diretamente os trabalhadores de que necessitavam.
A Secretaria dos Negócios Indígenas sabia bem que aquela ordem era ilegal, tanto assim que lhe a mandou por telegrama em cifra, confirmando-a também em cifra em nota de serviço, e que se tivesse sido ouvido, como manda a lei, teria exposto quais as razões por que não dera cumprimento à ordem, mas que isso podia não agradar aos dimanantes da ordem.


Visto e examinado o processo e tudo mais que dos autos consta e ouvido o Ministério Público:
Considerando que não existem nos autos os termos da nota que a portaria recorrida reputa desrespeitosos;
Considerando que, embora a nota fosse redigida em frase menos respeitosa, isso não constitui motivo para deixar de ser ouvido o arguido, conforme manda a lei, sendo, portanto, uma formalidade legal e indispensável que tinha de cumprir-se;
Considerando que não é boa prática as autoridades administrativas compelirem-se a desempenharem o papel de engajadores, antes lhe cumprindo apenas de facultar o fornecimento de trabalhadores para a respetiva circunscrição e dentro dela, o que é diferente do que ser seu engajador;
Considerando que ninguém pode ser compelido a fazer senão aquilo a que a lei obriga; e
Não restando dúvida de que a ordem dada ao recorrente de forma indicada determinava que angariasse trabalhadores para particulares em Bolama, o que não é justo, dão provimento ao recurso e anulam a portaria recorrida.”


Mas já é tempo de voltarmos às medidas firmes e de autoridade que Velez Caroço vinha assumindo desde o início do seu mandato. No Boletim Oficial n.º 21, de 26 de maio, temos um despacho sob um processo inquérito a acontecimentos que tinham dado em Canchungo, em 20 de julho de 1922, o governador era levado a concluir:
“1.º Que Baticam Ferreira, ex-régulo, residente na Costa de Baixo, é um elemento de discórdia naquela circunscrição, sendo em volta do seu nome e com a sua própria instigação que se deram os atos de indisciplina em Canchungo
2.º Que os indígenas Emcari, irmão do Baticam; e Nhará, não só desobedeceram às ordens diretas do administrador, capitão António José Pereira Saldanha, quando mandava dispersar um numeroso grupo de Manjacos que em frente à administração protestavam contra a nomeação do chefe do Potabo, mas inclusivamente agrediram os agentes das autoridades, quando estes, no uso legítimos dos poderes que lhe confere esta autoridade, empregavam meios mais enérgicos para os compelir a respeitar as suas determinações, agredindo o Emcari e Nhará o próprio administrador;
3.º Que o indígena Vicente Macúta foi o mandatário do Baticam, sendo ele uma pessoa que andou instigando os indígenas a reunirem-se e a vir protestar a administração;

Em vista do exposto determino:
1.º Que ao ex-régulo Baticam Ferreira seja fixada a residência por cinco anos na circunscrição dos Bijagós, ficando ali debaixo da vigilância da autoridade;
2.º Que os indígenas Emcari, Nhará e Vicente Macúta sejam desterrados para a circunscrição dos Bijagós por dez anos, devendo o respetivo administrador fixar-lhes como residência uma ilha diferente daquela em que ficar residindo o Baticam Ferreira;
3.º Para sossego da região o estabelecimento da boa harmonia entre os indígenas, seja desde esta data destituído o chefe de Potabo, deverá, todavia, ser reconduzido, se em uma nova eleição entre os indígenas, a que o atual administrador deve mandar proceder imediatamente, se o seu nome for novamente indicado;
4.º Que o administrador da Costa de Baixo ouça todos os indígenas ou os grandes das regiões onde houver descontentamento com a escolha dos chefes e, em nota devidamente informada, para este Governo, proponha a realização de eleições segundo o costume indígena.”


Para concluir, vejamos agora o teor de uma nota também bastante curiosa publicada no Boletim Oficial n.º 39, de 29 de setembro, trata-se de um aviso da Direção dos Serviços de Marinha, fora encontrado nas praias de Puana e Pidjiquiti um apreciável número de bocados de madeira e sibes inteiros ainda com utilidade, mas abandonados, causando estorvo ao encalho de embarcações, quando podres estes bocados de madeira poderão prejudicar a saúde pública, é conveniente avisar os respetivos donos para procederem à sua remoção. Aviso complementar é o de estado de abandono, nas praias de Bolama e Bissau, de várias embarcações, quase todas inutilizadas, prejudicando serviços de utilidade pública como também funcionando como depósito de dejetos, os seus proprietários eram convidados à reconstrução ou à demolição das mesmas embarcações.
Tenente-coronel Vellez Caroço
Teixeira Gomes é Presidente da República
Vista aérea de Bolama tirada do avião antes de aterrar, em 1928
Um pormenor da estrada de Bissau para Bor, anos de 1930

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 28 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26859: Historiografia da presença portuguesa em África (483): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1921, começou a era de Vellez Caroço (37) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26875: Notas de leitura (1804): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Foi neste seu primeiro livro que António Duarte Silva vislumbrou o que havia de inédito na estratégia congeminada por Amílcar Cabral para sair do impasse da luta armada graças à declaração unilateral de independência, que ele analisa em detalhe, conjugando o direito e a política, foi um processo cuja anatomia envolveu o confronto estratégico de Spínola e Cabral, o progressivo isolamento diplomático de Portugal e a credibilização do PAIGC sempre em alta; o autor esmiúça o processo eleitoral da Assembleia Nacional Popular e como se prepararam as reuniões para a independência. No terceiro e último texto, iremos ver a descolonização portuguesa e o reconhecimento da Guiné-Bissau, chamando a atenção para o riquíssimo acervo documental e bibliográfico que o autor nos preparou.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (2)

Mário Beja Santos


Como se assinalou no texto anterior, o investigador António Duarte Silva encarou esta obra como um roteiro em quatro partes: colonialismo e nacionalismo na Guiné; o que houve de inédito e revolucionário na declaração unilateral da independência, que ocorreu formalmente em 24 de setembro de 1973; que caminhos trilhou a descolonização portuguesa e como a República da Guiné-Bissau nasceu de um conjunto de normas e atos políticos singularíssimos: o direito à autodeterminação previsto na Carta das Nações Unidas, como o PAIGC se fez legitimar não só pela lutar armada mas como um lutador pela independência que tinha território ocupado pelo colonizador; e o caso inédito de que essa declaração unilateral da independência foi acompanhada com prontidão pelo reconhecimento do número maioritário dos Estados pertencentes às Nações Unidas e como pelo 25 de Abril, se chegou ao reconhecimento português e à admissão da Guiné-Bissau na ONU.

O autor enfoca o tempo e o modo da descolonização portuguesa, como se procurou a negociação com o Governo português para chegar à autodeterminação, sem qualquer êxito, e também como o pensamento de Cabral era consistente na definição do que devia ser a soberania e poder constituinte: idealizou uma assembleia que votasse a independência, gerou empatia no ONU, a Assembleia Nacional Popular começou por aprovar a independência, depois a Constituição e designou os titulares dos outros órgãos centrais do Estado. Há aqui um dos pontos capitais da análise que o autor faz à formação da Guiné-Bissau enquanto Estado africano.

Ele diz expressamente:
“O Estado, em África, resulta de um transplante e não só a evolução das sociedades e dos sistemas político-jurídicos africanos profundamente marcada pelo fenómeno colonial como a sociedade pós-colonial foi pré-definida de um modo decisivo através do princípio da territorialidade, da imposição do sistema normativo ocidental e da mundialização do sistema inter-estatal. De facto, os Estados africanos, sobretudo da África negra, corresponderam a uma repetição geral do Estado moderno. A mundialização do Estado moderno constituiu um dos traços dominantes do nosso tempo e acelerou-se no decurso dos últimos decénios. O Estado africano, cuja existência é anterior à de uma nação sobre a qual se possa fundar, tem de indo construindo a sua própria nação. Enquanto procede à construção nacional, o Estado resume-se à mera soma de aparelhos administrativos, que procuram separar-se da sociedade civil, já que a sociedade civil não permite ainda distinguir a função do órgão e o órgão do seu titular. A grande maior dos Estados africanos imitou formalmente o Estado metropolitano. Acresce que a receção do modelo estadual europeu foi essencialmente organizacional, pois nem o espírito democrático foi assimilado, nem o Estado africano, precisamente por vir de fora e ser imposto de cima, tem a contextura do Estado moderno.”

E daí a observação que o autor faz das particularidades da Guiné-Bissau, continuo a pensar que se trata de uma apreciação que nenhum investigador da problemática guineense devia ignorar. E, logo de seguida, o autor procede a uma síntese de como a Guiné fez parte do império colonial português, é uma figura política e jurídica surgida a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a presença portuguesa na região foi sempre muito mitigada, a sua colonização assentou no trabalho forçado, no imposto de capitação e na exportação comercial – aí tiveram um papel de capital a chamada Casa Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, esta ligada ao Banco Nacional Ultramarino.

Dado o contexto, o autor muda de campo de observação para todo o histórico da declaração de independência, o que remete para uma síntese do direito colonial, do que se passou no teatro de operações, como foi evoluindo o envolvimento internacional e a ação diplomática de Amílcar Cabral, a importância que teve em termos políticos internacionais, a visita de uma missão especial da ONU no início de abril de 1972 a alguns pontos do Sul da Guiné, como Cabral pôde potenciar as conclusões da missão e o beneplácito recebido pela Assembleia Geral da ONU; temos igualmente um quadro das tentativas de negociação. Cabral congeminara uma estratégia para a declaração unilateral da independência: a convocação de eleições nas chamadas zonas libertadas, elaborou um documento intitulado Bases para a criação da 1.ª Assembleia Nacional Popular na Guiné, estava a ganhar forma o cenário para a independência a que Cabral fisicamente não assistiu, na última mensagem de Ano Novo, proferida no mês em que foi assassinado, ele refere-se expressamente à eleição e reunião da Assembleia Nacional Popular, dizendo que a Guiné-Bissau até aí é uma colónia dispondo de um movimento de libertação e cujo povo libertou durante anos de luta armada parte do seu território nacional, passaria a ser, aprovada a independência, um país dispondo do seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupada por forças armadas estrangeiras.

Entre o assassinato de Cabral e a declaração unilateral da independência, e indo um pouco atrás, houvera a ofensiva portuguesa no Sul, a reocupação do Cantanhez, a chamada Operação Grande Empresa, que inicialmente deixou o PAIGC em grande confusão; seguem-se os acontecimentos de março e abril, a chegada dos mísseis terra-ar e de duas grandes operações montadas para cercar Guidage e Guilege, com resultados devastadores. Spínola envia para Lisboa um relatório atemorizador: “Aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar.”

De 18 a 22 de julho, próximo de Madina do Boé, realiza-se o segundo congresso do PAIGC; Aristides Pereira é eleito como Secretário-Geral e Luís Cabral como Secretário-Geral Adjunto; reveem-se os estatutos do PAIGC e convoca-se a Assembleia Nacional Popular com o fim de proclamar a independência. O lugar inicialmente escolhido era Balana, no Sul, por razões de segurança e por ter havido rotura de ligações diplomáticas entre o Senegal e a Guiné-Conacri, escolheu-se um ponto de Boé, e não seriam ainda 9 horas de 24 de setembro quando a dita assembleia proclamou o Estado da Guiné-Bissau.
O autor disseca o teor da Proclamação do Estado, analisa a Constituição do Boé e extrai uma breve conclusão:
“Das muitas considerações que esta Constituição pode suscitar, destaca-se que a Guiné-Bissau foi criada como Estado constitucional, cuja Lei Fundamental não foi uma mera técnica de descolonização, antes o produto de uma luta de libertação nacional ampla e duradoura, e pretendia ser o estatuto de um Estado-Nação combinando os (dominantes) modelos europeus com soluções próprias da sua história, em especial, da descolonização da Guiné-Bissau (e, também, de Cabo Verde).”


(continua)
_____________

Notas do editor:

Vd. post de 26 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26849: Notas de leitura (1801): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26864: Notas de leitura (1803): "Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", por Leonor Pires Martins; Edições 70, 2012 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26864: Notas de leitura (1803): "Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", por Leonor Pires Martins; Edições 70, 2012 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
É uma bela edição correspondente a uma investigação rigorosa e que permite dados surpreendentes, uma viagem por publicações periódicas ilustradas desde que se fundou a Sociedade de Geografia de Lisboa até esse acontecimento faustoso que foi a Exposição do Mundo Português, em 1940. Temos aqui uma investigação de como se mostrava e satisfazia a curiosidade quanto a este ascendente Terceiro Império, a iconografia das expedições, como se procurou suturar o tratamento vexame do Ultimato, passando a pente fino crueldades existentes ou ficcionadas pela potência britânica. Naturalmente que para esta recensão se procurou mostrar imagens da Guiné, logo em 1879, mostrando Bolama como capital. E pela primeira vez pude ver gente num empreendimento que me intrigava desde agosto de 1968, nesse dia fiz o primeiro patrulhamento na companhia do furriel Zacarias Saiegh, fomos até à Aldeia do Cuor, onde vi, abismado, paredes monumentais de edifícios sobre os quais ninguém me dava esclarecimento. Só mais tarde soube que tinha ali dado consultoria técnica o engenheiro Armando Cortesão, de quem herdei os ferros de uma cama, e agora pude ver gente que ali viveu e até uma criança que ali nasceu. Esta sociedade agrícola aspirava muito, afundou-se rapidamente e certo e seguro com grandes prejuízos, não sabemos se para os empreendedores ou para o banco financiador.

Um abraço do
Mário


A Guiné num Império de Papel

Mário Beja Santos

É uma soberba obra de investigação, Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940), por Leonor Pires Martins, Edições 70, 2012, uma exposição de representações visuais do Império em publicações ilustradas desde que foi fundada a Sociedade de Geografia de Lisboa até a esse ponto alto do nacionalismo imperial português, a Exposição do Mundo Português de 1940.

A revista O Ocidente terá um papel fulcral no elenco das publicações, nela colaboraram nomes de talento do seu tempo, como Rafael Bordalo Pinheiro. Recorda a autora que nos finais do século XIX, altura em que as fronteiras coloniais em África se encontravam já definidas, o território português compreendia, para além do continente e suas ilhas adjacentes, mais de 1 200 000 km2 na costa africana ocidental (Angola), 783 000 km2 na costa oriental (Moçambique), a Guiné com cerca de 36 000 km2, dois arquipélagos no Atlântico (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe) e ainda resquícios do antigo Império do Oriente: Goa, Damão e Diu, no subcontinente indiano, Macau, no Sul da China e Timor na Insulíndia. Num país de elevadíssimo analfabetismo, a classe política conhecia as legislações alusivas aos chamados territórios ultramarinos, foi graças a revistas e a jornais ilustrados que o grande público passou a ver expressões do Império, muitas vezes sobre a retórica propagandística, caso de uma fotografia em que aparece uma guineense que participou na Exposição Colonial do Porto, em 1934, a Rosinha, empenhando a bandeira portuguesa junto do monumento “Ao Esforço Colonizadora”, fotografia manifestamente encenada, onde se pode ler a legenda: “Negra muito embora, portuguesa de lei, ei-la empunhando a bandeira verde-rubra que domina todo o Império”, imagem que aparece na revista Civilização. Este esforço colonizador é mostrado em edifícios, estradas e pontes.

Outros momentos de exaltação são as imagens das expedições, que deram glória e fama a Serpa Pinto, Capelo e Ivens, entre outros. Essas expedições ao interior do continente africano concorriam com outras expedições europeias, a Conferência de Berlim decretara que ter uma colónia era ocupar território, a revista O Ocidente publicará imagens alusivas a estas expedições e depois as homenagens, os jantares, as conferências dos expedicionários, a sua chegada em triunfo, imagens dos africanos que acompanhavam os novos heróis da gesta, o Terceiro Império. Como igualmente apareciam imagens de indígenas com os seus usos e costumes; e quando chegou a hora do ultimato britânico não faltaram imagens que procuraram revelar os aspetos cruéis do colonialismo britânico e, claro está, caricaturistas como Rafael Bordalo Pinheiro revelavam a subserviência portuguesa ao poder britânico, era a resposta à humilhação que nos provocara o maior império colonial do seu tempo; e, com poder catártico, irá mostrar-se um outro herói, Mouzinho de Albuquerque, e a prisão de Gungunhana, e a sua exposição pública, o seu exílio em Angra do Heroísmo.

Também estas publicações exploraram uma outra dimensão, o pitoresco, a fauna, o deslumbramento dos rios, a opulência das florestas, o povoamento, casas, hospitais, centros urbanos, é assim que vemos a ilha de Bolama que apareceu na revista O Ocidente, em 1879, havia que mostrar a capital da Guiné. Surgiu depois a fotografia, terá também um papel fundamental na ilustração das publicações. Havia também que exibir como facto consumado que estávamos a trabalhar no progresso e no desenvolvimento, não eram só os edifícios e as infraestruturas, era a cartografia, o ensino, o estabelecimento de hospitais e farmácias, a missionação, as culturas agrícolas, a abertura dos caminhos de ferro, a briosa ocupação militar como vemos num desenho produzido a partir de uma fotografia, tropa no forte de Cacheu, isto em 1891.

A missionação aparece associada ao ensino, à escola de artes e ofícios, ao aparecimento de igrejas, como se mostra a igreja matriz de Bolama em 1896, que veio publicado na revista Branco e Negro. Os jardins, os edifícios das alfândegas, as estátuas, os cais, até mesmo a projeção em terras de África do mundo rural português tem inteiro cabimento no Império de Papel, havia que suscitar a curiosidade para atrair imigrantes, mostrar famílias, crianças europeias nos territórios da colonização, colonos em piquenique, mas, sempre que necessário, expor as expedições militares. É o caso do grande acervo de imagens do primeiro fotógrafo militar português José Henriques de Mello, que acompanhou as tropas comandadas por Oliveira Muzanty, em abril de 1908, para destituir Infali Soncó, um régulo insurreto que pretendia impedir a navegabilidade do Geba, ao tempo o coração da atividade comercial.

Ao folhear este belíssimo trabalho, deparei-me com uma reportagem sobre a Guiné Portuguesa, publicada na revista Ilustração, procurava-se mostrar os colonos brancos e como viviam. E pude ver pela primeira vez uma resposta a uma dúvida que tinha desde 5 de agosto de 1968. Nesse dia fiz o meu primeiro patrulhamento de reconhecimento no regulado do Cuor, saímos de Missirá para a Aldeia do Cuor; aqui chegados, mesmo à beira do Geba estreito, levantavam-se paredes grossíssimas, pedra volumosa, indício certo e seguro de que ali houvera um qualquer importante estabelecimento. Soube mais tarde, nas minhas leituras no Arquivo Histórico do Banco Nacional Ultramarino, de que se tratava da Sociedade Agrícola do Gambiel, ali foi consultor técnico Armando Zuzarte Cortesão, nome eminente da cartografia portuguesa, encontrei referências à natureza do empreendimento, era um grande sonho agrícola que cedo caiu na água. Pois bem, na revista Ilustração, num número de 1926, encontrei fotografias alusivas a esses colonos “brancos”, numa delas um grupo de empregados onde se vê um deportado e noutra, vê-se o chefe do empreendimento com mulher e criança que nascera na região, pode ver-se na fotografia do grupo de empregados que eram instalações de boa constituição, de grande solidez, os tais vestígios que guardei desse patrulhamento de agosto de 1968.

O Estado Novo trouxe africanos a exposições organizadas em Portugal. Podem ver-se três fotografias publicadas na revista Ilustração, isto em outubro de 1932, aspetos da Grande Exposição Industrial Portuguesa que se realizou no Pavilhão dos Desportos, em 1932, são guineenses, na fotografia superior temos um ministro das Colónias, Armindo Monteiro, com a sua comitiva e sentados algumas figuras ilustres, porventura régulos e em baixo, numa fotografia, três fulas e noutra as mulheres fulas que acompanharam os régulos. A exposição de 1934 trouxe igualmente guineenses, elas revelaram-se um grande motivo de atração, todas de peito ao léu, houve fotografias de Domingos Alvão e Eduardo Malta, nomeado pintor oficial da exposição, fez vários retratos a lápis, produziram-se álbuns desses desenhos que evidenciam o risco talentoso de Malta. E assim chegamos ao acontecimento grandioso da Exposição do Mundo Português, foi o momento culminante em que o Estado Novo procurou mostrar a multidões imagens de um Império que era sobretudo conhecido por quem lia jornais e revistas, agora revelava-se para o orgulho dos portugueses qual era a dimensão daquela comunidade imperial imaginada.

Um Império de Papel dá-nos conta do que foram ficções e realizações, era um império longínquo que parecia ao alcance da mão e destinado à eternidade.


_____________

Nota do editor

Último post da serie de 29 de maio de 2025 >Guiné 61/74 - P26860: Notas de leitura (1802): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte II: A questão da assistência à frota branca, que atinge o seu auge com o Estado Novo, nos anos 40/50: em 1958 a "faina maior" tinha 77 unidades e 5736 homens (Luís Graça)