Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11) > Centro de Instrução Militar (CIM) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas bem podia ter sido o Djassi desta história...).
Foto (e legenda) : © Renato Monteiro (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Os "últimos moicanos" - Parte II
- QG/CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), instalado em Santa Luzia,
- QG/CCFAG (Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné), na fortaleza da Amura.
Em agosto de 1974 na CSJD tínhamos um ordenança, o Djassi, soldado nativo que aparentava ter já ultrapassado os 30 anos de idade e que, enquanto operacional, fora gravemente ferido, tendo-lhe sido retirado um pulmão e integrado nos serviços auxiliares. Estava ali colocado para efectuar pequenas tarefas relacionados com aquele Serviço.
O Djassi apresentava invariavelmente um semblante carregado e raramente esboçava qualquer sorriso, denotando, porventura, algum sofrimento pelo seu débil estado de saúde, mas era um indivíduo afável, educado, disciplinado e prestável. Dava gosto lidar com ele. Nunca o vi aceitar com azedume qualquer tarefa, oficial ou particular, que se lhe solicitasse.
Nessa altura, agosto de 1974, já muitas companhias tinham abandonado os seus quartéis no mato e regressado à Metrópole, e outras encontravam-se estacionadas em Bissau a aguardar igual destino.
Por essa razão, estavamos assoberbados com papelada decorrente do "fecho de contas" daquelas companhias, o que indiciava que nós, os do "ar condicionado", seríamos talvez os últimos a "abandonar o barco".
A situação era confusa. Sabíamos que iríamos abandonar a Guiné, mas não sabíamos como, nem se o faríamos definitivamente, nem quando.
Começou a correr a informação de que a partir de finais de agosto não seriam autorizadas férias a ninguém. Ora, eu e o meu camarada Silva, do Barreiro, nessa altura já os mais "velhinhos" da CSJD, com excepção do tenente-coronel e do major, estávamos há já mais de um ano sem gozar férias e começámos logo a tratar da papelada para o efeito.
Lá viemos de férias em meados de agosto e, entretanto, o "êxodo" continuava e com maior cadência.
Findas as férias, regressámos à Guiné dois dias depois da data em que foi reconhecida a independência por parte de Portugal - 10 de setembro de 1974.
As patrulhas na cidade eram efetuadas pela PM (Polícia Militar), conjuntamente com elementos do PAIGC, muitos estabelecimentos tinham encerrado, a tropa que ainda restava era composta de "piras" (ou "piriquitos"), oriundos das companhias mais recentemente chegadas à Guiné.
Logo tratámos de, junto do tenente-coronel, dar conhecimento da nossa "triste" situação e efetuar o "choradinho" adequado.
Fomos então incumbidos de queimar todo o arquivo morto da CSJD que ocupava totalmente uma daquelas pequenas vivendas tipo colonial e que era composto por processos instaurados desde o tempo em que ainda não havia guerra na "Província", após o que poderíamos "meter os papéis" para regressar à Metrópole...
A tarefa impunha alguma responsabilidade e cuidado pois não podia ficar qualquer fração de papel por arder, o que, nos processos mais volumosos, nos obrigava quase a arrancar folha por folha.
De quando em vez, um ou outro processo despertava a nossa curiosidade pelos objetos de prova que continha e cheguei mesmo à tentação de desviar alguns, mas o desejo de regressar a casa depressa e bem, falava mais alto.
A nossa vontade em terminar a tarefa o mais rapidamente possível era tanta que logo que o sol dava sinais de vida, lá íamos nós p'ra "incineradora" e um dia tivemos a sorte de nos cruzarmos com o ten-cor que, talvez sensibilizado pela nossa madrugadora atividade, nos mandou chamar para que "metêssemos a papelada para bazar dali".
A tarefa ainda não estava terminada, mas o ten-cor, face à nossa proficiência e empenho, achou por bem mandar para lá alguém mais "piriquito" e nós lá regressámos à Metrópole quinze dias depois de lá termos vindo no final das férias.
E foi numa deslocação a Bissau para, no mercado negro, "despachar" os últimos pesos que tinha comigo (na messe de sargentos de Santa Luzia já nada havia para comprar), que encontrei o Djassi, já civil, e que me interpelou de uma maneira agressiva como nunca imaginei que fosse capaz, confrontando-me com a situação para a qual o Exército Português o tinha atirado e dando-me a entender que, naquele momento, para ele, eu era o representante daquele Exército e exigia-me explicações que eu não lhe podia dar.
− Furriel, eu fui ensinado a respeitar a bandeira portuguesa desde que nasci, andei muitos anos no mato a lutar por Portugal, fui ferido várias vezes, fiquei sem um pulmão, sou português, sempre me considerei português!
− E agora, dão-me dinheiro e vão-se todos embora?!... O que vai ser de mim?!... O que é que o PAIGC vai fazer comigo?!
Naquele momento senti-me envergonhado por ainda pertencer ao Exército que abandonara à sua sorte o exemplar militar português que era o Djassi.
Emudeci e não me recordo de lhe ter dirigido grandes palavras de conforto para além de um lacónico:
Cabisbaixo e algo deprimido, retirei-me do local, mas confesso que, minutos depois, o egoísmo veio ao de cima e já só pensava nas "voltas" a dar no sentido de embarcar com destino à Metrópole o mais depressa possível.
Quando, tempos depois, já na Metrópole, comecei a ouvir os noticiários sobre os fuzilamentos de antigos militares portugueses da Guiné, muitas vezes me veio à memória (e continua a vir quando se fala no assunto) o exemplar militar Djassi e questiono-me sobre o destino que teria tido e se os capitães de Abril (na altura no poder) não teriam podido fazer mais por aqueles que combateram ao nosso lado.
Há muito que tinha em mente falar sobre o Djassi, ordenança da CSJD/QG/CTIG, mas como tenho o hábito de salpicar a minha "prosa" com tiradas pseudo-humorísticas (está-me no sangue), tenho alguma dificuldade de escrita para assuntos mais sérios como este.
Último poste da série > 17 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)