1. O ex-alf mil médico José Pardete Ferreira (1941-2021), membro da nossa Tabanca Grande, que, infelizmente, nos deixou há quase dois anos (em janeiro de 2021), é o autor de "O paparratos", um livro que pode ser classificado como um misto de narrativa histórica e de autobiografia, em que a realidade e a ficção se misturam. Já fizemos, no passado, três notas de leitura do livro (*),
A obra, a que o autor chama "romance", tem como subtítulo "novas crónicas da Guiné, 1969/71". Mas o arco temporal da acção é maior, abarcando, no essencial, a década de sessenta e de setenta (até ao 25 de Abril), com dois acontecimentos marcantes de que o autor foi, ele próprio, protagonista: (i) a crise académica de 1962; e (ii) e a sua mobilização, em fevereiro de 1969, para o teatro de operações da Guiné, como alferes mil médico.
Uma das personagens da narrativa é o João Pekoff (um "alter ego" do autor, José Pardete), apresentado como estudante activista da crise académica de 1962, em Lisboa, ligado à JUC - Juventude Universitária Carólica, e depois médico no CAOP, em Teixeira Pinto (de fevereiro a junho de 1969) e no HM 241, em Bissau (até ao princípio de 1971).
Lisboeta, nascido em 1941, filho único, morava, com os pais, no Bairro das Colónias, frequentando, desde cedo, o Café Colonial (que ainda hoje existe, na Av Almirante Reis, aos Anjos; inaugurado em 1934, foi tertúlia e café de estudantes, transformado entretanto em pastelaria, em 1978, hoje Café Pastelaria Colonial).Delicioso, como já o dissemos, é o retrato que ele faz faz de alguns dos históricos dirigentes do movimento estudantil dessa época: não é difícil descobrir por detrás do pseudónimo Ernesto Figueira, estudante de medicina, a figura do futuro psiquiatra Eurico Figueiredo (n. 1939, em Vila Real), ou do João Santos, estudante de direito, o futuro presidente da República, Jorge Sampaio. Ambos frequentavam, tal como o João Pekoff, o Café Roma, junto à Praça de Londres, na Av de Roma (pp. 23 e ss).
Também achámos, na altura, interessante "a ronda dos cafés" (pp. 81 e ss.), uma reconstituição do roteiro histórico dos cafés de estudantes e tertúlias da Lisboa dos anos 50, 60 e 70 (até ao 25 de Abril). Tínhamos prometido falar deste roteiro. Surge agora a oportunidade.(**)
Mal ou bem, os cafés das Avenidas Novas (Roma, Vá-Vá, Monte Carlo...) estão associados, nos anos 50/60/70, à boémia estudantil, animação cultural e sobretudo uma certa atmosfera de "contestação e conspiração" dos jovens que frequentavam a universidade naquele tempo em Lisboa (nomeadamente a Universidade Clássica de Lisboa: letras, direito, filosofia, história...; mas também a Universidade Técnica de Lisboa (UTL), frequentada igualmente pelos alunos da Academia Militar que cursavam as engenharias, sem esquecer, na 7ª colina, no Quelhas, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), hoje ISEG. (Desde os anos 30 que estava integrado na UTL.)
Ainda não havia em 1962, o ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (criado em 1972, no Campo Grande e depois com instalações modernas (que eu fui inaugurar) na Av das Forças Armadas. A sua criação está associada ao nome de outro "católico progressista", o Adérito Sedas Nunes.(...) Em Lisboa, junto à Praça de Londres, na Avenida de Roma, havia um café com cerca de duzentos metros quadrados que dava pelo nome de Roma. Era um lugar preferencialmente frequentado por estudantes que, a troco de uma simples bica e de um copo de água, nele faziam biblioteca, com livros, sebentas, cadernos, papéis e outros objectos ligados à vida escolar pejando as mesas e cadeiras" (pág. 23).
Dois dos conhecidos líderes da crise estudantil de 1962 frequentavam o Roma: o José Santos (pseudónimo de Jorge Sampaio), já licenciado em direito (em 1961), e Ernesto Figueira (pseudónimo de Eurico Figueiredo, n. 1939, em Vila Real), estudante de medicina, futuro pisquiatra.
Jorge Sampaio (1939-2021) foi presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1959-1960 e em 1960-1961, e secretário-geral da Reunião Inter-Associações Académicas (RIA), em 1961-1962.A crise académica de 1962, em Lisboa, é desencadeada quando, a 24 de março, o Governo de Salazar proíbe, estupidamente, as comemorações tradicionais do Dia do Estudante, tendo a Polícia de Choque invadido a Cidade Universitária, e carregado sobre centenas de jovens, rapazes e raparigas.
(...) A greve de 1962, na sequência da proibição do Dia do Estudante, foi o resultado da luta de milhares de jovens católicos, sem partido, mas muito também da ação dos comunistas. Em cada Faculdade de Lisboa é possível destacar três ou quatro ativistas de um vasto conjunto:
O João Bonifácio, ex-furriel mil SAM, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e que vive no Canadá, evocou aqui no poste P1592, o exemplo do Medeiros Ferreira que, como é publicamente sabido, não compareceu ao embarque, para a Guiné . Ele é, das nossas figuras públicas, talvez o mais conhecido dos desertores da guerra colonial.
Na foto acima, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mário Soares (I Governo Constitucional, 1976/78), historiador e professor universitário (FSCH/NOVA), já falecido, José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014), aparece assinalado com um círculo a vermelho.
Foto (e legenda) : © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)