sexta-feira, 10 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20838: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Trata-se de uma revisitação, no meu livro A Viagem do Tangomau, editado pelo Círculo de Leitores em 2012, falo da minha experiência na terra da bagacina, a terrível experiência de ter sido gerente de messe e a indignar desde o primeiro dia os senhores oficiais dando-lhes a comida mais barata, andava por ali o espetro de um anterior gerente de messe que pagava às prestações centenas de contos de prejuízo, felizmente que o Comandante do Batalhão, ele próprio amesendado com a família, me pôs rapidamente na rua.
Tive, nessas recordações do livro, circunstância para falar da descoberta da cidade e de quase toda a ilha, das amizades firmadas, sobretudo com o José Medeiros Ferreira, o casal que me recebeu e onde passava os fins de semana, a fabulosa festa de Natal, expediente encontrado para receber carinhosamente os instruendos marienses, as condições atmosféricas não tinham permitido que fossem passar o Natal à sua ilha, fez-se festa da rija nos Arrifes, com consoada organizada por muitas boas vontades.
O que aqui se conta tem laivos de revisitação, obedece a dois propósitos, homenagear uma amiga recentemente falecida, Cremilde Tapia e saborear uma porção de fotografias recentemente descobertas. Foram tempos que ficaram gravados no meu coração, guardo-lhes devoção e saudade.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

Mário Beja Santos

Adaptei-me facilmente à cidade de Ponta Delgada, uma escala perfeitamente humana, ganhei apreço ao basalto e às tonalidades cinza, como se fosse o espetro da lava, as belíssimas calçadas, empedrados perfeitos, passeios muitas vezes estreitos, mas na época o trânsito era reduzido. Regressávamos da instrução, e depois da higiene doméstica, cada um partia para o seu destino, só os continentais é que tinham que tratar de si, os oficiais micaelenses tinham as suas casas. Aluguei quarto na Rua de Lisboa, n.º 31, e era comensal junto do município, um café com porta giratória Arte Deco, o Nacional. Comensal significava que tinha direito a sopa, um prato de peixe ou carne, uma peça de fruta da região (eu pelava-me pelo ananás), havia por vezes uma entrada de queijo fresco com pimenta da terra. As contas bem controladas, um aspirante auferia cerca de 1100 escudos, havia que pagar o quarto, com tratamento de roupas, e as despesas de comensal. Não dava para uma vida estouvada. O Teatro Micaelense oferecia regularmente cinema e concertos com um ou dois solistas, regra-geral artistas em fase de arranque oriundos dos EUA e Canadá. Com bom tempo, ia para o Largo de São Francisco e lia até à hora de jantar. Com mau tempo, ia para o Café Gil onde à noite aparecia o José Medeiros Ferreira, tínhamos estado juntos na recruta e especialidade em Mafra, partiremos de Ponta Delgada para a Amadora, foi nos Açores que firmámos uma gratíssima amizade.

Largo do Município com a estátua de São Miguel Arcanjo, Ponta Delgada

Portas da cidade, Ponta Delgada

Esquina do Largo 2 de Março com vista do Palácio da Conceição, Ponta Delgada

José Medeiros Ferreira

A Avenida Marginal era muitíssimo mais reduzida do que é hoje, agora está totalmente rasgada pela nascente. Os primeiros passeios eram de pura exploração, contemplar a Matriz, manuelina de branca, barroca de negridão basáltica. Barroco é o que não falta em Ponta Delgada. Os antigos conventos do Campo de S. Francisco, o edifício do Museu Carlos Machado (antigo Convento de Santo André), a fachada jesuíta da Igreja do Colégio, ao tempo indisponível ao público, mas só a fachada dava para se ficar um bom tempo a saborear aquela composição paradoxalmente austera e voluptuosa. O século XIX deixou marcas indeléveis na arquitetura, basta pensar no Palácio de Santana.

Teatro Micaelense, Ponta Delgada

Largo de São Francisco, Ponta Delgada

O capelão dos Arrifes era o Padre Couto Tavares, que vivia no seminário. Intrigou-se por eu não ter ali nem família nem amigos, fez questão de me apresentar a um casal que habitava numa moradia na Rua Segunda de Santa Clara, n.º 2, ele, de nome Marino Teves Lemos, ela, Maria, a quem passarei a chamar a “mãe do oceano”. Impuseram que eu ali me fosse amesendar aos sábados e domingos, acedi inicialmente, até porque o Marino se ocupava de uma correspondência colossal com uma obra qualquer relacionada com cursos de cristandade, pôs-me o gira-discos à disposição, um cadeirão confortável, lia e ouvia música. É num desses sábados ou domingos que irrompe pela sala um vozeirão, uma mulher alta com um fato roxo, ia conhecer Maria Cremilde Morgado Tapia, será a madrinha da minha filha Glória, em sua casa, na Rua da Alegria 6A, bem perto da casa de Maria e Marino, elas passarão as férias de Verão, inesquecíveis.

Em casa de Maria e Marino Teves Lemos, na companhia da Maria Cremilde Tapia e José Braga Chaves

Dei duas recrutas no BII N.º18, a primeira com mancebos fundamentalmente de Santa Maria (mas havia gente da Graciosa e do Faial, pasme-se), começou em outubro e findou em cima do Natal, um dos mais belos natais da minha vida, voltarei a esse evento; a segunda, era exclusivamente composta por micaelenses. Ora um dos meus instruendos de Santa Maria, José Braga Chaves, de Vila do Porto, chamou-me rapidamente a atenção porque tinha o indicador da mão direita imobilizado, ou quase, fazia movimentos muito lentos, ele referiu-me ter tido um acidente em pequeno, ficara assim. Não me conformei. Pedi uma entrevista a uma das sumidades da terra, o Dr. Furtado Lima, se o podia operar, era inconcebível um homem ir para a guerra com tal limitação. Propôs-se fazer operação, coisa de somenos importância, havia que lancetar e corrigir, talvez um nervo ou um tendão, para o caso pouco importa, pediu-me uma importância, respondi-lhe que lhe pagaria todos os meses em prestações, aceitou. O Zé fez a convalescença em casa da Maria e do Marino, nessa altura também ali se aboletava uma professora do Liceu Antero de Quental, Isabel Bracourt.

Imagine-se a comoção que senti quando dei por este pequeno conjunto de fotografias dos três e os dois em casa dos nossos generosos anfitriões. O Zé foi para Moçambique, trocámos correspondência. Veio e ficou a viver em São Miguel, trabalhando na meteorologia do aeroporto, casou com a Fátima, já falecida. A vida separou-nos temporariamente, a ternura é intemporal. Perdi o rasto à Isabel Bracourt. A Maria e o Marino já partiram deste mundo, não me ocorre nenhum adjetivo satisfatório que expresse a minha gratidão pelo bem que me (e nos) fizeram. Quando regressava a Ponta Delgada ia visitar a neta, então a trabalhar na biblioteca da universidade. Um dos filhos do casal, Álvaro Teves Lemos, estava na Guiné na altura em que eu dava ali recrutas. Não descansámos enquanto não chegámos à fala, aqueles pais, o Álvaro compreendeu imediatamente, tinham tido um papel tão construtivo naqueles meses micaelenses que era impossível que ele não quisesse saber as histórias de todos aqueles tempos. Cremilde Tapia fazia questão de me ir mostrando os belos rincões da ilha. O primeiro passeio teve como itinerário S. Roque, a Praia do Pópulo, a Lagoa, a Serra da Água de Pau, e chegados aos Remédios fui confrontado com um testemunho único da natureza, a Lagoa do Fogo e depois o Pico da Barrosa, daqui tem-se uma vista simultânea das costas Norte e Sul, avista-se até à Ribeira Grande. Foi um passeio de estalo. A sedução pela ilha assentara raízes.

(continua)
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Nota do editor

Primeiro poste de 3 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

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