sexta-feira, 3 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 
Reencontrar uma fotografia que tem mais de cinquenta anos, associada ao pré-anúncio de que a Guiné está à espreita e me vai receber de braços abertos, suscitou um conjunto de recordações em torno de perto de meio ano que vivi em S. Miguel, e que teve uma importância excecional na minha vida. 
Como os mais jovens não acreditam que aquele mundo existiu, tal qual aqui se recorda, permito-me trazer à vossa presença este cadinho de recordações. De associação com essa vida militar, novinho em folha, abria-se um capítulo de amizades inquebrantáveis e de uma adoração por aquela terra que seguramente irá até ao final dos meus tempos. Dessas amizades aqui farei um bosquejo, gente afetuosíssima que me preparou moralmente para a experiência guineense. Vão partindo, como ainda recentemente partiu uma distintíssima figura micaelense, Cremilde Tapia, senhora dadivosa, voluntária da generosidade e da dedicação à causa dos mais necessitados. Todo este rasurado lhe será dedicado, pelo bem que me fez e aos meus familiares, incluindo minha mãe, que se despediu de mim nessas duas partidas, para Ponta Delgada e para a Guiné, com o mesmo apelo: "Peço a Deus que tu regresses são e salvo"

Um abraço do 
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

Mário Beja Santos

“Olha, pai, andei a remexer nas gavetas do meu quarto, encontrei esta tua fotografia, tenho a impressão que tu tinhas ido para a tropa, tens um ar resignado mas não pareces triste. Como foi?”.

Peguei na imagem, há quem diga que não nos conseguimos rever naquilo que éramos, há mais de cinquenta anos atrás, mas não houve hesitação no reconhecimento, aquela boina que eu compunha como se fosse uma boina basca, a boa disposição de ter aprendido como dava jeito ter o corpo moldado para a guerra no horizonte, sem remissão. Expliquei à Joana que acabara de ser promovido a Aspirante Oficial Miliciano, com classificação baixíssima, tudo devido a uma incompetência medular para mexer no armamento, não que me custasse limpar a Mauser ou a G3, aprendi as limpezas domésticas muito novo, não era essa a dificuldade, ao montar qualquer arma sobravam-me sempre peças. Atingira o objetivo maior, certificar-me que o corpo estava apto para as grandes fadigas, como se comprovou no exame rigoroso de mais de dois anos na Guiné, a calcar laterite por tudo quanto era sítio. Promovido a Aspirante e lançado a caminho de Ponta Delgada, com colocação no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18, Arrifes.

E a seguir, outras fotografias se encadearam. A minha mãe entendeu que devia convidar dois grandes amigos meus, no jantar de despedida, em 6 de outubro de 1967. Veio a Helena Vidal, minha professora de inglês e alemão, foi ela que me levou ao British Institute ver aqueles espantosos ciclos de cinema dos anos 1950 e 1960, com Sir Laurence Olivier e Alec Guinness à cabeça; e o Eduardo Canto e Castro, amizade firmada a partir do primeiro ano no Colégio Moderno. Para meu infortúnio, estes amigos diletos já desapareceram. Na outra fotografia, já estou no cais, a seguir embarco no Carvalho Araújo. A Amélia Lança e a Margarida Silveira, duas amigas de peito, talvez convencidas que eu partia para a Polinésia e sem regresso, acenaram até ao barco desaparecer no horizonte. A minha mãe não foi, temia comover-se. Despedimo-nos à porta de casa. E retive o que ela me disse, e que irá repetir quando a beijei pela última vez no cais da Rocha do Conde de Óbidos: “Peço a Deus que tu regresses são e salvo”. Terá pedido insistentemente, a roda da fortuna acobertou-nos.




Estou absolutamente convicto que um jovem açoriano tem a maior das dificuldades em acreditar no que eu já escrevi sobre Ponta Delgada e a vida em S. Miguel. Toda a zona da baía à volta do porto, a ida pela Calheta até à Lagoa, são paisagens de algum modo irreconhecíveis. Chegámos à noite, despedi-me do José Medeiros Ferreira, que partiu para a Fajã de Baixo, e um amigo do meu cunhado, Dragomir Knapic, levou-me até aos Arrifes, dormi no quartel, no dia seguinte começou a pesquisa de quarto, fiquei a viver num quarto alugado na Rua de Lisboa, n.º 31, muito perto do Coliseu Micaelense e da Cervejaria Melo Abreu, apanhava o Largo 2 de Março e antes de chegar às portas da cidade virava à direita para o Café Nacional, mesmo em frente da Câmara Municipal, fiz contrato de comensal, jantava ali todos os dias, sem exceção. Quando regresso a Ponta Delgada, e tem sido com muita regularidade, procura permanências e as grandes mudanças. Não sei se há outro ponto do país que beneficiou tanto com o regime democrático. Os recrutas que tive adoravam a tropa, por razões elementares: nunca tinham comido pequeno-almoço, almoço e jantar, carne e peixe todos os dias; muitos não sabiam o que era o chuveiro, o champô, o fazer diariamente a barba. Jovens dóceis e conviventes, não sei se jamais voltarei a encontrar gente que fala com tanta sinceridade, sem esconder como vive lá na terra, como trabalha, os sonhos que tem, alguns passam por viajar até ao Canadá ou Massachusetts ou San Diego, quando vierem da guerra, ali não há ilusões que o nosso destino é África.



A minha filha traz-me uma bandejinha em prata, está lá gravado “Lembrança do 5.º Pelotão” por trás vem o nome da ourivesaria em Ponta Delgada. Esta imagem já a publiquei no blogue, não ilude a boa disposição reinante. Eu estou a ajaezar o Botas, era um moço, pasme-se, que nunca tinha vindo até Ponta Delgada, quando no fim da recruta, com autorização superior, meti esta malta toda numa camioneta e viemos ver ao cinema Lord Jim, de Richard Brooks, com Peter O’Toole, James Mason e Curd Jürgens, o Botas estava siderado, tinha lágrima no olho, quis voltar. Não sei se voltou, sei que estávamos todos a crescer e a mudar, foi uma alegria esta experiência de duas recrutas, se já trazia o corpinho preparado para as grandes andanças aqui se revelou o que se guardava como enigma: a capacidade de liderança, uma forma de autoridade natural, sempre a dar o exemplo, dispensando a gritaria e o palavreado brutal. Liderar é um dom que se burila, com a vantagem de se poder dispensar, quando se pretende passar para o anonimato, viver sem chefiar.


A disposição do quartel terá que surpreender muita gente, se não lhe conhecer os antecedentes. Na presunção de que os Açores podiam vir a ser invadidos, na II Guerra Mundial, criou-se aqui um quartel-hospital, se se reparar bem organizaram-se enfermarias que, quando chegou ao tempo da guerra de África, rapidamente se adaptaram a casernas. Naquele longínquo dia de outubro de 1967, quando acordei com os toques do corneteiro, saindo de uma cama com as mantas todas molhadas, e vim à porta, não eram estas as nuvens, era a bruma, que desapareceu a meio da manhã, e todo o esplendor daquela terra fértil, verdejante, pejada de vacas, encheu o meu olhar. À volta, estradas em paralelepípedos basálticos, por aí se farão marchas e corridas, passando por sítios belíssimos, como S. Vicente Ferreira, ainda no concelho de Ponta Delgada, e Fenais da Ajuda, já no concelho de Ribeira Grande.


Os jovens micaelenses duvidarão desta história, de pungente miséria. Os Arrifes, acima de Ponta Delgada, eram uma freguesia muito populosa, casais com muitos filhos, vivendo em condições da máxima indigência. Apanhávamos um transporte no Largo 2 de Março, perto do Palácio da Conceição, e vínhamos por aí acima, até aos Arrifes, a vida militar começava pelas 8:30 da manhã. O período de almoço era curto, de modo a concluir-se o dia de faina pelas cinco da tarde, voltava-se a tomar transporte de regresso a Ponta Delgada, não dava para conhecer o que era a vida do povoado. Mas havia as funções de oficial de dia, e então, inopinadamente, surgiu a realidade das grandes carências. Findo o jantar, surpreendeu-me um conjunto de crianças junto à porta de armas, traziam umas latas na mão. Perguntei na cozinha o que era aquilo: vinham à espera de sobras, sopa, restos de batatas e de pão. Dirigi-me ao responsável, mandei abrir uma lata de atum e tirar peças de fruta da dispensa. O homem olhou-me boquiaberto, como é que o meu aspirante vai descalçar a bota com o vagomestre. Não te preocupes, hei de encontrar uma justificação. Que se conseguiu, havia felizmente no dia seguinte instrução noturna, justificou-se como comida suplementar. Iremos ver mais imagens destas crianças, virão regularmente pedir-me para eu ser oficial de dia, queriam jantar reforçado. Ninguém suspeita nos dias de hoje a miséria que havia na região.


Também este postal já apareceu no blogue, enviei-o à minha mãe, para lhe mostrar a vida dos Arrifes, aqueles moinhos que porventura foram trazidos por bretões ou flamengos. Fiz amizades para toda a vida. Com as inevitáveis perdas. O Capelão dos Arrifes era o Padre Agostinho do Couto Tavares, quis saber como é que eu passava os fins de semana, achou que havia para ali isolamento a mais, e tudo fez para me apresentar a uma família que, como veremos, teve um papel relevantíssimo naquele meu tempo micaelense.


Monsenhor Agostinho do Couto Tavares, o guardião do Senhor Santo Cristo

(Continua)
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